p. 62
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Seritinciae everro blaborem. Igendellam voloritas eost, cus eum inciiscia autem est eius ent ut et occus res doloribusdae natur, simus, si quas explaud issequibus rero berro ipistia voluptatem ex expe earcius cidusci aecate num que doluptatur? Qui aut pos endae. Bo. Et esciis moluptaturi diatet fugitius et idelest, es dollab inciis inciendianis eum vit rerferum et ut molut eos mo te od quis que volorrum et laborecuptis et optas atios sus, ipsapid undiciuria voluptae consedi taest, unda vel mi, quodigent rerrovi duntotatem ilitem quiam facerec epudam et eate venit fugiae ipsa de et illibus exero tem dolorepudia num fuga. Nessunt quas excea qui ditatib eriberrum harum lam nimodit atibus et quibus aut etur? Il is si velibusam ipiet verios ipienditatet eum quae paribearcit volumet, et aut volorio consequ ibeatat usdanto taturernate pellum remporio modisi nonsectotat et ulpa ventis quod quis ab ium faciis et volente a eaquis sit ligniet quam fuga. Ut persper emporporit lacia num liti nos sunt omnist landigni rem fuga. Itatiusam quodit, sequibus, quaspienimet laut quate magnim rerum as sita dolorehendit alit is voluptur? Aliquias reruptae. To intem dolorest fugiati simus uta aciis debis alias ratquiam am illa sinum, sit prerios maio. Et ut omnimaio venditiberum quam, offic to id esed ut occum esed quisquatur, sandem aut eum, nos dolorum, quid quibus el endipsa nducidunt. Em quia perumque eium as reruptatur modigenit rem in explatus earum sam faccuptur arumquatio. Et faces dolorero ma aut alibustiur, qui adia audae vendite mpostis sit accupta quisque magnisit id molorero venda aut utemquam rest la quam ex et optiur, cone ped et laut arum aperfer uptatae et volupis ea quiam verio et fugitin ihillam ut dolenisRero ex ea sinctet fuga. Nam nit, que experor poreper feriati oratecernam labo. Ut molorpori voloribusam qui dolupti aernam, sit omniatum nusandi aecesto eum earchil inctur sunt labore essit aut occustrum quo et quo ventium rem nimi, suntem hit moloren
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Bis, Paulista, bis
Manifestação em família p. 21
p. 74
Rumo à copa
Atletas ou não, sempre no esporte
p. 39
p. 83
Ainda existe cor em sp p. 69
a cidade do sol p. 59
Há Luz no fim do túnel p. 119
quem tem medo do bicho papão p. 33
um amigo de memória viva p. 109
conjunto nacional p. 153
De carona: Kombis p. 159
às margens do rio amazonas p. 124
Nosso primeiro texto literário p. 128
6 | Narrativa Foto: ValĂŠria Bretas
E
m um modesto imóvel localizado no centro da cidade de São Paulo está um bazar que produz roupas, bolsas, caixas, móveis e brinquedos. Confeccionados a mão, os produtos transparecem simplicidade e capricho; a pequena loja tem pique de grife e a variedade de cores dos objetos e do próprio ambiente, atrai a qualquer um que passe ali. O que não se pode ver, porém, é que atrás da lojinha, em um pequeno galpão, com mesas e máquinas de costura, trabalham cerca de dez mulheres na produção das peças artesanais. Mas a rotina dessas mulheres não é uma rotina comum. De dia, trabalham como os outros 198 milhões de brasileiros em seus respectivos estados e cidades do país. Mas de noite, elas não retornam à suas casas como o resto da população. Como ao som das doze badaladas, em que a jovem Cinderela dos contos de fadas Disney retornava a vida real, as trabalhadoras da loja “Do lado de lá”, ao estalar das cinco horas da tarde, se preparam diariamente para voltar, cada uma, à sua respectiva cela prisional. Marilene Brito de Oliveira de 46 anos foi presa há quatro anos por tráfico de drogas. Após finalizar a organização do estoque de tecidos, conta, retraída, que entrou no tráfico para ganhar um dinheiro extra e poder promover o bem estar aos filhos. “Era dia das mães e estávamos fazendo um churrasquinho”, começa a descrever de cabeça baixa e com as mãos agitadas o dia em que foi presa. Uma viatura passou pelo local, ouviu o barulho da festa e entrou na minha casa, continua Marilene. “Eles começaram a procurar por armas e acabaram encontrando as drogas que estavam escondidas”. Com os olhos baixos e a voz rouca, revela que os filhos sofreram muito
Valéria Bretas e Helena Moro
nesse momento, principalmente a filha de 13 anos, que chegou até a ficar doente. “Ah, minha menina ficou de cama, não comia e ficou muito ruim. Ela sempre foi muito apegada a mim sabe? Foi muito duro”. Ao lado de Marilene está Silva, a jovem de 28 anos que acanhada, não quis se identificar. Sem parar a costura de uma bolsa de pano com flores rosa, se apresenta e conta que também está presa por tráfico de drogas. Diminui lentamente o ritmo da costura e se vira sem olhar ao redor. “Malícia se pega muito rápido né? No local que eu morava tinha muito tráfico, então eu fui observando. Nesse mundo tudo é muito fácil de entrar, o problema é conseguir sair”. A Fundação Professor Dr. Manoel Pedro Pimentel – FUNAP foi criada há 30 anos em parceira com a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária. Dentro da FUNAP existem muitos projetos de apoio ao preso, mas um de grande destaque é a oficina de carpintaria e de costura DASPRE, em que detentas como Silva e Marilene trabalham todos os dias em regime semiaberto na criação de objetos e assessórios. A sala da diretora da Fundação, Lúcia Casalli, é repleta de mapas e livros; o cheiro lembra o de uma biblioteca antiga, seco e com mofo vindo das páginas antigas dos livros. Ela descreve com sorriso no rosto que o principal objetivo do projeto é socializar pessoas que de uma maneira geral, não tiveram oportunidades em determinados momentos da vida e que acabaram praticando uma infração, um crime, que as levou ao cárcere. “Estamos dando a eles o que antes não lhes foi dado”, completa Lúcia com convicção. A grande dificuldade dos presos no processo de ressocialização é em conseguir um emprego formal com carteira assinada e com todos os direitos garantidos por lei, pois existe hoje, uma
Narrativa | 7
forte rejeição por parte da sociedade. O projeto permite que as mulheres passem por uma experiência profissional e desenvolvam uma profissão com a qual possam vir a trabalhar no futuro. Com 30 anos de idade, o cidadão Silva, como opta ser chamado, conta que ficou seis anos presos por roubo. Entrelaçando os dedos e acolhendo-se em seu sofá, descreve que chegou a fazer assaltos mesmo com três mil reais dentro do bolso. “Fazer assalto virou um vício pra mim. Antes era por necessidade, mas depois virou um vício”. Seu apartamento está localizado no Parque Selecta em São Bernardo do Campo, em um conjunto de condomínios concedidos pelo Governo. No último bloco dos condomínios, no segundo andar, está a humilde casa de Silva, onde moram o cidadão, sua mulher, mãe e sobrinho. O aroma que vem da cozinha é de comida caseira, de arroz e feijão preparados por avó, cheiro de conforto e tradição. Silva senta em seu sofá de dois lugares coberto por uma manta, desliga a televisão antiga, daquelas de tubo, e parecendo desconfortável com a conversa,
pergunta se pode colocar os óculos. Cabisbaixo, conta como foi o seu primeiro assalto. “Eu e meus parceiros chegamos em um estabelecimento e combinamos que eu iria no banheiro e voltaria com a arma na mão porque não dava para sacar a arma e dar a voz de assalto na frente dos clientes. Quando eu saí de lá meus parceiros já tinham enquadrado as pessoas e fechado as portas. Na muvuca de colocar as vítimas atrás do balcão, uma pessoa conseguiu sair, e em instantes, a polícia entrou e deu a voz de prisão”. Essa foi a primeira vez que Silva foi preso. Explica em seguida que dentro da cadeia, a vida é completamente diferente. Que o respeito entre as pessoas é diferente, as obrigações e a comunicação, pois lá não existe a ação de querer ou não querer; as tarefas têm de ser cumpridas por cada um que entra. “É bem difícil de explicar, só quem passou por lá consegue entender”, completa ao dar um primeiro gole no copo d’água que sua mulher lhe trouxe. Faz uma pausa.
Sistema Penitenciário
Foto: Valéria Bretas
A diretora da FUNAP, Lúcia Casali descreve as principais funções do projeto.
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“ESTAMOS DANDO A ELES O QUE ANTES Não lhes foi dado”
Em uma casa de três andares localizada em um local simples do bairro do Morro Grande em São Paulo vive Maria Helena Alves Santos de 58 anos. Maria trabalhou como assistente social por quase 19 anos no Sistema Penitenciário de São Paulo, especificamente, na Casa de Detenção (conhecida também como Carandiru). Sua função era trabalhar junto com uma equipe técnica interdisciplinar, composta por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais para a formulação de laudos destinados ao juiz. O sol de fim de tarde invade o quarto de paredes claras; o vento entra no cômodo com violência derrubando as fotografias e porta-retratos de Dona Helena, como prefere ser chamada. Sentada na ponta de sua cama de casal, prende os cabelos, interlaça as mãos e olha para baixo. Começa a contar: - Quando eu comecei lá na casa de detenção, nós da equipe, fazíamos um procedimento bem completo. Os presos participavam de uma reunião com a gente e nós passávamos o significado do nosso trabalho e o que iríamos fazer. Convidávamos um membro da família do preso para assistir a entrevista. Tínhamos a preocupação de saber a história dele, o porquê dele ir parar na prisão, o que o levou a entrar no crime; em grande maioria, vinham de uma origem muito
Foto: Valéria Bretas
pobre, sem condições sociais e de estudo. Mais à vontade, conta que via muita humanidade nos presos e que muitas vezes, nós “aqui de fora” construímos uma visão completamente errada, uma visão de monstruosidade, mas que na verdade, todos eles eram seres humanos que, erraram muito, mas estavam pagando por isso. O bate-papo é interrompido pela filha de Dona Helena que entra no quarto para acompanhar a conversa. Morena alta dos olhos castanhos, a jovem arruma os porta-retratos a pouco caídos ao chão e começa a procurar documentos da época em que a mãe trabalhava na Casa de Detenção. Retoma: - O sistema penitenciário, na minha época, não era reeducativo – embora que a gente chamasse cada preso que vinha falar com agente de reeducando – ele em si não é um lugar que reeduca, e sim que pune. Então como é que se vai avaliar uma pessoa que passa por ali e já não teve nenhuma oportunidade aqui fora e vai pra dentro da cadeia onde é punido por todas as coisas que fez? Quando eles chegam lá dentro eles não tem acesso a escola que faltou aqui fora, não tem acesso ao trabalho, nem nada. Dentro desse sistema que é punitivo fica muito difícil você julgar se a pessoa está pronta para voltar ao convívio social. O cidadão Silva retoma e descreve que em sua opinião se faz necessário
trabalhar diretamente as pessoas e começar primeiramente pela favela. “O certo é começar pela raiz; onde nasce o ladrão? onde nasce o traficante? Não é na favela? Então, se você dá oportunidades para quem está na favela, como um lugar para o pessoal trabalhar, pra quem é pequeno, estudar e fazer um cursinho, um curso de desenho, uma escolinha de futebol, por exemplo, a criança que tem um lugar pra fazer tudo isso não tem porque ir pra rua e usar droga e roubar, pois o tempo que ela passa com isso, a faz aprender alguma coisa”. Levemente alterado e se mostrando, de certa forma, indignado, retira os óculos e prossegue ao falar que na favela ninguém passa fome, mesmo o morador mais pobre do local. “Dizem que a favela é comandada
Mulheres trabalham na oficina “Do lado de lá”.
“O SOL DE FIM DE TARDE INVADE O QUARTO DE PAREDES CLARAS; O VENTO ENTRA NO Cômodo com violência derrubando fotografias e portaretratos de dona helena, como prefere ser chamada” Narrativa | 9
Foto: Valéria Bretas
já sabem e não se importam mais”. Sua mulher o incentiva a continuar. “A pessoa que sai da cadeia precisa de uma oportunidade de emprego, então os donos de firmas tem que dar essa oportunidade, porque se não o crime não vai acabar nunca. Você sai da cadeia pra vir pra rua e mostrar pro juiz, pro mundo e pra sociedade que você se regenerou e está pronto pra ficar livre”. Consequências
A assistente social Maria Helena mostra carta recebida por um presidiário.
pelo traficante, e é sim, porque são eles que ajudam o pessoal. Vê se o governo vai lá e dá uma cesta básica pra cada morador da favela – agora, o traficante? Ele fala “tá passando fome? Pera lá que eu vou comprar uma coisa pra você comer – Acabou seu gás? Manda o moleque lá na biqueira trazer um botijão pra você. Tá precisando de um leite? Pode deixar que eu vou comprar uma caixa pra você”. Quem convive na comunidade sabe que é assim que funciona. Sabe que quem é que faz, é o traficante”. Termina a água, se levanta e acende um cigarro na janela. Silva trabalha como pedreiro em uma construção civil do ABC Paulista e recorda como foi o processo para conseguir o emprego pós-cárcere. Com cautela, revela que teve que mentir para ser admitido, pois o processo normal de qualquer empresa é solicitar o registro de antecedentes do funcionário. “Eu disse que não tinha nenhuma passagem e enrolei para levar os documentos. Depois de um tempo, quando eles já conheciam o meu trabalho e viram que eu realmente queria trabalhar, eu entreguei. Hoje, eles
LÚCIA Hoje, existem mais de 195 mil detentos no Estado de São Paulo. Isso equivale a quase 40% da população carcerária de todo Brasil. Lúcia mostra em seu mapa do estado de São Paulo, as regiões pela qual o projeto DASPRE funciona e as que busca efetivar o projeto. Revela que ainda mantém contato com algumas ex-detentas que participaram da oficina de costura e como isso contribuiu de forma positiva para si mesma. “Eu considero uma glória poder ter interferido como diretora da Funap, de forma tão positiva na vida de algumas pessoas; não é todo mundo que tem esse dom e essa oportunidade. Pra mim foi realmente um presente de Deus poder mudar a vida de algumas pessoas”. LOPES Lopes conta que o trabalho em regime semiaberto a proporcionou uma experiência totalmente nova, pois nunca havia trabalhado com costura e aprendeu a gostar da prática pelo fato de fazê-la pensar em outras coisas, coisas boas. “No momento em que eu estou aqui, trabalhando na máquina, eu me desligo da cadeia e da condição de presa. Penso só lá na frente, só no futuro. Tem uma diferença de você conviver lá e de você conviver aqui. Aqui a gente convive com pessoas, que pode se dizer, “normais”, em sociedade. A gente não é olhada de cara feia, a gente é olhada como pessoas iguais. É bem diferente de quando a
“DENTRO DESSE SISTEMA QUE é PUNITIVO, FICA MUITO DIFícil você julgar se a pessoa está pronta para voltar ao convívio social” 10 | Narrativa
“A pessoa que sai da cadeia precisa de uma ooportunidade de emprego, então os donos de firmas tem que dar essa oportunidade, porque se não o crime não vai acabar nunca” gente tá lá dentro . Então, deu pra crescer profissionalmente, pessoalmente, na família e em tudo” Para a costura e olha fixamente para as mãos, que estão cruzadas e se movendo uma contra a outra. Levantase e pega na prateleira do lado alguns retalhos coloridos e uma tesoura. Retorna. Conta que precisou passar pelo cárcere e pelo projeto para poder crescer e que essa situação tinha que acontecer para que ela passasse por tudo que passou e, aprender. “Aprendi, e hoje acredito que sou uma outra pessoa; tenho planos de viver melhor, mas de uma forma digna. Não da forma que eu vivia, porque eu vivia bem, mas em cima do crime, em cima do tráfico, e agora eu quero viver assim: assalariada. Seja trabalhando como doméstica, costureira, o que for; meus planos é só em poder viver dignamente”, levanta a cabeça e coloca um sorriso de canto no rosto. MARILENE De todas a mais sorridente. A mais expressiva. Marilene para seu trabalho para mostrar os objetos que já produziu. Entre eles, um carrinho de pano azul com bolinhas brancas - bolsas coloridas e artefatos em geral. Claramente está orgulhosa pela confecção dos produtos - em suas próprias palavras, todos feitos com muito carinho. Conta que dentro da prisão fez um curso de informática e estudou. “Agora eu sei fazer alguma coisa. Eu mudei.
Antes eu era pior, ruim sabe? mas meu gênio mudou, sou uma mãe diferente agora. Meus próprios filhos me falam que a cadeia fez bem para mim”, se senta e com os olhos fechados esbanja um sorriso que contagia todo o ambiente e todos a sua volta. MARIA HELENA Dona Helena mostra uma carta feita a mão por um dos presidiários com o qual trabalhou. Conta que ele escrevia com frequência, cartinhas para sua filha que na época ainda era criança. No papel a moldura se destaca. Diferentes cores, flores e um cuidado especial. Na letra caprichada perguntava como estava a filha e agradecia pela ajuda dentro do presídio. Ela se emociona ao mostrar a carta. “Eu acho que eu era uma pessoa muito ingênua em relação ao ser humano; eu achava que todo mundo era bom e não existia maldade: não existia maldade em você e não existia em mim. Trabalhando nesse ambiente eu percebi que nós não somos feitos somente de coisa bacana; eu aprendi a aprendi ver o ser humano no seu todo. Aprendi a me ver, porque também faço parte da raça humana e também não sou só bondade. Tudo isso eu percebi lá dentro do presidiário; assim como eu acho que não é porque a pessoa cometeu um crime que ela é só feita de maldade eu também continuei acreditando no ser humano, apesar de tudo. Eu acredito que muitas pessoas das quais eu conversei, tinham recuperação. Tinham vontade de mudar e acho que toda mudança faz parte disso: da vontade e de querer uma coisa diferente pra vida; de querer ser feliz”, olha com ternura para a carta em suas mãos e sorri com pureza. SILVA Silva diz que se sente arrependido pelo que fez, mas que a experiência foi válida para se tornar uma pessoa melhor. Acredita que tem uma missão no mundo a qual ainda desconhece, mas que vai viver todos os dias tentando descobrir. “Eu fiz tanta coisa errada e Deus me deu essa vitória. Nada justifica tudo o que eu já fiz de errado no meu passado. Hoje eu faço coisas boas e sou uma pessoa boa, hoje eu trabalho, não brigo na rua, não tenho vício de bebida e não uso mais drogas. Estou me libertando. Estou na luta”.
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Davi Pizelli e Rafael Ruiz
Nova lei, sancionada no dia 19 de Novembro, pelo Senado, alterou alguns pontos do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para evitar desencontros com o artigo 18, transformando assim a venda de bebidas alcoólicas, por donos de bares e restaurantes, em crime
São quase sete horas da noite de sexta feira, dia 27 de setembro. Estudantes da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e do Centro Universitário Belas Artes, tal como alguns moradores da região, espalham-se pelos bares das ruas Doutor Álvaro Alvim e Major Maragliano. A noite fria e nublada não intimida a busca implacável dessas pessoas por cerveja gelada e um pouco de diversão conduzida, essencialmente, pela embriaguez do álcool e de algumas outras substâncias. A maioria dos rostos mostra uma idade avançada; outros enganam com seu tamanho ou suas barbas prematuramente formadas... Alguns, no entanto, não conseguem esconder: são menores Até o final de 2011, menores podiam comprar e consumir bebidas alcoólicas em qualquer estabelecimento que estivesse disposto a vendêlas, sem acarretar nenhum tipo de punição ao vendedor ou ao dono da loja. Isso acontecia por meio de duas pequenas brechas nos artigos 18 e 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que criavam um afrouxamento na hora de aplicar a punição, pois o primeiro refere-se a normas de prevenção, enquanto o segundo se refere a crime em espécie. Assim sendo, o artigo 18 determina que é proibida a venda de armas, munições e explosivos, porém não menciona o álcool como um componente que possa causar
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dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida para menores de idade, gerando assim uma controvérsia judicial sobre as penas aplicadas para quem desrespeitar a legislação. Já o outro afirma de maneira genérica que é crime vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, sob pena de dois a quatro anos de prisão ou multa, se o fato não constituiu crimes mais graves. Foi então que, no dia 19 de novembro de 2011, uma “nova lei” foi sancionada pelo Senado, que alterou alguns pontos do artigo 243, para evitar desencontros com o artigo 18, transformando a venda de bebidas alcoólicas em crime, de fato. Assim criando mecanismos que pudessem estabelecer punições rigorosas para todo tipo de fornecedor de bebidas alcoólicas para menores. Agora, o estabelecimento que for fiscalizado com menores de idade consumindo dentro ou nas proximidades do local, de acordo com a nova regulamentação será autuado com uma multa que varia entre R$ 1.745 até R$ 87.250 em caso de reincidência. Além disso, a lei prevê a interdição do estabelecimento por 15 ou 30 dias e até a cassação do registro do estabelecimento. Para os donos de bares, a
punição pode ser ainda maior, com prisão que variam entre 2 e 4 anos de reclusão Após um ano do aprimoramento desta lei, os resultados apontaram que dos 266,8 mil locais fiscalizados cerca de 1.166 multas foram aplicadas pelos os agentes da Vigilância Sanitária Estadual, vigilâncias municipais e Procon-SP. Mas, o quanto isso pode ter influenciado em ambientes como bares universitários? Aliás, o que leva um menor de idade procurar locais como esses? Bares universitários fazem parte de um grupo seleto de lugares. Lugares fora do tempo e do espaço, como a “Casa da Infância”, a “Primeira escola” e a “Sala do Pediatra”. Esses locais, ainda que distantes, trariam uma descrição assustadoramente similar de um jovem de 20 anos da cidade de São Paulo e de outro, de 40, em Belo Horizonte, se solicitados por alguém a fazê-la. Em uma área ridiculamente pequena, mesas são distribuídas de forma estratégica para manter o máximo de clientes dentro do estabelecimento, a fim de não incomodar os vizinhos e os carros com o fluxo de pessoas que sempre acaba transbordando do bar para as calçadas, e, no fim da tarde, das calçadas para as ruas. Descompromissada, a decoração é feita alheatória e espontaneamente sobre um piso que parece a mistura de um chão de padaria com banheiro. Aliás, o banheiro - muitas vezes unissex - está sempre entupido, encharcado e, na melhor das hipóteses, fedendo apenas a urina. Mesmo assim, o bar universitário, com o seu balcão simples e às vezes meio sujo com salgados nada atraentes a mostra, uma chapa que parece estar em desuso faz uma década – isso se de fato existir uma – e um cardápio no mínimo pobre consegue atrair para o mesmo ambiente o aluno mais largado à patricinha mais exigente sem nenhum tipo de preconceito, que acabam vindo, na maioria das vezes, em busca de álcool... Para beber, claro! Voltando a 2013, naquela sexta feira gelada, o primeiro bar escolhido está localizado no final da Rua Doutor Álvaro Alvim. Seus clientes o chamam carinhosamente de Pinguinha. Logo de cara, uma assistente de altura não muito maior que um metro e sessenta centímetros, meio acima do peso, vestida com a camisa vermelha da casa e com um broche amarelo – nele, o número 18, transcrito em preto, bem grande – espetado no lado direito do tronco, estava pedindo, de forma descontraída e
“ Bem menos... Quase nunca. Só quando o sujeito tinha cara de muito novo mesmo! carinhosa, o RG de um jovem. Passado no teste, o rapaz com cara de novo pode comprar sua bebida. – Licença, você costuma pedir o documento de todos os clientes? – perguntamos à assistente depois de explicar o motivo de nossa visita. – Na verdade não. Eu, pelo menos, só peço para aqueles que têm cara de novinhos. – foi o que Regina, a “tia” como é conhecida, respondeu. Sua simpatia era fantástica. Era ela que, talvez, freasse o impulso de ir embora dos clientes possivelmente ofendidos depois de abordados sobre sua provável falta de idade. – Mas, falando sério, você costumava pedir o RG dos garotos antes dessa nova lei? Com risadas que revelavam uma certa surpresa com a pergunta, ela respondeu: – Bem menos... Quase nunca. Só quando o sujeito tinha cara de muito novo mesmo! – Cara de criança, tipo uns 12 anos – É tipo isso – e mais algumas risadas. O ambiente não favorecia assuntos sérios desse tipo e, como estava em horário de trabalho, Regina também não dispunha de muito tempo para conversas longas. – E o movimento, foi afetado? – Olha, só tem um jeito do movimento aqui ser afetado... Se uma das faculdades fecharem! Diante da resposta que finalizou o pequeno debate, a pergunta pareceu – se realmente não fora – estúpida. Entrar em um grupo de desconhecidos, quando estes estão levemente (ou muito) embriagados é fácil. Qualquer bobagem é um bom assunto, atos simples passam a ser
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Estabelecimento segue as novas normas da fiscalização
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ótimas piadas e todos estão mais suscetíveis ao amor e a formação de novos vínculos, ainda que completamente superficiais. Conclusão... Com cinco minutos de estagia no Pinguinha, estávamos enturmados. No meio daquela roda de novos “amigos”, depois de algumas bobagens que permitiram um maior entrosamento, a entrevista começou. – Vocês acham errado a venda de bebida para menores? Digamos que a resposta fora um CLARO unânime com algumas variações no contexto em que fora dito, já que todos estavam já levemente, ou mais, embriagados. – Mas quando vocês eram menores, vocês já bebiam em bares, né? Tirando a única garota da roda, a qual respondeu não, todos os outros disseram a verdade. – E como vocês explicam isso? O que se seguiu foi uma onda de respostas mal estruturadas e quase incompreensíveis. Bom... A culpa não é deles. Mas, a mensagem que todos pareceram preocupados em dar (inclusive a garota) fora que quando eram menores eles tinham menos juízo e acreditavam saber de mais das coisas, mesmo sabendo “de menos”. Saindo do Pinguinha, a matéria seguiria aos outros bares da região. Mas, tirando o Tunel do Tempo, um bar localizado na rua Major Maragliano com a Doutor Álvaro Alvim, todos os outros
renderam discussões muito semelhantes. A entrevistada do Tunel pediu para não ser identifica, pois só assim se sentiria a vontade para ser sincera. – Eu acho que qualquer pessoa que já tem condição de andar na rua sozinho tem que ter o dever de saber o que é certo e o que é errado. Eu nunca vendi para menores, que eu saiba, mas também não fico enchendo o saco dos outros e pedindo RG. Só depois que um fiscal veio aqui fui começar a pedir documento para alguns com cara de menor. Se algum dia alguém me enganou nessa, problema dele com a consciência dele! – com certeza, foi a resposta mais verdadeira do dia. – Sobre o fiscal. Eles vêm muito aqui? Isso atrapalha em alguma coisa? – Não... Um veio aqui uma vez, com eu disse. Mas foi só daquela vez. Ele veio ano passado, se não me engano, pediu uns documentos e fez com que eu pedisse o documento do pessoal que vinha comprar bebida. Mas não atrapalhou porque era um dia de pouco movimento. No fim daquela sexta-feira, nossa primeira questão parecia estar respondida: a lei parece não ter atrapalhado o movimento de bares universitários; todo semestre entram novos alunos e se alguém um dia decidiu parar de frequentar um determinado bar porque se sentiu ofendido por ter sido chamado de menor, logo fora substituído. Mas, ainda não sabemos o que leva os
menores a buscarem ambientes como este. Para responder essa pergunta fomos ao escritório da psicóloga Marta Donadio. Formada há mais de trinta anos e com boa experiência em atendimento de jovens, a senhora baixa, magra e de olhos jabuticaba, nos esclareceu que ”tudo que
“Olha, só tem um jeito do movimento aqui ser afetado... Se uma das faculdades fecharem!”
tem procedência do NÃO tem um certo encanto para os jovens. Não só para eles como para nós adultos também. Quer ver? Não pense em gato preto”. Pausa. Imediatamente um gato preto se formula no pensamento; você deve ter acabado de experimentar isso. Como resposta, todos rimos. – “É claro que jovens e crianças estão mais suscetíveis a serem guiados por esse encanto. Os motivos são diversos! Às vezes uma busca inocente pela autoafirmação: ‘meus amigos vão me achar de mais porque eu faço o que NÃO é permitido”. As vezes problemas dentro de casa: “meu pai vai ver só, vou encher a cara e mostrar para ele que eu posso fazer o que NÃO é permitido – cada NÃO era expressado de forma exagerada pela doutora, tanto por gesto circulares com as mão, como por uma entonação maior dada a palavra. Ela deixou claro, ainda, que com uma boa educação aplicada em casa, a criança tende a vencer o fascínio pelo não. Sem excluir, é claro, as possibilidades de ela às vezes cair na tentação e cometer alguns erros. – Afinal, somos todos humanos – concluiu. Alunos fazem o “esquenta” no Pinguinha antes da aula
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Dados estatísticos mostram que o brasileiro supervaloriza a questão da aparência. E é aí que começam a surgir exageros e paranóias. Carolina Távora Giovana Antonelli
Dados mostram que o brasileiro supervaloriza a questão da aparência. Em 2009, segundo a Sociedade Internacional de Cirurgiões Plásticos Estéticos (SICPE), mais de 1,6 milhões de intervenções cirúrgicas foram realizadas por 5.000 médicos brasileiros. Entre as cirurgias mais pedidas entre as mulheres, estão a lipoaspirações, num total de 430 mil intervenções, e em segundo, o aumento dos seios, com 254,2 mil.. “A cirurgia que eu mais realizo é a de lipoaspiração, junto com a prótese de silicone nas mamas. Elas são as duas cirurgias mais realizadas no Brasil”, afirma o Dr. José Mendes Junior, 58 anos, formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Dr. José Mendes possui um consultório em Sorocaba. Situada em um bairro nobre da cidade do interior de São Paulo, Campolim, a clínica é uma das mais conceituadas e procuradas por lá. Além disso, é a mais antiga também. Com dois andares e uma sala de espera confortável, o local é muito frequentado, tanto por homens, quanto por mulheres em busca do corpo perfeito.O doutor, com seu estilo único, nos espera em sua sala, equipada com muitos livros e álbuns de fotografias de suas pacientes que já passaram por alguma intervenção cirúrgica. Na parede cinza, um quadro retratando a beleza feminina na figura de uma mulher
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nua, complementa o consultório, que se torna um lugar descontraído conforme iniciamos a entrevista. Dr. Mendes, como é conhecido na cidade, afirma logo no início que a cirurgia que mais realiza é a lipoaspiração e o implante de silicones nos seios. “Em 45 minutos eu resolvo os problemas de uma mulher. Coloco peito e a deixo com a “famosa cinturinha de pilão” em menos de uma hora”, comenta ele, com firmeza e confiança no seu trabalho de mais de 30 anos. Sobre a ala masculina, ele arrisca-se a dizer que “os homens atualmente encaram com mais naturalidade ficar sentados na minha recepção com um olho roxo ou com uma cinta após uma lipoaspiração”. Em 2012, eram 12% da ala masculina que recorriam a essas práticas e as estatísticas apontam que esses números podem chegar a 15%. Entre as mais populares estão o implante capilar, a lipoaspiração, e as cirurgias de pálpebra e face. De acordo com levantamento da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plásticas (SBCP), o Brasil tem um cirurgião plástico para cada 44.000 habitantes, superando os EUA. “A procura é muito maior por mulheres. A procura de homens por cirurgia plástica também está crescendo. Antigamente, eles representavam cerca de 2% da procura. Atualmente, esse número aumentou para 10%.”, complementa ainda o Dr. José Mendes.
E entre os fatores que contribuem para o crescente aumento desses dados estão o verão intenso e as praias lotadas nessa época do ano, que ocasionam impreterivelmente na exposição dos corpos. Mas qual é realmente o ideal de corpo perfeito? O que pode ser caracterizado como belo nos dias de hoje? “O conceito de beleza é muito variado de acordo com as etnias. O que é bonito para uma etnia, um país, não é bonito para outro”, ressalta o Dr. José Mendes. Nós temos regiões do mundo muito diferentes. O africano tem características da sua etnia negra bem marcadas, o asiático, o europeu também tem as suas etnias, e isso muda muito. Além da etnia, o conceito cultural de cada localidade muda. “O brasileiro, principalmente, gosta de bunda. Bunda grande, tem que ter bumbum. O americano gosta muito de peito”, completa ele. Taís Sacconi Machado, de 20 anos é uma das mulheres que não se sentiam satisfeitas com o próprio corpo. A corretora de imóveis conta que resolveu fazer sua primeira cirurgia aos 14 anos. Após sofrer com piadinhas no colégio sobre suas orelhas de abano, ela se submeteu a uma otoplastia. “Me chamavam de Dumbo na escola”, relembra a garota, que hoje é feliz com o resultado do procedimento. Mas foi aos 19 anos que ela conseguiu realizar o seu maior sonho: uma mamoplastia de aumento, com o implante de silicone nos seios. Loira, alta, magra e de olhos claros, Taís sentia vergonha de usar biquíni ou blusas com decote. “Eu escondia meu corpo, não me sentia confortável usando nenhuma dessas peças e hoje me sinto bem. Me sinto realizada”, conta ela, uma das pacientes do Dr. José Mendes. Quando questionada sobre a mudança
“O que é bonito para uma etnia, um país, não é bonito para outro”
na sua autoestima, a resposta foi a esperada: “melhorou muito, eu tenho vontade de me olhar no espelho toda hora”.
Dr. José Mendes, famoso na cidade por seus verdadeiros “milagres”.
