Painel Vida em Expansão Mário C. Matos e Sílvia B. Matos 26 de Outubro de 2021
Sumário Agradecimentos
2
Prefácio
3
1
Primeiras iniciativas para desenvolvimento do projeto
6
2
Trabalhos de modelagem com a argila
12
3
Instalação e inauguração do painel
20
A Fotos do trabalho de preparação
27
B A experiência de fazer um painel de cerâmica
30
1
Agradecimentos Queremos, em primeiro lugar, agradecer a todos os participantes do projeto, na época alunos e alunas do Ateliê de Criatividade Sílvia Matos, pela persistência em superar todas as dificuldades inerentes a uma experiência inovadora como essa. Desejamos listá-los aqui em ordem alfabética, a saber: Alcina C. Veras, Alessandra L. Croquevielle, Amélia M. S. Marshall, Ana Maria F. de Oliveira, Ana Possenti, Beatriz Cuyabano, Carina Naufel, Carolina C. Machado, Carolina F. Fonseca Ribeiro, Isabel N. dos Reis, Laura Mayrink-Sabinson, Lia Sabinson, Lurdes Coelho, Lúcia R. Barnabé, Luiz Fernando Rubio, M. Olímpia Nogueira, M. Sílvia Von Zastrow Aerny, Mariana N. dos Reis, Marilandi L. Carvalho, Marilei de Paiva Lopes, Marlei G. Nascimento, Mauro S. Ribeiro, Nara Ursolino, Sônia Pressa, Teo G. E. Mata, Vera Costa e Walma Magalhães. Devemos agradecer de modo enfático a Roberto Moya, na época proprietário do Lake House Restaurante, que, além de construir o muro sobre o qual foi colocado o Painel Vida em Expansão, pagar os serviços dos trabalhadores que colocaram as placas de argila no lugar, repor o dinheiro gasto na compra de argila, ainda fez a festa de inauguração do mesmo. O senhor Roberto Moya sempre mostrou interesse em promover a cultura em seu restaurante, desde a inauguração do mesmo em 03 de novembro de 1994, quando promoveu a exposição de esculturas de Nair Kremer e de pinturas e objetos de Sílvia Matos. Mais tarde, por meio do Roberto Moya Eventos, em conjunto com a Frutaria Rio das Pedras, ajudou na comemoração do décimo aniversário desse painel. Um agradecimento especial devemos fazer a Maria Laura T. Mayrink-Sabinson pelo comovente texto escrito por ela em outubro de 1995, descrevendo a experiência dela e de outros artistas no desenvolvimento e realização do projeto desse painel. Vejam esse documento no Apêndice C. 2
Prefácio Desejamos descrever neste texto todo o trabalho desenvolvido no Ateliê de Criatividade Sílvia Matos por um grupo de alunos, artistas voluntários, para preparar, desenvolver e executar o projeto de um painel de terracota, que atualmente constitui um monumento colocado na frente da Casa do Lago na UNICAMP. Nesta introdução, nos parece instrutivo e esclarecedor fazer a transcrição de parte do conteúdo das páginas manuscritas por Sílvia Matos em um caderno no final do ano de 1993 e nos primeiros meses de 1994. PAINEL O projeto do painel começou a ser pensado no segundo semestre de 1993. Eu, como todo mundo, andava com a cabeça cheia pela falta de respeito ao ser humano, às suas ideias e à natureza. A crise política no Brasil ajudava bastante este clima, assim como também as pregações neonazistas. A princípio pretendia fazer um painel para colocar na parede do terreno do Ateliê (um sonho antigo que tenho é encher todo esse espaço com obras de arte). Mas, conversa vai, conversa vem, os alunos sugeriram colocar o painel num espaço em Barão Geraldo. Saí à procura de uma parede grande em que fosse possível colocar o painel. Não foi fácil. Paralelamente fiz vários projetos do painel com as medidas de 3,20 m por 2,20 m, ideais para a parede do Ateliê. Discuti com os alunos qual a melhor proposta para “amarrar esse painel”. O propósito sempre foi de que cada um dos alunos participasse do painel desenvolvendo o tema “respeito”, do modo que quisesse e, ao mesmo tempo, eu “amarrasse” suas propostas para llhes dar unidade artística. Em princípio o painel pareceria como uma colcha de retalhos com as diferenças bem marcadas. Mas a ideia que vingou foi a de que a unificação se faria por curvas circulares ao longo das imagens como se 3
fossem ondas provocadas por um pingo d’água. Assim resolvi batizar o painel com o título “Vida em Expansão”.
Sílvia fez um desenho preliminar do projeto que tinha em mente, usando giz de cera, para apresentar aos alunos.
