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B A experiência de fazer um painel de cerâmica


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Apêndice B
A experiência de fazer um painel de cerâmica
Texto escrito por Maria Laura T. Mayrink-Sabinson (Lalau) em outubro de 1995.
Tudo começou com uma ideia da Sílvia, nalgum momento do segundo semestre de 1993.
Um painel em cerâmica. Todos se envolveriam, cada um trabalhando seu próprio projeto, todos em torno de um mesmo tema – trabalho ao mesmo tempo individual e coletivo.
Um tema atual, quente, na onda, necessário porque em extinção – o do RESPEITO –pense o que quiser, RESPEITO À VIDA, RESPEITO À NATUREZA, RESPEITO ÀS ESPÉCIES EM EXTINÇÃO ... e bole seu próprio projeto. Por que não?
Enquanto ideia, a coisa não pesava, não dava trabalho, entusiasmava todo mundo. Abraçamos a ideia, adotamos a ideia.
E, como ideia, o painel existiu por algum tempo. De vez em quando, no ateliê, alguém se lembrava “e o painel?” “vamos ou não vamos fazer o painel?” “Claro que o painel vai sair”, afirmava a Sílvia, com a maior certeza do mundo.
Mas, logo voltávamos ao que estávamos fazendo e o painel continua como os va ideia. Pelo menos para nós. Não para Sílvia –
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nesse período ela se mexia, se virava, e revirava Barão Geraldo em busca de patrocinadores ... Ela até preparou uma maquetinha, nos mostrou desenhos ...
... e a gente achando que o painel continuava pura ideia, sonho de Sílvia ... Pelo menos eu achava, apesar de ter feito alguns esboços de ideias para um painel que falasse em respeito. Andei desenhando animais, estudando pombas e papagaios. Durante as férias, em Minas, passei tempo estudando a maritaca do meu irmão, bichinho danado que não parava quieto, não era como os modelos humanos que estudávamos no ateliê durante o segundo semestre de 1993. Como as naturezas mortas, os vasos de flores que “posavam” para mim.
E não é que um belo dia lá vem Sílvia nos surpreendendo com a notícia de que tinham topado a ideia do painel, a argila já estava chegando, já estava aí ... De ideia pura e leve o painel se tornou pesado: uma tonelada de argila a ser amassada, trabalhada por muitas mãos, regada a suor, suspiros e xingamentos ...
Até 23 de março de 1994 o painel, para mim, era uma ideia. Até então eu só tinha trabalhado com argila quando preparamos uma exposição de máscaras, no fim do meu primeiro ano no ateliê, 1992. Eu não tinha a menor, minimíssima ideia do que fosse preparar um painel de argila !!! Essa (santa!) ignorância foi a principal responsável pela falta de modéstia (ou de juízo?) que me levou a pensar que a minha contribuição individual ocuparia nove quadros de 25 cm x 25 cm – desenhei em carvão o que eu trabalharia: a pomba no meio das folhagens. Pacífica. Mãos à obra!
Ver o projeto do painel no chão, montado com os desenhos/projetos de cada um. Sílvia estudando onde colocar o quê. Um painel em duas dimensões. Impressionava ... mas não muito!
Preparar a maquete até que foi fácil, porque me utilizei de um quadrado de menos de 25 cm de lado para todo o desenho. Moleza!!!
Mas daí para a frente, meu Deus, que trabalhão! Sílvia, cuidadosa e organizada, mandara preparar as plaquinhas de eucatex, já na medida certa que as placas deveriam obedecer. Não dava para
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“roubar ” nas medidas, fazer a coisa menor ... ela estava lá vigiando ... Cinco quilos de argila por placa e a minha contribuição individual ficou enorme e pesada, de repente!!! Eu vou ter que amassar, virar, revirar e bater QUARENTA E CINCO QUILOS DE ARGILA?!? Ai de mim!!!
E toca a fazer a cara de boi na argila, a suar, a bufar, reclamar e invejar quem, modestamente (ou espertamente?), se contentara de início em fazer umas poucas placas. Que medo ao colocar as placas prontas nas prateleiras estreitinhas da estante especial, no quartinho especial, que Sílvia construíra pensando o painel ... (E a gente achando que era só uma ideia dela, nem se dava conta da tantas novidades no ateliê). E se a placa cai e amassa a placa alheia, que está pronta, em baixo? Aquelas placas lisinhas, parecendo bolo com cobertura de chocolate!
Abril e maio se passaram, para mim, nessa luta inglória de preparar argila. Um trabalho que parecia não ter fim. Vez que outra eu anunciava: “Quando eu terminar esse painel, vou soltar foguetes em comemoração!”
Ainda bem que eu não era a única reclamona da turma. Acho que o Luís ganhava de mim. A Sônia, então! essa foi espertinha, ficou esperando a Sílvia conseguir um braço forte para bater a argila toda para ela e depois, lépida e fagueira, em poucas horas passou na minha frente, ainda sobrou tempo de me ajudar a ocar as peças!