A questão da autoestima A autoestima é um fator determinante para quem decide realizar um procedimento estético, seja ele uma cirurgia ou um tratamento em clínicas especializadas. “Aqui na clínica, os nossos tratamentos dão um resultado natural, que dificilmente beiram os exageros. Esses exageros são mais comuns em clínicas de cirurgia plástica, em dermatologistas. Aqui você consegue jovialidade com naturalidade”, conta a esteticista, Rosa Maria Batista Loebmann, 64 anos, da Clínica Drelinel. Considerado por muitos que se submetem a cirurgia plástica um fator determinante, para o estudante de 22 anos, Matheus Matias Guedes, a autoestima não sofreu tanto impacto assim. “A cirurgia levantou um pouco minha autoestima, mas não sei se ao ponto de ser uma mudança muito considerável. Como tinha muita sobra de pele quando emagreci eu achei que meus problemas seriam resolvidos com a cirurgia mas não foi bem isso o que aconteceu”, revela o garoto de 22 anos. No caso de Matheus, pelo fato de ser obeso, algumas mudanças acompanham o corpo pelo resto da vida, porque por mais que a sobra de pele da barriga tenha sido resolvida com a cirurgia
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A esteticista Rosa, realizando uma limpeza de pele.
plástica, o resto apenas se adapta a uma nova estrutura, portanto por mais que a autoestima sofra uma mudança em seu caso ela acabou sendo relevante. Mas será que existe um limite para essa vaidade, por essa busca pelo estereótipo do corpo perfeito? Todas essas facilidades implicam numa obsessão pela perfeição, levando a um circulo vicioso, ou seja, quanto mais plásticas se faz, mais surge o desejo de realizar novas intervenções. “Eu sou a favor das cirurgias plásticas, tanto que fiz uma (otoplastia) e se tivesse dinheiro faria outra (desvio de septo). Porém, desde que isso não vire uma doença, é bacana fazer. Se você acha que deve mudar o seu peito, colocar silicone, vá em frente. Mas é importante tomar cuidado para isso não virar uma obsessão, pois não é bacana”, comenta João Raposo, publicitário, 33 anos, que se submeteu a uma intervenção plástica, após sofre bullying dos irmãos e colegas de escola. João comenta ainda, durante a entrevista, que o fator autoestima foi fundamental na hora da decisão pela cirurgia. Matheus Guedes acredita ainda que a cirurgia solucionou uma parte do problema, ocasionado pela perda de
40 quilos. “A abdominoplastia (cirurgia para retirada de excesso de pele) que fiz levantou um pouco minha autoestima, mas não sei se chegou ao ponto de ser uma mudança muito considerável. Como tinha muita sobra de pele quando emagreci eu achei que meus problemas seriam resolvidos com a cirurgia, mas não é bem isso que acontece”. Ele acredita que algumas questões da obesidade acompanham o corpo pelo resto da vida, por mais que a sobra de pele da barriga tenha sido resolvida o resto apenas se adapta a nova estrutura, portanto por mais que a autoestima sofra uma mudança ele não conseguiu definir ainda se, de fato, ela acabou sendo relevante. O mercado de estética no Brasil movimentou R$ 137 bilhões em 2012 teve um crescimento de 20% nos últimos 10 anos, e tem dado sinais de números ainda maiores. Fato que pode ser notado até no surgimento de cursos profissionalizantes. Em 2003, apenas seis cursos eram reconhecidos na área, já em 2012, esse número cresceu para 113, totalizando em mais de um milhão de esteticistas formados. A escolha do cirurgião plástico Ana Maria Ribeiro, empresária de 52 anos, conta que teve sorte com a escolha de seu cirurgião: “Ele foi indicado pela minha dermatologista, onde eu comecei o tratamento de pele, como peeling e o clareamento de pele. Ela me disse que eu poderia fazer os procedimentos estéticos, mas a pele estava muito flácida, a pálpebra caída e me recomendou um cirurgião, que por coincidência já era amigo da família. E quando eu fui conversar com ele, ele me perguntou tudo o que me incomodava. Me pediu vários exames, inclusive
“a fama do cirurgião foi decisiva na hora da escolha” 18 | Narrativa
“a visão do cirurgião é diferente da visão de um leigo” cardíacos e depois me recomendou um lifting facial, além de uma lipoaspiração embaixo do queixo, que foi o que eu fiz”. Para João Raposo, a fama do cirurgião foi o que ele levou mais em consideração na hora da escolha: “Ele era famoso na cidade de Belo Horizonte e também já tinha feito em alguns parentes, como a minha mãe minha avó e ate a minha irmã”, finaliza ele. A recuperação e os pósoperatórios Taís Machado, conta que as recuperações das duas intervenções foram tranquilas, e que não teve nenhuma complicação. A jovem realizou apenas mudanças que realmente a incomodavam e pensou muito antes de tomar qualquer decisão para realizar as cirurgias. “Eu apenas não podia fazer
exercícios que exigissem esforços, como, por exemplo, dirigir. Fiquei um mês sem poder pegar no volante”, conta a jovem. Porém, em cirurgias como a lipoaspiração, a recuperação é ainda mais simples: “É um processo que não tem cortes, então no dia seguinte a paciente já pode dirigir, trabalhar, ou seja, voltar a sua rotina normal, desde que use a cinta de compressão da maneira correta”, conta o Dr. José Mendes Junior. “Mas cada cirurgia tem o seu devido pós-operatório”, completa o cirurgião que afirma realizar mais intervenções no mês de julho. ”É o mês de maior movimento nas clinicas, pois é período de férias e frio, então a pessoa fica pronta para o verão. Como não é recomendado tomar sol num período de dois a três meses, é a época perfeita para se realizar a intervenção, para, em dezembro, no verão, estar com o corpo perfeito”.
A esteticista Rosa exibindo um de sesu trabalhos preferidos.
Existe um limite então para a busca do corpo perfeito? O médico explica que a visão do cirurgião é diferente da visão de um leigo: “Você tem o seu namorado que te acha linda e maravilhosa. Mas você tem uma “gordurinha” na cintura que te incomoda. Ele não vê, mas eu enxergo e posso solucionar esse problema”, conta, exalando confiança em seu
O Dr. José Mendes, orgulhoso de seu trabalho bem feito.
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Um dos “milagres” realizados pelo doutor.
profissionalismo. “As coisas tem que ser vista pelo olhar critico de um cirurgião sério e honesto”. E complementa ainda: “Eu venho de uma família humilde, não digo que passei necessidade, mas não tenho herança. Então, todo o patrimônio que eu conquistei veio das cirurgias que eu fiz. E a minha reputação veio das cirurgias que eu não fiz. Muita gente me considera uma pessoa séria, porque elas chegam aqui e me dizem ‘ah, eu queria arrumar o meu nariz’, se não há necessidade, eu digo: não faça, não vai ficar legal”. O doutor explica também que a cirurgia plástica tem suas limitações, e que muitas vezes, o que a paciente deseja é impossível. ”Ás vezes elas chegam com a foto de algum artista, de uma modelo, querendo copiar o nariz. Ou outras vezes elas vêm magras e querem fazer lipoaspiração. Não tem onde tirar, eu mando embora. Agora, se ela vai ficar brava comigo, é outro problema. Mas depois de uns dias, ela para pensar e percebe que eu tinha razão. Então, a gente tem que saber exatamente o que vai poder ajudar. E se dentro das ferramentas que a cirurgia plástica nos oferece nós vamos conseguir alcançar a expectativa dessa paciente. Quando nós sabemos que não atingiremos e mesmo assim fazemos, é uma atitude desonesta. Nós estamos fazendo pelo dinheiro da paciente, e isso eu abomino. Eu não admito nenhum cirurgião plástico fazendo isso”, finaliza o Dr. Rey de Sorocaba. Muitas celebridades se tornaram famosas por esses exageros, que ultrapassam a vaidade, e que diversas vezes, chocam pelas aberrações que se tornaram. Como o caso mais famoso temos Jocelyn Wildenstein, socialite
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“As coisas tem que ser vistas pelo olhar crítico de um cirurgião sério e honesto” americana, que hoje tem o rosto deformado e não consegue fechar os lábios totalmente. Apesar de todos esses empecilhos e feição que lembra a de um felino, Jocelyn se diz satisfeita com a aparência. E foi também a busca pelo corpo perfeito que tornou o cirurgião plástico Dr. Rey uma celebridade. Famoso por operar socialites e astros de Hollywood, o médico tem seu consultório em Beverly Hills e é protagonista de séries como “Dr. 90210”, exibido no Brasil com o nome de “Dr. Hollywood”. Além de seguir a linha do entretenimento, Dr. Rey lançou também sua própria linha de modeladores, além de ter feito uma parceria com a franquia de clínicas estéticas “Select”, com a qual pretende abrir mil unidades de clínicas estéticas em todo o Brasil nos próximos cinco anos.
Por Ana Paula Costa e Fabio Razuk Jr.
Em realidades distintas, pai e filho participam de manifestações. A percepção do policial que trabalhou nos atos, ao mesmo tempo em que seu filho estava no meio da multidão reinvindicando direitos e mudanças no sistema atual. O despertador tocou e tudo o que se pode ver é que o gigante acordou. Neste ano foram vividos momentos que marcaram e deixaram rastros na história do Brasil. As manifestações que se enraizaram na causa dos vinte centavos foram mais longe do que se pensava. Com o estopim marcado na cidade de São Paulo, levaram as ruas milhares de brasileiros e ecoaram o som da justiça, da democracia, do fim da corrupção e do respeito as leis. A imprensa salientava a violência, as pessoas feridas, os disparos de tiros com balas de borracha, fumaças, tosses e muita, mas muita, falta de ar em meio ao gás lacrimogêneo e ao spray de pimenta. Esse era o cenário que São Paulo assistia todos os dias nos noticiários. Botas pretas, fardas, armamentos preparados, postura de seriedade e autoridade diante de uma grande massa. Não se viam rostos tranquilos, a tensão tinha tomado conta de tudo aquilo. Policiais. Sim, eles foram os vilões da história. A mídia brasileira acusou, condenou e julgou todos aqueles pelos erros de alguns, mas nem tudo foi como parecia ser. Se não houve chance de dar ouvidos a quem zela pela segurança da pátria, a reconstrução deste olhar será exposta nas frases a seguir. Policiais, a representação da visão dos que se calaram e o direito de resposta para as acusações.
Soldado da Polícia Militar de São Paulo há vinte anos, Claudinei Favarin exerce seu trabalho no Comando Militar de Policiamento da área 1. Além de atuar na polícia, Claudinei faz um ‘’bico’’, como ele mesmo denomina. Próximo a completar seus 41 anos de idade, ele trabalha como segurança particular a cada dois dias. Por volta das sete horas da noite chega no ‘’bico’’, onde trabalha o período de doze horas e saí no dia seguinte pela manhã. Em uma dessas jornadas, estava extremamente cansado, pois, no mesmo dia havia acordado cedo para acompanhar uma manifestação. Entrara no batalhão as seis e meia e desde então passou a manhã e o restante de seu dia em pé, enquanto a manifestação só iria começar apenas as dez horas. Com aspecto cansado ele se questionava o porque de ter que chegar no trabalho tantas horas antes do início do movimento e passar todo este tempo em pé. Cansaço corporal era o mínimo, mas mesmo assim fez questão de conceder uma entrevista sobre o que tinha acabado de presenciar pela quinta vez. Ou seja, o cansaço mental não o fez fugir do seu compromisso mais leve do dia, mesmo depois de quase treze horas de trabalho e mais algumas pela frente. Com o rosto desgastado pela rotina do dia, mas expressão risonha, e demonstrando interesse em evidenciar sua opinião em relação
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Por Nicolau Nemer Neto
Tropa de Choque atirando balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio na região do Teatro Municipal
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aos recentes acontecimentos, seu parceiro de “bico”, Adnir Domingues de Faccio logo quis ajuda-lo a responder as questões. Adnir também é soldado da Polícia Militar. Sentado ao lado, ele prestava atenção em cada palavra dita, para, em algum momento, indagar e colocar sua posição também. A sensação naquele momento, era de que sua fala estava engasgada, com a expressão de que aquele sentimento em argumentar estivesse preso há muito tempo. Quase como se fosse um assunto proibido. A cada palavra de Favarin, a boca de Adnir mexia como se quisesse completar algo. Ali foi o escape para dizer o que estava pensando, assim que um terminou o outro começou. Foi um grande desabafo. Questionado se existiu uso excessivo de força pelos policias, Adnir, expressando ansiedade em querer se colocar, foi enfático ao afirmar que sim, mas revela que a ação se justificou pela desordem causada por uma minoria com outros interesses. - A imprensa se apoderou de momentos em que a polícia estava usando a força, momentos isolados. Pausadamente, Adnir insiste em destacar que a força utilizada em momentos isolados, foi apenas para conter a desordem e manter o controle sobre as pessoas que ali estavam. Pelas palavras ditas, ficou claro que na visão de ambos, a mídia trabalhou contra a polícia, influenciando a todo momento as pessoas que estavam lendo, assistindo, ou ouvindo
“Eu fui para brigar pelo o que eu acho certo, pelo direito se de manifestar e colocar as minhas opiniões à prova...” os noticiários a acreditarem no uso excessivo contra qualquer manifestante, não importando suas atitudes. Na cabeça se podiam ver ralos fios de cabelos brancos e outros mais escuros. Este era Favarin. Usava aliança de casamento e em alguns momentos lembrava da importância em criar sua esposa e os três filhos. Confidencia ainda que durante as manifestações, em alguns dias, chegava em casa junto com seu filho. Não por coincidência, ambos estavam no mesmo lugar, mas com propósitos diferentes. Henrique, estudante de dezessete anos, filho de Claudinei esteve presente nas primeiras manifestações do MPL (Movimento Passe Livre)como brasileiro, batalhador e manifestante por dias melhores, por uma justiça mais coerente, por transparência no governo e por verdadeira democracia. - Eu fui para “brigar” pelo o que eu acho certo, pelo direito se de manifestar e colocar as minhas opiniões à prova, como muitos outros acabaram fazendo. Por outro lado estava seu pai, na tarefa de conter uma multidão que parecia não enxergar na polícia um ser que também quer condições melhores e
Por Nicolau Nemer Neto
um país menos bagunçado. A sensação de ver seu filho no meio de tanta gente, sabendo que o soldado do seu lado talvez precise agir e que isso pode atingir alguém que você ama é angustiante. Aquela, famosa sensação de pai, estava presente. E Favarin não condena quem está ali para lutar por seu direito de cidadão, muito pelo contrário: - As manifestações, quando não utilizam do vandalismo e não provocam desordem, são válidas, porque estão reivindicando medidas para todos os cidadãos. Henrique já pensa diferente. Com certeza do que fala ele defende a utilização do vandalismo e acredita que sem a bagunça os movimentos não ganhariam a força e o poder que conquistaram. Para ele, é importante que as vezes se chame a atenção. Em oposição de ideias, pai e filho se manifestaram. Entre trocas de olhares, o mais engraçado é ver que o filho discorda do pai, mas ao mesmo tempo também concorda com outros pontos. Henrique defende que o uso da força policial é necessário em alguns momentos. - Os policiais estavam realizando ordens que lhe foram designadas. Ninguém estava armado e preparado para utilizar força bruta. Empolgado com o assunto e querendo falar mais ainda, o filho do policial se propôs a falar sobre a cobertura midiática das manifestações e desabafou com ares de inconformismo que a mídia foi interesseira, que o
conteúdo mostrado foram apenas as cenas de vandalismo e violência, como se tudo aquilo fosse mais importante do que o próprio ato e os princípios que estavam por traz de cada manifestação. Em alguns momentos, pai e filho se encontraram na manifestação e enquanto aquilo era normal para Henrique, para Claudinei a sensação era de preocupação e desespero, porque não pretendia ver o filho correndo algum risco. E quando lembrava destas cenas, o policial ficava tenso, com o rosto apreensivo, como se estivesse contanto uma história de terror. Podia-se perceber a intensidade do que estava sentindo. Claudinei demonstrou claramente o apego e a preocupação de um pai com seu filho, mas evidenciou seu desabafo. Depois disso, já com ar de alívio, ele conta mais sobre o trabalho nas manifestações. Tendo trabalhado em mais de cinco manifestações, Favarin explica, com postura séria, que é possível diferenciar o ser humano que está exercendo seu direito e o que está passando dos limites durante os atos. Já com o semblante mais tranquilo ele descreve em quais movimentos ele esteve presente realizando a segurança da Polícia Militar. Duas manifestações do Movimento Passe Livre (MPL), uma do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) e outra da Central Única dos Trabalhadores (CUT), além de algumas outras de porte menor, em termos de números de manifestantes. Para ele, as duas últimas (APEOESP e
Manifestação do terceiro ato do Movimento “Fora Geraldo”, que aconteceu no dia 01 de agosto de 2013
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CUT) foram manifestações mais pacíficas e não houve tantos problemas de vandalismo e uso da violência, na atuação policial. - Em todas essas manifestações havia o grupo que se manifestava pacificamente, em maioria, e os “vândalos”, em uma minoria. Em seguida, Favarin pausa e dá um longo respiro, mas logo volta a descrever seu sentimento, agora, com um ar de preocupação e um pouco de
Claudinei Favarin, Soldado da Policial Militar há vinte anos. Trabalha no Comando Militar de Policiamento da área 1
“É difícil, porque sinto pressão tanto do Comando Militar, quanto da Imprensa...”
desconforto. Esta sensação, advinda de um questionamento sobre os momentos de tensão vividos durante as manifestações, o levou a desabafar: - Ali ocorre muita pressão. É difícil, porque sinto pressão tanto do Comando Militar, quanto da Imprensa, que fomenta e insiste por alguma medida ou reação, que acaba sendo instigada pelos mesmos. Argumentando com o seu ponto de vista, Henrique, enxerga a tensão como algo normal e consequência dos acontecimentos. Por outro lado, ele também destaca sua preocupação com o pai em meio as tensões que se geram. Realmente uma manifestação em família rende histórias para se contar. Apesar de pensarem diferente, pai e filho são cúmplices de uma mesma situação e de um mesmo sentimento; a proteção. Embora tenham agido de acordo com seus princípios, os dois não deixaram de se entender. Apesar de ser policial, Claudinei também é a favor das mudanças e da luta pelas melhorias sociais. Henrique, como representante de uma nova geração, carrega consigo o sentimento de luta, de vontade em querer combater o errado e implantar o justo, o correto e o ético para o Brasil. Desde o começo os dois estão do mesmo lado, mesmo que alguns queiram dizer que não. Por Fabio Razuk Jr.
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Acompanhamos o dia a dia do transporte público de São Paulo para mostrar as dificuldades enfrentadas pela população e os benefícios das novas faixas de ônibus criadas pelo prefeito Fernando Haddad. Amanda Peres e Giovanna Alimari
São Paulo tem o trânsito como uma marca registrada. Não tanto para os turistas, que estão mais preocupados em passear e visitar os pontos turísticos, mas para quem mora, vive e trabalha na cidade, a mobilidade urbana é uma pedra no sapato. Segundo dados do Censo Demográfico 2010 do IBGE, são 11.253.503 habitantes na cidade de São Paulo e para 2013, a população estimada é de 11.821.873. Essas pessoas levantam todos os dias e se locomovem até o trabalho, escola ou faculdade, seja em transporte público ou particular. Os dados oficiais do DENATRAN – Departamento Nacional de Trânsito indicam que, incluindo todos os tipos de transportes, a frota presente na cidade é de 24.027.252 veículos. Em março de 2013 o congestionamento chegou a atingir 137 quilômetros. A implantação das novas faixas de ônibus vem causando discórdia entre motoristas e passageiros do transporte público. Segundo o site da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) já estão em funcionamento 248,7 quilômetros de vias exclusivas para ônibus em toda cidade. (dados atualizados em: 05/11/2013). Toda essa mudança traz uma contradição. As faixas exclusivas trouxeram resultados positivos em relação a velocidade e o tempo de viagem. No corredor Norte/Sul, a velocidade aumentou
em 108% e o tempo reduziu em meia hora. Para quem está no coletivo, essa implantação trouxe boas notícias. Agora, para quem está no conforte do seu automóvel, o tempo chegou a dobrar. Esses motoristas poderiam deixar seu carro na garagem e usar os ônibus, se a situação dos mesmos não fossem tão precárias. Pagando uma das tarifas mais caras do país, enfrentando a demora nos pontos de ônibus e superlotação, o passageiro chega a correr risco de vida nos veículos velhos, sem manutenção, e com a brutalidade do motorista na hora de frear. Diariamente acontecem acidentes ou apenas problemas mecânicos com os ônibus: falta de freio, fumaça no motor, e até rodas soltas já surpreenderam as pessoas durante o percurso. Precariedade e riscos que o nosso prefeito, Fernando Haddad, decidiu ir conferir de perto. Parece loucura, mas a cena é real. Ele começou pedindo um estudo para sua assessoria militar sobre a possibilidade de ir e vir de ônibus todos os dias. No dia cinco de Outubro de 2013, às 8h, com o cabelo ainda molhado mesmo em um dia chuvoso, Haddad saiu do seu prédio, localizado no Paraíso (Zona Sul) para mais um dia de trabalho, só que dessa vez, o petista foi de ônibus. O ponto escolhido foi o da Avenida 23 de maio, 500 metros de sua casa, e a sede da
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Passageiros sofrem com o aperto no ônibus 669A, principalmente em horário de pico.
Prefeitura fica no Viaduto do Chá, no centro da cidade. O prefeito dá sorte e aguarda o 5632-10 somente por três minutos – nove a menos do que o tempo médio de espera de sua linha. Mais sorte ainda foi pegar o ônibus vazio em horário de pico e o normal seria que estivesse superlotado. A linha de Haddad costuma carregar cerca de 116 passageiros por viagem. O veículo está tão vazio que nosso prefeito se sente a vontade para sentar no banco reservado a idosos e gestantes. O percurso dura dez minutos, que de carro duraria aproximadamente 30. No ponto final, no Largo São Francisco o novato deixa todos passarem e sai por último. Em seguida, caminha até o prédio da Prefeitura. Nós decidimos fazer o mesmo. Acompanhar a realidade da mobilidade
“Nunca se sabe, são paulo é uma cidade confusa, né? ” 26 | Narrativa
urbana de São Paulo. Falamos com pessoas de diversas idades, regiões e visões. Segunda feira, 11h45 da manhã, uma multidão no ponto Eucaliptos, na Avenida Santo Amaro. Um ônibus vermelho se aproxima e no letreiro marca “669A-10 – Terminal Princesa Isabel”. É ele mesmo. Por ser o único ônibus que passa por ali e vai direto para a Consolação, já dá para imaginar a quantidade de pessoas que nele subiram na Avenida Adolfo Pinheiro. E que sobem nesse ponto. E que continuam subindo no decorrer da Avenida Santo Amaro. A cada dois quarteirões, um ponto de parada, o que torna o trajeto mais lento ainda. Nem o motorista parece ter paciência, já que acelera sempre que pode, muitas vezes sendo até imprudente. As pessoas lutam por espaço, esbarrando umas nas outras para conseguir se segurar com pelo menos uma das mãos. Na parte frontal do ônibus, muitos idosos estão espremidos pela falta de espaço. Há apenas nove assentos preferenciais e todos eles sempre estão ocupados, seja por pessoas de idade ou por jovens já cansados da vida. Cristina Gianesi, química aposentada, está trabalhando novamente na Torteria em Higienópolis. Ela mora em moema e prefere deixar o carro em casa. Pega ônibus a um quarteirão de sua casa e desce perto do trabalho, na rua Alagoas. O tempo é longo, mas ela senta, pensa, medita, reza, diz não ter pressa. Com as novas faixas o trajeto no geral melhorou, mas não sabe dizer quanto, depende do dia. – Nunca se sabe, São Paulo é uma cidade confusa, né? Cristina sabe que os ônibus são cheios, mas acha que numa cidade como essa não tem jeito. O problema mesmo é esse cheio ser cheio mesmo é de gente mal educada. Uma vez entrou no ônibus e só tinha gente jovem. Um menino e uma menina estavam sentados nos assentos preferenciais e quando ela pediu para sentar, foi a menina quem levantou. Na mesmo hora ela questionou o menino, pois ele deveria ser cavalheiro e ceder o lugar e aí ele levantou. – A gente aprende a pedir, porque a maioria das pessoas não são educadas e vir de pé cansa. Os mais velhos respeitam. Muitos passageiros estão dormindo profundamente, dando a impressão que estão naquele ônibus desde o
terminal Santo Amaro, que já ficou bem para atrás. Estudantes revisam textos, outros leem livros. Com a rotina corrida, trabalhadores comem frutas ou besteirinhas para tapear a fome. Crianças choram. Grupo de homens colocam funk para tocar em seus celulares sem fones de ouvido. Muitos homens de terno e gravata dão o ar da graça segurando suas pastas e aparentando pressa. Falando em pressa, é notável o número de pessoas que olham no relógio de minuto em minuto ou que ligam para seus chefes para avisar que vão atrasar por conta do trânsito. Vendedores ambulantes entram pela porta de trás oferecendo Suflair, pague 1 leve 2. Capas de chuva, trident e balas. Entram pela mesma porta pessoas pedindo colaborações para ajudar parentes doentes ou curar suas próprias doenças. Palhaços sobem no ônibus esperando almas caridosas que aceitem ajudar crianças carentes. Outros, pregam a palavra de Deus, pedindo ajuda para os ex drogados que estão tentando se recuperar. Há os que apenas escutam os pedidos, os que ignoram e nem sequer tiram o fone de ouvido, mas há também os que se comovem e dão sua colaboração, mesmo que sejam centavos. As lixeiras são poucas, apenas duas, perto das portas de saída. E a situação delas era de se espantar: restos de comida, chicletes, panfletos e embalagens saltavam para fora, deixando rastros no chão. O que não passou despercebido foram duas baratas, que andavam entre os pés das pessoas e se escondiam nos buracos. Sim, havia buracos. No vão e no canto das portas, perto das janelas, nos assentos. Algumas pessoas mantém a calma e a educação, outras não poupam a agressividade. Empurrões, cotoveladas, xingamentos e os gritos para os passageiros, cobrador e até mesmo o motorista. Além disso, também tem aqueles homens que se aproveitam da situação de aperto para se aproveitar, bolinando as mulheres. No segundo ponto da Avenida Brigadeiro Luis Antônio, um mendigo entra no ônibus. Sem blusa, com a parte de baixo da roupa rasgada, sujo da cabeça aos pés e comendo um cheeseburguer Mc Donalds, com batata e refrigerante. Ele se deita, se arrasta por debaixo das catracas e começa a cutucar, esbarrar e incomodar todos os outros passageiros. Depois, sentase no chão, deixando as pessoas mais
espremidas ainda e começa a comer o lanche na maior paz. E todos agem como se isso fosse completamente normal ou, pensando bem, todos ignoram o que está acontecendo ao redor. Ao passar pelo último ponto na Brigadeiro, o motorista não poupa velocidade e dá uma virada brusca na Alameda Santos. De longe, é possível escutar uma mulher dizendo que “certa vez, esse ônibus chegou a atropelar um senhor de idade nessa mesma esquina”. O caminho pela Avenida Paulista foi cheio de entra e sai de executivos, trabalhadores e estudantes que seguiam seus destinos pela Avenida mais famosa
“Tem que deixar o carro e vir de ônibus. é muito parado para esses lados”
Na Avenida Santo Amaro o ônibus costuma demorar cerca de 25 minutos.
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da cidade. Esse é o caso de Renato Valverde. Sentado na última fileira, com uma camisa azul e terno preto, ele trabalha em um escritório de contabilidade e desce na Brigadeiro Luis Antônio. O carro fica na garagem, principalmente agora com as novas faixas, em que ele ganhou mais 20 minutinhos de sono. – Para cá não tem jeito não. Tem que deixar o carro e vir de ônibus. É tudo muito parado. A cobradora do 669A-10 confirma. Para essa linha a faixa melhorou muito. Antes enfrentavam mais trânsito, tempo em que ela aproveitava para jogar no celular e observar as pessoas que passam pela catraca. Renata Cavanhas conta que os horários de pico são às 8h da manhã sentido centro e às 19h sentido bairro. Sem muitos problemas, além dos taxistas que insistem em parar nas faixas de ônibus para deixarem seus passageiros ou dos ciclistas, que correm um risco enorme dividindo espaço com os ônibus. O ônibus chegou no terceiro ponto na Consolação, logo depois do cemitério. Hora de descer. Mas ele ainda continuaria por um longo caminho, até chegar no Terminal Princesa Isabel. Muita coisa ainda aconteceria por ali. E antes do abrir das portas, é possível presenciar a discussão e agressão física entre duas mulheres. -Não encosta em mim, sua negra nojenta. Me dá licença? Marina Meira, estudante de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie e mora no Campo Belo (zona Sul). A jovem passou um ano indo todos os dias para a faculdade, localizada na Consolação, utilizando o 669A. Há três meses, quando ganhou seu primeiro carro, ela resolveu utilizá-lo todos os dias e para todos os lugares. Assim que, finalmente, ganhou seu March preto, ela não hesitou em aposentar seu bilhete único. Seu tempo diminuiu em 40 minutos na ida, pois de carro pôde fazer caminhos alternativos e fugir do trânsito das avenidas principais, como a Santo Amaro. Já não volta não há vantagem, Marina demora o mesmo tempo de quando ia para casa de ônibus. Mesmo assim ela garante que vale a pena, pois o ônibus fica muito cheio,
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A passageira Cristina Gianesi aguarda um lugar vagar para poder sentar. principalmente na volta, e ela prefere o conforto do seu veículo. - Na Paulista o ônibus lota mais e fica impossível. Um vez, não consegui descer em um dos pontos, pois não tive condições de chegar até a porta. Com a nossa experiência, notamos que depois de passar por 4 avenidas longas e importantes dentro de um ônibus que transporta grande número de pessoas, é possível perceber que você paga 3 reais para andar como uma sardinha enlatada, aturar a falta de educação dos outros passageiros e presenciar cenas que jamais serão esquecidas. Como tudo na vida, há os prós e contras. Uns preferem enfrentar a lotação, a situação dos transportes e a falta de educação para chegar mais rápido ao seu destino. Mas também há quem prefira o conforto do automóvel particular, mesmo que tenha de enfrentar horas no trânsito. E você, o que prefere?
