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A Lama do Lerdo
CONTOS AO ENTARDECER
Estávamos eu, meu tio, meu irmão e minha prima na beira do rio naquele dia, quando ocorreu a coisa mais estranha que já presenciei em toda a minha vida. Bem, nossa história começa quando meu tio nos chamou para irmos ao rio pescar para o almoço. Ele adorava peixe frito. Nora, minha prima de 14 anos, pulou de alegria quando ele a incluiu no convite. Levi, meu irmão menor, também compartilhou essa alegria, jogando as pedrinhas para cima e espalmando as mãos para limpá-las da terra.
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Juntei toda a tralha e, quando passava pela sala, minha avó Lara, que tem sérios problemas de saúde e vive em uma cadeira de rodas, disse-me baixinho, tão baixo que quase não a entendi: - O lado da chama...
É claro que não entendi o que ela quis dizer, mas, acredito ser um desses devaneios que a pobre velhinha tem, de vez em quando.
Em 10 minutos, estávamos os quatro saindo da casa da fazenda e rumando para o rio Lerdo. O rio tem esse nome por ser de águas paradas e, ao mesmo tempo, ter lugares perigosos, com lama que puxa a gente para dentro, segundo alguns moradores da região. Só que, no lugar que vamos, não há perigo algum. Até já nadamos muito, por ali.
Já na beirada do rio, que não era tão fundo, e nem sugeria ser perigoso, arrumamos as iscas nos anzóis e fizemos a distribuição das varas. Lançamos as linhas quase ao mesmo tempo.
Meu tio estava animado. Contava piadas, ria muito, contava casos que aconteciam nas noites rurais, até que... aconteceu! Um puxão violento em sua vara quase o fez ir para a água. Ele começou a gritar e garga-
MOZART J. FIALHO lhar, “ihaaa! Vem aqui pro papai, peixão!”. Nós três estávamos estagnados, esperando o que viria dali. Meu tio fazia tanta força, que a vara emborcava e quase se quebrava. “O lado da chama...”, veio a voz de minha avó em minha mente, naquele instante. Meu tio continuava sua luta árdua contra o peixão, mas, por infelicidade, jamais saberíamos que peixe era aquele. A vara quebrou-se na ponta e o peixe sumiu com a linha e tudo. Meu tio sentou-se no chão e começou a reclamar. - Puxa vida, parecia ser um peixe pro almoço e pro jantar, meninos. Que pena que o perdemos, não? - Com sorte, o senhor pega ele de novo, tio. – eu disse, tentando confortá-lo.
Meu tio pegou outra vara que havíamos levado, justamente para este fim. Desta vez, convicto que pegaria o mesmo peixe, usava um anzol maior e também uma linha mais forte. A vara, inclusive, era de melhor qualidade. - Agora, eu pego esse danado.
Usando a mesma isca, jogou o anzol e ficou – ficamos – aguardando.
Minha prima tirou um lambarizinho logo depois. Apesar do tamanho do filhote, ficou super satisfeita, pulando de alegria como uma menina da metade de sua idade. Mas, devido ao tamanho do bichinho, resolvemos devolvê-lo ao rio Lerdo.
De repente, um barulho na água. Olhei para meu tio e ele se
CONTOS AO ENTARDECER levantava para melhor segurar a vara, pois parecia o mesmo peixe voltando. O que estávamos por presenciar seria estranho, inusitado e muito, muito medonho. Quando a vara se emborcou, meu tio fez o máximo de força e tentava, a todo custo, afastar-se do rio para conseguir puxar o peixe. Meu irmão ainda tentava seu peixinho, sentadinho ali do outro lado. Minha prima estava depois de meu irmão. E, entre o moleque e meu tio, estava eu. Eu não sabia se ajudava meu tio, ou se me preocupava com minha vara de pescar, que começava a ter suas primeiras fisgadas. Ora eu olhava para meu tio, ora para o que podia sair do rio, ora para as minhas coisas. E aquilo foi me dando uma agonia sem fim.
De repente, meu tio foi puxado com tanta força, que quase caiu no rio. Ele olhou para mim e disse: “Cara, esse é dos grandes!”. Ele conseguiu afastar-se um pouco mais do rio, com a vara toda emborcada e segura pelas suas mãos fortes e brancas, de tanta força que imprimia com elas sobre a vara. Em seu rosto, configuravam-se as rugas comuns nos trabalhadores do meio rural. Resultado de muito sol e muito trabalho, dizia meu pai. Meu tio era realmente um homem forte, principalmente, devido a idade que tinha: 54 anos, um dia o ouvi dizer. Mas, aparentava ser mais novo que meu pai, seu irmão mais novo, que tem apenas 40. “Cuidado com a chama...”, veio novamente a voz de minha avó, enquanto meu tio estava lá, sofrendo como um condenado para poder tirar aquele peixe da água escura do Lerdo.
Foi quando resolvi ajudá-lo. Mas, tudo pareceu acontecer em câmera lenta, desde o momento em que larguei a minha vara no chão e me virei para ir ajudar meu tio. Eu o observava e o ouvia gritando contra sabe-se-lá-o-quê e corria para ajudá-lo. Mal estiquei meus braços e meu tio desapareceu da minha frente. Tudo em câmera lenta, mas, apenas na minha cabeça. Virei-me para o rio e pude ver apenas as pernas de meu tio sendo tragadas rio adentro. Ao olhar para meu irmão, vi que ele estava do mesmo jeito de antes, sorrindo e esperando seu peixinho. Minha prima deixava seu rosto risonho e claro e o substituía por uma expressão de susto e indagação. “- Meu pai!!!”, teria ela
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gritado, em câmera lenta, enquanto eu caía no chão, também sei lá porquê. Acho que devido ao impulso que tomei para ajudar meu tio e, quando o alcançava, simplesmente, foi tirado da minha frente.
“Cuidado com a lama...”, pude ouvir novamente a voz de minha avó, agora, bem mais clara e audível. Era como se ela estivesse ali do meu lado. Voltando à realidade, vi Nora gritando à margem do rio, olhando para suas águas, paradas, como se nada tivesse acontecido. Meu irmão largava sua vara e corria para o meu lado. Nora, assustada, parecia querer pular no rio, mas, a segurei antes que esse pensamento se concretizasse. - Foi a lama! Foi a lama!! – gritava a menina, enquanto eu a abraçava com um dos braços e recebia meu irmãozinho no outro. - Calma! Ele deve ter...
Algo repentino e verdadeiramente assustador cortou-me a fala, naquele momento. Uma coisa escura e barrenta surgiu acima da li-
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CONTOS AO ENTARDECER nha d´água, como se fosse uma cobra gigantesca dando o seu mergulho final e nos acenando com seu dorso. Aquilo era amedrontador e, ao mesmo tempo, fedia como um cemitério com todas as suas covas abertas e os corpos expostos.
Minha prima gritou, meu irmão começou a chorar, também. Um arrepio percorreu meu corpo, que lutava contra qualquer medo, a fim de proteger os dois menores ali. Meu tio sumira. Nada, nem seu boné azul veio à superfície.
Duas semanas depois, minha vó faleceu. Dizem que, em seus delírios, não parava de falar no filho e na lama. Não sabemos o que aconteceu, mas, segundo a lenda do lugar, ele foi engolido pela lama do rio Lerdo. A coisa mais medonha desta região. E a fazenda ainda está lá, à venda, com todas as suas histórias e almas. Interessado?
Postado em 15 Maio 2007 por Mozart J. Fialho










