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A Segunda Morte de Macário

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O Destino de Quon

O Destino de Quon

CONTOS AO ENTARDECER

Dizem, aqui pelas bandas de Goiás, que há muito tempo, um homem chamado Macário, mercador e viajante do interior, teria inventado sua morte, com um objetivo muito especial: receber dos caloteiros o dinheiro que lhe era devido. E, arriscam os mais afoitos, não era pouca, a dinheirama.

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Macário era casado com dona Gertrudes e pai de um casal de filhos, Apolinário Neto e Juvercina. Umas gracinhas. Ele, brutamontes de 33 anos de idade, por incrível que seja, não usava de seu corpanzil para impor respeito sobre os fregueses, pelo contrário, ou tentava usar de uma filosofia vã, ou tinha uma idéia mirabolante para conseguir êxito. Às vezes, funcionava, mas nem sempre.

E, assim, aquelas dívidas foram crescendo, as dívidas dele também, a mulher já começava a falar em se “afastar dos problemas”, os filhos pequenos já não tinham leite todo dia e, o que foi pior, o sensível coração de Macário foi amolecendo, perdendo cada vez mais as esperanças, até que um dia...

Macário tinha sido muito bem de vida, antes de se casar com Gertrudes. Já teve terras no sul de Goiás e costumava vender gado do bom pra Minas Gerais e pro norte de São Paulo. Pelo menos, era o que dizia, quando conheceu sua atual esposa, na época, moça de família, bem comportada, religiosa e culta, que acabou caindo nas graças do jovem que recém chegara à pequena cidade de São Francisco. Contrariando a vontade de seu Apolinário, pai dela, mas com o apoio disfarçado da mãe, dona Maricota, Gertrudes foi, então, morar com o possuidor e promissor vendedor de terras. Ah, e entendia muito bem de medicina natural, “uma herança dos tataravós índios”. Macário era um homem completo, mesmo que nos seus 25 anos, quando conheceu a moça. Dois anos depois, vieram os gêmeos, o que fez com que o sogro mudasse seu comportamento com a filha. Não com o genro. Com esse, pelo contrário, os diálogos passaram a ser mais ríspidos, com tons de cobrança por parte do fazendeiro, dizendo que jamais ouvira falar na família Miranda Pascoal, da qual o rapaz dizia

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MOZART J. FIALHO pertencer. Muito menos, acreditava que aquele papo de terras no sul era verdadeiro. Por respeito, ou mesmo por medo de perder o conforto que por ora tinha na casa dos sogros, onde o casal passou a morar, Macário limitava-se a dizer que um dia ia provar tudo para o sogro.

E esse dia, finalmente, chegou. Macário havia conseguido dinheiro com a venda de umas pequenas terras perto de São Francisco e preparou-se para a viagem até o sul, coisa que faria a cavalo e alguns mantimentos para os três ou quatro dias cerrado adentro. Ele traria uma carta escrita em punho pelos seus pais (ele ia pedir à mãe, já que o pai era falecido), além de uma fotografia de sua família, que era “um pecado não possuir em seu bolso algo tão valioso, quando tão distante de alguém”. E ele dizia sentir muitas saudades de sua “mãezinha”, que cuidou dele e de seus quatro irmãos com tanto carinho, amor e dedicação.

O combinado era que, dentro de, no máximo, três semanas, Macário estaria de volta, repleto de novidades e com o seu jeito alegre de ser. Isso era o que desejava a sua amada Gertrudes, porque, pelo sogro, este já sabia que Macário não iria voltar. Malandro ele conhecia de longe. Mas, preferiu ficar calado e não comentar nada com filha, nem com a esposa. Esperaria para ver no que iria dar.

Naquela época, comunicação não era algo tão fácil. Mesmo assim, no sexto dia de viagem de Macário, eis que Gertrudes recebe um telegrama do marido.

“Amor estou para chegar em meu destino PT Amo vós mercê PT”.

Essas poucas palavras fizeram-na sentir-se a mulher mais desejada e feliz do mundo. Ficou o dia inteiro com o telegrama em mãos, imaginando o que Macário poderia estar fazendo àquela hora. Com certeza, contando à mãe o quanto amava sua esposa e gostaria que ela estivesse junto com todos na fazenda em São Francisco.

E o tempo foi passando. Nada de novas notícias. Passados dois dias da data marcada para o retorno de Macário, Gertrudes já não se

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segurava mais. Sua preocupação a fazia ficar do lado de fora da casa por longos períodos, fosse dia, fosse noite, não importava. O telegrama, sempre em mãos, era a última e única notícia que tivera de seu amado durante aquela fatídica e desnecessária viagem.