Logo depois da elaboração desse desenho, a mentora do projeto resolveu fazer uma maquete do mesmo em argila, que apresentamos acima na foto do lado esquerdo. Voltemos ao manuscrito para mais alguns detalhes dos acontecimentos. Em dezembro fui fazer umas compras na Galeria Páttaro. Em conversa com a Rita, dona de uma das lojas, vi que nela haviam vários quadros pintados por ela. Aproveitei para falar da nossa ideia. Ela achou ótima e me mostrou uma parede que poderia ser utilizada. Fiquei de fazer uma maquete e depois conversar com os outros donos de lojas. Passadas as férias, com a maquete em cerâmica pronta, fui com Walma falar com o diretor da associação dos
4
donos de lojas da Galeria. Gostou logo da ideia e a apresentou em uma reunião com os outros. Depois de um mes, mais ou menos, recebemos a notícia da aprovação. Todos os alunos e eu ficamos muito contentes. Começou então uma nova etapa. O tamanho da maquete teve que ser ampliado pois a parede que nos indicaram, situada na frente da galeria, exigia um painel maior.
Lembremos ao leitor que os primeiros tempos da década dos anos 90 do século passado registraram uma série de acontecimentos, que acabaram contribuindo para aquele sentimento, expresso por Sílvia Matos no início de suas notas manuscritas, de que não havia respeito pelo ser humano, pelas ideias de liberdade, pela natureza e pela democracia. O primeiro presidente eleito diretamente nas urnas, após o período de exceção iniciado em 1964, foi Fernando Collor. Logo após sua posse determinou um confisco nas contas bancárias, de poupança e de certas aplicações financeiras, pensando assim combater a hiper inflação existente naquela época. Esse plano fracassou e deixou uma insegurança enorme em toda a classe média. Além disso, após acusações de seu próprio irmão, Collor se viu envolvido em denúncias de corrupção. Em meio a muitas manifestações dos chamados caras pintadas, aliadas a uma certa ineficiência administrativa e ao modo autoritário de exercer a presidência, Collor acabou perdendo apoio no congresso e teve seu impeachment aprovado, sendo afastado da presidência em dezembro de 1992. A famosa CPI dos anões do orçamento instalada em outubro de 1993 ajudou a criar aquele ambiente de insegurança mencionado no manuscrito. A partir de agora apresentaremos o detalhamento de todas as fases do planejamento, da produção artística e dos trabalhos executados que permitiram a montagem do Painel em frente à Casa do Lago na UNICAMP.
5
Capítulo 1 Primeiras iniciativas para desenvolvimento do projeto Em seu manuscrito preparado no final de 1993, Sílvia Matos escreve A melhor ideia deste projeto é aquela de que todos trabalhem e criem obras individuais, formando um trabalho conjunto, para provar que o homem, cada um, dando aquilo que ele sabe e pode, junto com os outros, pode criar um mundo melhor. É importante a individualidade para a formação e o enriquecimento do conjunto.
Para mostrar que a ideia deste texto não é nova, transcrevemos novamente parte do manuscrito de Sílvia, agora datado de abril de 1994. 19 de abril de 1994: conversando com Marinho, meu filho, na gozação, me veio a ideia de escrever um livro com fotos de todas as etapas da feitura do painel. A gozação foi tipo: “Veja o painel, compre lembranças e leia o livro”. Por que não? É um trabalho sério e esta experiência certamente vai servir para outras pessoas. Assim, pensei à princípio no título: Painel Vida em Expansão, Uma aventura a 52 mãos.
No dia 21 de abril de 1993 Sílvia escreveu que as dimensões do painel seriam ampliadas e que o mesmo passaria a ter as medidas 4,00 metros por 2,50 metros, sendo dividido em 170 quadrados 6
iguais, cada um deles com lado de 25 centímetros de comprimento. Dizia ainda que os alunos estavam começando seus projetos, trabalhando em um certo número de quadrados, que variava de dois a dez. Os alunos mais novos, que eram menos experientes, ficavam com dois blocos e ela ficaria com os blocos correspondentes aos círculos gerados pelo pingo de água. Todo mundo deveria fazer um desenho de seu projeto no tamanho original. Existe um documento de Maria Laura T. Mayrink-Sabinson (LALAU ou LAU), datado de outubro de 1995, intitulado A Experiência de Fazer um Painel de Cerâmica, onde ela recorda, com muita elegância de estilo, seus sentimentos durante aquela fase de seu aprendizado de arte. Veja o texto integral no apêndice C. Vamos transcrever algumas partes desse depoimento ao longo destas notas. Até 23 de Março de 1994 o painel, para mim, era uma ideia. Até então eu só tinha trabalhado em argila quando preparamos uma exposição de máscaras, no fim do meu primeiro ano de Ateliê, em 1992. Eu não tinha a menor, minimíssima ideia do que fosse preparar um painel de argila!!! Essa (santa!) ignorância foi a principal responsável pela falta de modéstia (ou de juízo?) que me levou a pensar que minha contribuição individual ocuparia nove quadros de 25cm x 25cm–desenhei em carvão o que trabalharia: a pomba no meio das folhagens. Pacífica. mãos à obra! Ver o projeto do painel no chão, montado com os desenhos-projetos de cada um. Sílvia estudando onde colocar o quê. Um painel em duas dimensões. Impressionava... mas não muito!