“para essa linha, a faixa melhorou”
Com um século de existência, Parque Buenos Aires marcou a vida de vários frequentadores
Por André Garmes e Marcelo Moura
Parque Buenos Aires, Higienópolis. O sol não aparece em meio o céu nublado. A brisa trazida pelo vento dá um ar de inverno em plena primavera. O cheiro da natureza predomina em meio à poluição produzida pelos milhões de carros e ônibus da caótica capital paulistana. Três senhoras conversam espremidas em um banco de madeira abaixo de um monumental jequitbárosa de 40 metros de altura. Em meio a uma descontraída conversa uma delas, com um leve sotaque lusitano, desabafa: “lembro como se fosse ontem de brincar com minha filha e meu neto nesse Parque”. A lembrança da portuguesa Idalina Castro, 86 anos, é de mais de meio século atrás, mas está bem viva na memória. “Criei minha filha aqui, hoje ela está com 58 anos. Esse parque faz parte da minha vida”. Nem mesmo o constante e às vezes ensurdecedor barulho das buzinas dos motoristas irritados e impacientes na Avenida Angélica tira o brilho e a calma do parque centenário. Um dos poucos restantes na cidade que hoje é sinônimo de poluição, trânsito e estresse. Mas nem sempre foi assim. No início do século XX, enquanto a indústria do café ganhava cada vez mais força no estado, São Paulo contava com inúmeros parques e praças, o verde era predominante até em locais
hoje inimagináveis, como na Avenida Paulista. Inaugurado em 1913, a então chamado “Praça Higienópolis” foi palco de inúmeras histórias e hoje, não menos glorioso, é ponto de encontro diário das senhoras há mais de uma década. Zilda Rodrigues, aparentemente bem mais jovem do que seus 87 anos é uma das mais comunicativas e dispostas do grupo. “Frequento o Parque há mais de 50 anos, adoro vir aqui para admirar a natureza”. Assim como a amiga, a gaúcha Emilia Alegretti de longe não aparenta ter seus 98 anos. A filha de pais italianos é frequentadora assídua do Parque desde que se mudou do Bom Retiro, para o Higienópolis, em 1945. “A rua Alagoas era de paralelepípedo, não existiam essas grades, era bem diferente”, afirma sem esconder o sotaque sulista apenas amenizado pela convivência paulistana. Enquanto segura Dolly, um poodle branco e inseparável companheira, de idade avantajada e com os olhos brancos devido à recente catarata, Idalina conta um pouco um pouco mais de sua vida. “Vim de Portugal com 18 anos e me casei com 21”. O casamento aliás é um assunto que traz saudade à todas. Bodas de prata, de ouro. Filhos, netos e até bisnetos. Uma vida inteira construída ao lado de uma pessoa. Todas elas se
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Parque Buenos Aires completou cem anos em setembro
tornaram viúvas nos últimos cinco anos. Um vazio que jamais será preenchido. A até então alegria de Dona Zilda dá lugar à saudade: “meu marido faleceu há cinco anos, esse parque era um dos lugares favoritos dele”. Por volta das 16h30 chega mais uma das integrantes do grupo: Solange Ramos. Com apenas 70 anos a caipira de Araçatuba - como ela mesma se define convida as amigas para uma caminhada. Enquanto caminham, Solange conta a
“Criei minha filha aqui, hoje ela está com 58 anos. Esse parque faz parte da minha vida” 30 | Narrativa
relação do Buenos Aires com sua terra natal. “Me mudei pra cá em 1980 e esse Parque me faz lembrar do interior”. As senhoras param um pouco a caminhada para olhar os cachorros brincando no cercadinho deles. As vozes dos donos brincando com seus melhores amigos se mistura ao barulho dos latidos. Cachorros dos mais diversos tamanhos e raças interagem sem haver nenhum problema. A tarde é mesmo agradável para um exercício. As quatro senhoras continuam a caminhada. Cumprimentam e brincam com quase todos que passam. As lembranças do Parque causam certa nostalgia. “Hoje em dia o Parque não é bem administrado, a prefeitura não liga para área verde, só para prédios”, reclamou Zilda enquanto elas voltavam a se sentar no mesmo banco em que estavam. “O Parque era mais bem cuidado, gostava mais quando não tinham as grades. A própria entrada é feia, antes tinham diversas flores lá”, continuou comentando o assunto, sem esconder certo desgosto. Emilia começa a contar de suas diversas experiências na Europa. Continente que ela havia visitado seis vezes e contava com alegria nos olhos. Já a portuguesa Idalina lembra com muita tristeza da última vez que visitou o continente, foi para sua terra natal, Portugal. “Fui ano passado logo depois da morte do meu marido, precisava ficar ao lado de minhas irmãs”. Os passeios
no parque eram tradição do casal, que costumava passar horas deitados no jardim admirando a diversidade de flores e árvores. Logo após a triste lembrança, Idalina se levanta e aproveita para levar Dolly para um breve passeio. As simpáticas e sorridentes senhoras se lembram de uma história engraçada. Um casal de jovens estava em meio a uma briga de namorados, o rapaz tratava a menina maneira rude, enquanto ela tentava fazer com que ele não a deixasse. Incomodadas com a situação, Solange resolveu conversar com o rapaz que deu risada e explicou que eram de um grupo de teatro. “Eu lembro que eles ficaram felizes, porque falei que parecia uma briga de verdade”. O final da tarde se aproxima e a temperatura começa a cair. As senhoras, todas vestidas com blusas e calças de malha começam a sentir frio. As pessoas que antes contemplavam a natureza deitada no jardim central já não se encontram mais lá. Emília, a mais velha do grupo se levanta com leve dificuldade para ir embora, seu cabelo loiro e pele clara contrastam com a roupa toda preta. Zilda decide se juntar à amiga, ambas moram no mesmo quarteirão. Ambas se despedem das amigas combinando o próximo encontro. “Amanhã nos encontramos nesse mesmo horário, certo?”. Solange e Emília concordam. Já Idalina, em meio à um certo desânimo, diz que tem que levar Dolly ao veterinário. “Ela está muito velhinha, não está nada bem”. A catarata já afetara os dois olhos da cachorrinha, que o tempo todo fica imóvel no colo da dona. A relação entre elas é intensa: “moro sozinha, passo o dia inteiro com ela”. Zilda e Emília seguem o caminho a passos lentos até a saída principal, na Avenida Angélica. Restam apenas Solange, inquieta e sempre mexendo no cabelo e Idalina, que ainda sentia falta de seu marido e andava preocupada com a saúde de Dolly. A amiga, que também havia perdido o companheiro tenta consolá-la, mas em vão. Elas conversam sobre o almoço comemorativo de aniversário de 100 anos do parque, onde um morador pagou a festa para todos que quisessem participar. Solange conta que foi um sucesso: “todas as comidas eram sem agrotóxicos, além disso tinha até suco de amora, uma delícia”. O tempo passa depressa. Já são quase 18h e o céu já começa à escurecer. As amigas decidem ir embora. Se despedem com um abraço. Solange, preocupada, pede que ela dê notícias. Cada uma
segue seu caminho, Solange segue até a saída da Rua Alagoas, enquanto Idalina pela Piauí. A portuguesa coloca Dolly no chão, mesmo segurando uma coleira vermelha com detalhes em preto, vê que sua melhor amiga está com dificuldade e a pega no colo. Na rua Piauí se misturam as pessoas andando com atletas de rua, vestindo tênis de cores reluzentes e desviando dos pedestres. O cheiro da natureza já se mistura com o de moradores de rua, deitados sobre caixas de papelão e cobertores. O lado de fora do parque é totalmente diferente do interior, o cheiro da natureza e do ar puro é substituído pelo sufocante cheiro da poluição. As buzinas produzidas pelos motoristas impacientes gera um desconforto total. Do lado de fora das grades, os prédios dão a impressão de sufocar os quase 25.000 m2 de área verde. Em meados da década de 1930 ocorreu uma grande verticalização da cidade, principalmente no centro, onde as inúmeras praças e parques começaram a dar lugar aos prédios e estabelecimentos comerciais que tanto tiram o brilho da então cidade dominada pelo verde. Além disso, a população crescia demasiadamente, a necessidade por prédios era inevitável, São Paulo se tornava a cidade cinza dos dias de hoje.
Pessoas de todas as idades frequentam diariamente o Parque Buenos Aires
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O abuso sexual infantil é um reflexo de nossa herança cultural paternalista. O que tem sido feito para derrotar o monstro do armário?
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Bruna Ferreira Suzanne Tanoue
á uma certa névoa que paira sobre as cabeças de quem toca no assunto. Falar sobre abuso sexual infantil implica emparelhar três pilares sociais muito importantes: a infância, o sexo e a família. O clima de segredo, de mistério e principalmente de pesar é evidente em todos os ambientes em que se propõe tratar do tema. A sala não tinha janelas e nem lâmpadas no teto – a iluminação ficava por conta de dois abajures posicionados nos cantos da mesa da terapeuta da Associação Fala Mulher, Vanessa Molina. “As vítimas se sentem menos expostas dessa maneira”. O olhar percorria todos os cantos do cômodo, como se quisesse terminar logo com aquilo. Há também uma palpável preocupação com o tom. O silêncio é primordial, mas, porque se tem que falar, há todo um cuidado para escolher as palavras e para dominar a voz a fim de dizer em um bom tom. Normalmente baixo. Sigilo. A associação acolhe, principalmente, mulheres adultas que sofreram algum tipo de agressão – física, psicológica e/ou sexual. A vulnerabilidade comprovada das crianças e a fragilidade socialmente construída das mulheres são características que viabilizam esse tipo de violência. Nossa sociedade, que coloca o homem
numa posição superior em relação a elas, permite que esses assuntos sejam praticamente invisíveis. Num lampejo de energia, deixando a polidez e o protocolo de lado involuntariamente, a terapeuta indigna-se: “todo esse paternalismo impregnado em nossa cultura só oculta mais ainda esse monstro. Sim, o fenômeno é um monstro. O pior de tudo, é que mesmo humilhada, insegura e reduzida a nada a mulher ainda tende a se culpar por ter sido abusada ou por permitir que seus filhos sejam abusados”. O “monstro” vem, mesmo, de dentro de casa – e talvez não esteja escondido embaixo das camas ou no interior dos armários. De acordo com um levantamento do sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) do Ministério da Saúde, a violência sexual é o segundo tipo de agressão mais sofrido por crianças de 0 a 9 anos. 35% das 14.625 notificações de violência doméstica registradas no ano de 2011 estão relacionadas com este tipo de abuso. Dessa porcentagem, em 90% dos casos o agressor é conhecido da vítima – um pai, padrasto, tio, padrinho, avô. Em outra sala, de outro lugar – dessa vez com janelas grandes que deixavam os raios de sol iluminarem os desenhos colados nas paredes sempre brancas – nem mesmo a luz conseguiu desfazer a bruma que envolve o
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a violência sexual é o segundo tipo de agressão mais sofrido por crianças de 0 a 9 anos. 35% das 14.625 notificações de violência doméstica registradas no ano de 2011
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tema. No Programa Cuidar – vinculado ao Projeto Quixote, que atende crianças socioeconomicamente vulneráveis – a necessidade de proteger as crianças é evidente. Com a frieza de quem provavelmente já ouviu e viu coisas inimagináveis, mas com a ternura de quem lida diretamente com figuras sensíveis, a paradoxal psicóloga Flávia Gleich tem uma preocupação principal: estabelecer os limites entre o atendimento oferecido
e o trabalho solicitado pelo que ela chama de “Poder Judiciário”. “Eles (o juiz, o Conselho Tutelar) estão mais interessados em resolver o caso do que entender o que está se passando”. A questão incomoda a especialista. “O tipo de pedido que a gente recebe não é ‘cuide dessa criança e veja se ela está bem’, é ‘converse com ela e certifiquese de que houve o abuso ou não’, mas nosso trabalho aqui é tratar a vítima, e não arrancar verdades dela”. Impaciente, anuncia um atendimento dali 5 minutos e despede-se.
“todo esse paternalismo impregnado em nossa cultura só oculta mais ainda esse monstro”
A Pérola e a concha Quantas pessoas são sexualmente abusadas numa tarde de terça-feira? É até, de certa forma, perturbador pensar sobre isso no ônibus a caminho do número 683 da Avenida Brigadeiro Luis Antônio na capital paulista. Nesse endereço está localizado o Hospital Pérola Byington, um centro de referência de atendimento à mulher. Por aquele piso branco passam, todos os dias, milhares de mulheres em busca de tratamentos ginecológicos, oncológicos, mastológicos e de reprodução humana. De 14 a 15 pacientes pertencentes a essas milhares são crianças que necessitam de atendimento porque foram sexualmente abusadas. Quantas pessoas denunciam um abuso sexual numa tarde de terça-feira? As cadeiras unidas da sala de espera do hospital não deixam espaço para um distanciamento físico daquelas que ali estão. Mas o abismo psicológico entre as pacientes é imensurável. Papel branco nas mãos, olhos vermelhos, vergonha estampada nos rostos da mulher e da criança. Um boletim de ocorrência e mil acontecimentos que a imaginação de um homem lhe permite criar, mas a falta de familiaridade com o lugar foi o empecilho para a confirmação desses fatos. A tarde de terça-feira no hospital despertou mais ainda a curiosidade e trouxe a confirmação de que saber sobre essas histórias é uma tarefa tão árdua quanto recompensadora. Ninguém pode adentrar pelas portas decoradas com temas coloridos do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto do Pérola sem uma liminar de justiça e encaminhamento do IML. “As vítimas sentem vergonha e já é difícil se abrirem com a psicóloga e a assistente social, que dirá com mais gente estranha por perto”, explica pacientemente a enfermeira que
não nos deixou entrar. Ellen “De repente, ele parecia um monstro em cima de mim”. Hoje com 23 anos, Ellen (que fez questão de que seu nome verdadeiro fosse utilizado na matéria) não foi atendida pelo Hospital Pérola Byington, nem por nenhuma associação de amparo a crianças. “(...) falou que ia fazer um gesto de carinho pra mim, que se eu o amasse como pai, tinha que aceitar. Tirou minha roupa que faltava e abriu minhas pernas. Ele me penetrou e eu chorei porque foi horrível. Enquanto ele se movimentava, pedia pra eu chamar ele de papai”. Os cabelos compridos e alisados esvoaçam enquanto a mulher gesticula. Ellen é morena, sorridente, mas fala baixo. É como se mostrasse os dentes para disfarçar a timidez. Conhecemos Ellen no final de 2007. Era quase natal e ela apareceu em São José dos Campos para comemorar a data com a restante da família que mora lá. Fomos apresentadas por uma amiga em comum, a Aline. Conhecemos toda a família dela, e na época, Ellen era só uma menina. Mal podia imaginar o terror que ela passava. O padrasto, que aparentava muito mais do que 32 anos, era loiro, com olhos claros. Tímido e quieto.
Dois anos depois, lembro-me que Ellen foi passar uns meses em São José. Em uma de nossas conversas, ela nos contou os dias terríveis que tinha passado, falou sobre a coragem para denunciar o abuso. Precisou sair de São Paulo, tamanha foi a vergonha de ver seu padrasto saindo algemado de dentro da sua própria casa. Foi um escândalo para todos os que
Uma pesquisa feita pelo hospital no ano de 2011 constatou que, em dez anos, o número de crianças atendidas pelo núcleo triplicou.
“falou que ia fazer um gesto de carinho pra mim, que se eu o amasse como pai, tinha que aceitar” Narrativa | 35
Os dados, que se referem ao período entre 2001 e 2011, também mostram que houve crescimento dos adolescentes entre 12 e 18 anos que procuraram o serviço
conheciam a família. Enquanto conversávamos sobre esse delicado assunto, Ellen alternava seu comportamento entre o de uma criança que carrega marcas de uma infância sofrida e uma mãe que a cada hora parava para verificar como estavam suas filhas. Quando pedimos para gravar as respostas das perguntas que fazia, ela pareceu pouco confortável. Preferiu escrever um texto com toda sua trajetória para não ser interrompida. Quem sabe da dor prefere contar aquilo que passou de uma vez só. “É difícil lembrar várias vezes desse assunto’’, disse. Durante quase um terço de sua vida, foi abusada pelo padrasto. O pai tinha sido assassinado anos antes, e a mãe tinha dado a luz à irmã mais nova, Bia. “Minha mãe começou a sair com um cara. Ele parecia ser bem legal, tranquilo mesmo. Daí casaram e fomos morar juntos, ele, minha mãe, eu e a Bia. Parecia que finalmente eu ia ter uma família completa mas meu sonho se tornou um pesadelo” – e ensaia um riso sem graça. Enquanto relata a primeira das muitas
“Eu nÃo podia deixar minha irmà passar por isso. tinha que aguentar” 36 | Narrativa
noites em que foi molestada, aos 11 anos, a menina age e fala estranhamente com certa naturalidade. A mãe passara a noite com a avó no hospital e Bia dormia na casa de uma amiga. O padrasto a convidou para dormir junto dele alegando que sentia falta da esposa, dizendo que a mãe ficaria feliz quando soubesse que Ellen não o deixou sozinho. “Eu achei estranho, mas fui porque também senti falta da minha mãe. Ele disse que eu tinha que dormir só de calcinha porque minha mãe dormia assim. Enquanto isso, ele pegou minha mão e colocou no pênis dele porque falou que era para fazer carinho e passava a mão no meu cabelo e dava beijo”. Foram anos e anos nessa vida. Até os 15, não entendia muito bem o que acontecia, só sabia que ele a obrigava e dizia que a mãe ficaria muito triste se soubesse que não agradou o “papai” que ela amava tanto. “Eu lembro também que ele dava remédio pra mim depois de fazer tudo isso. E falava pra eu ir tomar um banho pra ficar cheirosa porque o papai gostava mais”. “Teve uma vez também que eu cheguei a engravidar e ele me bateu muito nesse dia porque a culpa de ele ter ejaculado dentro de mim era minha. Todas as vezes ele ejaculava nos seios, no rosto ou na boca, mas nesse dia não. Depois de bater ele me deu um chá e disse que eu não podia ser mãe porque ia parecer que eu ‘tava’ competindo com a minha mãe e ela ia ficar muito triste. Eu tinha uns 14 anos”. Para proteger a irmã mais nova, quando entendeu que tudo o que havia sofrido era errado e abominável, Ellen aguentou. Na mesma época, então no segundo ano do ensino médio, conheceu Artur, com quem começou a namorar. Sabendo desse fato, o padrasto a impediu de ter um relacionamento porque ele tinha ciúmes. “Falava que se eu não o fizesse, ele ia contar tudo pra minha mãe e pra minha família. Ia contar que eu perdi a virgindade com o Artur. Ia precisar de uma nova filhinha e seria a Bia. Eu não podia deixar minha irmã passar por isso. Tinha que aguentar”. Hoje, seis anos depois da última vez em que foi abusada – o ato foi flagrado pela mãe, que chamou a polícia – Ellen é esposa de Artur e mãe de duas filhas – Julia, com dois meses e Laura, de dois anos. Dessa “época de terror”, como caracteriza os tempos vividos sob pânico, resta o olhar ainda perdido e a desconfiança que insiste em povoar seus pensamentos. “Eu não consigo imaginar
“TODAS AS SITUAções são péssimas” tudo isso acontecendo de novo porque foi a pior coisa da minha vida”. Analisando as causas As causas do abuso sexual não podem ser definidas, uma vez que os resultados das pesquisas apontam, em sua maioria, que o agressor é alguém de confiança da criança. Há uma relação estreita, certa cumplicidade. Isso gera ainda mais indisposição da vítima para falar sobre o ocorrido. Muitas dessas crianças que conseguiram falar com alguém sobre a situação e hoje fazem algum tipo de acompanhamento confessam que seus agressores alegavam uma possível destruição da família: se tratava do padrasto, por exemplo, que usava o argumento de que se a criança contasse para a mãe, acabaria o casamento e a família. Na cabeça de uma criança, é praticamente impossível gerir a ideia de ter sido o pivô para o fim da sua própria família. Por essa razão, muitas preferem continuar no anonimato. Essa é uma das artimanhas que precisam ser contidas com a veiculação de diferentes anúncios em diversas plataformas para gerar consciência na vítima de que aquilo que ela vive não é natural. Aliás, esse é outro ponto importante: a desculpa de que se trata de algo “natural”, que todas as crianças passam por isso, mas que ninguém fala sobre. As crianças em tratamento também falam que seus agressores lhes dizem que o que fazem é normal, até uma forma de demonstrar amor um para com o outro. Há também o agressor que se aproveita de determinada posição superior para forçar a criança a fazer qualquer ato com a premissa de puni-la caso não obedeça. Nesse caso, pode acontecer de a criança sofrer violência física também, como espancamento. Esse posicionamento é adotado, em sua maioria, por aqueles que são superiores à criança. Todas as situações são péssimas. Não existe alguma que seja “menos
pior” porque fere o direito da criança em diferentes aspectos: físicos, emocionais e familiares. Mas além de resultados notáveis, a situação se agrava quando passamos a olhar para o desenvolvimento da vítima na sociedade. São adultos que apresentam desvios psicológicos em diferentes patamares e que precisam de ajuda, apesar de tanto tempo. Por isso o tratamento precisa ser tão eficaz e possuir diferentes vertentes. Há apoio especializado voltado para crianças, adultos, idosos, jovens. É impossível prever quem é passível de sofrer um abuso sexual, dado que na maioria das vezes, o problema é enfrentado dentro de casa. Infelizmente, o elo entre a terapeuta Vanessa Molina, a psicóloga Flávia Gleich – brancas, de classe média – e Ellen Souza – traços negros, pobre – é imensurável. O caso de Ellen é parecido com alguns dos muitos com os quais as especialistas estão em contato todos os dias. As três, no entanto, independentemente de sua condição social, física ou emocional, estiveram e estão sujeitas ao monstro – que parece estar longe de ser derrotado.
Em 90% dos casos o agressor é conhecido da vítima – um pai, padrasto, tio, padrinho, avô.
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Enquanto a Copa do Mundo de 2014 se aproxima, os moradores da Comunidade da Paz, localizada em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, permanecem cada vez mais distantes do sonho de ter condições dignas de moradia. Fotos e Texto: Marina Escarminio e Marina Lopes
A
passagem era estreita; o chão, feito com remendos de cimento e terra. Irregular, empoçava água após o primeiro sinal de chuva. Horizonte com fim, escondia os becos laterais como uma espécie de labirinto formado pela junção de tijolos sem acabamento, pedaços de madeira e telhas de amianto. Há vinte e um anos, a vizinhança ainda era pacata, daí o nome Comunidade da Paz. Existia meia dúzia de barracos cercados por mato. Em um raio de três quilômetros não havia Shopping Center, Fatec e grandes obras viárias, tampouco, poderia se imaginar que após duas décadas a região seria escolhida para sediar a abertura da Copa do Mundo de 2014. Originalmente, o local pertencia a Companhia Metropolitana de Habitação. No entanto, começou a ser ocupado por pessoas que não encontraram local para morar em São Paulo. Hoje, já existem mais de 300 famílias que vivem sob a incerteza de um despejo em função do Parque Linear do Rio Verde, obra incluída no legado da Copa para Itaquera. No alto, fios emaranhados se juntavam às antenas de televisão a cabo. A energia era irregular, assim como a água que passava por
pequenos tubos, dificultando a chegada até as extremidades mais altas. Em alguns locais, era necessário sair com o balde para encher na torneira do vizinho. Há pelo menos uma década a Sabesp tentou regulamentar essa situação com a instalação de relógios, no entanto, os valores exorbitantes fizeram com que os moradores voltassem para a irregularidade. Em meio ao entra e sai de pessoas, cães e gatos passavam como se andassem pelo próprio território. Ao pé de um pequeno corredor, uma menina de, no máximo, dois anos, agachou e por curiosidade apertou as fezes deixadas por um animal. Passando pela viela principal, de parede azul, destacava-se a igrejinha evangélica de apenas uma porta. Além de servir para cultos religiosos, cedia espaço para reunião de moradores da comunidade. Dentro de cada beco era possível encontrar pequenos negócios, como mercadinhos, bares, bombonieres e lojas de utensílios gerais, que vão desde bijouterias até capinhas para celular. Pelo caminho, podia-se ler avisos antigos com o informe: “A parti do dia 09/09 até dia 15/09 estarão aqui na comunidade representante da prefeitura para o novo cadastramento das casas e barracos, agradecemos a todos e pedimos a colaboração de todos!!!”. O recado ainda trazia o lembrete de quando seria o próximo encontro
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com a Sub de Itaquera. Embora não possuísse grandes correções gramaticais, a mensagem fazia-se clara. Nas portas dos barracos era possível perceber que, de fato, a prefeitura passou por lá. Todos eram marcados com um selo de identificação contendo sete dígitos e a divisão por setores. Para facilitar a demarcação, o cadastro foi dividido entre cinco áreas, sendo que a primeira e a última eram consideradas de risco. O paraibano Pedro Furtado, líder comunitário conhecido por todos como
Pedro Furtado é líder comunitário. Atualmente, ele é dono de um bar que funciona como uma mercearia para os moradores.
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“Antes da construção desse estádio, não se falava em acelerar para tirar a gente”
seu Pedro, possui cinquenta e sete anos e é casado com Maria de Lourdes por mais de três décadas. A pernambucana Diana do Nascimento chegou em São Paulo com seis anos de idade e, hoje, com trinta e sete anos já é avó do pequeno Davi de dez meses. Ela já foi casada com Drancy Silva, que hoje possui cinquenta e três anos, dos quais passou dezenove na favela. André Luiz Vicente nasceu em São Paulo há trinta e um anos. Ele conheceu sua esposa, Edivania Lopes, ainda bem jovem na Comunidade da Paz. Mesmo com idades e trajetórias de vidas distintas, entre eles, duas coisas são certas: a primeira é a dúvida quando ao futuro da Comunidade; a segunda, uma luta por moradia digna. Entre as vielas e becos, é possível ouvir histórias de que desde a sua fundação, quando o Brasil ainda era Tricampeão de futebol, a região já sofria ameaças de ser retirada. No entanto, por um bom tempo permaneceu esquecida, nem nenhuma espécie de saneamento básico. O anúncio da Copa trouxe a comunidade para o “olho do furacão”, no auge dos noticiários e disputas por reintegração de posse. — Antes da construção desse estádio, não se falava em acelerar para tirar a gente. Foi começar essa obra que falaram em remover a favela -reclamou Diana. Quando chegou em São Paulo, ela morou com a mãe perto do Terminal A.E. Carvalho, mas as dificuldades a obrigaram encontrar outro lugar para ficar. Os rumores de uma nova ocupação a levaram até a viela recém habitada. Mora no barraco com o neto, quatro filhos, o marido e o genro, pai de Davi. Além das oito pessoas, o espaço é dividido com algumas mobílias, como cama, geladeira, fogão, computador, uma pequena mesa e outros utensílios, que segundo ela, foram “conquistados com muito sacrifício”. Ela sabe muito bem o que é perder tudo e reconquistar do zero. Já foi vítima de incêndio duas vezes. A primeira vez foi em 1997. O acontecimento se repetiu em 2006. Catou madeira e piso velho para reconstruir seu lar. Desempregada, não contou com o apoio de ninguém. Hoje, recebe o bolsa aluguel e complementa a renda com um trabalho de contrato temporário. Emprego também foi a grande dificuldade de seu Pedro quando chegou em São Paulo. Avô de Gabriela e Camila, quando chegou à terra da garoa dormiu no chão e foi recolher papel e ferro na
rua até conseguir achar uma vaga de encarregado de obra. — Eu chegava em casa com as mãos sangrando - lembra ele, olhando para as marcas do tempo deixadas entre os dedos. A idade incentivou o líder comunitário a sair da obra para montar o seu próprio negócio. Atualmente, ele é dono de um bar que também funciona como uma espécie de mercearia na comunidade. Dentro do estabelecimento, as frases mais comuns são: — Seu Pedro, vê uma 51 aí? — Tem um leite? — Marca um feijão para mim? O movimento perdura durante todo o dia. Entre um cliente e outro, moradores trocam dois dedos de prosa e também pedem para pegar um pouco de água com o balde no local. — Tenho vontade de montar uma casa do norte, mas o pessoal dá muito calote, -contou o paraibano. Embora tenha perdido dinheiro com as famosas vendas fiadas, o negócio garante o sustento dele e da família. Seu Pedro estudou até o ensino fundamental, mas acumulou conhecimento que a vida ensinou. Na sua cidade natal, trabalhou com campanha política. A experiência foi importante
para aprender a defender os interesses locais nas reuniões com a Subprefeitura e Secretaria de Habitação. Os moradores da Comunidade da Paz não querem receber um bolsa aluguel, ou qualquer outro valor para o despejo. — Hoje, as favelas não acabam no Brasil porque o nosso governo permite isso. Quando eles oferecem uma bolsa aluguel, um abrigo, ou albergue, a pessoa pega o dinheiro e compra um barraco para continuar morando na favela- revelou Diana, sem esconder o seu dsejo pelo direito à uma casa própria. — A nossa luta é chave por chave, -defendeu Drancy Silva. Drancy anda com o auxílio de muletas. Veio para São Paulo em busca de melhor qualidade para o seu
No centro da comunidade existe um pátio que serve para realizar eventos e reuniões de moradores.
“A nossa luta é chave por chave” Narrativa | 41
O nome do local foi sugerido por uma das primeiras moradoras, dona Lígia, que hoje mora em Portugal.
tratamento. A deficiência não o impediu de andar por todos os becos e vielas da comunidade, participando do cadastro de pessoas para a constituição da Associação dos Moradores da Comunidade da Paz. O grupo foi pensado para defender os interesses locais, realizar eventos na comunidade e conseguir doações. O presidente escolhido para a associação foi André Luiz. Diferente de seu Pedro, ele se formou no ensino superior em Comércio Exterior e possui Pós-Graduação na área. Porém, no momento trabalha como técnico em uma empresa de Tecnologia da Informação. Quando ele chegou ao local, já existiam alguns barracos na comunidade, no entanto, ainda não tinha a dimensão que possui hoje. Mudou-se para lá com a
“Vai ter que tirar? Mas para onde? Isso foi um revolta para nós moradores, porque tem tudo perto aqui” 42 | Narrativa
mãe, que ficou sabendo da invasão. — As pessoas vieram e foi crescendo a comunidade. Aqui o sistema de saneamento básico e elétrico era precário. Eu passava uma mangueira de mais ou menos um polegada para poder abastecer as casas. Era uma ou duas que tinham mangueira. As pessoas pegavam o balde e faziam fila para conseguir água e poder tomar banho. Na época, quando tinha chuva, dava enchente e muitas famílias perdiam tudo. Quando acontecia de dar incêndio, porque a eletricidade é irregular, era bem complicado - recordou André. — Acontecia não. Ainda acontece incêndio aqui - corrigiu a esposa. Ele e a esposa são casados há seis anos. Quando a mãe morreu, vendeu o espaço dela e comprou um pedacinho do terreno da frente por trezentos reais. Conseguiu levantar uma casa feita de alvenaria. Mas, segundo a mulher, ainda não rebocou porque não tem certeza se vai permanecer no terreno. — Copa do mundo é a menina dos olhos do brasileiro. Com isso, a gente pensava que até iria melhorar, que dariam uma proposta para os moradores daqui. Mas, estão apenas investindo em Copa e a gente indo para o Ministério Público, apertando o subprefeito e mandando ofício para lá. Quando começou, a região começou a chamar muita atenção, pensaram “Copa do mundo e a favela perto?” - destacou André. Os moradores preocupados com o resultado dessas obras e a possível remoção das famílias do local se uniram ao Movimento Nossa Itaquera, ao coletivo Copa pra Quem? e ao movimento Comunidades Unidas da Zona Leste na busca de conseguir informações oficiais sobre os boatos de remoção e como seria o destino das famílias. Mobilizados, procuraram apoio externo e criaram o Plano Popular Alternativo para a discussão do entorno das obras e possíveis soluções para as famílias garantirem a preservação de suas casas sem interferência nas obras. No documento, eles reivindicam direito à informação, moradias dignas, manter a função social original da propriedade, já que o terreno ocupado pela comunidade pertence à COHAB. — Vai ter que tirar? Mas para onde? Isso foi um revolta para nós moradores, porque tem tudo perto aqui. Tem escola, tem creche, hospital, ponto de ônibus, metrô -indagou Diana.
“O pessoal fala que não tem lugar para colocar a gente”
tinha que dar. Me ensinou a realidade - afirmou. A pernambucana ainda completa: — Eu quero morrer, mas quero deixar vocês em um lugar próprio. Vocês ainda vão falar “minha mãe lutou e deixou uma moradia pra nós”.
A Comunidade da Paz começou apenas como uma viela. Hoje o local é a passagem principal para acesso aos becos laterais.
A proximidade de equipamentos públicos em um raio de 2,5 km torna o espaço ainda mais importante para a comunidade. No entorno, estão oito escolas municipais de ensino infantil, duas escolas municipais de ensino fundamental, sete escolas estaduais de ensino fundamental e médio, doze creches, uma biblioteca, dois pontos do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, quatro AMAs e uma UBS. Além disso, segundo muitos moradores, eles já possuem uma vida constituída no local, motivo pelo qual gostariam de permanecer nos limites do bairro. André contou que no cadastro percebeu que a assistente social sempre questionava o valor do barraco. Segundo ele, muitas pessoas falavam qualquer valor e não pensavam que elas deveriam falar um valor que as possibilitasse a compra de um terreno em outro lugar nas proximidades. Uma das lutas dos moradores da Comunidade da Paz é, se tiver que sair da região, conseguir a chave de um apartamento de habitação social. Drancy disse que ele mesmo fez uma busca pelo bairro para verificar os conjuntos que tinham unidades disponíveis. — O pessoal fala que não tem lugar para colocar a gente. Se sabiam que teria Copa, porque não pensaram no lado social dentro dos pacotes de obras? O dinheiro que iriam querer pagar de bolsa aluguel daria para começar a construção de moradia para nós - indagou. Enquanto isso, os moradores aguardam sem respostas uma decisão sobre o seu futuro. Para Diana, conquistar uma moradia ainda é o seu maior sonho: — Eu pretendo sair daqui, porque como eu diria, aqui já me deu o que
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Edgar e Piero estão separados por um oceano, porém a mesma doença os conecta. O mal capaz de desaparecer com a memória de mais de 35 milhões de pessoas no mundo Barbara Aramtes Nathália Farias
Certa vez Marcel Proust afirmou que, “A realidade apenas se forma na memória; as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem verdadeiras flores”. Mesmo vivendo anos antes da descoberta da doença que afeta muito hoje em dia, o autor francês já conseguira entender o quão significativo é a perda da memória de um ser humano. Segundo os dados publicados pela Organização Mundial de Saúde, a OMS, cerca de 35,6 milhões de pessoas vivem com a doença em todo o planeta. As projeções afirmam que o número deve dobrar até 2030 e triplicar em 2050, passando para mais de 115,4 milhões de pessoas afetadas pelo mal. No Brasil estima-se que haja mais de 1,2 milhão de casos. Edgar Franklin de Lima é uma das milhares de pessoas afetadas pelo mal no mundo. Não só ele sente os efeitos da doença, mas todos que o cercam também sentem o impacto de um processo gradual de término de uma vida. A família de nada suspeitou do grau em que a doença havia se instalado na vida de Edgar pois sua esposa, Rachel, não deixou que os filhos descobrissem à primeira vista sobre a enfermidade. Como uma verdadeira companheira à moda antiga, ela cuidou do marido doente até sua morte. O mal traz consigo uma enorme carga emocional para os parentes e amigos do paciente. É comum a exaustão emocional e física dos cuidadores, assim chamadas as pessoas que tratam do doente. Em muitos casos a doença silenciosa também leva a óbito os cuidadores, por conta da pressão que sobre eles lhe foi imposta.
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A enfermidade foi descoberta em 1906 por um neuropatologista alemão. O médico notou um tipo de demência que até então não havia sido documentada na comunidade acadêmica. O doutor percebeu que a doença se manifestava de forma lenta, e os sintomas muitas vezes eram ignorados por serem considerados “mania de velho”. Déficit de memória, alterações de comportamento, perda da capacidade motora e de realização de atividades corriqueiras, perda de noção
“O mal traz consigo uma enorme carga emocional para os parentes e amigos do paciente.”
