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A Noiva de Vermelho
CONTOS AO ENTARDECER
Osol estava quase a pino. João e Joaquim, dois compadres e vizinhos de terra, um sentado na rede e o outro numa cadeira, proseavam animados no alpendre da casa de João, pois havia sido fim de safra e ambos, mesmo sendo pequenos produtores, haviam feito uma boa colheita. - Pois é, compadre, – dizia João, de sua rede, enquanto limpava as unhas com um canivete – esse ano as coisas parecem ter sido diferentes pra nós dois, não é? Fizemos uma boa colheita, nosso gadinho ta só engordando... - É, compadre João... Eu também to muito satisfeito, não sabe? Tem ano que a coisa vai mal, gado magro, prato vazio... mas, tem ano que é bem melhor, mesmo. Eu dou graças ao Pai Eterno por isso, viu?
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A conversa fluía tranqüilamente e o sol se punha atrás da serra de silhueta enegrecida. Os dois amigos se conheciam desde criança, quando ainda seus pais eram os proprietários daquelas terras. Na verdade, o pai de Joaquim foi quem comprou sua parte do pai de João, pagando um preço simbólico, à época, por causa de grande amizade que também nutriam.
Dona Rosa, mulher bonita e distinta, educada e dada ao lar, esposa de João, apareceu no alpendre, onde os amigos conversavam.
MOZART J. FIALHO Ela serviu-lhes um delicioso suco de carambola e pães de queijo assados “naquela horinha mesmo”, como disse a própria.
Joaquim e João a agradeceram polidamente e continuaram a conversa, que passava para outro prumo. - Joaquim, tenho ouvido por aí umas conversas sobre umas coisas estranhas que estariam acontecendo aqui, na nossa região. Vós mercê já ouviu também?
Joaquim aprumou sua cadeira, de modo que ficasse de frente para o compadre. De certa forma, “conversas estranhas” eram seu assunto preferido. - Não, compadre João. Acho que não ouvi nada, não. Do que é?
João deixou seu copo sobre mesa e, calmamente, pegando nos bolsos da camisa fumo e palha, começou a preparar um cigarro. E começou a falar: - Tem uma história aí, que alguns homens, só homens, têm visto uma noiva pela região. - Noiva? - É, mas não é qualquer noiva, não. - Oxente! É homem, é?
João riu e continuou. - Nâo, compadre Joaquim. É uma noiva que, bem, não é viva. É morta!
Joaquim sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e se mexeu na cadeira. João percebeu que o amigo começava a gostar da história e continuou.
- Vós mercê se lembra do Zeca Alemâo? - Aquele da fazenda Maioral? - Sim, aquele mesmo. – João acende seu cigarro de palha. – Pois,
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CONTOS AO ENTARDECER então, foi ele a última vítima da noiva, pelo que fiquei sabendo. - Vítima? - É, compadre. Coitado. – enquanto falava, João gesticulava. – Ele ficou seis dias no hospital, gemendo e tagarelando sozinho, com os olhos abertos, escancarados, vidrados no teto o tempo todo, falando um nome que ninguém entendia...

- Credo, compadre! Isso é coisa de doido, hein? - Todo mundo achou isso, compadre Joaquim. - E o que aconteceu com ele depois? Ele voltou pra casa dele, ficou bem? - Estranhamente, no sexto dia, quando a mulher foi visitá-lo no hospital, dizem que ele olhou para ela, que estava vestida de vermelho, deu um grito de terror, deu um treco e morreu do coração. Agüentou, não. - Que é isso, compadre? Mas, o que você ta me contando, sô? - É a mais pura verdade, compadre. - Mas, e qual é a história dessa noiva, compadre? – Apesar do receio, Joaquim pareceu interessado no que o compadre dizia.
João, vendo que o amigo começava a ficar com medo, continuou com a conversa: - Dizem que ela, no dia do casamento, foi abandonada pelo noivo no altar. O sentimento de ódio dela foi tão grande, mas, tão grande,
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MOZART J. FIALHO que quando chegou em casa, pegou um 38 e meteu bala na cabeça. Dizem que, quando encontraram seu corpo caído no chão do quarto, seu vestido estava totalmente vermelho. E nenhum sangue no chão ou mesmo na cabeça. Só o buraco seco da bala. - Credo, o sangue dela... – Joaquim colocou uma das mãos sobre a boca, pensativo.
Neste instante, Dona Rosa reaparece no alpendre, com um sorriso estampado no rosto, já sabendo que o marido estava contando a história da noiva para o amigo. Ela, uma mulher bastante educada, quis tranquilizar João: - Compadre Joaquim, vós mercê não ta acreditando nessas lorotas de João, está?
O rapaz olhou para a comadre e para o compadre, meio que sem jeito, meio querendo rir. Tomou seu último gole de suco e disse: - Com todos esses detalhes, será que o compadre ta... - Mentindo? – interrompeu João. – Eu? Mas, compadre, eu só to repassando o que me disseram. Nada mais.
Dona Rosa perguntou-lhes se queriam mais alguma coisa. Os amigos não queriam nada mais e Joaquim se pôs de pé, pronto para ir embora. Ele então olhou para o lado do quintal e viu que já estava muito escuro. O céu estrelado era a única fonte de luz que teria até sua casa, já que estavam na Lua Nova. - Mas, compadre, está cedo, ainda. – disse João, não querendo que o amigo se fosse. – Fica aí pra jantarmos, uai. Sabe que sua comadre faz o melhor cuscuz do mundo, não sabe?
Joaquim sorriu e agradeceu, cumprimentando os dois. - Eu sei disso muito bem, compadre. A comadre é realmente muito caprichosa. Mas, é que vou indo, mesmo, antes que fique muito tarde. E nem a cavalo eu vim. Ainda bem que é pertinho.
Joaquim foi sumindo na escuridão da noite, subindo pela estradi40
CONTOS AO ENTARDECER nha, enquanto o compadre João o observava do alpendre. “Esse compadre Joaquim...”, pensou. **********
As palavras do compadre zoavam sem parar na cabeça de Joaquim. Ele não era homem de ter medo de histórias, mas, aquela parecia ter sido muito real. Principalmente, porque tinha o caso da morte do Alemão. Morte é morte, não é história. E o compadre João não é pessoa de ficar mentindo sem desmentir o que disse logo depois. Um barulho no mato assustou Joaquim que, entretido em suas lembranças, não percebeu que se tratava de uma coruja do mato. Ele se acalmou só quando a ave passou rente à sua cabeça e soltou sua “rasga mortálica” que, segundo uma lenda do norte, trata-se de seu canto de mau-agouro. “- Num acredito nessas coisas, mesmo...”, pensou o homem.
Caminhou mais um pouco e Joaquim percebeu que, na porteira lá na frente, alguma coisa parecida com papel tremulava, mas, não dava para distinguir realmente o que era. Continuou seu caminho,