Agora estava chegando a hora de planejar a montagem. Conforme Lalau escreveu, Sílvia colocou no chão do Ateliê um papel com as medidas exatas do painel em tamanho natural. Fez depois as divisões em quadrados correspondentes às placas de cerâmica que seriam colocadas. Em seguida, depois de algum estudo, utilizando os desenhos-projetos de todos, com linhas mais fortes, fez a marcação dos espaços que caberiam a cada aluno ou aluna participante, colocando ainda o nome de cada “dono” ou “dona” do espaço. A seguir veja foto da Sílvia e Walma, uma aluna, preparando o 7
mapa do painel e uma imagem do mapa de distribuição obtido.
Com o mapa pronto, os participantes do projeto deveriam começar literalmente a por a mão na massa. Antes de qualquer coisa, era necessário que a argila fosse batida. Para isso, Sílvia aconselhava os alunos a fazer isso fora do horário das aulas. 8
Para ter o material necessário, Sílvia comprou uma tonelada de argila, conforme prova a nota fiscal abaixo. Note a data de compra: 16 de março de 1994.
Notemos que, na primeira nota, o preço por quilo dessa argila comprada era de CR$ 286,00. Em 14 de abril do mesmo ano, na 9
compra de mais argila para o trabalho, o preço do quilo da mesma foi de CR$ 585,00. Isso mostra a fúria da inflação nesse período. Confira isso na segunda nota Esses dados, que apontamos agora, mostram como as pessoas se sentiam inseguras naquela época. A situação da inflação seria controlada aos poucos, quando Fernando Henrique Cardoso, ministro da economia do presidente Itamar Franco, substituto de Collor, apresentou o chamado Plano Real. O Real, nova moeda nacional, começou a circular em 1 de julho de 1994. Curiosidade dessa situação de transição econômica. Veja na nota as observações manuscritas “ URV do dia - 1.084,13 “, “40, 60 URVs “. Estava em vigor a regra de adaptação da nova moeda Real. Uma informação extra que também aparece é “Gasolina = 4 URVs “. Na primeira nota, aquela de 16 de março, essas anotações não apareciam. As anotações de Sílvia, feitas no dia 10 de maio de 1994, começam da seguinte forma
Notemos que os valores estão em dólares, ainda refletindo as dificuldades relacionadas com a inflação daquele tempo. Em seguida ela observa que, como o painel agora estava sendo pensado para a parede da Galeria Pattaro, e antes fora projetado para as dimensões de 3,20 m por 2,20 m, o orçamento teria que crescer. Para o novo tamanho de 4,00 m por 2,50 m a argila ne10
cessária seria na quantidade de 850 quilos, pois cada uma das 160 peças do painel usaria 5 quilos. Além disso seria preciso cortar 160 placas de Duratex, todas com o mesmo tamanho, para que os alunos trabalhassem com argila em cima delas. O custo disso não entraria no orçamento. Por isso estava programado que cada aluno pagaria 2 URVs, com direito a 4 placas cada um, fosse qual fosse o número total de peças de argila do painel. As placas restantes seriam pagas por Sílvia. Para guardar as peças de argila que estariam sendo fabricadas, ela resolveu construir, por conta própria, um anexo ao lado do Ateliê, com armários especiais para esse armazenamento.Veja foto a seguir
11
Capítulo 2 Trabalhos de modelagem com a argila Conforme descrevemos no final do capítulo anterior, foram preparadas 160 placas de Duratex onde, em cada uma delas, a argila seria modelada. Ainda, como parte do esquema de trabalho de modelagem, Sílvia mandou cortar tiras de folhas de flandres medindo 6 cm por 30 cm que seriam colocadas nas laterais das placas de Duratex. Assim, cada placa com essas tiras metálicas formaria uma espécie de caixa onde seria colocada a argila previamente batida. Nessas tiras laterais estava marcadas a altura mínima que teria a argila ali colocada. Sobre essa camada de argila, os relevos, que dariam forma à escutura, seriam trabalhados. Veja, no manuscrito de Sílvia, datado de 17 de maio de 1994, o cuidado extra para a trabalhar cada relevo.