O antes e o depois do Senhor Edgar: na primeira foto (à esquerda), com 37 anos e a segunda (à direita), com 80. de espaço e de capacidade cognitiva. A doença foi registrada no Manual de Psiquiatria em 1910. Apesar disso, levaram-se anos para que a enfermidade voltasse a ter a atenção da comunidade médica, porque naquela época era incomum alguém viver mais que 60 anos, idade em que o mal costuma dar seus primeiros sinais. Os tempos mudaram e a expectativa de vida aumentou nos quatro cantos do globo. E assim o mal silencioso atraiu a atenção de todos. Edgar, hoje com 80 anos, foi um homem trabalhador e com uma vida próspera. Ele perdeu seu pai aos treze anos e com dezesseis anos deixou a cidade de Santa Maria de Cambuca, sertão de Pernambuco e veio tentar a vida na terra da garoa. O garoto teve a sorte de ter sido adotado por um jovem casal rico que lhe deu oportunidades de crescer. Em São Paulo ele conheceu sua futura esposa, filha de imigrantes portugueses fugidos do regime tolitarista de Salazar. Com o suor de seu rosto um império foi construído: desde o primeiro caminhão que ele alugou, até uma das maiores empresas de logística do Brasil, além de tomar conta do Hotel Viaduto, de seu falecido sogro. Muitas frotas foram roubadas e clientes se foram, assim Edgar acabou se endividando. Nos bons momentos financeiros da família, Edgar comprou um sítio em Jacareí, a 50 quilômetros da capital. Ele e sua esposa dividiam o tempo entre a cidade de Santos, local de moradia de seus três filhos e o sítio em Jacareí. Contudo, no percurso para Santos o casal acabou sendo abordado por
assaltantes, ele decidiu reagir como forma de defesa e acabou levando várias coronhadas na cabeça. Apesar de toda a agressão, ele saiu vivo. Um segundo assalto- e mais violento- ocorreu em seu sítio. Durante a madrugada uma quadrilha invadiu o local e rendeu o caseiro, Buiú, que a base de tortura teve que confessar as entradas mais fáceis da casa. Os assaltantes entraram pela casa e renderam Edgar, o prenderam e o deixaram amarrado na sala. Um dos filhos estranhou o sumiço do pai e foi averiguar se algo de errado tinha acontecido. Este também foi preso junto com Edgar e o funcionário da casa. Cartões, armas e pertences foram levados. Os bandidos constrangeram Edgar e sua família de várias maneiras e abandonaram todos amarrados no local. O último choque sofrido pelo emigrante pernambucano foi o do famoso “trote do sequestro”. Edgar acreditou na mentira e saiu desesperado em busca de um caixa para sacar a quantia pedida. Por fim todos ajudaram o senhor a se acalmar e descobrir que na verdade aquilo não passava de um golpe. Antes do primeiro assalto o velho Edgar já possuia sinais de esquecimento, mas depois do segundo tudo piorou de forma exagerada. O último golpe o tornou uma pessoa que carrega um medo eterno. A primeira etapa da doença se manifesta de forma discreta e muitas vezes passa despercebida. Os sintomas são o esquecimento de coisas corriqueiras como uma chave, objetos pessoais; perda de noção de espaço, mesmo em lugares conhecidos. Na segunda fase do
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Durante grande parte de sua vida Rachel foi a companheira de Edgar. Esta foto foi tirada há 20 anos nos sítio da família, residência atual do senhor
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mal, o enfermo já não se lembra de fatos recentes, esquece e confunde o nome de familiares, se perde em sua própria casa, começa a ter dificuldade de se comunicar e não param de perguntar sobre as mesmas coisas, repetidas vezes. “Meu nome é Edgar Frankliiiiiin de Lima, eu tenho cinquenta anos de idade”. Não importava a pergunta, a resposta era sempre a mesma, convicta. Apesar de seu filho, Fernando, rebater a afirmação. “Pai, como o senhor tem cinquenta, se eu tenho cinquenta e um?”. “Nossa filho, como você está velho, hein?” A última fase da doença representa a quase total dependência do enfermo de seu cuidador. Perda significativa de memória, falta de noção espacial em lugares antes conhecidos, alterações de comportamento, possível agressividade, dificuldade para caminhar e de realização de atividades de higiene pessoal, como o simples ato de tomar banho. Com a perda da esposa de Edgar, todos os filhos tiveram que se adaptar a rotina de cuidados. Atualmente ele vive no sítio em Jacareí, a casa é térrea simples, de dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro. É escura e todas as janelas, as quais ele mantém permanentemente fechadas, são cheias de grades. O medo faz com que ele tranque cada uma das três fechaduras da porta principal (e se certifica de que a corrente esteja passada) e, quase nunca, abre a porta dos fundos. Ao entrar pela cozinha, logo se vê à direita um fogão. É apenas um fogão, mas naquele simples utensílio doméstico, o mal já deixou a sua marca. Sem a tampa de vidro, nem todas as bocas funcionam.
“A doença tem natureza crônica e progressiva” Por inúmeras vezes Edgar se levantou para fazer café, esquentou a chaleira com água, esqueceu o fogo ligado e abaixou a tampa do fogão, que estourou. O episódio se repetiu tantas vezes que os familiares optaram por manter o eletrodoméstico sem o vidro, para evitar acidentes. A doença tem natureza crônica e progressiva. Ela afeta principalmente a capacidade de processar o pensamento e da fala, o cálculo, a compreensão e a orientação. A deteriorização da função cognitiva pode vir acompanhada pela perda de controle emocional e social. O enfermo pode se tornar cada vez mais recluso e antissocial. Dados da OMS apontam que a doença é uma das mais graves da atualidade. Anualmente se gasta mais de 604 bilhões de dólares por ano com cuidados médicos e sociais para tratar dos doentes e das famílias. É comum que essas famílias sofram economicamente com todos os custos dos tratamentos e remédios. Cerca de 58% da população que sofre com a doença vive em países de classe média a baixa, os chamados países subdesenvolvidos. O número pode crescer para 70% em 2050. A Organização reconhece a gravidade que a doença implica na sociedade como um todo e afirmou neste ano que a demência deve ser tratada como um problema de saúde pública, em todo o planeta. Dos cento e noventa e quatro estados membros da OMS, apenas oito países possuem planos de combate ao mal. E apesar dos planos existirem, o mal continua atingindo gente de todas as cores, raças e credos. Piero Cei nasceu na cidade italiana de Lucca, nos anos 1920. Trabalhou por mais de cinquenta anos na fábrica da Fiat Itália, filial local, mesmo no período em que a empresa foi uma das poucas coisas que restaram da Itália pós segunda guerra. Como muitos europeus, ele viu as mazelas que o país passou durante
o período de guerra e participou da reconstrução da nação. Os anos na fábrica da Fiat acabaram deixando sequelas físicas (ele perdeu grande parte da audição por conta do barulho das máquinas e precisava usar constantemente um aparelho no ouvido). Contudo isso não abateu Piero de realizar todas as atividades do seu dia a dia. Após muitos anos de serviço, ele pode se aposentar e aproveitar seus hobbys prediletos: jardinagem, futebol e o bilhar. Piero sempre foi um idoso ativo, gostava de passear pelos jardins de sua casa, dirigia seu próprio carro e saia com os amigos. Apesar de ter uma vida bem diferente de Edgar, Piero também sofre da mesma doença. Aos 93 anos de idade ele já não pode mais dirigir o seu próprio carro porque durante o percurso ele se esquecia de onde estava. Sua memória lentamente se vai, todas suas histórias de vida se apagam lentamente. A dependência que ele tem do filho, Stefano, e da esposa, Anna, cada dia cresce mais. O que mais dói para sua esposa não é ver a partida lenta do marido, mas ver alguém que fora tão animado cada vez mais se apagar. Apesar da distância que os separam, Fernando, filho de Edgar e Stefano, filho de Piero sentem o mesmo peso de serem os cuidadores de seus pais. Fernando conta que para ele o mal é como uma chama, uma lâmpada, que dia a dia vem diminuindo, e a convivência cria a aflição de nada poder fazer, somente tentar estar presente no pouco que resta. “Sinto como uma lenta despedida, lenta e dolorosa de uma pessoa amada”, finaliza. O mal é a perda de tudo o que fez uma pessoa existir. A importância dos
idosos está principalmente na memória, nas lembranças de vida, naquilo que se registre na lembrança e é tida como um bem preciso. De repente, o doente se vê sem lembranças. Ele passa a não se conhecer mais. É a perda gradual de tudo aquilo que se fez em uma vida, de tudo aquilo que ele foi e é. A doença não tem cura e os remédios são muito fortes. Tanto a família de Edgar, como a de Piero preferem evitar o uso dos medicamentos para não debilitar os pacientes. Os doentes não possuem consciência do que aconteceu com sua memória e só resta aos parentes poderem contar as histórias de cada uma dessas pessoas. E nunca mais as flores lhes parecem as mesmas.
Piero e sua esposa, Anna no final dos anos 50. Até hoje o casal está junto e ela é sua principal cuidadora
“É a perda gradual de tudo aquilo que se fez em uma vida, de tudo aquilo que ele foi e é” Narrativa | 47
Caroline Rodrigues Tamara Guimarães
Centro Cultural de São Paulo, sete de setembro, 10 horas, sábado. Estávamos convictas que o lugar estaria vazio. Nosso primeiro engano. Dança, livro, xadrez, árvore, sol, rampas, computadores, celulares, risadas, concentração, anotações, cores, frases, vidros. Muitos vidros. Tudo era percebido por todos, todos os ambientes conectados e ao mesmo tempo integrando aquele lugar que se resume a uma palavra ampla: cultura. Foi nesse lugar de encher os olhos, de percepções e de cores que entramos em um mundo um pouco diferente. Sim, pouco. Você pode até pensar que os cegos tem grande diferença de nós, mas depois daquele sábado foi fácil de entender que não. Quebrando qualquer tipo de padrão, chegamos à biblioteca de deficientes visuais. A palavra biblioteca tem origem da palavra grega bibliotheke, junção de biblio (livro) e teke (depósito), portanto um depósito de livros. Estranho é ter um “depósito de livros”, ideia que remete a algo totalmente visual, voltado para quem não enxerga. Pois bem, lá não se lê, e sim se sente e se ouve. Se você pensa em um lugar quieto, em que a bibliotecária vai te olhar com cara feia quando você pensa em falar, você está errado. Lá a fala é bem vinda, tanto para livros, com comandos no computador, digitação de
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textos, quanto para celular. Assim que chegamos, vimos um homem com nítida dificuldade de enxergar, ele estava copiando algo e com o rosto bem colado ao papel o que chamou nossa atenção. Não soubemos como reagir a princípio, um guarda percebendo nossa cara de dúvida e se aproximou. - Bom dia, meninas! - Bom dia, estamos procurando o Edvaldo, marcamos uma entrevista com ele as 10h30. (Estávamos adiantadas ao horário antes combinado) - É ele mesmo, disse o guarda apontando para o homem de traje social, cabelos grisalhos e óculos bem grossos a poucos metros na nossa frente. – Seu Edvaldo, tem umas meninas aqui querendo falar com senhor, disse que marcaram uma entrevista. O homem imediatamente levantou o rosto e disse: Olá! Percebi sua imprecisão ao olhar, não nos olhava diretamente, a impressão é que havia algo entre nós. Ofereceu-nos a mão (na direção correta, como quem tem uma visão perfeita) e o cumprimentamos. Em sua outra mão, um pedaço de papel. - Primeiro preciso que completem esse formulário com algumas informações. (nome, faculdade,
endereço, email, essas coisas...). Uma de nós preencheu, rapidamente, enquanto a outra seguia com a conversa: - Edvaldo, viemos em busca de informações sobre o projeto da biblioteca e também sobre os deficientes visuais, o senhor pode nos ajudar? - Mas é claro! Encontraram a pessoa certa. Sou deficiente visual desde que eu nasci. Não sou completamente cego, enxergo alguns borrões, até mesmo vultos. Você, por exemplo, não vejo claramente as suas expressões. Mas, é possível notar que é uma doce menina. Percebo em sua voz. A conversa fluía enquanto minha amiga anotava alguns pontos da visita. Por um momento, parei de enxergar o que estava à minha frente, tentei somente imaginar, exatamente, como ele via e sentia as coisas, como ele estava, de fato, nos vendo. Instantes depois, meu pensamento foi interrompido. Um barulho agudo, algo batia fortemente no chão. Uma, duas, repetidas vezes. Com cabelos curtos, bem pretos, um jeans desbotado e uma bata vermelha sangue, uma doce senhora se aproximava. Em frações de segundo esqueci o que Edvaldo me dizia e apenas foquei toda minha atenção nela. Eu, que estava apenas anotando as informações enquanto Edvaldo falava, também tive a atenção completamente desviada. Caminhando, a senhora apalpava tudo o que estava a sua volta. Ela queria saber melhor aonde estava. Demonstrando cansaço, após um grande esforço, ela se sentou em uma cadeira bem a nossa frente. A gente se olhou como se fosse algo realmente estranho, o que na verdade era, a gente nunca tinha tido um contato tão de perto com uma pessoa portadora de deficiência visual. Percebendo o silêncio, Edvaldo fez questão de apresenta-la a nós. - Meninas, essa é a Gasparina, frequentadora constante da nossa biblioteca, está sempre aqui com a gente. Ela sorriu. - Bom dia, é um prazer conhece-las. Com um sorriso e um humor invejável, Gasparina se mostrou completamente a vontade com a nossa presença lá. Buscou nossas mãos e apertou suavemente. Após isso, se virou, buscou algo parecido como uma maquina de escrever, pegou o papel que já estava nela, buscou os pontos e leu em voz alta alguns números, deu um espaço e começou a digitar. Confesso que o barulho ardia os
ouvidos, era alto e contínuo, mas com o tempo fui me acostumando, Edvaldo aumentou sua voz para entendermos cada palavra que dizia enquanto eu anotava com destreza conforme minha amiga fazia as perguntas. Ele falava do histórico da biblioteca. O lugar recebeu o nome de Louis Braille recentemente, em 2008, até então era conhecida apenas como biblioteca braile. A grande idealizadora do projeto foi Lenyra Fraccarolli, cega desde a adolescência, que na época,1947, era diretora da Biblioteca Infantil, a atual Biblioteca Monteiro Lobato, na praça do Rotary. Diante disso, os livros naquela época era destinados apenas para crianças cegas, tornando-se, portanto, a primeira biblioteca brasileira com livros infantis em braile. - A ideia foi super bem aceita e as pessoas a procuravam muito, então, em busca de um lugar maior e com mais acessibilidade, ela foi transferida aqui para o Centro Cultural de São Paulo em 1986. A partir de então, foi possível expandir a diversidade de livros, inclusive para adultos, além de ferramentas como a lupa eletrônica e o scanner, que já vou mostrar pra vocês. Quando Edvaldo falou isso, percebi que estávamos cometendo mais um erro: o espaço não tinha somente livros, era um espaço que facilitava a vida rotineira de pessoas cegas e o porquê se percebeu logo. - Bom, agora que vocês sabem um pouco da história da nossa biblioteca, posso mostrar um pouco melhor as ferramentas e os livros que temos aqui e claro,
Recepção e atendentes da biblioteca
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Entrada da Biblioteca Braille, no Centro Cultural de São Paulo
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como nós, trabalhamos com essa nossa deficiência. Sem dúvida essa foi a parte em que mais nos surpreendemos. Primeiro, o computador. - Eu que tenho ainda um pouco de visão consegui me virar em um computador comum, é só eu me aproximar assim (ele olha por cima dos óculos e gruda os olhos na tela) que consigo enxergar, mas como vocês podem perceber não é confortável e nem saudável ficar assim. Para isso, temos um software no computador que fala todos os comandos que realizamos. Para demonstrar ele clica no menu iniciar e depois na ferramenta de textos, word. Uma voz sistêmica fala: menu iniciar, Microsoft word. Ele pergunta nossos nomes completos e começa a digitar e o computador automaticamente responde: “T-A-M-A-R-A ESPAÇO G-U-I-M-A-R-ÃES, TAMARA GUIMARÃES” - Tá vendo? Quando eu termino de escreve e aperto o “enter” ela fala a frase inteira para mim, assim tenho como perceber se houve algum erro de digitação. Edvaldo ainda contou que alguns sites já disponibilizam esse serviço, mas que outros ainda não disponibilizam essa acessibilidade. “É bem complicado
achar alguma página que tenha o serviço completo e que a gente consiga utilizar, as coisas estão poucas evoluídas ainda”. - Ah, esses computadores foi a IBM que nos deu através de uma parceria em um projeto. Até 2003, não tínhamos acesso a internet e nem esse software que lê as coisas pra gente – deu risada. Segundo: o scanner. - Esse aqui é bem legal! Garanto que vocês nunca viram um desses. Ele estava certo. Pareceu um scanner normal, mas não era. Ele “lia” qualquer coisa que colocasse nele. Ele demonstrou: - Deixa eu achar algum papel que a gente possa utilizar... Ele mexe em uma caixa cheia de papéis, pega alguns, os aproximava bem perto do rosto, até que... - Esse aqui! – Era um panfleto explicando um pouco da biblioteca. Ele mexeu com cuidado no aparelho, ligou a caixa de som do computador, ajeitou o papel e fechou. - Esse aparelho é bem caro, por isso só temos um só aqui na biblioteca, enquanto um scanner comum pode custar uns quatrocentos reais, esse aqui custa em média uns três mil reais – comentou. Esperamos uns dez segundos, até
que um programa abriu, uma espécie de editor de texto, com todo o texto do panfleto escrito nele. Ah, a espera era avisada, a mesma voz sistêmica avisava “Aguarde”. Ele ouviu com atenção o scanner, até que o aparelho silenciou. - Pronto, agora é só apertar a tecla espaço que podemos ouvir exatamente tudo o que está escrito. E foi exatamente o que aconteceu, ele apertou a tecla e a voz novamente começou a narrar a história da biblioteca que ele já tinha nos contado no início. - Muitas pessoas vêm aqui para ouvir o valor das contas, livros, revistas. Ele é muito utilizado. Enquanto ele foi buscar outro papel, demonstrando sua boa vontade e preocupação em dar todos os exemplos possíveis para entendermos exatamente como a ferramenta funcionava, comentamos uma para outra uma situação rotineira que ele falou e nunca tínhamos pensado. Como uma pessoa cega consegue pagar contas, saber o valor delas, já que muitas delas não têm auxílio de alguém? Edvaldo respondeu todas as nossas perguntas. - As contas podem ser ouvidas através do scanner, a maioria dos sites de bancos possui esse tipo de acessibilidade, aonde uma voz fala cada comando. Terceiro: a lupa eletrônica. - Essa aqui é para as pessoas que tem a visão bastante restrita, assim como eu, é só colocar qualquer texto embaixo dela que ela aumenta a escrita cerca de 200%. É uma beleza! - disse ele, sorrindo. E por fim, os livros. O propósito de nossa visita não seria completo se não contássemos um pouco dos objetos principais do local, os grandes cadernos espirais. Sim, eles não eram nada convencionais, nunca havíamos visto nada parecido. Enormes, sem tinta, e apenas com delicadas marcações em alto relevo, os livros que lotavam a prateleira chamavam toda atenção. Edvaldo, o simpático guia em nossas descobertas, não deixou de nos contar que os formatos tradicionais, medianos, com aproximadamente 150 páginas chegam a equivaler de três a quatro volumes de um livro em braile. Esse dado também foi uma grande surpresa. Obcecadas por entender o que acontecia no local, não nos cabíamos em perguntas. Elas fluíam como crianças em
sua primeira vez na escola. - Como funcionaria o empréstimos dos livros? - As pessoas gostam mais de ouvir ou ler livros em braile? Em alguns minutos, Edvaldo, com o auxilio da cliente numero um do lugar Gasparina, sanaram nossas duvidas. Cada livro disponível no local fica emprestado cerca de um mês, e automaticamente os volumes seguintes ficam restritos a empréstimo, para não correr o risco de desencontros em suas edições, até mesmo que algum leitor perca o final da história. Continuou a explicação. - Veja só, temos braile de tipos de diferentes, uns possuem mais relevo que os outros, isso vem da qualidade da máquina escrita. A máquina utilizada para escrever em braile é aquela que citamos no início do texto que Gasparina usava com uma habilidade acima do que esperávamos. - Temos livros também que possuem relevo nas figuras, eu não consigo interpretar muito bem não, às vezes não dá para imaginar a figura com apenas esses pontos, mas é interessante. Edvaldo chega em um dos livros mais interessantes que achamos. - Esse aqui foi escrito por voluntários, como você pode ver, possui a frase escrita normal e embaixo escrita em braile, isso é para as mães que possuem filhos com deficiência visual, se a criança não entende alguma palavra, a mãe pode falar qual palavra é e, assim, ensinar a criança. A biblioteca possui prateleiras
Máquina utilizada para a digitação em braille
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“Nós temos livros modernos como Harry Potter, 50 tons de cinza e crepuscúlo” com livros didáticos, acadêmicos, de entretenimento e outros assuntos. - Nós temos Harry Potter, 50 tons de cinza... Geralmente os livros mais modernos demoram para chegar aqui, porque leva um bom tempo para ser escrito em braile. Mesmo com certa dificuldade préestabelecida, os leitores especiais de São Paulo não ficam por fora de todas as novidades do mercado. Quando falta coragem, até mesmo tempo para sentar e praticar a leitura apenas com os toques, que é o que leva o longo tempo investido em grandes exemplares, a versão do livro em CD é bem aceita pelo público. A facilidade se torna evidente quando um doce voz, seja ela masculina ou feminina, declara cada estrofe ou capitulo do livro. - Tanto os livros em áudio como em braile são bem procurados. Eu prefiro os livros em braile mesmo, ficar ouvindo eu acabo caindo no sono, não acho muito dinâmico – gargalhou. Até mesmo os celulares mais modernos comportam aplicativos em que os livros são lidos e vozes dão todos os comandos para facilitar o acesso. Uma grande amiga de Gasparina já usou o serviço, pelo menos assim ela nos conta. Para a amiga é muito fácil se comunicar via SMS, ou e-mail, com apenas toques na tela de seu smartphone. Ela também afirma que não adquiriu habilidade para utilizar os aparelhos, mas com a ajuda de colegas com a mesma deficiência, prometem se esforçar e engrenar de vez no mundo digital.
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Enquanto minha amiga segue seu assunto com Gasparina, Edvaldo também me fala que, pelo que tem visto, nada alegra mais um deficiente visual, freqüentador da biblioteca, que os novos livros. Eles servem tanto para o dia a dia, mas, principalmente, para embalar e emocionar os finais de semana sem muita emoção e distração. Enquanto nos deliciávamos com as historias da dupla, um jovem rapaz entra no local a fim de locar um livro. - Boa tarde, meu nome é Rafael, como é a minha primeira vez na biblioteca, por mais que tenha sido fácil chegar aqui, não sei onde pegar o livro que a minha amiga Fernanda me indicou. Ela me garantiu que vocês tinham todos os volumes dele por aqui. De forma delicada, Edvaldo interrompe sua explicação a nós e se volta ao trabalho. Afinal, atender os leitores era o motivo principal de sua presença ali. - Boa tarde, jovem. Imagino eu que tenha uns 25 anos pela sua voz. - Ainda nos 23, responde Rafael. - Qual é o tão procurado livro pelo rapaz? - Bom, desde muito novo adorei ouvir os desenhos da Disney. Mesmo que não saiba, na verdade, como são as formas dos animais apresentados, minha mãe sempre me contou a história do Rei Leão. - Ah, o Rei Leão. Um dos campeões de locação aqui na Louis Braille. - Pois é, minha amiga me contou em detalhes. Ela chegou a dizer que vocês tem tanto a versão infantil, em alto relevo com pelúcia. Quanto a mais requintada, voltada mais para o publico adulto. - Vou fazer sua ficha. Rafael aguardou alguns minutos. Em sua breve visita pôde deslumbrar das impressoras, dos programas de computadores, teclados, scanners, jogos, voltados a pessoas diferenciadas, porém especiais, como ele. Com os exemplares, infantil e adulto, debaixo do braço, Rafael caminhou até a porta com a ajuda de sua ‘varinha’ e do lado de fora amigos o aguardavam. Ele prometera voltar em menos de duas semanas. Assim como nós e Rafael, muitos outros passaram por lá naquele sábado. De exemplar em exemplar as prateleiras foram se esvaziando. Todos que chegavam tinham grandes histórias, lindas histórias de vida. Além de uma lição superação naquela tarde, saímos com a certeza de que a cultura é livre, está aberta para todos aqueles que se interessam por ela.
João Pedro Santos, o português humorista, conta um pouco sobre a sua estadia no Brasil que completou um ano agora em 2013
Por Maria Luíza Barbosa
Estrangeiro, carismático, humorista, ator e português. João Pedro Santos, de 33 anos, nascido em Caldas da Rainha, vem trocando experiências profissionais com as terras brasileiras há cerca de três anos. E não há como negar que qualquer brasileiro que vê um português começa com as piadinhas, brincadeiras e apelidos né? “As pessoas fazem isso sempre com muito carinho. Percebo que elas têm curiosidade de saber mais sobre o meu país”, diz João. Em Portugal, João Pedro – conhecido também como João Patrício (patrício, forma como os portugueses aqui no Brasil se referem uns aos outros) começou a frequentar aulas de teatro quando estava na faculdade, cursando Biologia. No final da graduação, se deparou com duas possibilidades: escolher entre um estágio na área que havia se formado ou aceitar o convite de uma companhia de teatro. “Não tive dúvidas em seguir a carreira artística”, conta João realizado. Em 2009, João com seu jeito arismático chamou atenção da produção CQC e foi convidado para ser repórter do programa de Portugal, mas durou apenas uma temporada e ele explica o porque: “A versão oficial é que a emissora não tinha verba para produzir a próxima temporada. Achei estranho, pois, quando me convidaram, disseram-me que estavam previstas pelo menos três temporadas. O programa também alcançava excelentes índices de audiência. O fato é que, em 2009, era ano de eleição e nós estávamos batendo forte nos políticos. Falávamos dos bancos que estavam falindo, dos desvios de verbas. Acredito que houve uma pressão para o programa sair do ar. O povo nos apoiava nas ruas, dizia que estávamos certos em questionar. Em Portugal há o problema
da impunidade. Os políticos têm a sensação de que podem fazer tudo que quiserem que jamais serão punidos. Acho que o povo português deveria participar mais, exigir punições”, opina Patricio. Tudo começou quando em 2010, João Pedro ainda trabalhava na emissora de televisão TVI na parte criativa e foi convidado a ser apresentador de um programa de viagens, na qual mostrava o nordeste brasileiro para portugueses e espanhóis. Veio ao Brasil para gravar esse programa para a emissora espanhola e portuguesa TVI, e afirmou que “nunca fui tão bem recebido como fui no Nordeste e aqui em São Paulo”. Ao realizar esse trabalho, viu o potencial que o Brasil tinha profissionalmente e como em Portugal está tudo quebrado e não tem patrocínio para nada apenas para novelas e realitys shows, produtos que dão retorno rápido, João Patrício tomou coragem de mudar e buscou aquilo que o realizasse. “É uns dos caminhos para uma vida mais preenchida e feliz”, explica o humorista. No Brasil, João vê um mercado maior, acredita que o país é a bola da vez, com a Copa do Mundo e a Olimpíada. Escolhe o Brasil como sua segunda casa, também por ter gostado muito das pessoas que aqui o rodearam, das possibilidades que lhe foram postas, além do país por si só que o encantou. “A afinidade cultural com Portugal, a língua, os costumes e essencialmente as pessoas, me incentivaram a tomar minha decisão”, fala João sobre sua escolha de vir para o Brasil. Após grandes reflexões, o português que por muitos anos trabalhou como humorista e ator em novelas, filmes e o programa de humor CQC, mas “comecei a escrever e a trabalhar como roteirista
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João Pedro em uma de suas apresentações do espetáculo “Dieta a Portuguesa”, em São Paulo.
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de humor e não só”, lembra o lusitano que resolve vir ao Brasil por um período mais demorado já em 2012. “Desta vez vim apenas com três shows marcados”, comenta João, que garante que tudo aconteceu muito rápido e logo os trabalhos foram aparecendo para ele aqui na cidade da garoa. Com sorte, João viria ao Brasil realizar seus três shows marcados e voltaria a sua terra de origem. Desencanado e dedicado, o portuga “deixou rolar” e então após o sucesso de suas apresentações, apareceram outros trabalhos que acarretaram no prolongamento de sua estadia até hoje. “Foi rápido demais, mas muito gratificante. E ainda está a ser”, afirma o lusitano que reside atualmente próximo a Avenida Paulista. Os trabalhos foram aparecendo e hoje, “O Patrício” ex-CQC de Portugal, tem um currículo brasileiro com grandes experiências profissionais em apenas um ano aqui. João Pedro Santos tem seu show solo de Stand-up Comedy chamado “Do Brasil a Portugal”, o show “Dieta à Portuguesa” com o parceiro, também humorista, Marcelo di Morais, participações malucas no programa “Mulheres” na Tv Gazeta e na webtv TV Geração Z, além de escrever roteiros para televisão e trabalhar ocasionalmente como
“Um humorista intervém na sociedade sempre com ironia”. diretor de vídeos na Red Bull. No início deste mês, João Pedro voltou as terras das olivas para festejar com a família e editar seu novo romance no início de 2014. O Patrício escreveu um roteiro para cinema, um longa que vai começar a ser filmado em janeiro. Quando questiono sobre sua estadia definitiva ou temporária no Brasil, ele rebate dizendo que “Nada é definitivo na vida, só a morte em si”. Ao falar das diferenças entre Brasil e Portugal, João esbanja felicidade e um brilho nos olhos incrivel constatando que “As pessoas em São Paulo são muito generosas nos sentimentos, são afáveis e sabem te acolher muito bem. É bom. Por outro lado vive-se muito para um consumismo exacerbado, há uma vontade muito grande de mostrar sinais de riqueza e isso acarreta uma futilidade e ligeireza de pensamentos que a mim não me agrada”. Em sua posição de humorista o Patrício acredita que “ o humor é ilimitado”. Não acha que existam assuntos tabus, João escreve seus textos de acordo com o que passa no seu dia a dia, onde há assuntos que aparecem mais em suas apresentações pois estão mais inseridas no seu universo. “Um humorista intervém na sociedade sempre com ironia, dá uma visão mais leve para os assuntos. Dessa forma, ele faz com que as pessoas entendam determinadas situações. Quando a pessoa está disposta para rir, ela está mais disposta para entender. É nisso que acredito”, finaliza o humorista. Para 2014, João Pedro Santos pretende continuar fazendo seus shows de humor, investir na pré-produção e roteiro do seu longa e talvez escrever uma série para o Discovery Channel.
A arquitetura com toques de Art Noveau e seus lindos vitrais são uma característica marcante e de uma beleza única. O Mercadão representa o que São Paulo tem de melhor a oferecer. É um dos símbolos comerciais, gastronômicos e sociais mais marcantes da cidade de São Paulo.
