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Solitária
CONTOS AO ENTARDECER
Há muito estou aqui. Não lembro quantos dias ou meses me enfiaram aqui dentro. Estou fedendo a corpo em putrefação. Minha cabeça dói de tanto eu coçá-la. As feridas estão se abrindo e algumas começam a sangrar. Minhas mãos e meus pés machucados e doloridos. Sinto meu rosto definhado, tornando-se cadavérico. Meus pés também estão feridos e inchados, porque não caminho aqui dentro. Espaço muito reduzido. Quando não dou voltas em torno de mim mesmo e do vazio, arrasto-me pelo frio do chão. Meu estômago parece arder de fome. Não como direito desde que me jogaram aqui dentro. Às vezes, alguém abre uma janelinha que há na porta de aço e joga alguma coisa. Tenho que dividi-la com as baratas. Mas a ferida que tenho na alma é a que mais me dói.
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Os pensamentos, quando você está confinado num lugar como esse, não param. E sempre vêm as piores coisas que você já aprontou em sua vida. Não há espaço para a visão de um lago tranqüilo, nem para cachoeiras deslumbrantes ou praias paradisíacas. Não há espaço para pensar em poesia, música, mulheres maravilhosas ou nas coisas do coração. É breu, puramente negro, úmido e desconfortavelmente agonizante.
E as últimas cenas de minha vida ainda em liberdade são as que mais vagueiam meus olhos, porque, sim, eu as vejo como se estivessem acontecendo à minha frente. Como se eu fosse o espectador de cenas de horror ao vivo. Não sei se posso arrepender-me agora, pois não teria vergonha suficiente para isso. Nem sei direito o que me levou a cometer tal ato, mas acho que foi um momento de loucura, que ainda não consegui provar nem a mim mesmo.
As imagens estão ali, a dois palmos de distância. Vejo-me aproximando de uma casa, onde a família, desavisada, entra com seu carro garagem adentro. Esses portões eletrônicos são muito lentos e, na falta de uma câmera de vigilância, fica fácil entrar sem ser percebido. E é o que estou fazendo neste exato momento. Entro agachado.
Rapidamente, vou para trás de uma coluna para não ser visto, 57
MOZART J. FIALHO enquanto o portão se fecha atrás de mim. De onde estou, posso ver as pessoas saindo do carro. São três. Dois adultos e um rapaz magrinho. Nada de arrependimento passa pela minha cabeça, nesse momento. E nada contribui para que eu desista do que pretendo fazer. É gente com grana. Sei que têm jóias e dólares guardados em seus armários e gavetas. Gente com dinheiro dá muita bobeira, gosta de mostrar o que tem e, às vezes, humilham a quem não deveriam.
Espero até que destranquem e girem o trinco da porta. Quando o fazem, chego anunciando o assalto. Incrível como as pessoas desprotegidas ficam assustadas e vulneráveis quando se deparam com o cano de um três-oitão. Num cara como eu, é claro, a adrenalina vai a mil, mas eu sei que quem está no ataque e tem o controle da situação também sou eu. Além do mais, faço isso pensando, sempre, em matar ou morrer. Essa é a nossa diferença.
Agora, empurro todos para dentro da casa, que dá para uma grande sala. Mando-os sentarem-se no sofá e ficarem calados, senão atiro. Não há muito tempo para você olhar para suas vítimas, normalmente. Mas a situação ali era outra: eu estava fazendo reféns, essa é a verdade. Em lances que não sei como explicar pela rapidez como acontecem, pude ver que o rosto enrugado do homem tremia tanto que suas bochechas brancas pareciam gelatinas num terremoto. A mulher com o rosto atrás dos ombros do marido e as mãos à frente, como se quisesse proteger-se de um eventual ataque. Bem, minha senhora, digo-lhe que, se eu lhe der um tiro, não são suas mãos que vão parar a bala. Portanto, besteira, tira logo essas mãos da frente que eu quero ver seu rostinho. E o moleque? Do tipo doidão, fumador de maconha que vive lá nos morros, ou fumando ou comprando dos caras. Vamos ver, se ele tiver um baseado na gaveta, talvez eu o deixe viver.
Mando o moleque doidão pegar uma corda, seja lá onde tiver uma. Sem reclamar, e já sacando o que poderia acontecer, o esperto vai devagar até o armário da sala, abre uma porta, depois uma gaveta e pega um bom pedaço de corda de nylon. Ele a mostra para mim
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CONTOS AO ENTARDECER e a traz, andando sobre pregos, entregando-me com medo. É claro.
Eu o mando sentar-se ao lado dos pais e, quando o faz, eu jogo a corda em seu colo e o mando amarrar os velhos. Ele o faz, tremendo as mãos e todo o corpo, segurando o choro, pedindo desculpas aos pais em voz baixa, achando que eu não o estava ouvindo. O tempo todo eu mantenho o cano apontado para os três e sei que posso atirar se fizerem qualquer movimento diferente ou ameaçador.
Mando o moleque sentar-se em outra poltrona e, com a arma apontada para as cabeças de seus pais, verifico a amarração. O moleque está indo bem. Amarrou seus velhos de forma que não podem escapar sem a ajuda de outra pessoa.
