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Sala 113

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Arrependido

Arrependido

- Por favor, o senhor espere um momento, que já retorno.

Disse o atendente da empresa, indicando-me uma poltrona que havia numa pequena sala de espera. Sentei-me, peguei um jornal que estava sobre uma mesinha de centro, cruzei as pernas e comecei a folheá-lo sem compromisso.

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Foi quando me deparei com aquela matéria. Falava sobre o suicídio de um funcionário de uma grande empresa conhecida no ramo de alimentação. Indignado com seu salário e com o tratamento que recebia por parte dos seus chefes, o homem solitário teria atirado em seu crânio na própria sala onde trabalhava. Deixara um bilhete para seus superiores, dizendo que não agüentava aquela indiferença e desprezo que sentia por parte deles, em relação ao seu trabalho e compromisso com a empresa.

Dizia ainda, a reportagem, que Dione Silvério, este era seu nome, um homem de 42 anos de idade, não tinha esposa e nem filhos. Seus pais haviam falecido há mais de 10 anos e ele, por não ter irmãos, nem parentes próximos, era um homem solitário. A foto de um homem aparentando ser magrinho e baixo, já com os cabelos raleando, estampava o canto da matéria. Eu fico bobo de ver o quanto os meios de comunicação escarafuncham a vida de alguém, quando querem. Descobrem tudo sobre a pessoa, mesmo aquelas consideradas sozinhas e acabaram de cometer suicídio. É incrível. Bom, sobre o pobre Dione, o que lhe restou foi um enterro sem muita gente e nada de choro. Somente alguns colegas de trabalho compareceram ao enterro e nenhum deles fazia parte dos cargos mais altos do que o dele.

Pouco tempo depois, lá estava eu, na minha sala, mexendo em alguma coisa no meu computador. A porta se abriu lentamente e, quando olhei, vi que era minha chefe. Pelo menos, parecia ser, pelo ar altivo que ela mantinha. Mas, devo confessar, a mulher era uma gostosona daquelas!

MOZART J. FIALHO - Olá, boa tarde. – perguntei, enquanto me levantava e estendia a mão direita para cumprimentá-la.

Ela lançou-me dois olhares suspeitos: um nos olhos, como que perguntando: “quem é você?”; o outro, para a mão estendida feito boba, segurando-se para não tremer no ar, como que perguntando: “quem é você para me estender essa mão boba?”. Enfim, quando eu ia abaixá-la, completamente sem graça, ela estendeu a sua e, finalmente, cumprimentou-me. - Boa tarde. Quem é o senhor?

Ela poderia, pelo menos, ter sido menos ríspida neste cumprimento. Mas, tudo bem, é uma mulher de cargo excepcionalmente alto e deve, com certeza, descontar sua raiva sobre os homens. Mas, precisava ser tão bonita, meu Deus? - Oi. Meu nome é Euzébio Marques de Souza. Sou novo aqui na empresa e... - Eu sei. Só vim me apresentar ao senhor: meu nome é Júlia Passos, diretora executiva desta empresa. Esta é a primeira e, provavelmente, a única vez que o senhor terá a chance de conversar comigo. Portanto, aproveite e fale logo suas pretensões e ofertas para a nossa empresa, ou tire alguma dúvida diretamente com o alto escalão. Que sou eu.

- A senhora é muito, muito gostosa! Mas, é mais dura do que pedra. Será assim na cama, também? – esse foi o pensamento que consegui ter, naquele momento.

Enfim, o que eu realmente falei para a chefe, quase gaguejando, foi o seguinte:

CONTOS AO ENTARDECER - Tudo bem. Estou bem. A empresa está bem. Tudo está perfeitamente bem. Não tenho dúvida nenhuma, por enquanto. Obrigado, dona Júlia...

Fui imediatamente interrompido. - Passos. Senhora Passos.

Virou as costas, mostrando-as a mim através daquele “V” enorme que fazia seu vestido vermelho, que lhe descia até à altura dos joelhos (os mais lindos que já vi), e saiu da sala, batendo a porta. - Sapatão! – cala a boca, cabeça!

Continuei meu trabalho normalmente. Era coisa simples: cadastrar novos clientes e, como eu já havia sido digitador por muitos anos, foi simples demais. Sem falar que os programas de computador hoje em dia são muito mais amigáveis.

Menos de meia-hora depois, entrou outra pessoa na minha sala. Desta vez, um senhor de uns 65 anos, vestido em um terno preto italiano – com certeza, Armani – e uma carranca na fuça que assusta qualquer novato. Da mesma forma que fiz com a dona... digo, senhora Passos, fiz com este senhor. Mas, ao contrário dela, ele segurou minha mão firmemente e só a soltou depois que terminou de falar: - O senhor deve ser o senhor Marques, ou senhor Souza. Não importa. O que importa é que, nesta empresa, senhor, não aceitamos qualquer tipo de cantada a funcionárias...