O fato de a argila ter que ser batida e amassada antes de usá-la 12
para modelagem se transformou num problema comum a todos os alunos. A princípio, Sílvia pediu que todos procurassem fazer a sua parte desse trabalho no Ateliê usando os horários diferentes daqueles das aulas. A razão para isso vinha do cuidado para embalar o material adequadamente para evitar que viesse a secar de modo muito rápido e fosse estocado de maneira a não estar sujeito a certas manipulações modificadoras sua forma. Todavia, Sílvia acabou permitindo que parte dos alunos fizesse esse trabalho em casa, desde que se comprometessem a tomar as precauções necessárias. A seguir podemos ver alunos em atividade no Ateliê amassando e batendo argila.
Lalau, no seu depoimento, menciona esse trabalho de amassar argila. Mas daí para frente, meu Deus, que trabalhão! Sílvia, organizada e cuidadosa, mandara preparar as plaquinhas de eucatex, já na medida certa que as placas deveriam obedecer. Não dava para “roubar” nas medidas, fazer a coisa menor ... ela estava vigiando ... Cinco quilos de argila por placa e a minha contribuição individual ficou enorme e pesada, de repente!!! Eu vou ter que amassar, virar, revirar e bater QUARENTA E CINCO QUILOS DE ARGILA?!? Ai de mim!!!
13
No dia 13 de junho de 1994, Sílvia, em seu manuscrito, relata que ao controlar o trabalho de todos os alunos, acompanhar mais atentamente os principiantes e fazer suas próprias placas de argila, tudo isso acabou por deixá-la cansada e preocupada. As dores nos braços e no pescoço também a estavam perturbando. Uma outra preocupação se somou a esses percalsos: ainda restavam 135 quilos de argila a serem batidos e amassados. Felizmente a aluna Nara conhecia um homem que sabia se adaptar a vários tipos de trabalho. Ele veio ao Ateliê, aprendeu imediatamente serviço esperado e, em dois dias, amassou e bateu toda a argila e a distribuiu pelas placas de Duratex restantes. A foto mostra Sílvia trabalhando na execução de um dos arcos que apareceriam no painel.
O trabalho artístico e manual para executar os blocos de argila pelos alunos acabou sendo feito por eles com cuidado e num tempo razoável. Vamos agora descrever com mais detalhes as etapas que cada aluno ou aluna deveria cumprir na preparação de suas obras. A argila a ser utilizada devia ser bem batida e amassada de 14
modo a apresentar uma aparência e consistência uniforme. Em seguida, com um pau de macarrão essa massa era abaixada para ficar com um espessura uniforme de 5 cm. Agora a placa de Duratex era contornada nas laterais com as tiras de folhas de flandres, onde a altura de 5 cm estava marcada, para formar uma caixa quadrangular. Nela a argila era colocada e, caso necessário, mais alguma acrescentada para atingir a espessura anotada nas laterais. Com essa placa de argila pronta, o aluno ou aluna podia começar a fazer o relevo que programara para a sua peça. Para isso tinha uma maquete pequena de argila, que fora feita a partir de um desenho que projetara para sua obra. Veja abaixo uma aluna fazendo esse trabalho.
Enquanto essa escultura não estivesse pronta, essa caixa com a argila era embrulhada em pano úmido, envolta num plástico e guardada numa das prateleiras do anexo ao Ateliê, mencionado anteriormente. Voltemos ao depoimento de Lalau. Dia 25 de maio de 1994 (posso me dar ao luxo de ser precisa nas datas, 15
porque foi tudo anotado na minha agenda-diário). Finalmente depois de um século amassando barro, comecei a parte gostosa de trabalhar a minha ideia nas placas já montadas com os cinco quilos regulamentares, mantidas úmidas, cobertas de panos molhados, em sacos plásticos. Surpresas interessantes ao retirar as placas do plástico protetor - desenhos inesperados nos panos úmidos, cores estravagantes causadas pelo bolor, arte da natureza.
Na imagem seguinte vemos duas placas de argila embaladas, antes de estocadas na prateleira do anexo ao Ateliê.