Completava-se a quarta semana da falta do marido, quando chegou, à Fazenda dos Milagres, um mensageiro. O mesmo que havia trazido o telegrama, há uma semana e meia atrás. Chovia muito, no instante em que ele chegou. Apolinário pediu para que o rapaz entrasse, que desse a notícia no interior da casa e protegido da chuva. - E então, meu rapaz? Que mensagem nos traz, dessa vez? Tem novidade do meu genro? – perguntou Apolinário, numa ante-sala onde estavam só os dois. - Sim, senhor, tem. Nos foi passado que um cavalo, marcado como de sua propriedade, foi encontrado vagando sozinho lá pelas bandas da Serra dos Buritis, próximo a uma cachoeira. Encontraram, riacho abaixo, um pedaço de uma calça e uma botina. Como eu, pessoalmente, já sabia da viagem de seu genro, senhor, vim pessoalmente dar essa notícia, pois desconfio serem dele os objetos encontrados.

Mais dois dias passaram-se, até que Apolinário contasse para sua filha a verdade. Ela, no primeiro momento e numa reação mais

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MOZART J. FIALHO do que normal para esses casos, não acreditou no que o pai contou. Era impossível, porque ele era o homem que Deus havia mandado de presente a ela, que eles se amavam muito e que ele era um homem forte, não só na personalidade, como também no físico. Ela disse, ainda, que seu coração sentia que seu marido estava vivo, mas ferido, em algum lugar. E que deviam formar uma comitiva para irem ao seu socorro. E, se o pai não fizesse isso, ela mesma iria fazê-lo.

Apolinário podia ter todos os defeitos do mundo, um deles era não conseguir falar “não” para sua filha. No dia seguinte, conseguiu reunir alguns cavaleiros, muitos de sua própria fazenda, para irem numa comitiva à procura do genro. Reuniram-se cerca de 12 homens, levando consigo mais 6 cavalos extras e mantimento suficiente para 15 dias na mata. Apolinário, pessoalmente, dava as instruções e as coordenadas aos cavaleiros, quando alguém chega gritando no quintal da casa. - É ele!! É ele!! Ele voltou!!! Voltou!!!!

Era a ajudante da dona Maricota que surgia entre os pés de manga, com os braços em riste, acenando, parecendo assustada.

Alguns minutos depois, surge a figura de um homem, cambaleante e todo sujo, com suas roupas rasgadas e arranhões pelo corpo. Era Macário, que parecia estar voltando de uma reunião com o dito cujo. Abraçado pela esposa, foi levado diretamente para um demorado e revigorante banho. Depois do banho e de um bom descanso, explicaria o que lhe acontecera. Mas, isso, só foi feito no dia seguinte.

“(...) Foi quando deparei-me com três elementos mal-encarados, cada qual em seu alazão, armados até os dentes, prontos para desferirem-me golpes mortais (...) No meio daquela estrada, sem nada nas mãos para defender-me, pensei também em não entrar em desespero. Pensei em minha esposa, em meus filhos, em minha família... Apenas

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CONTOS AO ENTARDECER tentei passar por eles, que me encaravam como urubus observando a carniça, quando senti um golpe em minhas costas.”

As pessoas na sala prestavam atenção, atônitas, a cada palavra de Macário, que ainda falava com dificuldades. E ele continuou com sua estória quase trágica:

“(...) Caí do meu cavalo, que saiu em disparada, mas não me dei por vencido. Levantei-me e, do meu lado, e por minha sorte, um pedaço de pau veio parar nas minhas mãos, não sei como, que me serviu de arma para afugentar os atacantes. Naquele momento, minha querida família, eu me tornei quatro homens para enfrentar os quatro outros.”

Dos que ouviam aquela espantosa estória, o único nem tão admirado era o senhor Apolinário. Ele não acreditava em nenhuma palavra do genro, apesar de vê-lo todo machucado e parecido ter realmente saído de uma guerra particular.

Os dias foram passando, Macário retornava aos poucos ao seu habitual trabalho de vendedor de terras e aquele assunto ia ficando para trás. Até mesmo a família de Macário, que jamais apareceu, pediu ou deu notícias, caía no esquecimento. Uma família que ele nem mesmo conheceu.

Não demorou muito, Macário voltou a fazer maracutaias em seus negócios, vendendo terras que não existiam ou não lhe pertenciam. Normalmente, essas terras ficavam longe e, portanto, não era fácil vendê-las. Quando ele dizia que seus clientes lhe davam o cano, na verdade, estavam lhe jurando de morte. Só não o faziam de fato, devido ao respeito que tinham pelo coronel Apolinário. Mas, ele teria seu dia. Afinal, vender terras que não existiam era um crime muito maior do que matar alguém justamente por esse motivo. E isso já havia caído nos ouvidos do sogro de Macário há alguns meses, antes mesmo de seu misterioso desaparecimento.

