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O Sino

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Arrependido

Arrependido

CONTOS AO ENTARDECER

Dizem que tudo aconteceu por volta de 1900, no interiorzão do Brasil, lá pelo norte de Goiás, quase divisa com Maranhão, hoje, Estado do Tocantins. Havia lá uma família, os Morais, que carregava consigo uma sina: catalepsia patológica, um tipo de doença rara, em que os membros da pessoa se enrijecem, deixando-a em estado completamente mórbido, teoricamente morta. Isso não acontecia a todos da família, mas estranhamente com alguns membros de cada geração – sendo que alguns deles, supõe-se, foram enterrados vivos, pois era uma época em que esse mal não era clinicamente identificado.

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Na primavera de 1900 foi quando descobriram que havia algo errado na família. No primeiro caso, Geovana Morais, moça jovem, bonita e cheia de vida, viu-se de repente na mesma situação que outros familiares: completamente imóvel, sem conseguir expressar nem mesmo um olhar de súplica, enquanto assistia, inerte e incapaz em seu estado mórbido, seus familiares ao seu redor, chorando, gritando por socorro, o médico da família afobado, pegando seu pulso e auscultando seu já falecido coração. Até que tudo desvaneceu. Ela acordara algumas horas depois, já em uma maca de um pequeno hospital da cidade, seminua e numa sala escura e fria. Dois anos depois, Antônio Morais, um um homem de meia idade e boa aparência, sofrera um ataque cardíaco e passara pela mesma situação, acordando no exato momento em que iam começar a abrir seu tórax, na sala de preparação de um hospital. Naquela época, os serviços póstumos e a medicina legal andava a passos lentos, especialmente, nas regiões mais isoladas. Ambos tiveram muito tempo de vida normal, após esses incidentes.

Diante de tais fatos assustadores, a partir daquele verão, resolveram fazer diferente. Já que os recursos eram parcos, não podiam sempre contar com médicos e nem com a sorte, fizeram duas coisas: primeiro, assinaram um documento em cartório, em que proibiam – ao menos, tentariam isso – ser abertos e limpos em hospitais ou fu-

MOZART J. FIALHO nerárias, quando qualquer dos familiares morresse repentinamente. Deviam ser enterrados, se chegasse a tanto, naturalmente, com todos os seus órgãos intactos. Em segundo lugar, providenciaram um dispositivo, formado por cordas e um sino, que serviria para sinalizar que fora enterrado ainda vivo! E, assim, pediria socorro, com o badalar do sino, colocado fora da cova. Seria instalado na cova assim que o provável morto fosse enterrado.

Entre 1905 e 1908, morreram três membros dos Morais: Janete e Ronan, num acidente de trator, e o senhor Calédio, de 80 anos, o membro mais querido por todos da família. Seu Calé, como era conhecido, tinha feito muitos amigos durante toda sua vida naquela região, por isso, tanta gente em seu funeral. Pessoas do Maranhão, Mato Grosso, de Goiás e até dos cantos de Minas Gerais, disseram. seu Calé teria tido um ataque do coração, enquanto conversava com sua filha mais velha, Catarina. O pai não estava querendo negociar 25 alqueires de uma parte da fazenda em prol do marido da filha, e ela o tentava com frequência. Mas, não sabem se isso teria sido o motivo.

Mesmo sob as circunstâncias, seu Calé foi enterrado com o apa10

CONTOS AO ENTARDECER rato do sino, como havia sido acordado desde 1903. Na verdade, ele seria o primeiro a usar, desde aquela época, já que seus netos Janete e Ronan não deixaram dúvidas: a morte dos dois foi muito violenta.

Era uma noite chuvosa, a terceira após o enterro de seu Calé. O cemitério particular da família ficava em um local reservado na fazenda Santa Lúcia, pertencente a ela, e era um lugar que trazia uma sensação de muita tranquilidade. Do casarão até lá davam cerca de 1800 m, e havia um caminho que servia tanto para carros quanto para pessoas.

O sino da cova do seu Calé pareceu tocar. Podia ser coisa do vento, mas, tocou novamente após alguns segundos. Em pouco tempo, tocava fraco, mas intermitentemente.

O som tentava atravessar o forte ruído da chuva, mas era constantemente abafado, já que o sino estava sendo tocado por alguém desprovido de forças, naquela situação.

No casarão, todas as janelas estavam fechadas devido à tempestade que caía naquela noite. Temporal que duraria mais um dia e uma noite inteira. No interior, casa muito grande e com paredes e janelas grossas, nenhum sino poderia ser ouvido. Como a catacumba ainda não possuía um canal de comunicação com a casa, algo que só seria idealizado alguns anos depois, somado ao barulho da chuva forte lá fora, era mesmo impossível ouvir qualquer coisa que não fossem os trovões.

Assim, o sino continuou tocando, até parar completamente, junto com a tempestade. Isso foi visto por outro neto de seu Calé, Rufino, que foi verificar como estavam todas as covas e notou que o sino do avô não estava na posição original. Se não fora a tempestade, fora ele, o avô, quem o tocara. E ninguém ouviu nada. Bom, era uma suposição, e isso ficou somente entre ele e seu pai, seu Joaquim, o único filho que não se dava muito bem com seu Calé.

Desde então, não houve mais mortes suspeitas entre os Morais. 11

MOZART J. FIALHO Com a evolução da medicina, novos testes foram sendo feitos para constatar a morte real da pessoa, e isso melhorou muito a situação daqueles que sofrem com a catalepsia.

Hoje em dia, a Fazenda Santa Lúcia é de outro proprietário, que fez questão de manter, não só o casarão, como o cemitério e todas as suas lápides, capelinhas, a calçadinha e que, aliás, são bem cuidados por funcionários do fazendeiro. No entanto, há rumores de que, ainda nas noites de tempestade, é possível ouvir o badalo de um sino, lento e intermitente vindo daquele pequeno morro rodeado por árvores seculares. Dentro da casa, inclusive.

Postado em 25 de Novembro de 2018 por Mozart J. Fialho

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