Melina Mazzaferro Alessandra Nascimento
A arquitetura com toques de Art Noveau e seus lindos vitrais são uma característica marcante e de uma beleza única. Rende excelentes fotos, além de conferir uma luminosidade para o ambiente. O prédio, em sua estrutura, lembra muito aqueles palacetes com esculturas de aparência selvagem, com leões com bocas enormes abertas. Acho que é bem assim que nos sentimos ao viver uma experiência gastronômica neste lugar: os leões enfurecidos nesse caos, conseguem arranjar algum tempo de sua rotina para se deliciar com sua diversidade de alimentos, seja ela um pão francês com mortadela, um Beirute, uma refeição afrodisíaca ou tão somente aquele pastel de feira enorme. Ao adentrar este universo, acentuam-se vários aromas e sensações. O ponto alto da decoração são os 55 vitrais em estilo gótico, executados com vidros coloridos vindos da Alemanha, retratando cenas do campo - a lida com o gado, o plantio e a colheita do café – base das atividades econômicas do Estado no período. As peças são de autoria de Conrado Sorgenicht Filho, o grande nome da arte em vitral de São Paulo. De uma família de
mestres vitralistas alemães de apurada técnica, que, com Conrado Sorgenicht pai, chegou à São Paulo em 1888 e fundou a Conrado Vitrais e Cristais. Ele também foi o autor dos vitrais da Estação Sorocabana e de vários outros edifícios importantes, como o Teatro Municipal, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a Catedral da Sé e mais de 300 outras igrejas brasileiras. A confecção dos vitrais do Mercado demandaram à Conrado cinco anos de trabalho árduo. No final dos anos 80, Conrado Sorgenicht Neto se encarregou da restauração dos vitrais que seu pai havia criado sessenta anos antes. Belo presente aos nossos olhos sedentos por algum resquício de arte, até mesmo no concreto mais cinzento da cidade da garoa. Ao longo de mais de sete décadas de existência, o Mercadão da Cantareira, conhecido carinhosamente pelos paulistanos como Mercado Municipal ou Mercadão, vem mantendo o seu charme, tradição e a qualidade de seus inúmeros produtos, vendidos tanto no atacado quanto no varejo, sendo aclamado por uma fiel e variada clientela, que inclui donas de casa, gourmets exigentes, proprietários e chefs de restaurantes
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Maddison Mccoy e Greg Alexander, gringos interagindo com vendedor e experimentando frutas no mercadão.
famosos, além de ser visto como templo de especiarias e produtos gastronômicos em geral. As barracas ficam organizadas em seções e as grandes atrações são os deliciosos lanches preparados à vista do cliente, incluindo o “famoso” sanduíche de mortadela - espetáculo à parte. Outros clientes são atraídos principalmente pelas especiarias, como pimentas diversas e queijos de várias partes do estado e do país. Felipe Szuster diz: “Vou de sábado com meus pais só pra comer essa delícia e coisa única que é o sanduiche de mortadela do mercadão! É algo único e é demais! A quantidade é única e o local é simplesmente demais!”. O Mercado Municipal também é destino semanal para proprietários de lanchonetes e restaurantes, que
“ O Mercadão representa o que São Paulo tem de melhor a oferecer” 56 | Narrativa
encontram nas mercadorias vendidas, produtos novos para incrementar em suas próximas vendas e o que pode proporcionar a de novos pratos - “O mercadão é fundamental para a nossa venda, ele é um mercado garantido, em que podemos comprar e vender nossos produtos!” Diz Murilo Diniz dono de uma das barracas do mercadão. Este palácio dos sabores representa o que São Paulo tem de melhor a oferecer: boas compras, comida de primeira e muita gente simpática, prestativa e de todos os lugares do Brasil. Conseguese sentir o ‘jeitinho brasileiro’ de falar, de se relacionar; Laura Vincenzzo, frequentadora do local – “Com absoluta certeza é um dos meus lugares preferidos na cidade de São Paulo! Sempre trago meus amigos grigos quando estão no Brasil! É uma experiência que acho que eles não encontrarão em nenhum outro local”. Esta atmosfera acolhedora e simpática é uma das singularidades que atraem todo tipo de público. A simpatia está presente em cada banca, em cada comércio. A característica “latina”, de conversar, ser próximo, é algo bem marcante no mercadão – Laura diz que “os vendedores nos tratam com intimidade, fazem piadas, nos fazem dar risadas, é muito divertido. É uma experiência mais que única! É pra se levar para a vida toda!”. Encravado na região central da cidade, ao lado da rua mais doida da capital -a Rua 25 de Março- o mercado parece, num primeiro momento, um Oasis daquele caos da sua vizinhança: uma estrutura grande, arejada, com vitrais belíssimos e aromas que chamam e encantam qualquer visitante que passa nos seus arredores. Os gringos são um alvo interessante de se observar; a animação e felicidade deles ao serem bem atendidos, ao terem contato com tantas coisas novas e diferentes e de uma forma tão dinâmica e interativa, é incrível. Greg Alexander e Maddison Mccoy, canadenses, em sua visita ao Brasil, compartilharam sua experiência e disseram que acharam muito engraçado a forma que os vendedores vendem as frutas, que é muito legal poder provar tudo antes! Além de que os vendedores fazem o
maior esforço para se comunicar com eles, fazem piadas, dão risadas, um tratamento informal que eles não estão acostumados quando saem para fazer compras. Ela diz -“Eu nunca mais irei viverei algo assim. Um lugar em que as pessoas interajam desta forma, com que possamos experimentar todas estas frutas, e todos os vendedores serem tão simpáticos conosco! É algo que se vive uma vez na vida!“ Entre os petiscos prediletos estão os bolinhos de bacalhau, pastel de bacalhau e os chopps gelados. Alexandre Magno, um pai de família, 42 anos, vai lá todos os domingos e gosta muito do pastel e do lanche de bacalhau, além de comer frutas, castanhas e alguma coisa diferente. Neste dia, trouxe seu pai, de 68 anos, para ter o prazer de viver esta experiência única. O senhor de cabelos brancos estava com um sorriso no rosto, se deliciando com um pastel nas mãos. Fica claro a atmosfera de agrado, de aconchego, de pertencimento que o paulistano tem com este local. O barulho não incomoda; é reconfortante, pois é de risadas, de conversas, de calmaria. Ao contrário do stress e da correria do dia a dia, percebe-se que por mais que tenham inúmeras pessoas naquele espaço, os sons são suaves e agradáveis, as conversas são descontraídas e divertidas e não apenas com fins comerciais. Basta olhar em volta, os olhares curiosos, “o que é isto”, “o que é aquilo”, os vendedores na maior boa vontade distribuem pedaços de frutas nas mãos dos clientes para que eles experimentem os produtos, além de, é claro, explicar a origem e propriedades destes. Um comerciante chamado Ricardo Gariba, têm 44 anos e é dono de uma barraca de produtos importados, também diz que o diferencial do mercadão é exatamente esta interação entre os clientes e os vendedores, algo que no supermercado, por exemplo, não existe, você só pega as compras e põe no carrinho, paga e vai embora; já lá, os vendedores explicam a origem do produto, conversam, interagem etc. É um atendimento personalizado. O passeio por suas alamedas é um pouco instrutivo: cada barraca, com seus diferentes produtos, cores, cheiros e a possibilidade de experimentar um pouco de cada coisa, leva o visitante a fazer diferentes percursos e ter diferentes
experiências (mais oriental, na rua dos temperos, mais italiana nos embutidos…). Mas, se tem um lugar onde todo mundo se aglomera é nas barracas de comidinhas e na “praça de alimentação” do mercado. Há quem prefira os “boxes” no térreo, mas o charme é subir direto para o mezanino, de onde se tem uma vista de todo o mercado. Nos fins de semana as mesas são disputadas! Formam-se filas para conseguir se sentar! Cícero Caldeira é um frequentador fiel dos bares –“A atmosfera do mercadão é algo diferente de todos os lugares que já fui na cidade de São Paulo. Não
“esta experiência com vendedores é única! ”
Ricardo proprietário de uma barraca, que passou de pai para filho: ele possue a barraca desde 1973. Vende produtos importados.
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Entrada do Mercadão, na Rua da Cantareira, Sé. A arquitetura com toques de Art Noveau e vitrais vistos de fora.
existe igual.” Realmente as mesas são posicionadas, umas ao lado das outras, deixando o ambiente mais intimista, mais próximo ‘do povo’; não existe separação ou “melhor lugar”. Para quem prefira, também existem os balcões, que permitem enxergar e conhecer a preparação dos lanches diversos, etc. Talvez seja esse um dos segredos e charmes do centro de São Paulo. Não dá para dizer que você conhece esta metrópole sem ter experimentado uma dessas comidinhas do Mercadão! É a marca registrada da nossa cidade, que além de mostrar a nossa diversidade cultural, é um pedacinho da nossa diversidade gastronômica. Esta mistura de culturas como a italiana, portuguesa, espanhola abrasileirada- pode ser um dos segredos deste local cheio de tradições, que carrega anos de história da cidade, como por exemplo, a barraca de Ricardo, que
Tenda de alimentos vista do piso superior do mercado. Vendedores interagindo com clientes vendendo produtos como queijos e frutas secas. passou de pai para filho, negócio da família desde 1973. Esta é a magia por trás de tudo: a experiência que se tem ao se deparar com tantas diferentes frutas, castanhas e diferentes expectativas do povo. São Paulo é a maior metrópole do país e possui produtos de qualidade e de seleção. A mistura sócio-cultural aqui presente, resulta em um comércio diferenciado. Assim sendo, este local um dos ícones da cidade é um dos símbolos comerciais, gastronômicos e sociais mais marcantes, tanto pela sua localização no coração da cidade, como pela sua relevância em termos de vendas; como também, devido à sua popularidade e à multiplicidade de pessoas que ali frequentam e vivenciam as experiências incríveis e únicas do Mercadão.
“é diversidade gastronômica e cultural” 58 | Narrativa
No meio do conflito político que assombra o Egito há anos, encontra-se um bairro de nome conhecido: Heliópolis, o irmão rico da favela paulistana Felipe Germano e Rafael Teixeira
Um toque de telefone tradicional, que poderia ser ouvido facilmente de um dos quartos vizinhos, ecoa. Porém nenhum telefone está no recinto, e o som sai de um notebook, na tela, o programa de videoconferência skype deixa seu logo impresso sobre os pixels, onde em alguns instantes aparece Muhamed Medhat, um egípcio, que vive no Cairo, mais especificamente em um distrito que tem um nome estranhamente popular mesmo em terras tupiniquins. Nada de Hieróglifos, ou consoantes juntas que dão a impressão de que o a palavra soará impronunciável. O nome do lugar onde ele mora tem de origem grega, apesar de muitos esquecerem isso, e tem uma terceira silaba que estoura na boca com um tiro. He-li- Ó- pó- lis. A “cidade do sol”, leria Aristóteles, Sócrates, - e por que não? – Zeus. Apesar do relógio no canto da tela apontar que eram nove e trinta e dois da noite, do outro lado da linha telefônica submarina, que conectava o Brasil com Muhamed, o relógio preto que em formato de gota parecia escorrer pela parede branca, marcava duas e 33 manhã, cinco horas de fuso horário e um minuto de desregulagem no relógio viravam dois segundos de delay, que foi esquecido após um “Hello?” carregado com forte sotaque. Com um óculos que refletia a tela, e um cabelo desarrumado, afinal eram duas horas da manhã, Muhammed, que é fotógrafo no Cairo perguntava. -Can you hear me ? -Yeah, Yeah. O sotaque era tão integrante em cada palavra que a resposta demorou para sair. Muhamed é fotografo, e com seu olhar específico destaca principalmente a arquitetura da cidade do sol egípcia, quando perguntado sobre como é lá. “Tem muitos prédios grandes, uma arquitetura característica”. Disse com o rosto bem próximo a câmera, já que o som estava falhando. E completou “É um estilo islâmico, e art-decot, porque é uma região considerada aristocrata. As
palavras imediatamente vão soando como uma antítese em relação à Heliópolis paulistana. O silêncio das ruas, enquanto Muhammed fala, acabava criando um paradoxo com os esperados sons de manifestantes, gritos e até tiros, gerados por expectativa baseada nos relatos que mostram desde julho frequentes manifestações no Egito, especificamente naquela região, onde fica o palácio presidencial, o Ethadia Palace, que até poucas semanas atrás era residência de Morsi, o primeiro presidente democraticamente eleito na história milenar do país. Questionado sobre a ausência de todos os sons, o egípcio de 20 anos responde com um sorriso no canto do rosto “Aqui é bem calmo”, “Mas algumas manifestações ocorreram aqui para tirar o Morsi, algumas agências de notícia disseram que dois milhões de pessoas se reuniram em frente ao palácio”, e ao dizer isso, uma imagem apareceu na tela, atravessando desertos, mares e montanhas, os milhões de pixels do computador se combinaram para formar os também milhões de pessoas, vistas de cima, reunidas pela queda de Morsi, especificamente em 30 de junho, quatro dias antes do presidente se transformar em prisioneiro. Logo em seguida, outra foto, dessa vez do lugar vazio, tirada do chão -Cara, que fotos lindas -Obrigado! -Você que tirou? - A segunda sim, a primeira foi de um helicóptero. Nem se quisesse ele poderia estar em helicóptero, ele estava lá no meio, participando da “Revolução de 30 de junho”, e como se não bastasse a informação foi completada com, “Dormi três dias em frente do palácio”. Entre a multidão era possível escutar a música, tocada ali mesmo, e sempre acompanhada por uma cantoria que entoava entre os acordes sobre a revolução, estavam escrevendo história do país figurativa e literalmente, os nomes de mártires eram grafados nas paredes, assim como seus
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antepassados faziam com os hieróglifos. Antes de chegar ao palácio presidencial, Muhamed enfrentou a irmandade muçulmana, que estampa até hoje as manchetes do mundo todo defendendo a volta de Morsi. “Usaram pedras para nos impedir, mas lutamos com todas nossas forças até chegarmos na área de Ethadia, e então montamos barracas, porque as mulheres precisavam descansar”. Microfones foram montados e palavras de ordem começaram a ser cantadas como “Saia, Morsi” e “O povo quer derrubar o regime”. É o “Vem Pra Rua Vem!” egípcio. Política no Egito nunca foi um assunto de fácil digestão. Sob a ditadura de Hosni Mubarak, que durou mais de 30 anos, a censura e a tortura eram práticas comuns e complementares entre si. Mas veio aí o século XXI, a globalização e a tecnologia da informação impulsionaram a Primavera Árabe, série de manifestações que deu visibilidade e libertou vários países do Oriente Médio e da África de negras ditaduras. O Egito, então, voltou ao noticiário internacional em grande estilo. As manifestações protagonizadas por sua população na Praça Tahir, marco da capital Cairo, inspiraram o mundo. Em fevereiro de 2012, finalmente, os militares, apoiados pela população, destronaram Mubarak e, após certo tempo, convocaram eleições democráticas (coisa que os mais jovens nunca haviam visto). Na última rodada, foi fácil para Mohamed Morsi vencer Ahmed Shafiq, já que esse último era associado ao governo de Mubarak. Morsi, no entanto, provou-se um líder tão cruel quanto seu antecessor. Sua religião imperava sobre suas ações, e conflitos ideológicos que culminavam em conflitos armados e atentados eram constantes.
“MORSI TIROU TERRORISTAS DA PRISÃO E OS TRANSFORMOU EM PESSOAS PODEROSAS” 60 | Narrativa
Novamente, o povo, apoiado por Al-Azhar, a mesquita onde fica o líder religioso mais cultuado do Egito, cansouse dos abusos e foi às ruas. Novamente, os militares, liderados pelo general Mahmoud El Seesy, intercederam. E é aí que o país se encontra hoje. Na contradição entre regime militar e esperança por democracia real. A crise é tão grande e tão longa que a discussão política já faz parte do cotidiano dos cidadãos: entrou no agendamento não só dos veículos de comunicação, mas das conversas informais no comércio local. Está, também, nas escolas e entre os jovens. Quem deixou isso claro foi Ismail Taher, morador do Cairo que fez questão de explicar toda a história política do país, situando as datas e as reações populares. Ele declarou apoio ao regime militar em suas diversas aparições no governo egípcio e afirmou que Morsi e a Irmandade Muçulmana são terroristas que pertencem à cadeia. Seria apenas mais uma opinião. Seria, se Ismail não tivesse apenas 16 anos. O estudante de segundo ano de ensino médio, que ainda não sabe qual carreira quer seguir, conta que a população tem lampejos de esperança e felicidade quando os militares intervêm. “Primeiro, havia Mubarak, um ditador duro que todos odiavam, mas não ousavam fazer oposição. Morsi era fortemente ligado a uma religião, e trouxe toda a sua Irmandade para posições altas no governo, tirou terroristas da prisão e os transformou em pessoas poderosas. Quando um líder militar chamado Seesy apareceu no cenário e disse, em discurso público, que daria uma resposta positiva aos 30 milhões que haviam ido às ruas protestar, todo o país se alegrou”, afirma. Muhamed lembra-se bem desse episódio, quando, no terceiro dia, o exército agiu. “Ouvimos o pronunciamento do general pelo rádio. Quando ele acabou, começamos a festejar, soltamos fogos de artificio. Todos ficaram muitos felizes com o que aconteceu”, lembra. Sobre as manifestações que ocorrem depois que Morsi saiu, o egípcio usa a lógica. “Pra cada revolução, existe uma contrarrevolução”, afirma. Para ele, a Irmandade Muçulmana não entendeu ainda que Morsi não vai voltar, e que eles não representam o Islã. “Eles são uma fraude. Eu sou muçulmano e não acho que o verdadeiro islamismo é o deles. O Islã é inocente, essas pessoas só querem arruinar o país”. Em meados de agosto, apoiadores do de Morsi foram às ruas para clamar
pelo presidente deposto e atear fogo em prédios do governo. Em resposta, os militares se armaram pesadamente. Resultado: violência generalizada e mais de seiscentos mortos. Ismail dá o outro lado da história, afirmando que os manifestantes eram uma ameaça à segurança nacional. “Quando os militares foram reprimi-los, separaram as mulheres e crianças e mataram apenas homens armados. Foram os atiradores de elite da Irmandade que mataram os mais frágeis para culpar os militares”. Palco de toda essa história, Heliópolis é um distrito antigo, cheio de construções velhas e grandes palácios abandonados. É um bairro rico e muito populoso. A segurança dos arredores, portanto, é inquestionável e infalível. Nada como o irmão brasileiro, pobre e marginalizado, Heliópolis no Cairo é centro das atenções. Lá se localiza o palácio presidencial. É, portanto, palco de grande parte das manifestações e conflitos populares que ocorrem no Egito, embora seja distante da Praça Tahir. Segundo o engenheiro de manutenção no aeroporto internacional Hurghada, Mostafa Mahmoud, 27 anos, o bairro é um lugar perfeitamente seguro de se viver. “Os moradores são bem educados e saudáveis, e costuma ter carreiras brilhantes”, avalia. “Alguns são envolvidos politicamente, a maioria deles com o regime militar e contra a dominação religiosa. Eles também preferem o regime antigo à revolução”, conclui. Ismail concorda. “Acredito que algumas pessoas de Heliópolis vão para os conflitos, mas a violência só acontece mesmo nos arredores do palácio”. O que mais salta aos olhos tanto dos moradores quanto dos turistas, no entanto, é o aspecto do curioso. “Mubarak e seus filhos, assim como quase todos os políticos, moravam lá. As regiões do
bairro tem centenas de anos de idade, são muitas ruínas. Há, inclusive, um velho palácio abandonado de um barão que todos dizem ser assombrado”, conta. Sobre o futuro do país em regime militar, Ismail Taher diz não temer, e acredita que o caminho está correto. “Os aliados da Irmandade estão se vingando. matando soldados egípcios diariamente. O general Seesy declarou guerra ao terror e nosso exército está lutando em todos os dias”, afirma. “Vai haver uma eleição democrática em breve, mas precisamos consertar tudo primeiro. Turismo, economia, segurança. Então poderemos trazer uma boa pessoa, e não um traidor terrorista”, conclui, categoricamente. O mundo vê um lado da história, através do olhar direcional de duas ou três agências de notícias subordinadas a governos de intenções nebulosas. Qual regime é de fato ditatorial? O regime militar em que vive o Egito ou o regime de informações que os Estados Unidos aplicam? “É triste, a mídia americana e a europeia controlam as pessoas. Os Estados Unidos mentem, assim como mentiram sobre o Iraque e agora estão mentindo sobre a Síria. Eles querem que o meu país seja sempre um caos”, avalia Ismail. “Se você fizesse uma visita rápida ao Egito, veria toda a verdade”. E talvez essa seja a única solução. Heliópolis de Cairo não é um local turístico, não sai nos jornais, nem tampouco tem algum registro histórico oficial. O Egito ou mesmo o continente africano não têm uma agência de notícias grande, com proeminência e visibilidade mundial. Essas pequenas localidades precisam ser descobertas, e exploradas através do olhar de seus moradores de rosto e potencial escondidos pela estereotipação globalizada.
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Em uma mega cidade como São Paulo, não existe idade e nem lugar para aprender coisas novas, até mesmo andar de bicicleta Por Juliana Tavares
São Paulo é a cidade mais importante e populosa do Brasil, com mais de 19 milhões de habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), na qual circula diariamente 7 milhões de carros. Quase um carro para cada habitante. A cidade não foi preparada para receber e comportar toda essa população, e pior ainda, nem todo este volume de carro circulante. E por isso, que todos os dias São Paulo enfrenta um trânsito caótico nos horários de pico, que consiste quando a maioria da população está chegando ou saindo trabalho. A população paulistana cansada deste cenário complicado procura uma forma mais simples e rápida de se locomover na cidade. Para muitos, a bicicleta parece ser a solução perfeita para este problema. No meio desta cidade problemática, existe uma praça localizada na região central de São Paulo, no bairro de Higienópolis, entre as ruas Minas Gerais, Itápolis e avenidas Angélica e Paulista, a Praça Cordeiro de Farias, conhecida popularmente como Praça Vegana ou dos Arcos. A praça possui a escultura Arcos ou Caminhos, também chamada de Arco-Íris Metálico, de autoria da artista plástica Lilian Amaral e do arquiteto Jorge Bassani, composta de arcos coloridos que permitem a passagem dos
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visitantes entre os arcos. A escultura foi uma encomenda em comemoração ao centenário da Avenida Paulista, em 1991. Durante a semana, a praça é praticamente abandonada, e assim virando um ponto de encontro dos mendigos da região que buscam um lugar para dormir, mas no último domingo de cada mês, o cenário da região muda completamente. A Praça Vegana vira uma escola para as pessoas de todas as idades que querem aprender a andar de bicicleta, ou até mesmo instruir como usar a bicicleta como meio de transporte diário, organizada pelos voluntários da associação chama Bike Anjo. Para o último domingo do mês de setembro de 2013, fui convidada pelo voluntário da Bike Anjo Tonimar Dal Aba, 27 anos, para participar de uma EBA São Paulo (Escola de Bike Anjo) que ocorre na Praça Vegana. Direcionada a quem ainda não sabe andar de bicicleta, mas tem vontade de aprender, a oficina consiste em uma aula prática e atende jovens e adultos que nunca pedalaram antes. A EBA atende crianças e jovens a partir de 12 anos, para evitar acidentes com crianças pequenas. O último domingo de setembro amanheceu chovendo, com uma temperatura abaixo dos 15º. Logo pensei que a meu acompanhamento iria
ser cancelado por causa do mau tempo. Mas com o passar o tempo a temperatura foi aumentando e a chuva diminuindo. Eu tinha combinado de me encontrar com o Tonimar às 14h na Praça Vegana. Mesmo com a incerteza se realmente iria ter a oficina ou não, cheguei no horário combinada na praça. A praça estava completamente diferente com umas dez bicicletas enfileiradas no meio da praça, e com dois rapazes pendurado cartazes em todo o local. Os cartazes davam dicas de segurança para usar as bikes, a comunicação que os ciclistas devem usar no trânsito e os cuidados que devem ter com as bicicletas antes de sair de casa. Não sabia qual dos dois rapazes era o Tonimar, mas resolvi arriscar e me aproximei de um rapaz alto e forte, por volta de 1 metro e 80 centímetros, cabelos pretos curto, com a pele morena clara e os olhos castanhos escuros e bem grandes. Logo descobri que se tratava do próprio Tonimar. Ansiosa como sou, comecei a fazer diversas perguntas, ele apenas me respondeu que iria acabar de arrumar a praça antes que os alunos chegassem e já vinha conversar comigo. A princípio, na praça só tinha eu e os dois rapazes que estavam arrumando o local, mas aos poucos começou chegar os alunos. As aulas começam às 15h, mas sempre antes de começar os voluntários passam as instruções de segurança para os alunos. Os professores que ensinam a andar de bike são chamados de voluntários, porque eles não recebem nenhum pagamento por isso, e qualquer pessoa pode ser um voluntário. Em meio aos alunos, tinha uma senhora que me chamou atenção. Ela tinha cabelos brancos, pele clara, olhos castanhos e aparentava ter por volta dos 60 anos. Aproximei-me e perguntei se podia conversar com ela: - Por que você quer conversar comigo, minha filha? Perguntou à senhora que eu logo descobri que se chama Ivonete Silva, de 65 anos. A pessoa mais idosa daquele dia de EBA. Expliquei que era estudante de jornalismo, e estava fazendo uma matéria para uma revista da faculdade. - Onde você estuda, minha filha? - Estudo no Mackenzie. Respondi. - Sabia que eu também fui mackenzista? Fiz administração há muito tempo atrás. A faculdade é a melhor época da nossa vida! Contou-me a senhora. A dona Ivonete me contou que sempre teve muito medo de andar de bicicleta,
“Depois de mais de 55 anos sem subir em uma bicicleta, agora eu quero virar ciclista” pois quando ela era criança, por volta dos 7 anos de idade vou tentar andar de bike e levou uma queda e quebrou até o braço direito, e após isso nunca mais teve coragem de subir em uma bicicleta. E além do seu medo, com passar dos anos, o seu tempo livre foi diminuindo por causa das obrigações do trabalho, e de cuidar dos seus três filhos. Apesar do frio e do tempo fechado, logo já tinha para mais de vinte pessoas na praça esperando a sua vez de serem atendidas. As pessoas que serem participar da EBA precisam fazer uma inscrição no site da oficina, são abertas 30 vagas por domingo. Antes Cartaz produzido pelos Bike Anjos com orientação de segurança ao andar de bicicleta no trânsito
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Na foto abaixo: bicicletas são posicionadas para mais um domingo de aula
Na foto acima: voluntário passa as orientações iniciais para os alunos antes de começar mais um domingo de aula
não precisava fazer as inscrições, era apenas chegar ao local marcado, mas com o tempo o número de alunos foi aumentando e os voluntários não estavam conseguindo atender a todos. O EBA acontece em São Paulo, e mais oito cidades brasileiras. Chegou a vez da dona Ivonete subir depois de mais cinqüenta anos novamente em uma bicicleta. O instrutor dela foi o Tonimar que calmamente explicava como ela deveria segurar na bicicleta, onde deveria colocar os pés e qual a postura correta que ela deveria manter para conseguir se equilibrar em cima da bike. Depois de mais de cinco voltas com o instrutor apenas emburrando a dona Ivonete na bicicleta, ela começa a arriscar algumas peladas ainda que meio sem equilíbrio, mas com uma coragem surpreendente para uma senhora de 65 anos. Após duas horas, Ivonete já conseguia peladar sozinha, com um sorriso de ouvido a ouvido por ter conseguido perder o medo, e mostrar que não existe idade para aprender algo novo. -Agora vou treinar todos finais de semana. Comenta dona Ivonete. Quero virar uma ciclista. A senhora me impressionou com a sua vontade de viver intensamente, apesar da sua idade já avançada, e também com o seu preparo físico que aguentou mais de umas horas de aula em cima de uma bicicleta. O Tonimar além de ser instrutor na
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EBA, ele também ensina as pessoas a usarem a bicicleta como meio de transporte, orientando quais caminhos devem seguir e repassando as questões de segurança fundamentais para sair no transito de bicicleta. - O primeiro passo que eu faço junto com a pessoa que quer usar a bicicleta como meio de transporte é traçar junto com ela um percurso seguro, e que ela pretende percorrer todos os dias. Explica Tonimar. Depois realizo o percurso com ela, mais de uma vez se necessário, assim consigo ensinar questões de segurança e confiança. Toda semana, Tonimar tem um aluno novo para ensinar a usar a bicicleta como meio de transporte. E ele conta que com cada aluno carrega uma emoção e história nova, algumas até engraçadas. - Um dia eu estava percorrendo um trajeto novo com um aluno a noite, na região do SESC Belenzinho, quando de repente corre um bêbado em nossa direção e começa a nos abraçar. Foi a experiência mais engraçada e constrangedora desde que estou no Bike Anjo. A bicicleta, tanto para o Tonimar quanto para dona Ivonete, presenta uma transformação em suas vidas. Seja para vencer um trauma de criança, ou usar como uma alternativa ecológica e saudável de meio de transporte, ou até mesmo uma escolha de vida.
Impedido de ler pela burocracia das grandes bibliotecas, Robson Mendonça escreve sua própria história
Marcela Guido Thaís Covolato Victória Xavier
A rua José Bonifácio cruza discretamente as ruas Líbero Badaró, São Bento e Dr. Falcão Filho. Lá no último quarteirão, ao pé de uma ladeira íngreme e já bem perto do Vale do Anhangabaú, se localiza o lar-escritório de Robson Mendonça. O prédio passaria batido por nossos olhos se não estivéssemos atentas à numeração da rua, buscando pelo número trezentos e noventa e cinco. Encontramos e entramos. Logo à frente do portão, um cartaz com uma frase engraçadinha pedia para que não fumassem naquele recinto. Mais adiante, um corredor levava a uma única porta. Não encontramos algo que indicasse que estávamos no lugar correto, assim como não era visível uma campainha ou interfone. Paradas em frente à porta de tábuas de madeira, batemos palmas esperando uma resposta. Alguns apreensivos segundos depois, um garoto de vinte e poucos anos abriu a porta. “Vocês vieram falar com o Robson?” – Ele perguntou já nos dando passagem para que entrássemos no local. Um pouco receosas, entramos naquele recinto que lembra um pequeno acervo. Escuro, com um pé direito baixo e uma estrutura que nos passava a impressão de frágil, o imóvel era tomado por estantes de ferro que sustentavam uma grande quantidade de livros. O rapaz, ainda sem nome, que nos abriu a porta procurava nos deixar confortáveis, e logo foi pegando três cadeiras para que pudéssemos nos acomodar da melhor forma possível antes que começássemos a entrevistar o Robson. Com cabelos grisalhos, olhos claros, uma
feição cansada de quem já passou por muita coisa na vida, calças jeans velha, jaqueta de couro preta e chinelos contrastantes com um dia frio lá fora, Robson senta na sua cadeira e logo diz, com um resquício de sotaque gaúcho: “Olha, eu vou responder a todas as perguntas, mas estou procurando um negócio aqui que quero mostrar a vocês” - Então ele mexe em sua mesa coberta por papeis e um velho computador até encontrar uma caixa de veludo preta. Dentro encontra-se o Prêmio Milton Santos, que ele ganhou em 2013 da Câmara Municipal de São Paulo pelo Movimento Estadual de População em Situação de Rua de São Paulo, movimento idealizado e encabeçado por ele. Ele entrega a caixa em nossas mãos orgulhoso por seu trabalho. Só quando a devolvemos a ele, é que ele começa a contar sobre os programas que ele coordena. Daquele lugar que ao mesmo tempo serve de casa, acervo e escritório, Robson cuida de quatro projetos: o “Pedal Social”, em que ele empresta bicicletas para aqueles que não têm como ir para o trabalho, nem por meio do transporte público; o “Recomeçando Nova Vida”, que busca inserir os jovens adolescentes da Fundação Casa de volta a sociedade, colocando-os para trabalhar com Robson, como voluntários e depois ele os encaminha para trabalhos remunerados; a “Bicicloteca” é itinerante e acoplada a uma bicicleta, em que Robson empresta livros aos moradores de rua; além do Escritório de Inclusão Social, em que ele ajuda pessoas em
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Momento de escolha dos livros.
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situação de rua a tirar documentos, indica albergues, encaminha-os para cursos profissionalizantes, como os da Fenatec, e para trabalhos remunerados. O engajamento de Robson com a causa da população em situação de rua tem uma explicação dificilmente simples: “eu estive morando na rua por seis anos, então eu sei a demanda que tem, sei a necessidade e toda a carência da rua”. O objetivo de Robson em seus projetos é “levar à sociedade que o morador de rua, o homem invisível, que só é visível quando está urinando ou defecando na frente da nossa casa”, não é culpado pela situação em que ele se encontra. Há um grande descaso do governo, que coloca cada vez mais pessoas nessa situação e deixa cada vez mais difícil para conseguir sair dela. Ele usa como exemplo para isso o fato de que não há banheiros públicos na cidade de São Paulo, nem para a população com comprovante de residência, nem para aqueles sem. E Robson conhece os dois lados da moeda. ‘Eu era agropecuarista, tinha 18 funcionários, uma esposa e dois filhos. Vim para São Paulo para dar uma educação melhor para eles e tentar fazer a vida na cidade ’-disse ele. ‘Cheguei a São Paulo e fui assaltado, os ladrões viram meu extrato bancário, e decidiram me sequestrar para falsificaram meus documentos, sacaram tudo o que eu tinha no banco e me deixaram na rua completamente sem dinheiro’, concluiu a fala com um olhar distante de quem ainda tem muito recente a memória. A expressão de todas logo na primeira frase que abre a historia da vida de
“o morador de rua, o homem invisível, que só é visível quando está urinando na frente da nossa casa, não é o culpado pela sua situação” Robson era nítida, um misto de surpresa com indignação. Até mesmo o menino de vinte e poucos anos, que algumas horas depois descobriríamos que se chamava Marcelo, aproximou sua cadeira e com olhos fixos prestava atenção em cada vírgula que pontuava aquela historia. ‘Quando falsificaram meus documentos, me aposentaram por invalidez, me vi sem família, sem dinheiro e jogado em um albergue. Eu tinha certeza que uma assistente social viria e me ajudaria, mas ela tem tanto trabalho e tantas historias para ouvir e tentar ajudar que eu era só mais um ali. Durante um ano morei naquele albergue e virei morador de rua, eu enlouqueci, imagine alguém que tinha tudo e da noite para o dia perder tudo’ Robson continua contando sua história e nos confessa o momento limite da sua vida como um morador de rua conformado para um morador de rua engajado e organizado. No momento em que ele passava em frente à loja Casas Bahia, que fica em frente ao Theatro Municipal, em um televisor em exposição, recebeu a notícia da morte de sua mulher
e seus dois filhos, com os quais não contatava há um ano. Sem conseguir dar um telefonema ou entrar na loja para ao menos receber mais informações, Robson se viu, na condição invisível de morador de rua, sem os direitos básicos de um cidadão e começou então a se mobilizar com outros companheiros pela integração, respeito e conscientização da condição de vida que se leva morando nas ruas. Para que as lutas não fossem em vão, Robson buscou na leitura mais conhecimento, porém se deparou com mais obstáculos. A burocracia das bibliotecas foi uma observação crítica que Robson percebeu na Biblioteca Mário de Andrade, quando ele ainda morador de rua não conseguia retirar livros e recebia olhares incomodados de pessoas que frequentavam o lugar. Conversamos mais um tanto sobre a predestinada vida de Robson e o relógio marca ‘dez prás nove’, o horário que a bicibloteca começa a circular pelas ruas e combinamos de acompanhá-lo por um dia. Ele começa a semana na Praça da Sé, próximo ao marco zero da cidade de São Paulo. Para ele é mais um dia de resistência na luta pela sua ex-condição, para nós talvez seja um momento raro de experiência. O projeto que começou com um sonho de Robson, é parceiro do Movimento Estadual da População em Situação de Rua que por meio Instituto Mobilidade Verde, uma ONG sem fins lucrativos, que é responsável por aumentar a expansão do projeto. Outros bairros, além do centro e outras cidades também têm suas biciclotecas, no geral são aproximadamente 23 triciclos com motor elétrico, freios a disco, diferencial traseiro, com um baú acoplado na parte traseira com capacidade para levar 300 livros. (colocar mais coisa sobre o projeto, os bairros que atinge e não é só para moradores de rua, mas também abrange pessoas em geral – falar da dificuldade do acesso aos espaços de leitura) São dez horas da manhã e nos aproximamos de Marcelo querendo ver o que ele escreve em seu caderno de capa preta. Ele num susto logo solta: “eu não sou muito conhecido no projeto, ainda sou novo nisso, mas não quero a fama por isso também”, como tivéssemos o olhado em busca de uma estrela para a matéria. Rimos e continuamos conversando. O caderno é uma forma de registro com o nome da pessoa e o lugar onde ela mora. Depois de uma hora ali na
Sé já são dez livros emprestados, e sua maioria por moradores de rua da região. Matheus Lima busca com os olhos alguém para que possa contar sobre o livro que está levando. “Eu gosto da história da cidade de São Paulo, mas leio só a noite, durante o dia eu bebo minha pinguinha”, e fica andando para frente e para trás como se estivesse ansioso ou ocioso. Conta que seu nome é bíblico e ri. Segue em direção ao Robson e afirma “eu tô sempre aqui, né’’. Robson confirma com a cabeça e um sorriso. Marcelo pede a Matheus que diga seu nome para registrar no livro e ele diz meio baixinho “Alessandro”, nos situando do nosso papel ali no seu lugar, onde as regras não somos nós quem faz. “Posso perguntar onde vocês fazem faculdade e quantos anos vocês têm?”, Matheus ou Alessandro ou os dois nos pergunta, mas seu nome na matéria não é o que importa. Os momentos que passamos em contato direto com os moradores de rua deixa claro que eles estão em busca de uma história melhor que a deles, e isso felizmente nos desconforta.