MOZART J. FIALHO ainda pensando nas palavras do compadre. Riu de si mesmo, por estar se preocupando com algo que é apenas história. Mas, e o Alemão? Ah, certamente, o Alemão já estava mesmo tendo problemas com o coração. Dizem que, conforme o ataque cardíaco, a pessoa delira, não conhece gente da família, até morrer. Foi isso, então, que aconteceu ao Alemão. Nessa hora, deu vontade de voltar à casa do compadre João e falar isso para ele. Mas, deixa para outro dia. Joaquim já estava se sentindo cansado pelo dia de trabalho e tudo o que mais queria era chegar em casa, tomar um belo banho e... - Diabo, o que é isso? – Joaquim assustou-se de verdade. Ele, entretido demais em seus pensamentos, mal percebeu que chegou muito rápido à porteira.
Sobre o pau de sustentação direito, do lado das borboletas que prendem a porteira, havia um grande pano branco, de tecido mole como seda, com detalhes em algumas de suas partes e alguns fios dourados fazendo bordas, esvoaçando-se ao sabor do vento. Um arrepio muito forte percorreu o corpo de Joaquim, que não teve qualquer reação naquele momento. Ao recuperar-se de seu atordoamento, Joaquim correu até à fechadura da porteira e, quando tentou abri-la, algo segurou-a fortemente, impedindo que Joaquim a abrisse. Ele, mesmo resistindo muito, olhou para o outro lado, onde estava o pano branco, e o que viu foi simplesmente assustador! - Ai, meu Pai Eterno!!! É... é.. é elaaa!!!
O pano, agora, era um vestido de noiva vermelho – “... o sangue dela...” – com sua dona usando-o. Ela parecia estar sentada sobre o pau de sustentação, olhando firme-

CONTOS AO ENTARDECER mente para o pobre homem que, ali, aos pés da porteira e tentando abri-la, encontrava-se completamente estagnado. Ela segurava a porteira com só uma das mãos, enquanto a outra parecia chamar Joaquim para mais perto. Em seu rosto todo desfigurado e de pele solta, destacavam-se os olhos avermelhados como o vestido e recheados de ódio, a boca machucada, seca, com os dentes mais parecendo os de um serrote velho. Os cabelos, secos e mais parecidos com grandes chumaços de pêlos de rato, balançavam ao vento, ornamentando ainda mais aquele aspecto sombrio e cheio de horror que aquela coisa exibia.
Joaquim não sabia o que fazer. Tentou correr e voltar pelo mesmo caminho pelo qual viera, mas, assim que se virou para sair correndo, deu de cara com a figura fantasmagórica que havia matado o Alemão e, agora, queria levar ele junto, também. Joaquim tentou empurrar a mulher, ou seja lá o que fosse aquilo, para o lado com um dos braços, mas, a tentativa foi em vão. Seu braço transpassou o fantasma, que ria numa gargalhada irônica, sádica e medonha. Então, ele se afastava, enquanto o fantasma aproximava-se, sempre olhando diretamente em seus olhos, como se quisesse hipnotizá-lo. Sem perceber a pedra que havia atrás de si, Joaquim tropeçou quando seu calcanhar ficou preso e caiu pesadamente no chão. O que ele via, o amedrontava ainda mais: a figura disforme e, agora, deixando uma gosma nojenta cair de sua pele e boca, aproximava-se, como querendo abraçá-lo ali mesmo, no chão e na noite escura. Com os braços em “X”, Joaquim tentava se proteger. Gritou, mas, sentiu que seu grito saiu mudo, sem tom, sem solução, sem chance para qualquer ajuda ouvir. Foi então que a noiva o abraçou... ************
Na casa da fazenda de João, pai e filho conversavam entre gargalhadas no alpendre: - E então, meu filho? Fez tudo direitinho? - Sim, meu pai. Pendurei o tecido branco naquele galho que o
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MOZART J. FIALHO senhor mandou e os tuchos de cabelo da mamãe colados no pano. Qualquer um que passar ali de noite, vai pensar na noiva. - Para mim, não serve qualquer um. Eu quero é pregar uma peça nesse meu compadre descrente e teimoso.
Fumou seu cachimbo mais uma vez e foi para dentro. **************
Sobre Joaquim, nunca mais ninguém ouviu falar. Postado há 16th May 2007 por Mozart J. Fialho