Pergunto onde ficam as jóias. Inicialmente, ele fica calado e olha para os pais, que já estão amordaçados e não podem falar nada. Seus olhos mostram uma mistura de estresse, medo e preocupação. Este último é o que faz um bandido como eu sacar que, se negarem haver jóias ou algo de valor, estarão mentindo. Espero a resposta e ela vem a seguir: estão no quarto, dentro de um cofre. Estou sozinho e as únicas opções que tenho são: deixar o moleque ir sozinho lá em cima, enquanto fico vigiando e ameaçando seus pais, ou vou com ele até o quarto, sob a mira do meu 38, e deixo seus pais aqui embaixo. Merda! Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Vida de bandido é assim. Não tem jeito. Opto por deixar o garoto subir, enquanto fico com seus pais. Não sei por que, mas confio nesse garoto. Mando-o subir e trazer todas as jóias, tudo o que tiver de valor. E sei que tem muito. Se ele me enganar, mato sua mãe, depois seu pai. Depois, ele.
O moleque sobre as escadas e o acompanho até à metade. Pra minha sorte, dá pra ver o fundo do quarto e o moleque, que já chega retirando um quadro da parede e revelando o cofre. Ao mesmo tempo, voltando-me para baixo, posso ver os dois coroas sentados e amarrados no sofá. Perfeito. Nada mais pode dar errado. E tenho todo o tempo.
O moleque volta pra me entregar um monte de jóias e algum di59
MOZART J. FIALHO nheiro – notas de dólar. Eu sabia. A menina estava certa. A família é montada na grana. Eu mando o moleque desconfiar e me tratar direito. Eu queria aquilo tudo dentro de uma sacola, algo que pudesse facilitar levar aquele material todo. Ele, sem grilo, vai atrás de alguma coisa. E, quando olho para o sofá para verificar as coisas, o velho não está mais lá. Filho da puta! Esqueço-me do garoto por uns instantes e desço as escadas correndo. A velha tenta escapar das cordas, enquanto o marido covarde sai correndo pela porta dos fundos. Instintivamente, atiro para o lado da mulher e, preocupado com o marido dela que fugia, nem a vejo cair esparramada no sofá.
Ao sair pela mesma porta dos fundos, posso ver o desgraçado correndo para o lado do muro. Dou-lhe um tiro. E outro. E mais um. Correndo, me aproximo do corpo, já inerte no chão, e vejo que não errei nenhum dos tiros. Dois na cabeça, outro logo abaixo do omoplata esquerdo. O sangue jorra abundante.
Olho para trás e vejo o moleque. Ele está lá, inerte, olhando para mim, rosto desconsolado, suor na testa, pálido e com uma arma na mão, apontando para aquele que acabou de lhe tirar os pais. Vai atirar. Mas antes que isso aconteça, faço o favor de não deixá-lo órfão. Bandido é rápido e está ali para matar ou morrer. A gente treina tiro ao alvo e brinca de mais rápido no gatilho nas horas de folga. Logicamente, pra não dar muita chance à segunda opção. A bala que lhe mando pega bem no meio da testa. Ele demora um segundo para cair e, nesse segundo, me olha como que perguntando “Por quê?”. Nem seu sei, filho. Nem eu sei.
Antes de conseguir escapar, a polícia já estava invadindo a casa. Um vizinho fez a chamada, assim que ouviu o primeiro tiro. Agora, cá estou. Mofando e compartilhando minha parca e tétrica comida com baratas. Há sei lá quantos dias ou por quanto tempo mais. O que sei é que, quanto mais tempo dentro de uma solitária, pior vão ficando seus pulmões, que vão se enchendo devido a umidade em excesso, e você pode acabar tendo um colapso pulmonar, uma enfisema. Também co-
CONTOS AO ENTARDECER meço a sentir gosto de sangue que sai dentre os meus dentes. Um gosto ferroso, pois tenho bebido pouca água. Minhas unhas também sangram, pois num gesto desesperado arranhei o chão e machuquei as pontas dos dedos. Meus olhos ardem, pois quero chorar e não tenho mais lágrimas. Secaram-se com o tempo, enquanto via minhas vítimas chorarem.
Começo a tossir. Tossir sem parar e cada vez com mais força. Sinto o gosto de sangue aumentar em minha boca. Eu cuspo. Meus pulmões doem demais. Vejo as imagens daquelas pessoas, com instantâneos dos momentos antes de a bala acertar e derrubar seus corpos. Tusso e jogo o corpo instintivamente para frente, na tentativa de amenizar a dor. Nada. Os gritos das pessoas implorando agora soam forte em meus ouvidos. Tem alguma coisa saindo do meu nariz, e sei que é sangue. Muito sangue. Estou me desfazendo por dentro. O moleque doidão está aqui, na minha frente. Ele quer um baseado. Minha cabeça parece que vai explodir e não tenho mais forças para gritar. Alguém toma a arma de minhas mãos. Acho que estou morrendo. Morrendo aos poucos. Eu mereço. Tem luz. Luz da porta. É tarde demais.
Postado em 27 de Agosto de 2007 por Mozart J. Fialho