Será que ele está pensando que eu cantei a senhora Passos? - Não aceitamos envolvimento emocional nenhum, muito menos homossexual...

Só falta ele achar que sou gay. - Uso de drogas não é permitido, uso de produtos para cabelos e maquiagens sendo passadas nas mesas de trabalho... local de trabalho é local de trabalho!

MOZART J. FIALHO

Até agora, não ouvi nada que fosse diretamente para mim. - Não aceitamos que se fume em qualquer dependência da empresa, nem mesmo no quintal...

Ah, isso foi sacanagem. - Se o senhor for visto com alguma pessoa daqui da empresa fora do horário de trabalho, esperamos sinceramente que seja por motivos profissionais, pois caso contrário, os dois serão imediatamente colocados na sala 113.

Sala 113? Devo ter ficado com ar de quem realmente se perdera naquela explicação toda, pois o homem, ainda apertando minha mão e não deixando que eu me sentasse de forma alguma, me olhou e parece ter percebido minha dúvida, pois respondeu de pronto: - A sala 113 é o lugar da empresa onde ninguém deseja ficar, meu caro senhor. É tudo que posso revelar ao senhor.

Pronto. Mais escureceu do que esclareceu. Bom, pelo menos, soltou minha mão. Ia se virando para sair da sala, mas, deu meia volta, pegou novamente minha mão que mal havia baixado e disse: - A propósito, meu nome é Simão. Euclides Simão, o diretor administrativo.

E saiu de minha sala sem estampar nem um sorriso, nem um nada. Expressão de gente morta. Mas, deixa prá lá. O importante é que, nessa dificuldade toda, eu consegui um emprego. Afinal, preciso pagar minhas contas, não é?

Retornei ao meu trabalho. “Sala 113... que diabos terá essa sala?”, minha cabeça, mais uma vez, não me deixando em paz e louca para atiçar minha curiosidade. A curiosidade é um sentido engraçado: faz a gente fazer coisas que jamais faria, em situações normais. Há um velho ditado que diz que “a curiosidade matou o gato”. Já ouvi dizer que esse ditado surgiu ainda na idade média, no tempo das bruxas, quando os gatos, principalmente os pretos, eram freqüentemente as-

CONTOS AO ENTARDECER sociados a elas. Então, alguém muito ocupado e preocupado com a população, inventou um jeito de eliminá-los: punha iscas em armadilhas que matavam os gatos curiosos que chegavam para pegá-las. Daí, “a curiosidade matou o gato”. Imagino que essa sala seja mais uma coisa psicológica do que realmente física. Bom, deixa eu trabalhar.

Parte II

O almoço foi interessante. Conheci uma garota do departamento de compras, a secretária do senhor Bernardes, o gerente de compras (claro!). Ela não me disse muita coisa pessoal, mas falou que trabalhar ali era muito bom, que eu ia acabar me acostumando a algumas regras, com os demais colegas (aliás, ô pessoal fechado!) e, principalmente, com a diretoria toda. Fiz menção de perguntar a respeito da sala 113, mas, deixei para depois. Talvez, aquela não fosse realmente a hora.

Me deu uma vontade louca de fumar, mas, lembrei-me do que o grande-chefe-touro-sentado havia me dito, há umas duas horas antes: “- Não aceitamos que se fume em qualquer dependência da empresa, nem mesmo no quintal...”. Foda! Mas, dane-se! Fumante arruma desculpa pra tudo, mesmo. Dei um jeito de sair das dependências da empresa e ir para a calçada. No corredor, enquanto me dirigia à saída, passaram por mim quatro colegas: duas mulheres e dois homens. Estranhos ao máximo, tanto quanto os diretores, tinham seus olhos

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MOZART J. FIALHO muito abertos, como se tivessem olhando fixamente para a Medusa, antes de se tornarem estátuas. Mal me cumprimentaram.

Sabe, sempre tive esse apego pelo ato de cumprimentar. Afinal, estamos todos num mesmo lugar, dividimos a mesma bola no meio de um universo sobre o qual não sabemos nem 0,1%, vamos todos morrer e perder esse corpo que usamos, ninguém de nós defeca com essência de frutas, e muita gente ainda se acha melhor do que os outros... Sou louco pra encontrar esse tipo de gente depois que morrer, para perguntar se valeu a pena ser tão babaca enquanto vivia na Terra.

Finalmente, cheguei na calçada. Olhei para os lados e a rua estava completamente vazia e calma. Acendi meu cigarro e, de relance, pude notar que a câmera de vigilância da entrada do prédio de três andares se mexeu, apontando em minha direção. Com o cigarro entre dois dedos, olhei para a câmera, levantei a mão pra mostrar o cigarro e, com um sorriso amarelo, mostrei o que estava fazendo ali fora. A câmera não teve nenhuma reação. Como eu esperava mesmo que fosse.