Depois que ficou constatado que cada uma das peças de argila estava com aparência perfeita, restava um último trabalho de verificação. Todas as peças voltaram ao chão do Ateliê, colocadas em seus lugares devidos, para que se ter uma ideia da aparência do Painel no futuro. É claro que isso foi registrado por uma fotografia . Vamos novamente examinar as reflexões de Lalau. Dia 6 de julho chego para a aula. Sílvia me recebe com a notícia de que não haveria aula , porque todo mundo, inclusive eu mesma tinha avisado que não iria. O pessoal tinha trabalhado na véspera, montando todo o painel no chão. Necessário acertar todas as bordas, fazer tudo aquilo encaixar – minha ajuda tinha sido pequena e eu só vira parte do painel montado. “Vem ver” me convidou Sílvia. Entrei no ateliê e lá estava ELE no chão, enorme, coberto com plástico negro. Fomos retirando o plástico e foi então que eu vi, ali, realizada no chão a ideia de Sílvia! Deslumbrante! Os arcos unindo tudo, num todo que eu não imaginava
16
possível! A gente tinha mesmo, mesmo, feito aquela beleza? Fiquei embasbacada olhando. O todo. Os detalhes. A pele da onça que eu duvidava fosse possível realizar em argila. O beijo gelado dos pinguins que a Walma escondeu em casa por muito tempo. Os macaquinhos delicados da Maria Alcina. A joaninha, o sapo, o por do sol na água, os trabalhos inocentes das crianças do ateliê, a flor de óvulo e espermatozóides da Carol, a grávida e o mundo, os prédios e a favela, a assinatura da Sílvia que eu pensei ser uma cobra... ... e os arcos dando unidade ao projeto, ligando aquele monte de detalhes, aquelas falas individuais, num discurso coletivo, coeso e coerente que apela ao respeito necessário, que denuncia a falta de respeito. Não chorei porque não sou de choro. Mas fiquei engasgada diante da beleza daquele trabalho a muitas mãos, diante do respeito de Sílvia às individualidades, de seu espírito de liderança unindo essas individualidades em arcos que expandem ao mesmo tempo que contêm, que unem, que fazem o todo de detalhes.
17
Depois desse evento todos os alunos e alunas consideraram as placas-esculturas prontas, guardando-as, sem qualquer envólucro, na prateleira do anexo para secar e chegar ao chamado ponto de couro. Esse ponto era atingido quando a placa se solidificava de modo a não ser mais deformada pelo manuseio. O passo seguinte era o de fazer a retirada da placa de argila da prateleira para fazer a chamada ocagem. Esse era um trabalho delicado pois retirava-se por baixo dessa placa, aos poucos e com cuidado, a argila de modo que a escultura resultante tivesse uma espessura de 2 cm da maneira mais uniforme possível.Veja foto de uma ocagem em execução.
No Apêndice vamos publicar uma série de fotografias de alunos e alunas trabalhando nessa fase de acerto das bordas das peças de argila em suas posições programadas pelo mapa. Por volta do final do mes de Julho de 1994 as prateleiras do anexo ao Ateliê estavam tomadas com todas as placas do futuro painel, aguardando a secagem completa. O serviço feito foi muito bom pois nenhuma peça trincou ou partiu nesse processo de secagem definitiva. Finalmente, em agosto de 1994 os 160 blocos secos de cerâmica 18
foram levados para a queima na Cerâmica Artística Real de Barão Geraldo, sem que ocorresse qualquer perda por quebra ou trinca, o que mais uma vez comprovava que o trabalho da equipe do Ateliê fora extremamente eficiente.
19
Capítulo 3 Instalação e inauguração do painel No seu manucristo de Sílvia descrevia de que modo se fez o acordo para instalação do painel na parede frontal da Galeria Páttaro. Em dezembro (1993) fui fazer umas compras na Galeria Páttaro. Em conversa com a Rita, dona de uma das lojas, vi que nela haviam vários quadros pintados por ela. Aproveitei para falar da nossa ideia. Ela achou ótima e me mostrou uma parede que poderia ser utilizada. Fiquei de fazer uma maquete e depois conversar com os outros donos de lojas. Passadas as férias, com a maquete em cerâmica pronta, fui com Walma falar com o diretor da associação dos donos de lojas da Galeria. Gostou logo da ideia e a apresentou em uma reunião com os outros. Depois de um mes, mais ou menos, recebemos a notícia da aprovação. Todos os alunos e eu ficamos muito contentes. Começou então uma nova etapa. O tamanho da maquete teve que ser ampliado pois a parede que nos indicaram, situada na frente da galeria, exigia um painel maior.
Em setembro de 1994, com todas as peças prontas e estocadas no anexo do Ateliê, Sílvia procurou a Galeria Páttaro para tratar da colocação do painel na parede a ele destinado. Conforme fora combinado em janeiro de 1994, seria necessário pintar o lado externo da prédio, uma vez que a cor que lá estava não combinava com a cerâmica. Ficou claro para Sílvia que o dono da Galeria não estava mais disposto a cumprir essa promessa. A impressão era que não estava querendo fazer mais gastos, nem com pintura, 20
nem com os trabalhos de instalação do painel. Sílvia achou melhor desistir do acordo que fizera e não instalar o painel naquele local. As placas prontas para a montagem do painel, estocadas nas prateleiras do anexo ao Ateliê, iriam permanecer ali por algum tempo. Isso todavia não impediu que fossem montadas no chão do Ateliê para um fotografia. Esta mostraria o aspecto futuro do painel, mesmo estando deitado no solo e à sombra de uma cobertura...