Robson e a Bicicloteca na Praça da Sé
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Artistas buscam intervir na selva de pedras, tentando criar suas histórias e mudar a dos outros.
Caroline Trevisan Fernanda Stenzel
A cidade de São Paulo já não é mais tão preta e branca assim. O cinza dos muros dessa grande metrópole deram espaço a arte. As calçadas transformam-se em palcos e os muros, em telas. Rostos ocultos enfeitam a nossa selva de pedras, tentam espalhar sentimentos e reivindicar de uma forma que faz o outro parar, pensar. A identidade desse rosto desconhecido não se dá pelo nome, mas pela arte que faz, pelo seu trabalho diferente, que deixa o egocentrismo e se volta para um terceiro indefinido. Hoje, no tempo que voa e passa sem que se perceba, parar não é algo tão comum e, para que isso aconteça, a regra é simples: chamar atenção. Intervir de alguma maneira na rotina alheia para que ele se veja, repense, perceba as pequenas coisas que passam na correria das grandes cidades. Em sociedades onde a correria é peça fundamental no cotidiano, artistas expõem suas emoções através de artes diferentes, que se misturam com a paisagem metropolitana, mas que ainda assim se destacam da mesmice, do fluxo intenso de pessoas, coisas, cores e imagens. Algumas obras demoram mais tempo a serem percebidas, mas logo que o primeiro individuo pega seu aparelho celular para tirar uma foto, ou assim que alguém compartilha as imagens em suas redes sociais, vira foco.
Esse tipo de manifestação artística tem como objetivo questionar e alterar a forma de se ver a vida que se leva hoje na sociedade moderna. Justamente por vivermos sempre correndo, apressados, os artistas propõem uma pausa na insanidade da vida, do dia a dia e um olhar diferenciado sobre vários pontos de vista. Pinturas, adesivos e lambe-lambes são algumas das ferramentas usadas para extravasar, compartilhar sensações, ideologias e pensamentos. Olhe, isso é SP! Ainda existe beleza aqui! Voltar os olhos para a sua cidade é uma das ideias de Leticia Matos. Passar o aconchego e o carinho da casa da vovó nas calçadas. As linhas de lã ganham forma, desenham-se em meio ao concreto e vestem objetos urbanos. Os seus 13 pompons dão vida e fazem de pontos comuns, chamarizes na cidade. As agulhas dela tecem tramas que serão deixadas ao vento sem saber por quanto tempo irão durar, quem por elas irá passar e no que lhes mudará. “Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita a cobrança após o sinal...piiiiiiii” era a milésima vez que tentávamos contato em seu celular e continuando a saga, era em vão. Seguimos para a tecnologia que fez com que lêssemos aquilo que queríamos ter escutado no primeiro telefonema – não
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respondido. “oi, Caroline! tudo bem? posso responder sim pode me enviar as perguntas para leti. matos@gmail.com bjsss leti” Na foto, apenas o logo do seu projeto. Pesquisando, vimos que seus cabelos são tricolores: loiro, ruivo acastanhado e preto, o corpo tatuado e um sorriso estampando o amor pelo trabalho. Por email, ela se definiu como uma mulher de 37 anos que sempre quis estudar artes plásticas mas formou-se em engenharia, apesar de nunca ter trabalhado na área.
Frase no tapume da Avenida Paulista, o livro incompleto e aberto para a colaboração de pensamentos e intervenções
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“PARE, LEIA E IDENTIFIQUE-SE. (...)QUALQUER SEMELHANÇA? NÃO, NÃO É MERA COINCIDÊNCIA”
Faz o que gosta e acredita ser, além de dizer ser mais do que persistente, talvez teimosa. O seu trabalho ganhou o exterior, saiu do Brasil e pôde ser visto até em Nova York, na semana de design. O que era um hobbie, um talento talvez comum, deixou as terras tupiniquins, nos representando, para pisar em solo americano e argentino. Dentro das nossas fronteiras o seu trabalho mais marcante, talvez até divertido, foi o pompom gigante em Belo Horizonte. Além das artes que passam de geração em geração, as intervenções vêm com casos que chama a atenção, com revoltas pessoais que passam de boca em boca e ganham foco de uma cidade inteira, talvez mais do que isso, despertam um sentimento escondido e acoado por imposições. Sem precisar usar uma palavra, Daniel Scandurra alertava: ei, prefeitura, acho que você esqueceu de concertar isso daqui! Adesivos simples, em formato de cubo, estampavam os relógios que já deixaram de marcar o horário e que mostravam a temperatura local...do ano passado. O menino por trás de toda essa arte mostrou-se interessado em falar mas, na sua primeira oportunidade, nos deixou esperando e emudeceu. Nenhuma palavra saiu e a impressão de quem era ficou apenas no imaginário, vinculado ao que se via pela cidade. Estampada em um tapume, “a vida passa. apressada, sem graça. nas ruas, calçadas, nas praças. ninguém conhece ninguém. levam um pouco dos que vão. deixam algo nos que vêm”, na Avenida Paulista. Ao redor, ternos ambulantes que não olhem para os lados. Caminham no ritmo dos ponteiros do relógio. Prédios, carros e pessoas misturam-se e, sem que se perceba: um tapume. Nada de concreto. É de madeira. Um livro com frases soltas, ainda incompleto, com espaço para que você deixe a sua marca. Pare, leia e identifique-se com as cenas descritas, as rotinas expostas. Qualquer semelhança? Não, não é mera coincidência. Como a maioria das pessoas, nunca havíamos reparado aquele painel enorme numa esquina qualquer da Avenida Paulista, com inúmeros pequenos recortes com microtextos. Mas em um dia em que o Sol brilhava forte no céu e em que andávamos mais atentamente pela
rua, notamos aquela imensidão que englobava pequenas histórias bonitas e perdemos mais de dez minutos ali. O mesmo aconteceu com Natália Duarte, uma jovem de seus vinte anos que não costumava reparar muito bem no que a cidade tinha de novo. Enquanto buscávamos uma pessoa interessante para conversar, passamos a reparar em diferentes personagens, e sendo a segunda vez que nos encontrávamos ali em frente ao painel, percebemos que devíamos achar alguém que estivesse ali pela primeira. Foi quando encontrei Natália, cabelos lisos, loiros e compridos. O sorriso permanecia no rosto enquanto ela seguia o olhar nos versos expostos bem perto dela. Nos aproximamos e começamos a conversar. Apesar de ser esse seu trajeto de todos os dias, sempre 12h30, lado direito da calçada, sentido Paraíso, voltando de exaustivas aulas do cursinho, apenas naquele momento ela se permitiu olhar para o lado e reparar (e adorar) o que havia descoberto. Seu celular continha mais de cinco fotos de roteiros diferentes, os seus preferidos. Mostramos os nossos, também mais ou menos umas cinco
umas cinco fotos cada com os nossos eleitos. “Mudou meu dia”, ela desabafou, enquanto guardava o celular no bolso. “Sabe como é, dia cansativo, tudo sempre igual, a mesma rotina, o mesmo caminho e hoje parece que surgiu aí do nada, só pra me lembrar que sempre pode ter algo diferente.”. Perguntamos o que ela sentia e ela respondeu “Alegria”. Engraçado, pois era assim que nos sentíamos também quando líamos esses roteiros flutuando
Famoso trocadilho de Dafne Sampaio que ganhou às ruas de São Paulo.
“QUERO ME DIVERTIR, ANDAR PELA CIDADE E CRIAR ESSES MOMENTOS(...)” Narrativa | 71
A primeira obra do artista Eduardo Srur, o “Acampamento dos Anjos” com as luzes acesas durante a noite.
pelo painel azul A nossa cidade, além de palco e tela, tem se transformado em livro. Disfarçados poetas ou, simplesmente, amantes dos versos e rimas decidem espalhar por ai seus trechos favoritos. Dafne Sampaio, um jornalista, vindo do Ceará para morar e estudar em São Paulo, com seus 37 anos resolveu compartilhar versos. Leminski e Roberto Carlos, sim o queridinho da roupa azul, foram suas inspirações e começaram a estampar muros e lixeiras da cidade. “Você praça acho graça, você prédio acho tédio” é frase presente no meio do caminho de muitos Paulistanos, para Sampaio, nada mais é do que uma reflexão carinhosa sobre a cidade, sobre a necessidade de se dar mais importância aos espaços públicos, os lugares onde as pessoas se encontram ou devem se encontrar, aos invés dos prédios. Não, como muitos poderiam achar, não é contra os prédios, mas obviamente é a favor das praças. “você não sabe, nem nunca procurou saber” é parte de uma das músicas do Rei. Apenas uma das tantas, grafadas
“INTERVENÇÕES TIRAM AS PESSOAS DA ANESTESIA DO COTIDIANO” 72 | Narrativa
com canetão por ai. Dafne Sampaio escolheu o cantor por acreditar que ele é um dos artistas que melhor fala com o coração brasileiro, suas músicas passam por várias gerações e (quase) todo mundo tem alguma preferida. Sempre tem alguma que se relaciona com momentos da história pessoal de cada um. Quando questionado sobre onde ele pretende chegar com sua arte, sentimos um tom de desabafo em cada palavra: “não quero chegar em lugar nenhum. Quero me divertir, andar pela cidade e criar esses momentos de reflexão, alegria, curiosidade, memórias, estímulo pra fazer algo, por aí.” Diferente (talvez um tanto quanto igual) de tudo exposto aqui, Eduardo Srur começou na arte urbana como uma plataforma de trabalho. Acampamento dos Anjos foi sua primeira obra, a apropriação de uma barraca na fachada do seu ateliê. Toda luminada, a obra foi feita em cima de um salmo que diziam que os anjos protegia o local. Uma viagem para o exterior impediu nosso encontro, a sua aversão por bate-papos por email levou-nos a um bom tempo de tagarelice por telefone. Voz confiante, nada tremula, passava carinho e orgulho de seu trabalho. Risadas misturadas com tons sérios, uma junção de percepções que nos faziam crer que aquele homem, por trás da linha, era apaixonado pelas intervenções. Comentou, com ar de realização, que seu site estava pronto, com novo layout, e que podíamos navegar por lá. Logo comentamos que já havíamos pesquisado sobre ele, gastando tempo naquele site – lindo, por sinal. Srur disse que cada obra tem uma energia, que o resultado é, na verdade, apenas mais uma etapa daquelas tantas que ninguém viu. Desde o desdobramento, até a realização a obra constrói-se como mágica. Uma das frases que mais nos marcou foi “intervenções tiram as pessoas da anestesia do cotidiano”. Um angulo que jamais havia imaginado, uma cor, tom ou objeto diferente, qualquer coisa que não fazia parte mas que consegue desviar a atenção, agregar. Assim são as intervenções. Eduardo trabalhou diversas vezes com o aval da prefeitura, mexeu em obras históricas – pontos turísticas – e colocou salva vidas nelas. Salvamento? Afogamento? A releitura do trabalho dele, depende de você. Nada limitado, fechado. Segundo ele, o artista tem que sair da
“AFINAL A ALMA NUNCA MORRE, É ETERNA” zona de conforto, correr riscos para mostrar um outro lado. Inúmeros países aderem a essas artes urbanas e as utilizam de maneiras diferentes. Por exemplo, entre 2005 e 2012, a artista Ana Teixeira realizou seu projeto “Escuto Histórias de Amor”, em diferentes países, como Alemanha, Itália, Espanha, Dinamarca, França, Brasil, Canadá e outros. Sua arte consistia em se sentar, tricotar seu pedaço de lã vermelha e ouvir as histórias e experiências que cada pessoa interessada tinha pra contar a ela. As reações nos países em que visitou eram completamente diferentes. Algumas vezes ninguém conversava com ela, nem contava nada. Em outras, as pessoas sentavam e ficam ali por horas contando seus casos de amor, suas alegrias, suas decepções. Todo o projeto foi documentado, mas de longe e sem que as histórias ficassem gravadas. Essas experiências de tantas pessoas diferentes ficaram apenas na memória de Ana, e de alguma forma, gravada na grande extensão de lã vermelha tricotada por ela durante todo o tempo. Homenagens também são feitas em formas de intervenção. Grandes poetas como Mário de Andrade foram lembrados por instituições e grupos, coletivos, que juntos, com a mesma ideologia, buscam espalhar e disseminar a arte por meio dela. “... Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paissandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos.” O eterno poeta teve espalhado por São Paulo suas palavras em folhas de papel. O motivo? A lembrança de uma morte que fora apenas de corpo, afinal, a alma nunca morre, ela é eterna. É engraçado como a arte é transformadora. Ela deixa no ar a mensagem e permite entendimentos diversos. As intervenções surgem para suprir
algo que ninguém ao certo sabe o que é, vêm da necessidade de responder os porquês da vida moderna e da correria nas cidades. Todos são artistas e tem, no fundo, um quê de poeta. Seja com palavras, desenhos, grafites... O que vale é fazer arte, pintar a vida Paulistana da cor que você quiser. Se não tiver seu próprio pincel ou sua própria caneta para escrever a história, use as tantas intervenções disponiveís e traga para você. Aproxime-se do outro, conecte-se e coloque para fora todo o repirmido, afinal, as intervenções estão ai para isso. Protestos, declarações, homenagens, poemas, indignações, todos os sentimentos e pensamentos jogados e canalizados. Opostos ou não, o que vale é intervir mais do que na sua vida, mas mostrar-se disposto a dar ao outro o empurrãozinho necessário para que ele trilhe seu caminho a sós.
São Paulo, Palco das obras de Dafne Sampaio, Eduardo Srur, Leitica Matos e Daniel Scandurra
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Artistas de diferentes estilos dividem espaço e tempo na principal avenida da cidade de São Paulo. Música, dança e performance atraem a atenção de quem por ali passa
Ana Luísa Folini, Maya Renaux, Rafaella Soares
Por todo lado só se vê cinza, só se ouve buzina e o relógio dita o ritmo incansável da maior cidade brasileira. São Paulo da garoa perdeu seu charme, hoje cheira a asfalto e chove impaciência. Em meio ao caos dos transeuntes enlouquecidos, existem personagens quase fantásticos, inventados, que se escondem na multidão. São eles, os artistas de rua, invisíveis aos olhos apressados que passam sem notar o ambiente que os cercam. Mas a simples aposta de alguns segundos de atenção, pode transformar um dia preto e branco em colorido. Alegria instantânea que se paga com um olhar curioso, um sorriso sincero, e as vezes alguns trocados que estavam perdidos no bolso. Os artistas de rua tem alma boêmia, apreciam seu palco e valorizam o contraste, o diferente. A quebra da rotina da cidade e a liberdade de expressão dão sentido as apresentações a céu aberto. Alguns buscam seu sustento e outros o puro prazer da arte, mas independente
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do objetivo, estão ali para alegrar o dia de quem passe por eles. A plateia é variada, e a primeira fila é reservada a todos, dos mendigos aos executivos, sem qualquer distinção ou preconceito. Por um instante a igualdade reina, apenas enquanto as diferenças ficam hipnotizadas pelos acordes, gestos ou traços. Mas quando a realidade volta a ser o foco, todos retornam à velha rotina, aos mesmos papéis sociais, ao dia a dia paulistano. Com o sol a pino e vento fresco, o sinal silencioso da hora do almoço bate na Avenida Paulista. Gente de todo o tipo anda pra todo o lado, neste momento, sem pressa. Como se a preciosa pausa no trabalho fosse eterna. Em frente ao shopping Center 3, o palco está montado. Na calçada, rente ao meio fio, um tapete quadriculado em estilo discoteca reserva o lugar para a pista de dança. Ali se apresenta o cover do Elvis Presley em versão reduzida, “O Elvis não morreu, apenas encolheu. É o nome do
show” é a frase que sai da caixa de som. Esta apoiada sobre um carrinho de feira. O banner ao lado, pendurado na lixeira, exibe uma foto do artista caracterizado como o personagem e as informações para contato “Marcio Aguiar, cantor e ator”. Enquanto o Rock paralisa os transeuntes que por ali ficam admirados, Dona Marli, a assistente, oferece os CDs por 10 reais. - A senhora é fã? - Sou muito mais, ele é como um filho pra mim. Para a surpresa dos espectadores, a versão brasileira do ídolo do Rock n’ Roll clássico alterna grandes sucessos, como Suspiciuos Minds, com sertanejo. Depois de Camaro Amarelo a mais pedida pelos fãs é Piradinha. Acompanhado pelo fundo instrumental, Marcio canta de verdade e sem dublar brinca com as letras. Mas todos aparentam apreciar a apresentação que não para nem um segundo. Apenas quando o Elvis precisa usar o banheiro do McDonald’s, vizinho do shopping. No intervalo entre as músicas, sempre surge um novo agradecimento. Ao público, colaboradores, motoristas dos ônibus que param e abrem as portas para receber a inusitada visita do artista aos pés da escada. Do taxista que buzina gentilmente para saldá-lo, à moça bonita que passa com um sorriso sem graça após receber os elogios amplificados pelo microfone. Todos sorriem, público grande, cerca de 50 pessoas observam a apresentação. Em rodinhas os executivos comentam seus assuntos de negócios, se dividem entre a seriedade do terno e as gargalhadas de meninos ao ver o Márcio de macacão branco todo ornamentado, como deve ser, subir na lixeira e rebolar. O foco por um instante é voltado para um
“Amo só a arte. Não vejo como profissão, e sim como um mundo mágico”
grupo de adolescentes que presenteiam uma amiga, que faz aniversário, com uma ovada, mas logo o aroma de ovo e farinha se dissipa e as atenções são novamente do artista. Márcio Aguiar é artista. Passou por inúmeras profissões, mas escolheu a arte como meio de vida: - Amo só a arte. Não a vejo como profissão, e sim como um mundo mágico. O Elvis é apenas um, de seus mais de 30 personagens que incorporou na carreira de 10 anos, nas ruas desde 2010. Quando vemos alguém interpretar uma pessoa, um personagem conhecido, logo pensamos em imitação, um cover, mas Márcio defende e define o que é ser uma artista de rua: - No Brasil a maioria das pessoas tem uma visão completamente equivocada quando o tema é arte. Tem muita gente tratando arte, como imitação, reprodução, entretenimento, como mercadoria, como uma coisa só. E não é. Quando eu crio algo, e eu estou dando forma ao sentimento, eu fiz arte. Um quadro por exemplo, quando eu reproduzo este quadro eu fiz uma cópia dai a cópia não é arte. Ninguém até hoje definiu arte, mas temos muitos conceitos, muitas definições do que é ou não é. Uma dessas definições é a imitação. O Elvis criou certa performance, então ele fez arte. Se eu copio isto ,então eu não criei, eu copiei. Eu não dei forma ao meu sentimento, consecutivamente não fui artista. Agora quando eu me caracterizo de Elvis e canto
Márcio reverencia seu público durante a apresentação.
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Luda toca repertório variado na Avenida Paulista
“Camaro amarelo”, subo em uma lixeira e pulo dentro de um ônibus. Ai sim eu criei, e fui artista. Com muita simpatia e inteligência, o Elvis da Paulista mistura os passos do original, com a ginga e o rebolado do brasileiro. Abusa da liberdade e da criatividade para atrair a atenção das pessoas, que sempre retribuem com muito carinho e as vezes depositam uma ajuda de custo na caixinha. Por amor à arte, volta toda a semana para distrair as pessoas apressadas que passam por ali todos os dias. - O que prefere? O palco ou a calçada? - Deixei de me apresentar em teatros luxuosos para cantar para milhares de pessoas na avenida, que são diversas, de diferentes culturas. De vez em quando vejo figuras aqui que acredito que sejam de outros planetas. Toda essa variedade me dá a possibilidade de diferentes sensações e momentos únicos. No palco eu não tenho isso. - Por que a rua? - Foram muitos os motivos que me levaram a me apresentar na avenida. Um deles é que eu subi, subi, subi no mundo artístico e no mundo do entretenimento, mas para completar o fim da escada o artista tem que fazer certas coisas. Jogar um jogo do qual eu não quis fazer parte.
Outro motivo é que é muito gostoso quando eu olho pra dentro e fora de mim e digo em plena Paulista. ‘EU NÃO TENHO PATRÃO, NÃO SOU ESCRAVO DE NINGUÉM. NINGUÉM MANDA EM MIM’. Ó liberdade, como eu te amo... e o Elvis voltou a cantar. Já eram quase 4 horas da tarde e o movimento da avenida Paulista estava desacelerado, havia menos carros e menos pessoas circulando. Em frente ao MASP era possível enxergar um senhor, sentado em um banquinho, tocando um instrumento de sopro. - Boa tarde, pronunciou rapidamente as palavras e voltou a soprar. Uma senhora se aproximou para ouvir a música e perguntou: - É flauta? - Clarineta Luda tem uma história interessantíssima. Formado em administração e pós-graduado na ESPM resolveu aos 40 anos de idade desistir da profissão para fazer música. Apaixonado por literatura e amante dos estudos foi estudar na Universidade livre de música Tom Jobim, se apaixonou pelo som do clarinete e desde então não deixou de tocar. Hoje com quase 60 anos, ele acredita que não podia ter tomado decisão melhor. Solteiro e sozinho ele conta que toca por prazer e a rua não é a única fonte de renda dele. Apesar de já ter tocado em orquestras e óperas, hoje se apresenta na paulista e nos bairros Liberdade e Higienópolis. Também toca saxofone. - Para tocar na rua é preciso ter certo cuidado, é sempre bom conversar com outros artistas que tocam no mesmo ponto que o seu para combinar os horários. Eu não sei se há algum tipo de
“A emoção de tocar na rua é a mesma de tocar no Teatro” 76 | Narrativa
disputa, mas é engraçado que na rua todo mundo cumprimenta a gente, menos o músico. Passando por Beatles e Beethoven, Luda gosta de agradar todo os gêneros, - Tenho um repertório de 600 músicas. Se eu vejo um senhor que parece gostar de Beethoven eu toco, e assim vai, gosto de diversificar meu repertório. Depois de tocar “A noite do meu bem”, de Dolores Duran, ele se emocionou ao contar que certo dia um senhor se aproximou e pediu uma música, em seguida perguntou se ele não poderia tocar no velório de sua esposa, que gostava muito de música e estava morrendo. - A maioria das histórias que vivi na rua são positivas. A emoção de tocar na rua é a mesma que de tocar no teatro municipal, tenho o mesmo cuidado com meus instrumentos e com as notas. Seus clarinetes foram comprados na França e na Itália. Sua grande barba branca e as roupas muito simples escondiam sua historia. Um senhor, que tem como paixão e companheiro sua música. Ele toca pelo reconhecimento do público e chega a ganha mais do que muitos artistas que tocam em bares. Luda se levantou e se preparou para pegar o ônibus sentido Higienópolis, onde iria tocar no final da tarde até a noite. Os executivos apressados já estavam quase todos indo embora. Os “clacksclacks” dos sapatos altos já não são ouvidos e os corpos que circulam na rua tem um ar bem menos apressado e nervoso que o habitual público das manhãs e tardes. Skatistas deslizam por toda a calçada desviando dos grupos de amigos, do pessoal no ponto de ônibus, dos hippies e suas artes, do moço do violino. O relógio imenso em cima do prédio do outro lado da rua marca 20h33 e a Avenida Paulista a essa hora abafa as buzinas e motores com as notas do violino e do clarinete, as rimas de Rap vindas da escadaria do largo prédio espelhado da esquina e as palmas do público satisfeito com as diversas apresentações. E no meio desse emaranhado de culturas e estilos, Billie Jean se sobressai. A música saída de uma só caixa de som colocada sobre um carrinho agita os irmãos que dançam imitando Michael Jackson em seu próprio palco de quadradinhos brancos e pretos. O tapete xadrez imitando piso de discoteca antiga já é colocado ali em frente ao Shopping
Center 3 há três anos, “desde que Michael morreu”, conta Matheus. O cover do ídolo foi ideia do irmão mais velho, que se apaixonou por Michael assim que assistiu o DVD comprado pelo irmão do meio, Felipe. Quando trouxe o DVD da feira, Felipe queria apenas agradar a mãe, que estava extremamente triste com a morte do cantor, jamais imaginara que aquele show gravado no DVD somado à iniciativa de Matheus de aprender os passos mudaria o destino da família. - Quando eu aprendi os passos, fui dançar na Sé com uma amiga nossa que já era cover do Michael, depois de um tempo o Felipe foi junto, conta Matheus enquanto faz uma pausa na apresentação e Felipe passa a caixinha. A estação da Sé não tinha o público e o consequente reconhecimento que os irmãos desejavam. Foi de um amigo artista de rua, um hippie que vende bijuterias, que a ideia da Avenida Paulista surgiu. Na Paulista o show ficou mais sério. Os meninos se apresentam as sextas, sábados e domingos munidos de caixa
“Felipe queria apenas agradar a mãe”
Matheus ao fim da apresentação em pose ícone do ídolo Michael.
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Felipe e Matheus dançam Billie Jean durante uma de suas apresentações na Paulista.
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de som, microfone, o palco- tapete e uma mala para as trocas de figurino. E o irmãozinho Davi de apenas sete anos passou a fazer parte do show. Os shows se tornaram a principal fonte de renda da família Jackson (sobrenome que adotaram) e os meninos que antes eram apenas Matheus, Felipe e Davi moradores da periferia de São Paulo, hoje são reconhecidos por fãs e têm sonhos de ir muito mais longe. Nós transmitimos a cultura do Michael, e o público nos devolve de diversas formas. Matheus procura e aponta as amigas que chama de universitárias no meio da plateia com quem adora conversar. As meninas retribuem com um sorridente tchauzinho. - Eu quero ter voz ativa, passar conhecimento e usar a minha voz para os meus direitos, só ainda não sei exatamente como. - Quero transmitir cultura, assim como acho que Michael (Jackson) fazia. Mesmo tendo apenas quinze anos, Matheus está com uma expressão adulta, convicta. Foi com seriedade de adulto também que os irmãos encararam as repressões que sofreram por se apresentarem na rua. Donos de estabelecimentos próximos nem sempre foram receptivos aos artistas e muitas vezes a polícia foi chamada para
“deixa os meninos dançarem!” acabar com as apresentações: - Eles não nos derrubavam, a gente abaixava o som e continuava dançando. - Já teve casos em que os policiais pediam pra que deixassem a gente dançar em paz: - Deixa os meninos dançarem!Matheus reproduz a fala dos policiais aos seguranças do Shopping dando uma risadinha. A recente Lei dos Artistas de Rua afetou as apresentações do trio. A animação é a mesma de antes e já não há mais necessidade de abaixar o volume do som. A polícia em nada pode interferir nas apresentações e o único limite é o horário de encerramento, estipulado para as dez da noite. Porém a falta de segurança ainda incomoda os meninos, que já tiveram alguns problemas com bêbados invadindo seu show.
Grupos de amigos e amantes dos jogos de Role Playing Game (RPG) reúnem-se para manter vivos universos permeados pela magia e fantasia, alternativos à rotina cotidiana Anna Yves e Thais Ribeiro
Uma violenta batalha acontecia na cidade de
Waterdeep. A invocação acidental de monstros durante o festival em nome da Deusa Tymora abalou a paz na cidade. Guerreiros enfrentavam gigantes e lutavam entre si nas ruínas de um coliseu, numa tentativa desesperada de sobreviver. Pelo menos era isso que acontecia dentro de uma sala em uma das casas de um condomínio em Cotia – que, devido às suas casas em estilo europeu e tons pastéis, lembrava a Rua dos Alfeneiros de Harry Potter. Sou recebida na porta por Vinícius Gottschall, vindo do Rio Grande do Sul para estudar Design de Games em São Paulo, e levada a um pequeno hall de entrada. - Os meninos estão lá dentro, entra e fica à vontade. – Diz apontando para a porta. Entro no quarto, que seria bem espaçoso se agora não abrigasse oito pessoas. Uma grande estante ocupava a parede. Lá prevaleciam livros de fantasia e quadrinhos, ladeados por dragões de várias cores e tamanhos que pareciam saudar os visitantes imponentemente. Havia também uma espada medieval. O que mais chamava a atenção, contudo, era a mesa de RPG. Seis participantes, três de cada lado, agrupavam-se em torno de duas mesas plásticas brancas. Sobre elas tablets, notebooks, salgadinhos, bolachas, garrafas e copos de refrigerante e, no centro, uma TV de cerca de 26 polegadas. Notei que de um dos computadores, o de Gottschall, vinha uma melodia medieval. Rafael Westermann, também estudante de Games, como todos os outros jogadores ali, explicou o porque da trilha sonora.
- A música é para dar o clima, complementar a aventura, sabe? – riu, talvez porque eu também sorria. Em dias em que os vídeo games tem gráficos tão sofisticados, parece estranho usar a imaginação para criar aventuras fantásticas e nem por isso menos trabalhadas. A batalha de Waterdeep acontecia na tela do televisor. Lá estava o cenário, dividido em quadrados – que facilitavam o deslocamento dos jogadores pelo tabuleiro. Os elementos sobre a tela eram simples, adicionados através do programa Photoshop de acordo com as jogadas. Apesar disso, as figuras davam um quê a mais no jogo. - Particularmente, até porque todos fazem Design de Games, preferimos o RPG que dá mais atenção ao visual do que somente ao jogo. Acho legal quem consegue [apenas narrar], mas eu não consigo. O jogo havia começado pela manhã e se estenderia até a noite. Gottscho pegou uma dos bonecos sobre a televisão. - Até então tinha quarenta personagens na minha televisão e agora só tem dez. Controlar isso na cabeça é impossível. Em um evento do RPG Arautos, jogadores tradicionais riram em tom de estranheza quando questionados sobre essa mecânica desenvolvida por essa mesa. Eles não conseguiam imaginar como aquilo era possível. Nunca ouviram falar daquele jeito de jogar, mas pareceram empolgados. Gottscho pediu para que eu “chegue mais perto da mesa” e começou a apontar para a tela
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do seu notebook. - Essas abas abertas no Chrome são os livros do Dungeon and Dragons, um dos primeiros jogos e o mais tradicional. Pergunto o por que, já que a consulta soava como algo estranho, uma quebra na atmosfera do jogo. - É um jogo de mecânica sofisticada. Para mestrar preciso consultar as regras com frequência. Algumas já decorei pelo costume, mas são muitas criaturas, atributos e regras, tá vendo? – aponta para a tela. E como criamos as personagens? Ele abre outro programa, agora com uma ficha com as características de Marrik Mythalson, seu personagem meio elfo. - Existe uma série de regras para cada tipo de char [do inglês character, ou personagem]. Por isso é importante usar os livros, se não vira uma bagunça e cada um faz o que quer. Cada jogador, a cada jogada, consulta sua ficha, usando também um dado, que, junto às ações do mestre, ajuda a determinar o rumo da partida. É então que Biólogo o interrompe: - D&D é um jogo D20, ou seja, usa um dado de 20 faces. - Ele gesticula bastante e agora está mais sério – A cada ação que você toma é preciso jogar o dado. Você soma o resultado do dado a um atributo que é compatível com a ação escolhida e compara com a do seu alvo. Aí você sabe se o movimento foi bem sucedido. - Nós temos a versão 3.5 de D&D e todo um balanceamento de personagens, de tesouros, ele te dá o caminho de tudo o que você pode encontrar – completa Gottschall. O funcionamento de uma partida parece complicado, mas uma explicação rápida das regras torna o entendimento mais simples para um iniciante. Uma coisa, porém, é clara: o mestre possui grande importância, já que decide os rumos da aventura, podendo beneficiar os jogadores com o encontro de uma sala de tesouros, como contou Gottscho, ou atrapalha-los com a invocação acidental de monstros. Há um planejamento prévio daquilo que ocorrerá na partida, temperado com a imprevisibilidade das jogadas e da imaginação do mestre. Esse é o fator, segundo os jogadores, que torna o RPG atrativo: ele não é previsível como um vídeo game, já programado e limitado a certas ações. Existem infinidades de jogos de RPG tanto online, como em plataformas como Playstation 3, PC e Xbox 360, os mais conhecidos World of
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Warcraft e Skyrim. Entretanto, o mix de plataforma eletrônica e encontros físicos, a possibilidade de interação presencial, é o que chama a atenção nessa mesa, despertando curiosidade em relação ao que os estudantes de Games planejam criar ou incorporar nesse universo tão rico. De volta ao básico As mesas organizadas pelo RPG Arautos reúnem curiosos, iniciantes e veteranos, mas preservam o estilo tradicional de jogo, contando, no máximo, com mapas oficiais de cidades criadas para o jogo ou livros. Notebooks e tablets até são utilizados, mas apenas como objetos de consulta. Encontros mensais são organizados na Ludus Luderia - uma antiga mansão no Bexiga transformada num gigante salão de jogos com três amplos andares – como me explica o professor de português, Daniel Cenoz. - Aqui jogamos mensalmente. De Star Wars a Call of Cthullu, tem um RPG de detetive também, o Fox Hunt – aponta para a mesa mestrada por “Xandy” O meu preferido é o Cthullu porque, diferente das outras aventuras, nossas personagens são comuns e sabem que morrerão, só não sabem como. Elas tentam fugir da loucura causada pela entidade Cthullu e sabem que o universo é regido por regras que fogem da capacidade de compreensão humana. Além disso, o fato de se basear em uma obra literária, a minha área, foi um grande atrativo. O público do evento é variado. George Bonfim, por exemplo, é advogado e, agora, o mestre da mesa em que me encontrava. Somos quatro jogadores. Nossas personagens um tanto quanto distintas: elfo, anão, meio-orc e monge. Alexandre, o meio-orc, e Murilo, o monge, são pai e filho. O primeiro coleciona peças e livros de RPG há mais de vinte anos e não é de se surpreender que o filho tenha se interessado pelo jogo. Era a primeira vez de ambos nos encontros dos Arautos. Em meio aos gigantes lanches da Ludus, que oferece a famosa batata frita de um quilo, eles discutiam as jogadas e estavam decididos a se apoiar, preservando a vida um do outro. Felipe, o anão, é de longe o mais experiente, outro fã de RPG, descobriu o evento por acaso na internet e imediatamente decidiu comparecer. Ele palpitava nas jogadas e calculava bem os seus passos - em uma batalha, foi o primeiro a se afastar do grupo, deixando os outros à própria sorte
George comanda a partida, gesticula, interpreta, questiona – levou o grupo a rir ao interpretar uma criança. Na partida tenho que dar voz à minha personagem, Talissa, uma elfa maga, nome esse que recebi do mestre quando não soube responder a um simples “Qual é o seu nome?”. Recuso propostas, aponto direções e questiono, muitas vezes, o fluxo da narrativa. As perguntas costumam aparecer mais facilmente do que as decisões para os jogadores. Talissa existe e tem o poder de interferir na narrativa de um modo que eu jamais poderia. Ela conhece magias antigas e mistérios. Tento compreender através da sua ficha, com todas as informações a seu respeito, o que ela - ou eu- pode fazer. Tenho habilidades únicas, posso adquirir conhecimentos e é minha escolha se o divido com meus companheiros. Mesmo que todos nós saibamos o que ocorreu, se o conhecimento não é partilhado, os jogadores executam a sua rodada fingindo que não o sabem. Parece abstrato, mas faz muito sentido quando se joga. A imersão é o que torna o RPG tão atrativo. A nossa aventura é simples e George já delimita rapidamente o quão estreitas são as nossas relações nas histórias. Durante uma batalha, por exemplo, um
dos jogadores é ferido e ao tentar usar seu kit de primeiros socorros, é proibido pelo mestre. - Como eu faço para usar o meu kit de primeiros socorros? - Murilo perguntou aflito, tentando se salvar. - Seria necessário tempo. No fervor da batalha é muito difícil fazer ataduras. Você vai ter que esperar. – Explicou o mestre em um tom grave. Alexandre, o pai, decide dar tempo para o filho se curar. Pergunta se pode atacar “com tudo”, tira 20 na jogada dos dados - algo quase providencial - e liquida o monstro. Com o fim da
A maior parte dos jogos de Role Playing Game utiliza dados e fichas técnicas para desenvolver a sua mecânica.