E a sala 113? Comecei a figurar o local. Uma sala escura, com uma ou duas cadeiras de aço cheias de correias e correntes no centro, uma de costas para a outra. Um capacete pendurado em cada uma, conectado por fios a um

CONTOS AO ENTARDECER aparelho esquisito que fica sobre uma mesa. O chão molhado e uma câmara fechada hermeticamente e separada do restante da sala. Um lugar para torturas, simplesmente. Eu ri. Ri por dentro, de tanta besteira que passava por essa minha cabeça inquieta. Mesmo assim, por alguns instantes, pude imaginar-me sentado naquela cadeira. Credo!

Os ponteiros já beiravam as quatro da tarde, quando um senhor franzino e pálido entrou na minha sala. Olhei para ele e pensei: “Já o vi em algum lugar...”. Ao contrário dos demais, este imediata e estranhamente, estendeu- sua mão esquerda para cumprimentar-me. Estranho ser com a mão esquerda, mas, ao menos, a estendeu a mim. - Boa tarde. Eu sou...

Com um sorriso, eu o interrompi, enquanto o cumprimentava. Já não estava mais agüentando aquele ar de mistério que todos ali estampavam e, sinceramente, era um local onde eu não voltaria para trabalhar no dia seguinte. - Já sei. O senhor é o diretor filosófico da empresa e aqui não se pode pensar muito.

Ele sorriu sem disfarçar seu bom humor. - Não, não chego a tanto. Assim como você, sou um funcionário comum, aqui dentro. Trabalho no almoxarifado que, por sinal, nem fica mais neste prédio. Fiquei sabendo do novo funcionário e só vim desejar a você boa sorte.

Senti meu rosto enrubescer-se. Que mancada! Ainda bem que o homem ali levara meu comentário ridículo para um lado mais comédia do que puramente crítico e, ao mesmo tempo, cínico que eu fizera. Apontei-lhe a cadeira e pedi para que se sentasse. Ele poderia ser a chave para os mistérios que rondavam minha cabeça perturbada e inquieta. - O senhor trabalha nesta empresa há quanto tempo?

Ele pensou, olhou para os lados, olhou para mim, sorriu-me e dis-

- Tenho pouco mais de quarenta. – Ele olhou para cima, como que procurando pelo resultado de uma conta na lousa, contou alguma coisa nos dedos e continuou: - Acho que uns 22 anos. Sua idade, eu creio. - Quase na mosca. Eu tinha dois anos quando o senhor começou aqui. - É. Naquele tempo as coisas eram diferentes. Os diretores eram todos amigos, chegados dos funcionários de baixo escalão. Constantemente, havia um ou outro diretor conversando abertamente com seus funcionários, que hoje são tratados mais como súditos do que como colaboradores da empresa. Até festas onde todo mundo era convidado faziam. Geralmente, numa de suas fazendas.

Eu notara essa vassalagem dos meus colegas, desde o primeiro instante que conversei com a secretária do senhor Bernardes. Mas, preferi não comentar isso com o homem do almoxarifado. E ele continuou: - Eu acho que essa coisa de computador e celular acabou deixando as pessoas mais frias, você não concorda, meu amigo novato? - Inteiramente, mas o que seria de nós sem a tecnologia? - Teríamos encontrado outra saída, eu acho. E uma saída que não nos tornasse, ao mesmo tempo, escravos e totalmente dependentes do dinheiro. Assim como as pessoas aqui desta empresa, principalmente, os donos e seus diretores, se tornaram. Não fazem nada com o celular descarregado e não conseguem mover uma vírgula sem que os computadores estejam por perto e ligados. Isso é dependência pura.

Aquele homem parecia ter mais coisas a ensinar-me do que eu tinha de dinheiro para receber no final do mês com meu trabalho. - Dependência da teia tecnológica que nós mesmos criamos. – comentei, de leve.

- Exatamente, meu amigo novato. E, por favor, não seja tão am-

CONTOS AO ENTARDECER bicioso a ponto de se tornar um avarento, mas, jamais deixe de ambicionar o que sua capacidade pode lhe proporcionar. Ambição demais é pecar; não ter ambição, é com o pouco se conformar. Sinceramente, foi a coisa mais certa que alguém poderia ter-me dito naqueles dias. Gostei das sábias palavras de meu “diretor filosófico”. Até ele se levantar e mencionar abrir a porta para sair:

- Obrigado, senhor... qual é mesmo o seu nome? - Dione. Dione Silvério. – disse-me, e saiu.