Retornemos aos comentários de Maria Laura: ...uma delas é “onde instalar o painel?” O pessoal, que tinha prometido instalá-lo na parede de uma galeria de lojas em Barão Geraldo, roeu a corda. O painel ficou morando, por um ano, mas prateleiras do quartinho. Sílvia andando a cata de quem dispusesse a bancar sua instalação. Chegamos a pensar em construir uma parede especial para ele no próprio ateliê ... mas, aí nossa homenagem a Barão Geraldo ficaria restrita a poucos olhares. Foi bom quando o pessoal do Lake House se interessou. Melhor lugar não poderia haver! Para mim, então, como docente do Instituto de Estudos 21
da Linguagem na UNICAMP, é como se tivessem instalado o painel no meu quintal ... E, desculpem a falta de modéstia, mas nosso painel, nossa homenagem a Barão Geraldo, NOSSO PEDIDO DE RESPEITO, está lindo à beira do lago da UNICAMP!
O dono do Lake House Restaurant, Roberto Moya, que na época ocupava o espaço da Casa do Lago na UNICAMP, resolveu apoiar a ideia e mandar construir uma parede em frente ao seu espaço, onde o painel seria colocado. Não só se responsabilizou por todos os custos da obra, como deu o dinheiro correspondente aos gastos com a compra de argila que a Galeria Páttaro contribuíra anteriormente. Aqui está a cópia do documento que certifica a devolução dos valores àquela galeria.
A seguir vamos apresentar uma série de fotos que mostram o processo de colocação das peças de argila na parede construída na 22
frente da Casa do Lago. Durante todo essa fase, Sílvia acompanhou tudo de perto, para ter certeza que as placas todas fossem colocadas em seus lugares certos.
Os nomes dos participantes do projeto foram colocados em uma placa de argila colocada à frente do monumento, perto do passeio. Os trabalhadores, que construíram e montaram o painel, seguindo um pedido de Sílvia, colocaram na base do monumento suas assinaturas e a data da conclusão. Depois de todo o trabalho de colocação das placas, demonstrado parciamente pelas fotos acima, o aspecto final do painel, visto em conjunto com o prédio da Casa do Lago, aparece na 23
fotografia da próxima página.
Vamos observar a imagem acima e notar um casamento das linhas do prédio com as linhas do Painel. A curvatura do teto se harmoniza perfeitamente com os arcos que aparecem no painel, enquanto as estruturas retangulares e quadradas de concreto, que enquadram os vidros e a entrada de luz externa ao prédio, fazem um contraponto interessante com as divisões quadradas das placas no painel. Uma outra coincidência, não programada, é claro, provém do fato do painel estar próximo ao lago e ter aquele pingo, próximo ao canto esquerdo inferior, dando origem às ondas da vida em expansão. A inauguração oficial do Painel Vida em Expansão foi realizada no dia 20 de outubro de 1995, uma sexta-feira, às 17:30 horas. Esse evento foi noticiado pelos jornais locais com fotos, descrição do projeto realizado pelo Ateliê de Criatividade Sílvia Matos, enfatizando a participação dos alunos-artistas do mesmo, cujas idades variavam de 8 a 80 anos. Além disso todos os jornais falavam que a obra fora inspirada pela situação que a sociedade brasileira estava observando, durante os útimos anos, de falta de respeito aos valores democráticos, à natureza e ao bom uso do dinheiro público. Tratava de fazer um apelo a todos para que, cada um fazendo a sua parte, estaria, como um pingo de água numa 24
superfície de um lago, espalhando ondas de influências positivas para toda a sociedade. A foto abaixo foi publicada pelo Jornal Integração de Barão Geraldo, em novembro de 1995.
Na imagem seguinte o texto dessa notícia.
O Correio Popular publicou a notícia a seguir no dia 20 de outubro de 1995.