Dia 25 de maio de 1994 (posso me dar ao luxo de ser precisa nas datas, porque foi tudo anotado na minha agenda/diário). Finalmente depois de um século amassando barro, comecei a parte gostosa de trabalhar a minha ideia nas placas já montadas com os cinco quilos regulamentares, mantidas úmidas, cobertas de panos molhados, em sacos plásticos.
Surpresas interessantes ao retirar as placas do plástico protetor – desenhos inesperados nos panos úmidos, cores estravagantes causadas pelo bolor, a arte da natureza. Sílvia fotografou para a posteridade.
Voltando do ateliê, depois de traçar o desenho todo nas nove
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placas e de trabalhar em duas delas (eu nem queria sair de lá, estava tão gostoso cavar a argila daqui, botar mais argila de lá, alisar a argila ...), passei uma noite meio sonhando, meio acordada, excitada por ter começado o trabalho. No meu sonho eu terminava o painel ...
O mes de junho foi dedicado a trabalhar as placas, esculpindoas, dando-lhes forma. Dedicado, também, a admirar o que ia surgindo, trabalhado pelas mãos dos amigos, com quem eu me encontrava no ateliê. Os peixes orientais da Marlei, os peixes estilizados da Lúcia, a cobra ameaçadora da Ana, a árvore sem folhas da Lia, o casal de amantes da Vera, a grávida sofisticada da Nara, a arara entre folhagens da Sônia, a bromélia exuberante de Maria Sílvia, a vida marinha da Carole, a árvore mulher do Luís (muitas risadas com a aplicação de silicone nos seios – vocação revelada de cirurgião plástico?) ... e a Sílvia preparando arcos infindáveis ... Eu me perguntava como ficaria tudo aquilo junto –uma colcha de retalhos? parecia-me loucura juntar projetos tão disparatados num único painel ... Daria certo? nenhuma ideia do todo!
Dia 06 de julho, chego para aula. Sílvia me recebe com a notícia de que não haveria a aula, porque todo mundo, inclusive eu mesma, tinha avisado que não iria. O pessoal tinha trabalhado na véspera, montando todo o painel no chão. Necessário acertar todas as bordas, fazer tudo aquilo encaixar – minha ajuda tinha sido pequena e eu só vira parte do painel montado. “Vem ver” me convidou a Sílvia.
Entrei no ateliê e lá estava ELE no chão, enorme, coberto de plástico negro. Fomos retirando o plástico e foi então que eu vi, alí, realizada no chão, a ideia da Sílvia!
Deslumbrante! Os arcos unindo tudo, num todo que eu não imaginava possível! A gente tinha, mesmo, feito aquela beleza?
Fiquei embasbacada, olhando. O todo. Os detalhes. A pele de onça que eu duvidava ser possível realizar em argila. O beijo gelado dos pinguins que Walma escondeu em casa por muito tempo. Os macaquinhos delicados da Maria Alcina. A joaninha, o sapo, o por de sol na água, os trabalhos inocentes das crianças do ateliê,
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a flor de óvulo e espermatozóides da Carol, a grávida e o mundo, os prédios e a favela, a assinatura da Sílvia que eu pensei ser uma cobra ...
... e os arcos dando unidade ao projeto, ligando aquele monte de detalhes, aquelas falas individuais, num discurso coletivo, coeso e coerente que apela ao respeito necessário, que denuncia a falta de respeito.
Não chorei porque não sou de choro. Mas fiquei engasgada diante da beleza daquele trabalho a muitas mãos, diante do respeito da Sílvia às individualidades, de seu espírito de liderança unindo essas individualidades em arcos que se expandem ao mesmo tempo que contêm, que unem, que fazem o todo de detalhes.
Painel pronto? Pronto nada! ainda falta ocar as peças, tirar de dentro o excesso de argila, tornar as placas mais leves. Doze placas para ocar, as minhas nove e as quatro da Lia, enquanto a sapeca da minha filha passeia pelos Estados Unidos. Ana e Sônia, mais espertas que eu, terminam o próprio trabalho e me dão uma mãozinha.
Placas prontas. Prontas? Agora é secá-las devagarinho, leválas ao forno da cerâmica, rezar para que não haja bolhas que explodam, rezar para que nada caia e se quebre, rezar para que o pedreiro seja competente e não emende a minha pomba com a cobra da Ana ou o pinguim da Walma montando um outro painel jamais pensado ... muito trabalho e preocupação pela frente ...
... uma delas é “onde instalar o painel?” O pessoal, que tinha prometido instalá-lo na parede de uma galeria de lojas em Barão geraldo, roeu a corda. O painel ficou morando, por um ano, nas prateleiras do quartinho. Sílvia andando à cata de quem dispusesse a bancar sua instalação. Chegamos a pensar em construir uma parede especial para ele, no próprio ateliê ... mas, aí, nossa homenagem à Barão Geraldo ficaria restrita a poucos olhares.
Foi bom quando o pessoal do Lake House se interessou. Melhor lugar não poderia haver! Para mim, então, como docente do Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp, é como se tivessem instalado o painel no meu quintal ... E, desculpem a falta de
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modéstia, mas nosso painel, nossa homenagem à Barão Geraldo, NOSSO PEDIDO DE RESPEITO, está lindo à beira do lago da UNICAMP
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