Droga! Eu sabia que o conhecia de algum lugar. Fiquei completamente sem jeito, a partir do momento em que aquela porta foi fechada. Eu olhava para a minha cadeira, para meu computador ligado com um screen saver da série “Mistérios” na tela e para o jornal... O jornal! O homem que trabalhou tantos anos numa empresa e, porque foi ignorado pelos seus superiores, resolveu suicidar-se. O homem que não tinha família, não tinha amigos e não teve lágrimas em seu enterro. O homem que sabia demais. Dione Silvério. O homem que se matou com um tiro na cabeça! - Deus do céu! Vou é vazar daqui!

Com as mãos trêmulas e a cabeça pensando em um monte de 31

MOZART J. FIALHO idiotices, eu mal conseguia procurar minhas coisas para dar no pé. Eu jogava o que encontrava no chão, procurando as chaves de minha moto, e não a encontrava de forma alguma. Meu capacete! A chave está dentro do capacete. Olhei para o canto da sala, onde eu (juro!) havia deixado o “cabeção”, mas, não o encontrei. Será que alguém entrou na minha sala e o pegou? Se sim, quem e por quê?

Naquele momento, pude ouvir gargalhadas do outro lado da porta vindas da sala. Com certeza, eram os funcionários-zumbis querendo me devorar. Ou devorar meu cérebro pensante. “Euzébio, você é um cara morto.”. Essa minha cabeça... Sei que fiquei descontrolado com o barulho, que não parava. Aquela que passaria a ser minha sala não tinha janelas, nem um alçapão, não tinha outra saída que não fosse a porta para a salona. “Fodido! Completamente fodido!”. Então, houve um estrondo, que chegou a estremecer o chão. “Putz! É o fim do mundo!”. E, de repente, silêncio. Silêncio total. Esperei um pou-

CONTOS AO ENTARDECER co e abri a porta bem pouquinho, de forma que eu pudesse entreolhar o ambiente e verificar se os zumbis continuavam por ali. Nada e ninguém. Somente o barulho ininterrupto do ventilador da fotocopiadora.

Agachado, saí para a salona, sempre do lado das paredes, onde a maioria das mesas podia me esconder. Minha respiração estava muito forte e eu podia sentir meu corpo tremendo. Eu estava com medo, com muito medo de morrer. Pensei em meus pais em casa, que deviam estar felizes porque o filho havia arrumado, finalmente, um emprego decente. Eles é que não sabiam onde vim parar. Daí, imaginei-os chorando ao lado de um caixão vazio... sim, porque os zumbis me devorariam por inteiro. Credo!

Quando me aproximei da porta da salona, que dava para o corredor da escada e, este, para a recepção, fiquei de certa forma aliviado. Sem me levantar, girei a maçaneta, abri a porta com toda a vontade do mundo e saí para o corredor. Quando me virei para descer os degraus, o que vejo: todos os funcionários ocupando os degraus da escada e olhando fixamente para cima, como que soubessem que eu iria descer ali naquele instante. Ouvi uma gritaria sem fim, mulheres e homens com sangue saindo pelas suas bocas, todos eles famintos. Tentei retornar, com a idéia fixa de saltar do primeiro andar, já que a salona possuía duas grandes janelas que davam para a área externa do prédio. Ao virar-me, deparei-me com outro sujeito, grande como um urso, que já esticara os braços e as mãos para segurar-me. Desvencilhei do monstro e saí correndo para a salona. Abri a primeira janela e, sem olhar para baixo, pulei...

Parte III

Agora, daqui onde estou, reconheço e recordo de tudo o que ocorreu. Lembro-me de uma festa, uma festa de arromba. Conheci uma garota, de nome Júlia, que deixou-me desconcertado e completamente apaixonado. Lembro-me de ela ter vindo até a mim e me entregado uma pílula. “Vai te deixar muito bem, não se preocupe.”. Eu a tomei sem cerimônia. Entre goles de vodka e outras sei-lá-quantas-pílulas,

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comecei a ver as pessoas da festa um tanto diferentes. Vi um jornal que falava sobre o suicídio de um homem, um tal Dione, mas não sei porque ele fizera isso. Teve um momento em que um amigo meu, Euclides, veio até a mim e perguntou-me se eu estava bem. Ele deve ter percebido alguma coisa, pois me segurava firme, enquanto eu lutava para me soltar e dizia estar tudo bem. Alguma coisa ocorreu comigo, porque em determinado momento eu olhava para cima e só via um monte de rostos, todos olhando para mim, como se algo realmente de muito grave tivesse acontecido. Lembro-me de ver esses rostos todos esvanecendo na escuridão. E a última coisa que me lembro, no entanto, foi ver meus pais ao lado de um caixão, chorando muito. Mas, não consigo ver o que sobrou de mim mesmo, a não ser estes pensamentos que acabei de escrever.

Postado em 8 Junho de 2007 por Mozart J. Fialho

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