25
26
Apêndice A Fotos do trabalho de preparação
27
28
29
Apêndice B A experiência de fazer um painel de cerâmica Texto escrito por Maria Laura T. Mayrink-Sabinson (Lalau) em outubro de 1995. Tudo começou com uma ideia da Sílvia, nalgum momento do segundo semestre de 1993. Um painel em cerâmica. Todos se envolveriam, cada um trabalhando seu próprio projeto, todos em torno de um mesmo tema – trabalho ao mesmo tempo individual e coletivo. Um tema atual, quente, na onda, necessário porque em extinção – o do RESPEITO –pense o que quiser, RESPEITO À VIDA, RESPEITO À NATUREZA, RESPEITO ÀS ESPÉCIES EM EXTINÇÃO ... e bole seu próprio projeto. Por que não? Enquanto ideia, a coisa não pesava, não dava trabalho, entusiasmava todo mundo. Abraçamos a ideia, adotamos a ideia. E, como ideia, o painel existiu por algum tempo. De vez em quando, no ateliê, alguém se lembrava “e o painel?” “vamos ou não vamos fazer o painel?” “Claro que o painel vai sair”, afirmava a Sílvia, com a maior certeza do mundo. Mas, logo voltávamos ao que estávamos fazendo e o painel continua como os va ideia. Pelo menos para nós. Não para Sílvia – 30
nesse período ela se mexia, se virava, e revirava Barão Geraldo em busca de patrocinadores ... Ela até preparou uma maquetinha, nos mostrou desenhos ... ... e a gente achando que o painel continuava pura ideia, sonho de Sílvia ... Pelo menos eu achava, apesar de ter feito alguns esboços de ideias para um painel que falasse em respeito. Andei desenhando animais, estudando pombas e papagaios. Durante as férias, em Minas, passei tempo estudando a maritaca do meu irmão, bichinho danado que não parava quieto, não era como os modelos humanos que estudávamos no ateliê durante o segundo semestre de 1993. Como as naturezas mortas, os vasos de flores que “posavam” para mim. E não é que um belo dia lá vem Sílvia nos surpreendendo com a notícia de que tinham topado a ideia do painel, a argila já estava chegando, já estava aí ... De ideia pura e leve o painel se tornou pesado: uma tonelada de argila a ser amassada, trabalhada por muitas mãos, regada a suor, suspiros e xingamentos ... Até 23 de março de 1994 o painel, para mim, era uma ideia. Até então eu só tinha trabalhado com argila quando preparamos uma exposição de máscaras, no fim do meu primeiro ano no ateliê, 1992. Eu não tinha a menor, minimíssima ideia do que fosse preparar um painel de argila !!! Essa (santa!) ignorância foi a principal responsável pela falta de modéstia (ou de juízo?) que me levou a pensar que a minha contribuição individual ocuparia nove quadros de 25 cm x 25 cm – desenhei em carvão o que eu trabalharia: a pomba no meio das folhagens. Pacífica. Mãos à obra! Ver o projeto do painel no chão, montado com os desenhos/projetos de cada um. Sílvia estudando onde colocar o quê. Um painel em duas dimensões. Impressionava ... mas não muito! Preparar a maquete até que foi fácil, porque me utilizei de um quadrado de menos de 25 cm de lado para todo o desenho. Moleza!!! Mas daí para a frente, meu Deus, que trabalhão! Sílvia, cuidadosa e organizada, mandara preparar as plaquinhas de eucatex, já na medida certa que as placas deveriam obedecer. Não dava para 31
“roubar ” nas medidas, fazer a coisa menor ... ela estava lá vigiando ... Cinco quilos de argila por placa e a minha contribuição individual ficou enorme e pesada, de repente!!! Eu vou ter que amassar, virar, revirar e bater QUARENTA E CINCO QUILOS DE ARGILA?!? Ai de mim!!! E toca a fazer a cara de boi na argila, a suar, a bufar, reclamar e invejar quem, modestamente (ou espertamente?), se contentara de início em fazer umas poucas placas. Que medo ao colocar as placas prontas nas prateleiras estreitinhas da estante especial, no quartinho especial, que Sílvia construíra pensando o painel ... (E a gente achando que era só uma ideia dela, nem se dava conta da tantas novidades no ateliê). E se a placa cai e amassa a placa alheia, que está pronta, em baixo? Aquelas placas lisinhas, parecendo bolo com cobertura de chocolate! Abril e maio se passaram, para mim, nessa luta inglória de preparar argila. Um trabalho que parecia não ter fim. Vez que outra eu anunciava: “Quando eu terminar esse painel, vou soltar foguetes em comemoração!” Ainda bem que eu não era a única reclamona da turma. Acho que o Luís ganhava de mim. A Sônia, então! essa foi espertinha, ficou esperando a Sílvia conseguir um braço forte para bater a argila toda para ela e depois, lépida e fagueira, em poucas horas passou na minha frente, ainda sobrou tempo de me ajudar a ocar as peças! Dia 25 de maio de 1994 (posso me dar ao luxo de ser precisa nas datas, porque foi tudo anotado na minha agenda/diário). Finalmente depois de um século amassando barro, comecei a parte gostosa de trabalhar a minha ideia nas placas já montadas com os cinco quilos regulamentares, mantidas úmidas, cobertas de panos molhados, em sacos plásticos. Surpresas interessantes ao retirar as placas do plástico protetor – desenhos inesperados nos panos úmidos, cores estravagantes causadas pelo bolor, a arte da natureza. Sílvia fotografou para a posteridade. Voltando do ateliê, depois de traçar o desenho todo nas nove 32