“nossas personagens são comuns e sabem que morrerão (...)” Narrativa | 81
O professor Daniel Cenoz, membro do RPG Arautos, e seu RPG favorito, Call of Cthullu.
“Tem uma mesa que mestro aos sábados. Viramos a noite jogando.” batalha, temos três opções. Devemos chegar a um consenso como grupo para escolhe-la, mas, antes, George anuncia que a conclusão, ou a próxima etapa da aventura só se daria no próximo encontro do RPG Arautos. Ficamos frustrados, como se tirássemos um número menor do que o necessário em uma jogada. O compromisso de completar a missão e a curiosidade faz com que os visitantes retornem aos encontros mensais na Luderia, o mesmo programa dos Arautos há pelo menos sete anos, como contou o sorridente George. Muito mais do que um jogo O compromisso em dar continuidade às partidas é o motivo que leva um grupo de amigos a se encontrarem no Starbucks da rua Haddock Lobo, na região central de São Paulo. Eles optaram por jogar no acolhedor terraço do terceiro andar, a céu aberto, reunindo mesas, poltronas
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e cadeiras para se acomodar. O grupo é formado por Rodrigo Fontoura - o mestre, Allan Kison, Lucas Soares, Felipe Maia e Paty, e se reúne a cada quinze dias para dar continuidade à aventura, que no tem no total oito meses de duração. As fichas de cada jogador possuem características psicológicas detalhadas. Até mesmo um histórico das personagens precedentes à aventura principal é descrito. São mais minuciosas do que as dos iniciantes com as quais joguei anteriormente. Descreviam personalidades, por exemplo, e a cada jogador cabia, dado o histórico da personagem, criar uma ação que fosse condizente às descrições presentes na ficha. Rodrigo é um veterano. Com 27 anos, cabelos longos, em seu perfil numa rede social pode ser visto trajando vestimentas medievais. Ele mestra há, pelo menos, dezenove anos – um número que assusta por ele ser tão jovem. Rodrigo explicou sua história com o RPG com muita satisfação e amabilidade. Todos os envolvidos na partida tinham um carinho especial ao descrever a sua história – ou a de seus personagens - e os meios que os levaram até ali. A indicação, segundo eles, é o fator chave na “construção” de uma mesa de RPG. Os participantes se conheceram por esse propósito, alguns através de eventos especializados ou por amigos em comum. Felipe, por exemplo, começou a jogar por indicação de um amigo de trabalho que, por sua vez, indicou Rodrigo, assim como Allan, que começou a jogar quando conheceu o mestre em um evento de RPG. - Além dessa mesa, eu mestro outras – esclareceu Rodrigo enquanto arrumava fichas, mesa e tabuleiro – Tem uma mesa que mestro aos sábados, uma vez por mês. Viramos a noite jogando. Todos ali tinham interesses em comum, além da paixão pelo RPG, partilhavam os mesmos gostos literários e filmográficos. Muitas vezes os assuntos giravam em torno de universos narrativos, principalmente os de aventuras medievais. Vários integrantes desse grupo, na verdade, em algum momento da infância, haviam jogado RPG ou tiveram vontade de fazê-lo, posteriormente parando com as atividades devido a compromissos como escola e trabalho. Os encontros quinzenais são uma alternativa para continuar a dar vida a esse universo paralelo, levado tão a sério, e que dá mais cor a uma rotina que, por vezes, pode ser um tanto quanto cinzenta.
O drama e o dia a dia de jovens atletas que vivem o dilema entre seguir a carreira esportiva ou outra profissão
Breno Brick e Heron Ledon
“O problema é que vai chegar uma hora que eu vou ter que escolher. Ou eu vou levar a natação de uma forma amadora, como uma brincadeira, ou eu vou treinar”. E todo aquele grande sorriso da estudante de Jornalismo dá lugar a uma seriedade envolvida no pensamento sobre o futuro. Para alguns, o esporte é apenas uma forma de lazer e de esquecer os problemas. Para outros, uma maneira de ganhar a vida, uma oportunidade de viver e receber dinheiro fazendo aquilo que mais ama. Um dos problemas é a instabilidade da carreira esportiva. Muitas promessas ficam pelo caminho, seja por falta de oportunidade, ou por falta de incentivo. Um bate papo descontraído. Assim pode-se classificar a conversa com o jovem Igor Ferreira. Em um domingo ensolarado, na praça do Parque das Árvores, na zona sul de São Paulo, por volta das 15 horas, sentamos embaixo de uma árvore para conversar um pouco sobre sua vida. “Sempre fui ligado com o golf, por causa do restaurante da minha mãe, que fica dentro do clube. Quando eu tinha uns 12 anos, tive um incentivo do namorado dela, com participação em campeonatos no clube e com os treinos.” O clube é o Guarapiranga Golf Country Clube, na região de Parelheiros, extremo sul da capital paulista. Mas essa relação durou pouco, apenas três
anos. “Minha primeira pausa com o esporte foi algum tempo depois, quando minha mãe e namorado dela se separaram. Então, eu só voltei anos depois, com 15 ou 16 anos, através de um incentivo do clube.” Nesse período, Igor conheceu Milton, que trabalhava na Federação Paulista de Golf, que o ajudou a arcar com os custos dos campeonatos, e conseguiu um patrocínio para o garoto. “O Milton me ajudava, pagando taxa pro uso do campo de golf do clube, que era uns 200 reais por dia, com direito a uma volta, de 18 buracos. Ele me acompanhava e bancava os meus campeonatos. Sem incentivo dele, não teria como eu ter treinado.” Após passar a manhã dentro da piscina, Victória Gianlorenço sentou-se na cadeira de uma sala do Mackenzie aliviada, colocando sobre a mesa sua mochila, que deveria conter uma toalha molhada, um maiô, um par de óculos e uma touca de nadar. Sem que pedíssemos, ela começou a explicar o seu envolvimento com a paixão de sua vida. “Na maratona, é necessário treinar em dois períodos. Tem que se dedicar muito mesmo”. E, com certeza, dedicação não falta e nunca faltou à garota de 19 anos, que nada maratona desde criança – a pele morena e as sardas no rosto revelam horas e horas sob o sol, dentro da água. No entanto, a rotina universitária parece
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Fotos: Divulgação
Victória, que nada desde criança, nunca pretende parar de nadar, mesmo estudando Jornalismo.
afastá-la aos poucos daquilo que gosta. “Eu sempre quis estudar no Mackenzie, pois eu sabia que tinha bolsa-atleta. No meio do ano passado, eu passei no vestibular, mas descobri que o curso era à tarde. Fiquei desesperada, sem saber o que fazer. Atrapalhou meu treino, que era o dia inteiro, e eu estava no meio da disputa do Campeonato Brasileiro. Precisei conversar no meu clube, o SESI, e eles me deixaram nadar sozinha no período noturno. Eu me matei de treinar”. Depois de um ano e meio, Igor não desistiu do seu sonho e voltou a jogar pelo clube. Com um ar de frustração e decepção, Igor conta uma das piores experiências já vivida por ele. “Eu estava jogando um torneio interno, por equipe, no clube. Eu e o associado começamos a
“Eu tenho certeza de que nunca vou deixar de nadar” 84 | Narrativa
ganhar uns campeonatos e descobriram que eu não era sócio, e me cortaram. Isso foi um baque muito grande pra mim. Depois, até me liberaram pra treinar e jogar, mas como eu ia participar de uma coisa sabendo que as pessoas que me liberaram não me querem lá? Estava tudo certo, e eu estava me dedicando muito para o golf, com rotina de treinamento, com uma vida esportiva mesmo. Esse corte deu uma abalada forte no meu golf. Abalou o meu sonho de virar profissional”. Com lágrimas nos olhos, ele conta que o melhor momento foi quando estava no clube Guarapiranga, antes de ser cortado pelos sócios. Os horários de Victória já não eram suficientes, e pessoas do SESI disseram para ela se transferir para a UNIP, à noite. No entanto, sabendo das dificuldades da profissionalização de uma maratonista, ela achou melhor continuar em sua faculdade e se transferir ao clube Paulistano, onde treina no período matutino. “Eu tava precisando de tranquilidade, e o Paulistano me trás isso. Foram quatro anos de muita pressão por resultados. Eu prefiro não ter isso. Meu desempenho sem ser tão cobrada está muito melhor. Eu sempre me dei muito bem treinando sozinha, só eu, o técnico e o relógio”. Mesmo com o sucesso nas águas, a jovem projeta o sonho de trabalhar no jornalismo esportivo. “Eu vejo o pessoal estagiar e também me dá vontade. Quando eu vou fazer trabalhos sobre esporte, é tudo muito mais prazeroso e mais fácil porque estou falando de algo que eu conheço e vivo. E eu quero isso pra mim, mas também eu tenho certeza de que nunca vou deixar de nadar. Com 21 anos, eu vou estar formada e ainda nova para a maratona”. Apesar de ter sido campeã brasileira em 2010, além de títulos paulistas e regionais, Victória tem ciência de que a vida esportiva prejudicou, e muito, seus estudos. Quando conquistou a disputa nacional, ela sequer tinha forças para prestar atenção nas aulas, à noite, fato que ainda reflete na universidade. “Não aprendi nada no Ensino Médio. E eu sei que preciso estudar muito. Não tive tempo de correr atrás de fazer inglês. Não sou como minhas amigas, que apenas dão uma lida e passam nas provas”. Por causa do golf, Igor queria ter cursado Educação Física, mas como havia parada de treinar, ele optou por Engenharia de Materiais. Ms a sua
vida com os números durou apenas 1 semestre, pois ele acabou trancando e entrou de vez para a Educação Física, que era o que ele realmente queria. Em um campeonato interno, Igor ganhou o segundo lugar e recebeu uma proposta tentadora de um dos jogadores. Ele foi chamado para jogar golf na Itália. “O meio do golf é muito influente, e há muitos empresários jogando. A mãe de um morava na Itália, ela jogava golf e tinha um cargo alto na diretoria de um clube. Então, esse empresário quis me levar pra Itália pra eu ser um aprendiz/estagiário no clube lá fora”. Nesse hora, a conversa tomou um outro rumo. Ele começou a falar mais baixo, querendo encerrar o assunto. Mas eu insisti em saber o que aconteceu de tão grave, mesmo já imaginando sua resposta. “Eu conversei com a minha mãe, e ela achou melhor eu não ir, para não abandonar a família”. Ficou claro que se dependesse dele, ele iria para a Europa, mas o sentimento pesou na hora de decidir. Embora haja a vontade de atuar como jornalista, fica evidente no olhar da garota de São Carlos (SP) que o desejo de representar o Brasil nas Olimpíadas de 2016 é maior que tudo. “O meu sonho é participar das Olimpíadas, e não deve ter emoção maior do que você ser o seu país e poder ganhar uma medalha. O que me fez estudar foi saber que o sonho olímpico é incerto e saber que as vagas na maratona em 2016 já estão quase preenchidas. Mas, se eu receber uma proposta boa para treinar e saber que eu vou brigar pela vaga, eu realmente vou ter que trancar um semestre da faculdade e ver no que vai dar. Mesmo sem uma proposta, hoje, eu ainda não consigo levar a natação apenas como um hobby”. O maior incômodo de Victória durante a nossa conversa foi a projeção de uma decisão para 2016: disputar os Jogos pelo Brasil ou cobri-los por uma grande empresa de comunicação, com exclusividade, como a Globo? Sem que terminássemos a pergunta, ela já dizia “não, não”, entre risadas que eram um meio de fuga para ela. Depois de alguns segundos de agonia e de uma retomada de ar: “Quero disputar as Olimpíadas”. E essa ligação tanto não é uma simples diversão que o esporte fez a jovem ter uma vida mais regrada, como conta com orgulho e seriedade. “Eu tenho disciplina na vida, que eu conquistei através dos treinos e
competições. Eu gosto de sair, de ir para a balada, mas não faço muito isso porque sei que no dia seguinte tenho que treinar. Tenho também que me alimentar bem e sei que, por exemplo, se eu sair e beber alguma coisa [alcoólica] posso ser pega no doping no dia seguinte, em uma competição. Então, eu evito tudo isso”. Entre o final de 2012 e o começo de 2013, houve um fato que mudou o modo de pensar e de ver a vida em Igor. “Eu conhecia um rapaz que mora na minha rua, o Robson, e ele estava na minha
“o projeto foi importante. ele me levou de volta para o meio do golf”
No início do ano, Igor se dedicou a ensinar o golf para jovens da cidade de Louveira (SP).
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A nadadora campeã continua treinando e tem o sonho de disputar as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro.
sala da faculdade. Ele me contou sobre o projeto do golf para crianças carentes, e a gente já começou trabalhar o projeto com o Pedro. Esse projeto foi muito importante tanto na minha vida esportiva quanto na profissional. Foi o meu primeiro contato dando aula, me levou de volta para o meio do golf.” O Projeto Corujinha começou nas Olimpíadas Estudantis de Louveira, no interior de São Paulo. Um dos organizadores do projeto tem uma fazenda na cidade. Ele ajudou a fazer o treinamento do projeto para escolas e crianças, com uma parceria da prefeitura. A olimpíada teve duração de uma semana. Depois as aulas aconteciam toda sexta feira, com crianças de onze e doze anos, com um total de seiscentos inscritos. Com muito orgulho e emoção, Igor continua contando as experiências com as crianças. “Você tinha que imaginar a alegria das criancinhas quando a gente chegava. Os olhos delas brilhavam, porque elas nunca pensavam em ter contato com este esporte, que é de alto nível financeiro. E é aí que a gente descobre os talentos. Tem umas que não falam nada e é só dar o taco na mão dela que ela faz tudo certinho, bate bem na bola. É como você entrar numa
Igor (ao centro) em ação no Projeto Corujinha, que dá a oportunidade para crianças carentes praticarem o esporte. favela e achar um moleque craque do futebol.” Ainda sobre momentos marcantes, a paixão pelas águas rendeu uma profunda e, por que não, eterna marca em Victória. Com o título nacional de 2010, a garota não teve dúvidas e tatuou Netuno, deus dos mares, em suas costas, com total aval de seu pai, José Roberto, que a acompanhara pelo território nacional em todas as etapas da competição. Foi preciso da ajuda do deus neste ano, quando a atleta passou por grandes apuros. “Eu tenho muita experiência, sei a hora de respirar, de passar o pelotão. Esses 11 anos de natação me deram uma
“Foi a única vez que eu senti medo. medo de verdade” 86 | Narrativa
bagagem muito bacana. E o mar nunca está igual. Esse é o grande desafio da maratona. A pior experiência foi uma travessia que eu fiz em Bertioga (SP), na quarta etapa do Paulista. As ondas estavam muito grandes. Estava ventando muito”. “Foi a única vez que eu senti medo. Medo de verdade. Eu passei todos mundo, e chegou uma hora em que eu não conseguia enxergar nada, nenhuma bóia, já não sabia mais para onde estava nadando. Eu comecei a gritar, chorar e pedir ajuda pro meu Netuno. O barco se aproximou de mim perguntando se eu queria desistir, como outros fizeram. Mas eu não parei e falei pro cara guiar a direção. Então, eu continuei e acabei a prova em primeiro lugar”, completa Victória, que, apesar do triunfo na etapa, ainda sente agonia dos apuros que passou. A pausa no projeto acabou decepcionando muito Igor. Segundo ele, aqueles momentos de interação das crianças com um esporte que é pouco praticado e com poucos investimentos, rendeu muito orgulho para todo sua família. “O projeto tem um lado muito bom que é a inserção dos jovens no mercado de trabalho também, pois existia parceria com empresas e indústrias da região. A prefeitura passou por uma fase de estruturação,
“Quando a gente chegava, os olhos delas brilhavam”
Pupilos em contato com uma atividade que tradicionalmente é voltada para as elites.
e nós estamos esperando até hoje a resposta, o processo de aprovação, para continuarmos”. Igor não deseja viver como um jogador profissional, mas quer seguir trabalhando com o esporte. Questionado se algum convite aparecesse, junto com um patrocínio, a resposta está na ponta da língua, sem titubear. “Eu abraçaria sem dúvidas”. Para Victória, nada é mais importante e lhe dá mais orgulho do que todas suas conquistas, estampadas em casa. “As minhas medalhas e os meus troféus são os meus tesouros. Eu os guardo com o maior carinho. Eu sei que tem muita gente que pratica esporte por causa da grana. Pra mim, um troféu vale mais que qualquer coisa”.
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Hospitais utiliziam tecnologia avançada para fiscalizar bebês na maternidade e fazem do parto um show à parte
Bruna Carneiro e Elio Cabral
- Quarto 304, por favor! O segurança pediu meu RG e imprimiu na hora uma etiqueta com meus dados e o quarto da maternidade ao qual me destinava. Guiou-me até os aposentos e bati na porta. Então, fui abrindo-a cuidadosamente, antes mesmo de receber um convite para entrar. Logo à frente estava Cláudia na sua demorada refeição de uma hora devido à sua redução de estômago feita há mais de um ano. Ao seu lado, estavam Eduardo e Henrique, um com gorrinho azul e macacão branco, o outro com gorrinho branco e macacão azul. Sem saber distinguir quem era quem, achei melhor utilizar as cores como fortes aliadas, o que nesse caso foi um fracasso. São dois belos garotos que vieram ao mundo de uma maneira um tanto diferente, através da inseminação artificial. Um mais quietinho e o outro mais agitado e já com os olhos abertos, atento a tudo que estava à sua volta, uma grande surpresa para um prematuro de sete meses que nascera há poucas horas. Passei, então, a ater-me, agora, à agitação e à quietude para identificar os dois meninos. Estavam na sala, juntamente com a mãe e seus primogênitos, uma avó coruja e um casal de tios avós babões. O pai se ausentara, porque estava doente. Mesmo assim, um protetor, ligava
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de 10 em 10 minutos para saber como estavam e sempre proferia a frase: - Daqui a pouco eu estou melhor e vou voando para aí. Cláudia tira sarro dos cuidados do marido: - Tadinho, ele tentava me ajudar, mas como ele tá muito mal, eu acabava tendo de cuidar de três. Cláudia, apesar dos efeitos da cirurgia e de fortes pontadas nas costas, aparentava estar disposta. Eu não queria me demorar, nessas ocasiões até os mais bem-vindos acabam se tornando aqueles amigos chatos que não sabem a hora de ir embora da sua casa em um domingo à noite. Antes que eu precisasse tocar no assunto que me trazia àquele quarto além, claro, da visita aos pequenos, Cláudia já foi me contando das suas experiências nas últimas horas. O parto mais parecia uma festa. Cerca de 20 pessoas foram ao hospital assistir o espetáculo em dose dupla. Enquanto Claudia estava em trabalho de parto monitorada por várias câmeras, os expectadores esperavam ansiosamente, em uma salinha, o OK para assistirem ao nascimento em tempo real na televisão. Quando o diretor, quer dizer, o médico começou a sacar o prêmio mais valioso do ventre da mãe, iniciou-se a gravação do show. Uma
luz vermelha se ascendeu na salinha de espera e, olhem lá, é o bebê! Que com todo seu carisma e fofura foi cativando os olhares do público vidrados na TV. Brincando e gesticulando muito, Cláudia disse: - Eu fiquei assustada no começo, porque era câmera de um lado, câmera de outro, parecia que eu estava no (BBB) Big Brother Brasil. Olha o outro ali, e desembarcou Henrique logo em seguida. Todos conferiam pela telinha os lindos bebês que nasceram. Todos, menos Claudia, que ficou ofuscada pelos flashes, em um primeiro momento. - Era tanta coisa, que todo mundo via meus filhos e eu não tinha esse direito. Quando o Arthur estava saindo, uma luz vermelha se ascendeu e a câmera ligou para a família que estava lá fora assistir ao parto – conta com um largo sorriso estampado no rosto. Flávio, o tio das crianças, não queria ver muito e ficou quieto em uma sala vazia. No entanto, inesperadamente o televisor começou a transmitir mais um espetáculo e ele assistiu, então, ao parto de um desconhecido. - Não queria ver muito, mas viu até demais – conta Dona Sueli, avó e mãe de Flávio. No meio da conversa fomos interrompidos por causa da troca de turnos entre as enfermeiras. Uma delas pegou o leitor magnético de código de barras e passou, respectivamente, na porta, na mãe e nos bebês, levando os prematuros embora. Durante esse tempo de plantão, espiamos tudo pela TV graças às câmeras que captavam os gestos das crianças, cada uma com seu próprio aparelho. - O Henrique está sem mamar desde de tarde, acho que essa carinha é de
“era câmera de um lado, câmera de outro, parecia o BBB”
choro. Vê se dá pra pegar ele pra mamar, olha que dó! - e aponta a nova mamãe para o televisor. Na volta das crianças, outra senhora de branco faz o mesmo processo. O leitor magnético passa na porta, na mãe e nos bebês. Apesar da mecanização do processo, um cuidado a mais com a segurança mantém a maioria das mães tranquilas quanto ao bem- estar dos recém-nascidos. -Isso é bom que dá pra ver o que estão fazendo com os nossos filhotes, né? Mas tem um monte de pai babão que quando o bebê vai trocar de fralda ou some da área câmera, sai correndo pra ver o que estão fazendo com o filho – comenta Cláudia. Cada um chegou em seu “carrinho” particular e dessa vez, estavam sem gorrinhos. Para minha surpresa e também alívio, ganhei um aliado na hora de diferenciar os bebês: o agitado do Eduardo tinha cabelo preto feito jabuticaba, e o sereno Henrique, com um cabelo claro, quase loiro. A tia avó ficou impressionada com tanta informação e devido à idade, comentou sem se preocupar com o tom da voz um pouco mais alto: -Nossa, mas cada um vem num carrinho? Antes vinham todos os bebes num carrinho gigante, parecia uma fornada de pão! -É tia, agora é cada um no seu, é mais fácil e a gente se sente mais seguro também- explicou Sueli.
O casal, Cláudia e Danniel, sendo fotografado nos primeiros momentos dos bebês.
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Como em toda visita de recémnascidos, vem aquelas perguntas indagando o quão perfeito é o bebê, como Deus (só pode ser ele) pode criar uma criaturinha tão linda, e como está a atual tecnologia. A tecnologia ajuda na segurança dos bebês, com a qual os pais ficam mais tranquilizados e se sentem mais protegidos e protetores ao mesmo tempo, com a sensação de poder observar tudo e todos, a partir de câmeras que rodeiam a maternidade. A tecnologia trabalha, cada vez mais, a interação social e, esse novo ser gerado já nasce em meio a tudo isso. Descobre câmeras, televisões e redes sociais em segundos de vida. Basta alguém dar apenas um clique e pronto, em segundos já tem várias curtidas, pessoas comentando e compartilhando. Com um parto transmitido ao vivo via internet, Roberto Silveira, de 46 anos, conseguiu fazer com que seus parentes localizados do Oiapoque ao Chuí assistissem ao parto do seu xodó Roberto conta sua história cansado depois de um longo dia de trabalho, mas sem perder a disposição para brincar de boneca com a tão esperada filha Gabriela de dois anos. Foi uma gravidez totalmente planejada e os detalhes foram essenciais.
Em seu parto, uma equipe disponibilizou, a partir de um login e uma senha, que amigos e familiares assistissem ao nascimento da bebê pela internet. - A minha família é muito grande, e cada um mora num lugar diferente. Então achei uma ideia diferente da maternidade de colocar na internet para todo mundo poder ver. Só que à toda essa modernidade não funcionou tão bem assim. Roberto deu uma risadinha abrindo apenas um lado dos lábios, o que já anunciava que a próxima experiência a ser contada teria saído um pouco dos planos do homem metódico. - Sabe aquela história de quando você precisa não funciona? Eu apenas acenei com a cabeça de cima para baixo e balbuciei: - Uhum. - Então, os padrinhos da Gabriela não conseguiram ver o parto. A Internet da casa deles caiu. – balançou a cabeça com sinal de negação e novamente, riu. – Depois, mesmo que tivesse dado certo, tinham anotado a senha errada, aqui a família é toda afobada. A equipe contratada para captar o nascimento e tudo que se passa com a criança e a mãe, tem convênio com os hospitais e antes de receber a autorização para gravar, é obrigada a passar por um treinamento de capacitação para gravar em condições e ambientes especiais. Principalmente para que a filmagem não atrapalhe no andamento do parto e não prejudique nem bebê, nem mãe. Com o slogan “Eternizamos os momentos mais marcantes desse espetáculo chamado vida”, a empresa Publivídeo detém exclusividade na filmagem e fotografia nas principais maternidades de hospitais de São Paulo,
“achei uma ideia diferente da maternidade de colocar na internet” 90 | Narrativa
“acabam ajudando o processo” como o São Luís, Albert Einstein e Santa Joana. Pioneira nesse serviço, vem ganhando cada vez mais adeptos interessados em transmitir as emoções do nascimento ao vivo, pela internet, para parentes e amigos em qualquer lugar do mundo e também, em guardar na memória essas lembranças através de vídeos e fotos. Esse uso de tecnologia nas maternidades, gera um grande debate entre conservadores e fissurados em tecnologia: esses recursos ajudam ou prejudicam o processo? O médico Dr. João Adolfo Cabral se mostra a favor desses recursos. Conversando, informalmente, com o senhor de 57 anos, na casa do mesmo, já percebemos seu fascínio por tudo que é de última geração. A sala é rodeada de aparelhos Os gêmeos nos seus primeiros momentos de vida e também, nos primeiros flashs.
tecnológicos e João gosta de estar sempre antenado nas novidades. Ele conta que essas “parafernálias” vieram para ajudar a realizar uma trabalho mais eficiente e no caso da medicina não seria diferente. Depois de sermos interrompidos por uma ligação recebida por João, ele continua: - Como qualquer coisa feita pelo homem, podem acontecer erros. E esses recursos ajudam a limitar ainda mais o erro humano. Mas, é claro, não se trata só disso. Os pais curiosos também querem saber tudo o que se passa com seu filho e eu não acho isso errado. Novamente, esses aparelhos acabam ajudando o processo. Ainda nos apresenta uma novidade: - Fiquei sabendo até de um aplicativo de celular que ajuda a mãe a cuidar do seu bebê. O aplicativo Bebê São Luiz é uma novidade criada pelo hospital São Luiz que possibilita acompanhar a criança antes do nascimento com dicas de saúde e também, depois do parto através de dispositivos como babá eletrônica, cronômetro de amamentação e até cromoterapia. Conversando com o doutor, me veio em mente a tia avó dos gêmeos dizendo que todas essas coisas podem prejudicar os bebês e o vínculo com seus pais: - Não são robôs para viver no meio de máquinas assim. Se a meninada hoje com um ano já não vive sem um tablete ou computador, imagina esses aí que já nascem no meio disso tudo. Nesse debate do BBB dos bebês cada um vai ter uma visão diferente sobre o tema, mas todos concordam em dar aquela espiadinha, não importa o jeito ou como estão vendo.
Enfermeira levando o bebê, já identificado com a pulserinha de codificação, para o berçário
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Nos dias atuais, as principais atividades, seja de entretenimento ou quaisquer afezeres diários, migraram para um ambiente em comum e que atrai milhares de pessoas todos os dias. Os shopping centers, as praias da capital, seguem sendo a maior e mais fácil alternativa para os paulistanos. Caio Mattoso, Thales Ribeiro e Vitor Margini
O shopping. Ideia tão recente, ao se pensar na também recente história humana. Toda uma grandeza de afazeres e lazeres, concentradas em uma única estrutura arquitetônica, que pode compreender o espaço físico de não mais do que um quarteirão. Cafés, restaurantes, supermercados, cinemas, lojas de roupa, eletrônicos, brinquedos e até mesmo parque de diversão se concentram em um único lugar. E, para pensar essa tendência centralizadora – tanto do entretenimento quanto das necessidades da vida urbana, como pequenas compras –, devemos analisar a assimilação daqueles que vivam antes dos shoppings se popularizarem como são hoje e daqueles que só conheceram essa realidade. - Todo sábado era igual. A mesma história de sempre. Já tinha até se tornado a rotina da família. Como em finais de semana eu não trabalhava, a empregada não costumava vir. Então, eu e minha tropa, meus três filhos (um de quatro anos, o outro de sete e o outro com onze) e meu marido, descíamos para o bairro para fazer o que precisássemos fazer. Assim começa a profusão de lembranças da bancária Sonia Regina, de 54 anos. Com um grande sorriso no rosto ao lembrar-se de suas histórias com seus filhos ainda pequenos, a expressão serena mostra grande saudosismo por aqueles tempos: - Naquela época, nem precisávamos pegar o carro. Eu morava tão perto de Santana. O bairro tinha um centro comercial onde tinha lojas, bares, restaurantes, feiras e até uma pequena galeria que tinha um cinema. Nós costumávamos ir a pé
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mesmo. Só algumas vezes, quando passávamos o dia todo na rua, voltávamos de ônibus ou de táxi, mas geralmente fazíamos tudo a pé. - E seus filhos gostavam de ir? Eles não se importavam de acordar cedo de fim de semana, também? - Até que não. Eles davam uma resmungada para levantar, mas depois já pulavam da cama. Eu levantava cedinho, fazia café para o meu marido e o leite com Toddy para os três, acordava toda a minha “molecada” e quando eram dez horas da manhã já estávamos todos na rua – é diante dessa imagem, que Sonia aponta para a mesma mesa onde, há mais de dez anos, servia o café da manhã pros seus filhos. É nessa mesma mesa na qual vamos sentar quando a empregada chega com o copo de água para mim e o café para a Sonia. Quase dava pra sentir-se como um dos filhos de Sonia tomando café da manhã em um sábado de manhã. Sonia mexe muito as mãos. Parece que só as palavras não são o suficiente para contar as memórias de sua vida ao lado dos filhos. Mas uma coisa fica clara: todas as suas necessidades e urgências eram resolvidas no centro comercial: - Qualquer assunto que tínhamos para resolver, corríamos diretamente para Santana. No começo do ano, comprávamos material escolar para os meninos. Em véspera de carnaval, era a fantasia para a festa do colégio. Em julho, era roupa caipira para dançar na quadrilha. No natal, luzinhas e enfeites da árvore. Sem falar dos presentes! Até o Natal de 2001, todas as minhas compras eram lá! As roupas dos meninos, os
enfeites de casa, as cobertas das camas, tudo, tudo, tudo a gente comprava lá. Realmente não tínhamos necessidade de irmos ao shopping! Tinha tudo lá! Às vezes nem precisávamos comprar nada, só íamos para olhar as coisas, aproveitar o passeio em família e de vez em quando pegar um cinema com as crianças! Sonia, apenas com a empregada em casa e o “fantasma” dos três filhos, deixa perceber facilmente a saudades daqueles tempos e como se sente sozinha nos dias de hoje. Ela expressa, entre olhares curtos e gestos largos, como era bom ter um centro comercial tão perto e ter sempre a companhia dos filhos. - Hoje é tudo diferente. Meus três filhos já namoram. Todo sábado, cada um pega sua namorada e sai para almoçar ou passear no shopping. Eu mesma me rendi ao shopping. Quando preciso de alguma coisa, é para lá que eu corro – é possível perceber certo pesar de sua rendição nas palavras saindo de sua boca. “É tudo mais rápido, seguro e eu tenho mais certeza que eu vou encontrar o que eu procuro”, fala entre bocas amargas e feições doídas. - Claro, também tem o fato que não tem mais a mesma graça ir para Santana sem meus filhos. As coisas são assim mesmo. Acho que é normal cada vez mais o shopping tomar o lugar dos pequenos comércios. Mas eu estaria mentindo se dissesse que não tenho saudades suspira Sonia, sentada entre diversos porta-retratos com fotos de seus filhos e de sua família toda reunida presas na parede, presentes apenas nos retratos na vida de Sonia naquele sábado de manhã.
