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Carrasco. Uma ficção de verdade

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Frito

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CONTOS AO ENTARDECER

Aquele jovem era temido na comunidade, ele sabia disso. E aproveitava-se dessa condição para obter vantagens e até fazia, assim, seu salário. Diário. Nas contas do próprio, já haviam sido 23. Mas, nada, a polícia contestava a quem perguntasse: “foram mais de 40”, dizia qualquer policial.

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Apenas 17 anos e já se dava como o rei do morro. Não havia páreo para ele. Fernando, Nandinho, Macuco, Cuco, Larica... Eram mais de dez seus apelidos, mas tinha predileção, mesmo, por Carrasco. Esse era seu nick, como também gostava de dizer.

Carrasco, ou Fernando Rosa dos Santos, nasceu nos arredores de Brasília, vindo de uma família muito pobre e filho de pais evangélicos. Faziam de tudo para que o moleque viesse a ser “alguém na vida”. Fernando frequentou os cultos, sem faltar um dia com seus pais, por mais de 12 anos, até conhecer o outro lado da vida. Até tornar-se, primeiramente, Nandinho, e chegar, então, a Carrasco. Isso, depois de sua quinta vítima, a qual ele matou afogando-a em ácido sulfúrico. Nessa época, Fernando ainda estava com 15 anos.

Mas, esse não foi o pior crime que ele cometeu. Esse serviu apenas para lhe dar a nova alcunha. O que realmente impressionou toda a cidade foi quando ele mesmo armou uma cilada para matar o pastor de sua igreja, na intenção de roubá-lo. Ele ligou para o pastor no início da noite, pedindo a ele que o ajudasse, que queria mudar de vida. O pastor Joaquim prontificou-se a ir ao seu encontro, dizendo que levaria mais duas pessoas com ele, fato este que, inicialmente, Fernando relutou, mas acabou concordando, mesmo sem saber quem eram aquelas duas pessoas. No horário e local marcados, de tocaia, Carrasco pôde ver três pessoas se aproximando. Calado, esperou, até que os três estivessem num ponto onde daria para atirar e matar. Uma bala para cada, assim seria. Carrasco puxou o gatilho, mirando primeiro no que parecia ser um homem, amigo do pastor. Este diferenciava-se pelo seu tamanho, dois centímetros para dois metros. O corpo nem caíra direito, dava-se o segundo tiro, que acertou a cabe-

ça da outra pessoa. O pastor, grande e desajeitado, jogou sua bíblia para o chão e saiu correndo, mas foi pego pelo terceiro e último tiro daquela noite.

Apesar da intenção de roubar, Carrasco não levou nada de ninguém. Ao aproximar-se do primeiro corpo que derrubou, para sua surpresa, tratava-se de seu próprio pai. Assustado e atormentado, ainda olhou para o segundo corpo. Sentiu vontade de gritar, mas se limitou a tapar a boca com a mão e torcer seu corpo, girando como um louco: acabara de matar aqueles que tanto protegeram-no, que tanto lutaram para dar-lhe uma vida digna. O pastor, que ele nem quis olhar, conseguiu sobreviver, mas morreu no hospital três dias depois, após sofrida agonia.

Sozinho no mundo, pois não sabia nem mesmo se um dia teve 90

CONTOS AO ENTARDECER parentes, mais ou menos próximos, Carrasco matou suas três vítimas seguintes a troco de nada. Uma com faca, outras duas a tiros. Segundo algumas testemunhas, ele simplesmente aproximou-se e matou aquelas pessoas, sem mesmo falar uma palavra. A da faca foi em um bar na comunidade; as outras duas, um casal que namorava dentro do carro que, por sinal, não foi levado pelo assassino.