placas e de trabalhar em duas delas (eu nem queria sair de lá, estava tão gostoso cavar a argila daqui, botar mais argila de lá, alisar a argila ...), passei uma noite meio sonhando, meio acordada, excitada por ter começado o trabalho. No meu sonho eu terminava o painel ... O mes de junho foi dedicado a trabalhar as placas, esculpindoas, dando-lhes forma. Dedicado, também, a admirar o que ia surgindo, trabalhado pelas mãos dos amigos, com quem eu me encontrava no ateliê. Os peixes orientais da Marlei, os peixes estilizados da Lúcia, a cobra ameaçadora da Ana, a árvore sem folhas da Lia, o casal de amantes da Vera, a grávida sofisticada da Nara, a arara entre folhagens da Sônia, a bromélia exuberante de Maria Sílvia, a vida marinha da Carole, a árvore mulher do Luís (muitas risadas com a aplicação de silicone nos seios – vocação revelada de cirurgião plástico?) ... e a Sílvia preparando arcos infindáveis ... Eu me perguntava como ficaria tudo aquilo junto – uma colcha de retalhos? parecia-me loucura juntar projetos tão disparatados num único painel ... Daria certo? nenhuma ideia do todo! Dia 06 de julho, chego para aula. Sílvia me recebe com a notícia de que não haveria a aula, porque todo mundo, inclusive eu mesma, tinha avisado que não iria. O pessoal tinha trabalhado na véspera, montando todo o painel no chão. Necessário acertar todas as bordas, fazer tudo aquilo encaixar – minha ajuda tinha sido pequena e eu só vira parte do painel montado. “Vem ver” me convidou a Sílvia. Entrei no ateliê e lá estava ELE no chão, enorme, coberto de plástico negro. Fomos retirando o plástico e foi então que eu vi, alí, realizada no chão, a ideia da Sílvia! Deslumbrante! Os arcos unindo tudo, num todo que eu não imaginava possível! A gente tinha, mesmo, feito aquela beleza? Fiquei embasbacada, olhando. O todo. Os detalhes. A pele de onça que eu duvidava ser possível realizar em argila. O beijo gelado dos pinguins que Walma escondeu em casa por muito tempo. Os macaquinhos delicados da Maria Alcina. A joaninha, o sapo, o por de sol na água, os trabalhos inocentes das crianças do ateliê, 33
a flor de óvulo e espermatozóides da Carol, a grávida e o mundo, os prédios e a favela, a assinatura da Sílvia que eu pensei ser uma cobra ... ... e os arcos dando unidade ao projeto, ligando aquele monte de detalhes, aquelas falas individuais, num discurso coletivo, coeso e coerente que apela ao respeito necessário, que denuncia a falta de respeito. Não chorei porque não sou de choro. Mas fiquei engasgada diante da beleza daquele trabalho a muitas mãos, diante do respeito da Sílvia às individualidades, de seu espírito de liderança unindo essas individualidades em arcos que se expandem ao mesmo tempo que contêm, que unem, que fazem o todo de detalhes. Painel pronto? Pronto nada! ainda falta ocar as peças, tirar de dentro o excesso de argila, tornar as placas mais leves. Doze placas para ocar, as minhas nove e as quatro da Lia, enquanto a sapeca da minha filha passeia pelos Estados Unidos. Ana e Sônia, mais espertas que eu, terminam o próprio trabalho e me dão uma mãozinha. Placas prontas. Prontas? Agora é secá-las devagarinho, leválas ao forno da cerâmica, rezar para que não haja bolhas que explodam, rezar para que nada caia e se quebre, rezar para que o pedreiro seja competente e não emende a minha pomba com a cobra da Ana ou o pinguim da Walma montando um outro painel jamais pensado ... muito trabalho e preocupação pela frente ... ... uma delas é “onde instalar o painel?” O pessoal, que tinha prometido instalá-lo na parede de uma galeria de lojas em Barão geraldo, roeu a corda. O painel ficou morando, por um ano, nas prateleiras do quartinho. Sílvia andando à cata de quem dispusesse a bancar sua instalação. Chegamos a pensar em construir uma parede especial para ele, no próprio ateliê ... mas, aí, nossa homenagem à Barão Geraldo ficaria restrita a poucos olhares. Foi bom quando o pessoal do Lake House se interessou. Melhor lugar não poderia haver! Para mim, então, como docente do Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp, é como se tivessem instalado o painel no meu quintal ... E, desculpem a falta de 34
modéstia, mas nosso painel, nossa homenagem à Barão Geraldo, NOSSO PEDIDO DE RESPEITO, está lindo à beira do lago da UNICAMP
35
36