Apolinário decidiu que era hora de virar o jogo. Mas, iria devagar. 109

MOZART J. FIALHO Por dias, procurou ser mais cortês com seu genro, até mesmo convidando-o para conhecer toda a fazenda, coisa que Macário ainda não tinha tido a chance. Em determinado local, a centenas de metros da sede da propriedade, cada um em um cavalo, Apolinário virou-se para Macário e, sério, compenetrado, disse:

“Olha aqui, seu safado. Eu lhe conheço muito bem, sei da laia que vós mercê pertence.” Macário assustou-se e sua expressão era de total surpresa. Das ruins, diga-se de passagem. O sogro continuou: “Vós mercê vai dar um jeito de sumir daqui! Se não fizer isso dentro de 15 dias, eu mando dar um sumiço no senhor!”. Dito isso, Apolinário virou seu cavalo, deu um tapa na popa do animal e saiu em disparada. Macário ficou ali, quieto, sem saber o que pensar ou nas palavras certas para falar com o sogro. Como é que ele descobriu, se é que ele descobriu alguma coisa?

A relação entre os dois mudou de água para o vinho e num repente que deixou surpresas Gertrudes e dona Maricota. Apolinário cada vez mais nervoso com a presença do rapaz e, este, cada vez com menos aptidão para as coisas. Parte do dia, ficava no quarto, sempre com alguma “dor aqui e ali”. Tudo o que ele havia construído, pensava, parecia estar desmoronando com muita rapidez. E sua esposa? E seus filhos? E seu conforto na fazenda? Como iria embora dali?

Quinze dias se passaram. Depois, trinta, sessenta, cem dias. Macário mostrava-se cada vez mais fraco e deprimido. Até o sogro, de vez em quando, parecia mostrar um pouco de compaixão, quando perguntava à filha como estava o “elemento”. Mais dois meses se passaram, com aquela rotina de sempre.

Macário, agora, caía inerte aos pés de sua sogra e sua esposa, na sala da casa, com uma das mãos no coração, que não suportou tanta pressão. Pressão aquela que ele mesmo criara, inventando um mundo que ele jamais poderia apresentar, um mundo onde sua solidão aprendera a criar e cultivar as mentiras que o tornavam um herdeiro de terras sem fim. Macário terminava sua vida ainda cedo, porque

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CONTOS AO ENTARDECER seu coração não suportara mais o medo que o cercava, a sensação de inaptidão para as coisas, o medo de machucar as pessoas que ele passara a amar e adotar com sua verdadeira família. Macário mal sabia, mas possuía um mal do coração, que talvez tenha sido o mesmo que extinguira sua família em tempos passados. Morreram todos muito cedo. Isso veio a ser descoberto pelo seu próprio sogro, alguns meses depois de sua morte, já que este solicitara ao seu “mensageiro particular” suspender toda a história do ex-interno Macário Jonathas Silva, órfão desde os 3 anos de idade, que ficou internado em um orfanato de Belo Horizonte, Minas Gerais, até fugir, aos 13 anos. Nunca mais fora encontrado, e não se sabe nada de sua vida, desde sua fuga até chegar na fazenda e conhecer Gertrudes.

O que acontecera em sua viagem, em parte, tinha explicação: os três homens que o cercaram eram, na verdade, peões contratados pelo sogro, para apenas pregar um susto no rapaz e tirar dele a verdade. Mas, garantiram os homens do coronel que avistaram, sim, Macário, mas não trocaram nenhuma palavra sequer, pois o perderam no caminho, mas ainda perto de São Francisco. Tudo indicava que Macário ficara louco no meio do cerrado e só conseguiu retornar para casa por instinto. Assim, pelo menos, acreditava Apolinário.

Os novos fatos descobertos pelo sogro ficaram somente entre algumas pessoas. Sua filha, por exemplo, foi poupada, para não ter manchada a imagem de um homem completamente misterioso, mas que soube fazer alguém feliz: Gertrudes.

Macário, aos olhos do povo, ficou conhecido como “o homem que morreu duas vezes”. Seu nome ficou gravado em um córrego da região e, para desespero de Apolinário, foi levantada uma igrejinha, em sua fazenda, que levava o singelo nome de Igreja de Macário. Para Gertrudes, não existira, no mundo, e além de Jesus Cristo, alguém mais puro. E assim continuou a vida em São Francisco, na Fazenda dos Milagres, no interior de Goiás.

Postado em 12 de Agosto de 2010

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