“Ele é o filho do próprio demônio”; “nada mata esse desgraçado dos infernos”; “meu sonho é matar esse filho da mãe”; eram frase comuns nas bocas das pessoas que, no entanto, só falavam tais coisas dentro de suas casas, ou quando estavam sozinhas, ou na companhia de alguém muito próximo e de confiança. E a polícia? A polícia não podia fazer nada, porque o rapaz era menor de idade. Bem, poderiam capturá-lo e levá-lo à força para uma instituição para menores. Mas, o moleque, além de “seboso”, acabara fazendo dos dois últimos policiais que tentaram se aproximar comidas para vermes necrófagos.

Ele não traficava. Preferia usar. Cocaína era a sua preferida, mas fumava maconha quando não queria fazer nada, ou quando ia a uma cachoeira de uma cidade próxima para passar o dia com alguns poucos amigos (“comparsas medrosos e puxa-sacos”, acho que é melhor).

Com o passar do tempo, Carrasco ganhava e, ao mesmo tempo, perdia espaço. Ganhava, por estar sempre na mídia e na boca do povo, coisa que ele adorava. O fazia sentir-se importante, como se fosse um famoso artista de TV. Perdia, por outro lado, porque a polícia preparava o cerco cada vez mais. Só que, disso, ele não sabia, pois tudo estava sendo estrategicamente preparado às surdinas.

Numa de suas noitadas, em que bebia, fumava e cheirava incólume e tranquilamente na casa de um amigo, conheceu e apaixonou-se por uma garota de sua idade, de nome Laís. O sentimento foi recíproco e os dois passaram a ficar juntos as 24 horas dos dias. Quando não estavam fazendo sexo, estavam usando drogas ou perambulando pelas ruas da comunidade

MOZART J. FIALHO e, incrível que possa ser, com Fernando cumprimentando as pessoas, brincando com algumas crianças por onde passavam, enfim, parecia-se muito mais o Fernando d’antes, do que o temível Carrasco de agora.

Em um baile funk, conheceu o ciúmes de perto. Não por parte dele, mas por Laís. Uma amiga dela aproximou-se e beijou Fernando, bem na frente de sua namorada. Esta, com raiva, quebrou uma garrafa de cerveja que estava próxima e acertou a menina, ferindo-a com certa gravidade, mas sem matá-la.

Os dois tiveram que fugir da comunidade, pois Laís fora jurada de morte. Ninguém soube do paradeiro deles por, pelo menos, três semanas.

Num daqueles dias em que não se espera nada, eis que surge uma noticia que veio, pela segunda vez, abalar fortemente os sentimentos na comunidade: num acesso de fúria por ciúmes, Laís usara um machado para matar seu grande amor. Ele estava dormindo, quando ela desferiu o golpe com o lado do corte da ferramenta, separando imediatamente a cabeça do corpo. Certamente, Fernando nem sentiu, mas a dor no peito de Laís fora tão grande que ela, logo em seguida, jogou-se do 15º andar de um dos apartamentos de um edifício condenado.

Esta é uma obra de ficção, mas com

CONTOS AO ENTARDECER base em tantos casos que acontecem, hoje em dia, não só nas cidades grandes, como em todo lugar onde há pessoas. A violência cresce mais do que a educação, e não temos muito mais o que fazer, a não ser continuar correndo.

A verdade é que nascemos com personalidade “neutra”. Essa personalidade, ou como nós iremos agir em sociedade ou mesmo solitariamente, é moldada, normalmente, pelo meio em que vivemos. Entretanto, se formos criados em uma igreja, é certo que estaremos salvos de todo o mal, certo? Se alguém é criado entre bandidos, será também como eles no futuro, certo? Nem sempre, pois, mais forte do que as influências externas, são nossas raízes primatas, que nossos genes ainda carregam e carregarão por muitos anos, ainda. Tais raízes descobrem o lado animalesco e violento que existe, se não em todo ser vivo da terra, pelo menos, naqueles que caminham com os pés e eretos. Diferenciamos-nos dos animais por sermos racionais. Mas, o que está faltando? Porque, raciocinar, está sendo um exercício cada vez mais difícil de ser praticado. Pense.

Postado em 05 de Agosto de 2011

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