“Eu mesma me rendi ao shopping. Quando preciso de alguma coisa, é para lá que eu corro” Enquanto, no passado, uma geração cresceu vivenciando esses pequenos comércios e centros comerciais e hoje só alimenta essa saudade, do outro lado temos uma geração que já nasceu no shopping. As pessoas que nasceram acostumadas a todo entretenimento reunido em um só lugar podem não saber como viveriam de outra forma. Quem ressalta isso é o vendedor Luiz Lemes, de 21 anos. Sentado atrás do balcão da loja Hage, do shopping SP Market, o jovem estreita os olhos verdes e busca por uma garrafa de água, enquanto pensa no que
Um dos maiores atrativos dos shoppings são as lojas de roupas e acessórios
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Um dos mais de 50 shoppings existentes na cidade de São Paulo que atrai milhares de pessoas mensalmente.
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eu havia perguntado. A questão “Qual você acha que é o principal público do shopping?” só ganha resposta após alguns segundos: - Veja bem. Eu trabalho numa loja de suplementos alimentares e as pessoas acabam pensando que eu só conheço aquele estereótipo de fisiculturista. Os “marombados”, “viciados em academia”, etc. Aqui na loja, na verdade, quem frequenta mais são pessoas acima dos 30, que querem voltar à forma. Mas é bem variado, não só aqui dentro, quanto nos corredores. - E no shopping em geral? Quem é o maior frequentador? – eu insisto. - Aí eu vou ter que te dizer que são os mais novos, não é? Aquela “galera” de 15 anos que não sabe muito bem o que fazer de tarde. E que não tem idade pra ir a uma balada, de noite. - Você acha que esse público, principalmente em uma metrópole, frequenta o shopping principalmente por que não sabem mais para onde podem ir? Ou por que é o lugar aonde todos vão? - Acho que é uma junção dos dois. Quando “calha” de aparecer algum desses mais novos aqui na loja, costumo ouvir que alguns frequentam outro shopping próximo (como o Interlagos, por exemplo) e que vieram para o SP Market pra mudar de lugar um pouco. Então já parece meio que parte do que eles são, não é? Refletindo sobre o que o vendedor de suplementos me clareou, penso em buscar uma fonte mais nova,
que frequente shoppings e possa me confirmar a fala de Luiz, além de contrapor sua história à de Sonia. Acho este jovem mais a oeste da capital paulistana, no apartamento de um grande condomínio de classemédia próximo à região da Pompéia. O adolescente, de 16 anos, parece pronto para sair de casa enquanto eu ainda me sento. Inquieto e checando as mensagens em seu celular, aparenta querer responder logo o que há para ser respondido e finalmente partir para algum lugar. Ao perguntar os planos para o resto da tarde, ele logo afirma que vai sair com uns amigos para o shopping. Bruno Esteves, com 16 anos de vida e pelo menos 7 de vida ativa nas saídas ao shopping, realmente estava um tanto quanto apressado. Pressa explicada, afinal havia marcado de encontrar alguns amigos em um café situado no centro do Bourbon, o centro de compras que ele está acostumado a frequentar. Isso em pouco mais de uma hora. E não parava por aí. Uma ida a um famoso restaurante norte-americano e ao cinema também estavam nos planos do garoto, que logo queria dar seu relato para não ficar muito tempo na fila de espera de ambos estabelecimentos. Como o bom senso geral indica e o próprio Bruno reforça, é complicado e demorado entrar nesses lugares depois de certo horário. Vou direto ao ponto e pergunto como começou essa relação tão próxima e presente com o shopping, mais especificamente com o Bourbon, tão próximo de casa. De prontidão, ele estranha risonhamente a banalidade do assunto e formula sua ‘justificativa’ para o fato de passar tanto tempo de seus dias por lá. Logo, Bruno ressalta sua rotina de ir ao shopping, sendo algo que vem desde sua infância. Porém, lembra que a fase em que passou a de fato frequentar fielmente esse tipo de lugar teve ponto de partida quando se mudou para as redondezas do shopping da zona oeste, em 2009: - Comecei a ir quase sempre, quando me mudei para esses lados da Pompéia, há 4 anos atrás. Um tempo depois, começou a época de sair mais com os amigos para lugares como cinema e lanchonetes. Com mais risadas, advindas das lembranças do início dos bons tempos, Bruno, confere novamente as horas, agora menos apreensivo, e prossegue seu relato de como o shopping se mostrou uma grande fonte de lazer em certa
época de sua vida: - Nesse tempo de cinema e McDonalds, juntamente ao fato de morar aqui do lado e não ter tantas opções para sair com meus amigos, comecei a ver o shopping como um lugar ideal para se ir no tempo livre, nem que fosse apenas para andar pelos corredores com alguém. Estava sempre na expectativa de encontrar o pessoal. Com relação aos tempos mais atuais, pode-se dizer que as maiores opções de lazer não fizeram Bruno passar menos
“Tem quase tudo que o pessoal precisa. Daqui a pouco, abrem até balada.”
de seu tempo livre no shopping. Como a matéria ressalta e ele concorda, há muito para se fazer no ambiente abordado: - Agora, ando saindo mais. Vou de vez em quando nas matinês e outros lugares do tipo. Mas ao mesmo tempo, no shopping posso encontrar o pessoal para conversar nas poltronas da cafeteria, assistir um filme no cinema, comer em algum lugar, passar um tempo na livraria ouvindo CD’s e folheando alguns livros, entre outras coisas. Tudo lá. Tem quase tudo que o pessoal precisa. Daqui a pouco, abrem até balada. Com risos e mais mensagens de um amigo o apressando para ir no shopping, a conversa foi interrompida. Porém, nesse breve diálogo e observando a ansiedade que caracteriza a juventude atual, é possível constatar como essa centralização do espaço de lazer afeta o cotidiano das novas gerações. Sonia sente falta dos tempos em que não era necessário ir aos shopping centers, apesar de entender a utilidade deles, Luiz depende deste espaço para trabalhar e Bruno não vê como seria sua vida sem eles, desejando até que se abram novos espaços. No fim, muitos são afetados pelos shoppings, tanto diretamente – como ter neles o destino mais comum – quanto indiretamente – como ter o local que frequentava mudado graças à presença deles.
Bruno Esteves, de 17 anos, é um dos assíduos frequentadores do shopping Bourbon, localizado na zona Oeste da capital paulista
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A descoberta da identidade artística como solução para patologias derivadas do mundo contemporâneo. A Musicoterapia e arteterapia tornaram-se também um complemento ao tratamento de doenças como autismo, esclerose múltipla, Alzheimer entre outras enfermidades neurológicas.
Cinthia Cardoso Tatiana Terra
Havia um forte azul no céu. Uma cor tão escura que fazia o sol parecer mais brilhante. O dia estava quente, diferente de outros naquela semana. Antes das dez da manhã procuramos Raul Brabo, professor e coordenador do curso de musicoterapia da FMU. Descontraído Raul nos recebeu e incorporou nossas expectativas de uma entrevista informal. “Que tal a gente conversar aqui do lado de fora? Estou precisando tirar o mofo”, disse nos apontando um banco de concreto, numa espécie pátio. O local era tão urbano que o barulho dos carros contrastava com o tom calmo e pensante de Brabo. Musicoterapia. Não há muitos segredos em seu significado. “Tem relatos na Bíblia, nas civilizações antigas, no Egito, e nas próprias tradições que se referem a música como saúde”, disse Raul, enquanto constantemente mexia em seu celular. “Como ciência surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. Os EUA ampliaram pesquisas acadêmicas depois de verificarem os benefícios da música na saúde dos traumatizados pela guerra”, completou. Ela chegou ao Brasil na década de 50, “O patrono da musicoterapia brasileira é o argentino Rolando Benenzon, um ícone no país e no mundo”, afirma o coordenador. O argentino estudou no Collegium Musicum de Buenos Aires, por estar envolvido com a música passou a usá-la como terapia, atuou nas vertentes expressiva e receptiva. Atualmente o maior centro de musicoterapia do Brasil leva seu nome.
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Há clínicas que tratam dependentes químicos, pessoas com problemas neurológicos, e doenças como Alzheimer através dos estímulos gerados pelos sons. “Com autista, por exemplo, a musicoterapia cria canais de expressão”, explica Brabo. Durante a entrevista o musicoterapeuta descreveu o projeto realizado pela faculdade, ressaltando alguns estudantes que chamavam sua atenção, “São alunos que foram beneficiados pela musicoterapia, e hoje procuram uma formação para oferecer isso a outras pessoas”, contou orgulhoso, e se ofereceu para nos apresentar tais alunos, o que não aconteceu. Encontramos Jean, através de uma amiga, Marcela Tinem, que anteriormente nos passou o contato de seu coordenador, Brabo. No dia da entrevista estávamos ansiosas, afinal, nosso entrevistado se mostrou prestativo quanto ao encontro. Antes de sua chegada, repassamos as informações que tínhamos até ali: Jean Victor, portador de esclerose múltipla, 24 anos e estudante de musicoterapia. Conheceu o curso após descobrir a doença e começou a se tratar através da terapia musical, deslumbrado com os resultados pesquisou sobre o assunto e entrou para a faculdade. Nos encontramos no pátio do 4º andar do prédio da FMU, era um rapaz alto, forte e se não tivesse falado, não saberíamos que tinha esclerose múltipla. Enquanto falava, parecia nervoso, e preocupado em escolher as palavras
certas. Às vezes parava e pensava na melhor forma de se expressar. Depois de todas as entrevistas que fizemos, chegamos à conclusão que pensar antes de falar é uma das características de quem se envolve com a musicoterapia. Há pouco mais de um ano descobriu que portava a doença e foi encaminhado para a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), onde conheceu a musicoterapia. Segundo Brabo, já houve muito preconceito a respeito do método, “Mesmo que ela seja desconhecida do grande público, no grupo especializado, já é totalmente aceita e recomendada”, e completou dizendo, “A ignorância é o que leva a maior nível de preconceito e descriminação”. “Comecei a ter um formigamento nos dedos. Estava tomando banho, sai do chuveiro e perguntei a minha mãe se era normal. Ela me levou ao cardiologista, comentei que tinha dores de cabeça e ele me indicou o neurologista. Nos exames constou a esclerose. Como estava no começo a controlei bem”, contou Jean um tanto quanto pensativo. Sua fala era calma e meio tímida, com o tempo passou a se sentir a vontade, e conversar com mais naturalidade. “Antes de fazer a primeira sessão fizeram meu histórico de sons, depois cada um escolheu um instrumento e todo mundo tocou junto. No começo é estranho, hoje sei que eles fazem isso com o intuito de chegar a um ponto específico de melhora”. “Musicoterapia não é farmacologia musical, cada pessoa tem um jeito de reagir a musica, por esse motivo procuramos sua identidade Sonora”, afirmou Raul no início da entrevista. Uma das funções básicas da musicoterapia é estimular a comunicação através de instrumentos. A terapia propõe um envolvimento pessoal com a música e com as pessoas, quando o tratamento é em grupo. Não tem nada certo ou errado, bonito ou feio, é simplesmente a ação e a audição. “Eu escolhi o violão, me senti mais confortável. Depois acabei querendo tocar outras coisas, sair da zona de conforto. Gostei do bongô e pandeiro. A escolha
“Musicoterapia não é farmacologia musical” depende do momento que você está”, contou Jean, enquanto constantemente arrumava a camisa. “A primeira terapia, em específico, foi muito boa. Não por mim, mas pelo que eu pude ver das pessoas que estavam lá. Apesar de tudo que estava acontecendo elas estavam tão bem. O que mudou foi a minha visão de mundo, acabei percebendo que as coisas são melhores do que elas parecem ser. Além disso, as sessões me ajudaram no autoconhecimento”. Para levar a conversa a outro rumo, falamos sobre a faculdade e seus planos. “Deu raiva eu não ter descoberto a musicoterapia antes. Sou apaixonado por música. Quando li sobre ela casou mais ou menos na época em que descobri a doença. Meu intuito hoje é ajudar as pessoas. Pretendo trabalhar usando
Jean Victor conheceu a musicoterapia na ABEM após utilizá-la como tratamento para esclerose múltipla.
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Alunos do curso de musicoterapia em aula prática
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a musicoterapia com a reabilitação de dependentes químicos”, planeja Jean. Nos envolvemos bastante com a musicoterapia, e em meio a pesquisas descobrimos que existem diversas terapias. Outra que nos chamou atenção foi a arteterapia, onde encontramos a criadora de uma vertente; Joya Eliezer. Quando chegamos à clínica esperamos em uma sala escura com um sofá e duas cadeiras de couro. A pouca luz que entrava era deformada pelo vidro distorcido da porta, intimidante. Quando a fechadura soou, uma pequena senhora de aproximadamente 1,5m; cabelos curtos e acinzentados, saia jeans longa e moletom azul entrou. Em função da foto que aparecia na troca de e-mails criamos a imagem de uma mulher forte e charmosa, quando na verdade ela era uma senhora aparentemente frágil e pouco vaidosa. Após uma breve conversa Joya disse de forma inusitada, “Não dá para ficar aqui, existem polímeros no ar que vão acabar irritando nossa vista”. Não estávamos sentindo nada, o local pouco iluminado apresentava o odor típico de uma sala de espera. Sem hesitar nos levantamos e logo percebemos tamanha sensibilidade que aquela pequena senhora apresentava. Caminhamos até a esquina e nos acomodamos no bar Nova Tupi, 146. O local era simples, poucas mesas, antigo e escuro. Por educação Joya perguntou onde queríamos nos sentar, mas logo caminhou até a mesa a qual desejava, reprovando o lugar indicado por nós anteriormente. Era nítido que estava passando por momentos conturbados, diversas vezes desviou o assunto da entrevista solicitando um lugar para morar, como se não bastasse, até hoje
Joya nos envia e-mails do gênero: “Preciso dormir em SP hoje e preciso de uma casa que fica na Barra Funda, Rua Camarajibe. Você consegue reserva-la para mim, não sei como fazer. É para hoje, dia 19. Grata Joya”. Mas ela sabia muito sobre arteterapia, e isso era o mais importante. Segundo ela, a arteterapia surgiu também nos EUA com o tratamento de enfermos. Enquanto falava parecia que um filme passava em sua cabeça, mexia as mãos de maneira circular para frente como se aquele movimento desse andamento ao mesmo. Estava mergulhando em um universo que não pertencia mais a ela, uma realidade que a vida levou, sem deixar satisfação. “Foram 25 anos de pesquisa, por todo o país, casei com o Brasil, com isso me tornei sensível, sinto coisas que os outros não sentem” e logo emendou sua alergia a desinfetante e a ausência de lugar para morar, angustiada. Joya já lecionou em universidades de renome como: USP, Unicamp e PUC. Há aproximadamente 15 anos passou a ensinar arteterapia a céu aberto no Parque da Água Branca, e começou a estudar a interação e a importância do ambiente em suas dinâmicas. Ao descrever o projeto fez uma pausa maior que as anteriores, sua voz falhou, era possível sentir a dor em suas palavras “nas pesquisas eu tive um grande companheiro, que faleceu há quatro meses”, imaginamos a perda do marido ou alguém do gênero, “Tommy, um cãozinho vira-lata”, lágrimas começaram a brotar em seus olhos, estávamos sem reação. Neste contexto Joya percebeu que os animais eram muito mais sensíveis a tal energia, denominada “energia de vida” e assim foi pesquisar o que era ecologia profunda, “a integração entre o ser humano e o ambiente, não só externamente como internamente, chamamos de psicologia humana e psicologia ambiental, as duas juntas, ecologia”. Com a ajuda de Tommy, Joya percebeu que a energia do ambiente influenciava no desenvolvimento das dinâmicas. “Tommy era um co-terapeuta, ele ficava no consultório comigo, na sala de aula e quando uma aluna ficava triste ele ia lá lamber o rostinho dela”, contou emocionada. De certa forma, juntos criaram uma vertente da arteterapia, conhecida como ecoarteterapia, “ela integra o ambiente, os elementos naturais com a natureza íntima da pessoa. Cada
um de nós tem uma natureza que necessita de alguns elementos para se harmonizar e essa integração pode ser feita com a ecoarte”, mecanismos semelhando à identidade sonora apresentada por Raul Brabo. Joya explicou seu projeto de estudo
“CADA UM DE NÓS TEM UMA NATUREZA QUE NECESSITA DE ALGUNS ELEMENTOS PARA SE ARMONIZAR”
sempre citando ações do cachorrinho Tommy. A arteterapeuta falava de forma direta sobre a energia da natureza através da arte, mas ao mesmo tempo se encontrava fragilizada, como se o antídoto pelo qual pesquisou por toda vida não estivesse fazendo efeito em função de suas perdas, seja a morte do cachorro ou de sua casa. Joya tem um estúdio onde guarda 30 DVDs com todos os programas dos quais já participou. Imaginou algo muito além do seu tempo, mesmo não estando apta a novas tecnologias conseguiu utilizálas a seu favor, mas o material ainda não foi divulgado como desejava. A ecoarterapeuta constatou que “o clima de cada região e seus materiais tinham uma forte influência no ser humano”, com este estudo chegou a receber uma chancela da UNESCO e do Itamaraty. Novamente Joya nos surpreendeu “vocês poderiam me dar uma carona? Preciso atender uma senhora às 11h” disse de forma inusitada. Entendemos que aquele era fim, oferecemos a carona e seguimos até o destino com os papéis invertidos, aquela pequena senhora sem papas na língua resolveu nos entrevistar.
Alunos de musicoterapia produzem música no intervalo das aulas
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A Portuguesa vive momento complicado em sua história, mas nem sempre foi assim. Seja qual for a situação que a Lusa esteja, torcedores apaixonados como Marcos e Moisés acompanharão e lembrarão da história do clube lusitano com amor Daniela Caravaggi e Gabriel Tarantelli
11 de agosto de 2013. Final da tarde de um domingo na capital paulista. Dia de rodada no Campeonato Brasileiro. O jogo era entre Portuguesa e São Paulo, no estádio do Canindé, casa lusitana. Na ocasião, o adversário não vinha nada bem e freqüentemente era associado ao risco do rebaixamento para a segunda divisão. Situação não tão diferente do mandante da partida. A Lusa, assim como o time do Morumbi, estava na zona de descenso do campeonato em décimo oitavo lugar e, como de costume na temporada, o medo consumia os 8.600 torcedores presentes naquela tarde fria, que beirava 15 graus. Afinal de contas, o campeonato e todas as competições do século XXI não se assemelhavam em nada com o que a apaixonada torcida da Fabulosa estava acostumada. Para uma equipe que já contou com ídolos como Zé Maria e Wladimir, nas décadas de 80 e 90, e um dos melhores elencos do país em 1996, ver um plantel e uma diretoria com um planejamento tão modesto poderia desmotivar qualquer um. Só que a situação não se aplicava a um jogador que entraria em campo naquele domingo. Um atacante, para ser mais exato. Um atleta que voltara às origens depois de uma boa passagem pela Grécia e outras duas não tão boas por Flamengo e Santos: Diogo Luís Santo. Alguém
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que pode não ser um ídolo para os torcedores, mas que certamente tem crédito por ser uma das crias do clube e retornou à casa que o revelou com objetivos claros: salvar o time. Naquela partida, válida pela décima terceira rodada, a Lusa venceria o São Paulo com dois gols dele. O primeiro, aos trinta e sete da primeira etapa. Cruzamento da direita, o experiente Rogério Ceni espalmou a bola e Diogo estava lá para balançar as redes. A torcida foi ao delírio e aumentou ainda mais os gritos para empurrar a equipe. Eles queriam mais e nem mesmo o gol de empate tricolor, na volta do intervalo, freou os gritos de motivação. E como uma resposta para aquela platéia, que não parava de cantar, Diogo marcou mais um e decretou a vitória. No caso, a bola sobrou nos pés do jogador que, em meio ao bate e rebate, empurrou para o gol e decretou a vitória dos anfitriões. Em meio às lembranças de ter o nome gritado no apito final do árbitro Rodrigo Nunes de Sá, o já não tão jovem atacante de 26 anos não pensou duas vezes em retornar ao clube vizinho da Marginal Tietê, depois das viagens para a Europa, Rio de Janeiro e Baixada Santista: - Eu gosto muito da Lusa, me sinto em casa e achava que era o momento de me sentir em casa novamente para desenvolver o meu futebol - contou, com um olhar que consegue expressar,
sem sombra de dúvidas, o sentimento de que fez a escolha certa. E a volta se deu mesmo após receber propostas muito mais tentadoras financeiramente. O início de carreira, visto como um menino prodígio nas categorias de base da Fabulosa, ainda lhe rendia um bom mercado. Mas a paixão pela equipe que lhe formou e que lhe introduziu ao mundo futebolístico eram maiores. “Na verdade, eu tive outras propostas, mas foi uma questão pessoal, que partiu mais de mim mesmo. Claro que tenho meu empresário, minha mãe, mas foi uma
“eu gosto muito da lusa, me sinto em casa”
decisão minha”, disse o paulistano, que também havia decidido vestir a camisa da Lusa para a entrevista. Depois de passar por uma sessão de treinamentos, o suor de um atleta que quer se tornar ídolo é notavelmente reconhecido. Adotar a Associação Portuguesa de Desportos como uma segunda casa. Talvez seja isso que falte aos atletas que vestem a tradicional camisa verde e vermelha da equipe. Algo que se hoje não é visto com tanta freqüência, mas que pode ser facilmente encontrado na história. Fundada no dia 14 de agosto de 1920, a Portuguesa teve o seu início com a fusão de cinco sociedades lusitanas presentes na capital paulistana. Rodou por toda a cidade, conquistando títulos de campeonatos amadores e procurando por um lugar para poder chamar de lar. Chegou ao Canindé em 1956 e, junto a ela, todo um mar de fãs adquiridos nos quatro cantos de São Paulo. Apaixonados como um dos assessores de imprensa do clube Marcos Teixeira, que descobriu o seu amor à equipe rubro-verde aos sete anos de idade, por influência de seu tio Albino, que o levou a primeira vez ao Canindé, em 1985. Marcos lembra com saudade da ocasião.
Diogo defendendo as cores da Portuguesa pela segunda vez na carreira e atuando pelo Campeonato Brasileiro de 2013.
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Atletas do time profissional da Portuguesa reunidos e focados em uma terça-feira de treinos no Centro de Treinamento.
Era Portuguesa vs Marília, pelo Paulistão. Com gols de Toninho e Toquinho, a Portuguesa venceu o duelo por 2 a 0. Na semana seguinte, aquele jovem torcedor retornou à “casa lusitana” para assistir outra partida. Dessa vez era Lusa Vs São Bento, também pelo Paulista. O placar foi elástico: 5 a 1 para a Portuguesa, com dois gols de Edu, dois de Toninho, e um de Jones, contra um do São Bento que Marcos não recordava o autor, mas também não importava. Era momento de lembranças lusitanas. - O time era muito bom. Tinha o Luis Pereira e o Jorginho, que depois veio ser técnico da Portuguesa anos depois, em uma das melhores fases da história do clube - lembrou Marcos com saudade. Neste cenário, a Lusa conquistou o vice-campeonato Paulista daquele e ano, e Marcos nunca mais abandonou o amor pelo clube, também muito em função da origem Portuguesa que ele tem. O amor que ele tem por suas origens ultrapassa até sua nacionalidade. Quando Brasil e Portugal se enfrentam, adivinhem para quem Marcos Teixeira torce? “Sem dúvidas torço para Portugal”, enfatizou o assessor. Os detalhes dados pelo torcedor depois de 28 anos deixavam transparecer a todo momento o entusiasmo e a memória de um garoto que viveu bons anos de Lusa, e, hoje, em 2013, vê a equipe jogando para não ser rebaixada.
E é nessa equipe que tantos jogadores que vieram da base rubro-verde procuram espaço. Eles procuram sempre ouvir a voz da experiência trazida por jogadores que já passaram por muitas coisas em suas carreiras, como por exemplo, o capitão Valdomiro e o volante Correa. Talvez seja de novos garotos de que a Portuguesa precisa, para se renovar e voltar a ser o que sempre foi. Só assim para dar uma sobrevida à esperança de torcedores como José Moisés Vieira Baptista, um amante da Fabulosa comprovado até mesmo pelo RG. Afinal de contas, os quatro nomes de origem lusitana não são mera coincidência para o garçom de 51 anos. Natural de Angola, colônia portuguesa até 1975, Moisés, como prefere ser chamado, veio para o Brasil seguindo um fluxo migratório recorrente de sua terra natal e, em busca de uma chance na vida, veio parar nada mais, nada menos, que na cidade das oportunidades: São Paulo. Apesar do tiro no escuro do então jovem de 18 anos, ele não chegou a sofrer tanto como outros conhecidos. Uma família nascida em Portugal e residente em Ipiranga aguardava o angolano. O ano era 1979 e, em paralelo à busca de Moisés, a Portuguesa aproveitava a década vitoriosa em que vivia. Foi Campeonato Paulista e Taça Estado de São Paulo em 1973, Taça Governador do Estado em 1976, Taça dos Invictos em 1974. Uma lista que o garçom lembra-se de cor e salteado. - Eu não vivi nesses anos de tantos títulos, mas cheguei em uma década gloriosa para a Lusa - ressaltou. Talvez por isso, ele e toda a família ali presente adotaram a equipe para torcer. Claro que o nome e a fundação ajudaram na decisão de todos, afinal, Associação Portuguesa de Desportos soa como um clube para representar não
“cheguei em uma década gloriosa para a Portuguesa” 102 | Narrativa
“eu gosto daquela porcaria” só os paulistanos da cidade, como os portugueses que chegaram ao país. E assim como uma doença, a máxima de que o futebol é a paixão dos brasileiros atingiu o agora morador da cidade. Só que com o passar dos anos, a paixão de Moisés envelheceu junto aos anos de glória da Fabulosa. Já enraizado na capital, o garçom mostra certa angústia com o recente retrospecto luso nos torneios. “O time não tem mais dinheiro, não consegue tantos patrocínios”,mas assim como um jovem torcedor apaixonado, completa: “Mesmo assim, eu gosto daquela porcaria”. Ídolos? Esses são uma unanimidade para qualquer torcedor da Portuguesa e, com Moisés, não seria diferente: Dener e Capitão. Ambos chamaram a atenção em mais uma década vitoriosa da equipe do Canindé. Enquanto Dener ganhava destaque balançando as redes dos lusitanos, Capitão comandandou o meio campo do time até 2003, conquistando o título de jogador que mais vestiu a camisa rubro- verde na história do clube. Ao falar daquela época, Moisés não esconde o sorriso no rosto. Foram os anos
em que ele mais freqüentou o estádio e assistiu ao clube do coração. Um período que provavelmente foi marcante para qualquer torcedor da Fabulosa: Melhor time do Paulista de 1995, vice-campeão nacional em 1996 e semifinalista do Paulista de 1998. Em 1998, aliás, está guardada a lembrança que mais aflora a paixão do angolano. - A partida era contra o São Paulo no Estádio do Morumbi e a minha Lusa fez sete gols - lembrou. O duelo era válido pelo Campeonato Brasileiro e a Portuguesa abusava da boa forma. Podia ser o jogo mais marcante para Moisés, mas a imagem dos jogadores que fizeram os gols parecem ter ficado no passado. Ele revirou a mente procurando por um nome, em vão: - Não me lembro de ninguém que fez os gols, mas o que importa é que fizemos história naquele estádio - disse. Mas, passado é passado. Os anos de glória da torcida ficaram na história, só que o clube ainda esconde algo em especial. Um sentimento que faz de torcedores como Moisés e Marcos seguirem acompanhando a situação da equipe independente de qualquer coisa. Um carinho que conquista atletas como Diogo e fazem de jovens como Luan Peres sonharem com um futuro repleto de vitórias. Uma paixão que transcende o desempenho do time e que reforçam o grito de “Seja o que for, Lusa por amor”.
Estádio do Canindé antes de mais um desafio da Lusa na temporada para o Campeonato Brasileiro de 2013.
Moisés com o tradicional traje antes de vestir-se de garçom no restaurante Bacalhoeiro, na região do Tatuapé.
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Centro de Acolhida Pedroso, Bela Vista
Relatos de experiências em três Centros de Acolhida da cidade de São Paulo e a resistência dos moradores de rua Fernanda Eid Julia Guedes
Bela vista Uma pequena escada de aspecto sombrio, no meio do nada, levava para o portão de entrada. Um homem angustiado carregava algumas sacolas e roupas gastas e esperava por alguém do outro lado do portão, o qual emitia um ruído agudo toda vez que era aberto. Poucos minutos depois descobri que estava esperando pela mesma pessoa que ele. Ao entrar e descer para um subsolo pelas escadas escuras e pouco convidativas, lia-se a frase “Não podemos mudar tudo, mas fazemos de tudo para mudar” em uma placa que parecia estar ali para ajudar, de alguma forma, a quem lê. A seguir, me deparei com um saguão relativamente grande, com paredes de cor amarelo escuro – que sinalizavam a idade da tinta –, quadros de avisos: “Grupo de apoio para dependentes químicos, terças e quintas, 19hrs”; E algumas pessoas indo e vindo com destinos pré-determinados. Outras sentadas em frágeis cadeiras isoladas, com o corpo curvado, lendo com interesse um jornal ou as informações dos murais. O cheiro que nos rodeava era de limpeza, junto com a miscelânea de odores que exalavam de cada indivíduo que ali se encontrava. Uma das funcionárias se dirigiu até o portão de entrada para conversar com o homem que ficou. Por alguns segundos, a cena me remeteu o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. O sujeito, enfurecido, queria entrar na barca. Ela, obediente, dizia que o horário de entrada era só
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de manhã. Depois disso, teria que voltar às 18hrs para agendar seu retorno. Após indas e vindas e algumas discussões como: “– Você já sabe das regras, se quiser ficar aqui tem que seguí-las! Não vou liberar para você”; O homem pareceu aceitar sua condição e o clima se acalmou. Uma das almas que já tinha seu lugar garantido na barca comentou: “– É baixinho mas é bravo pra caramba, tem que ter calma nessas horas”. Ao me aconchegar em um banco no fim do hall, pude observar o cotidiano daquele lugar. Homens que pareciam sem rumo, esquálidos e subnutridos que se dirigiam até lá buscando por algum tipo de amparo ou somente para satisfazer suas necessidades básicas, como tomar banho, se alimentar e dormir. Por mais que parecesse um presídio – por sua ambientação e regras – se tratava de um abrigo, um Centro de Acolhida para moradores de rua. Ainda que fosse precário (devido a sua localização – em um viaduto – e pouca infraestrutura), percebia-se ali, por meio de comportamentos e condutas, grande esforço dos funcionários e até mesmo dos “conviventes” para que se tornasse um espaço habitável. Dois conviventes – termo que usam para denominá-los por não gostarem de os chamar de “usuário” – que esperavam sentados foram chamados na recepção. Acostumados com as normas, deram suas poucas informações, pediram licença e entraram para os dormitórios. Ao meu lado, outros dois homens conversavam com certa
empolgação. – E aí, amigão, tudo em paz? Tá trabalhando? – Eu tô pelo mundo afora. Fiquei oito dias sem vir aqui, tava no hospital. Voltei e ninguém tinha mexido no meu armário. Sorte, né? Durante o dia são atendidos 100 homens em situação de rua que seguem as regras e horários de almoço (11hrs – 12h45), banho e lavagem de roupa – feita em pequenos tanques, com sabão que recebem junto com uma pasta de dente –, as quais secam em um varal improvisado dentro de um espaço abafado e quase asfixiante, onde se encontravam diversas poças de água perdurassem sempre embaixo das peças de roupas. Embora a permanência no Centro seja até às 16hrs, o objetivo maior dos que frequentam é entrar, comer e sair. Ao que parece, ninguém abre mão da liberdade da rua, de poder fazer o que quer na hora que bem entender. Constatei, então, o mesmo do que foi observado por George Orwell em sua obra Na Pior em Paris e Londres (1933) sobre suas experiências em abrigos: a pobreza, além de apresentar o tédio e os primórdios da fome ao indivíduo, também aniquila seu futuro. Como dito pelo autor, a pessoa fica entediada e, literalmente, “no cano”, e isso já proporciona um sentimento de alívio por não ter o que temer. Para mim, era isso o que parecia acontecer com alguns dos moradores de rua de São Paulo. Enquanto aguardava fazendo anotações, um senhor com olhos esgotados, porém abertos, me abordou. – Você é psicóloga? – Não, sou estudante de jornalismo. – Pô, legal. Esses dias vi um músico na Sé. Tinha tudo pra dar certo, mas
“sabia o quão injusto o mundo era e que a “podridão não vem só da pobreza”
precisa de dinheiro, né. Só se alguém ver ele lá, levar pra um programa de TV e aí ficar famoso, que nem o Zezé de Camargo e Luciano, que vieram de baixo. Eu trabalhei numa fazenda de uma dupla assim, João Paulo e Daniel, eram gente boíssima, tinha que ver. Quando reparei já sabia de grande parte da história do José. Tinha 48 anos, três filhas, disse que serviu ao exército – época em que namorou uma índia que o apresentou, dentro do coração da Amazônia, a erva sambacaitá, que, para ele, é um dos segredos da mata e da natureza que possui diversas propriedades medicinais. Contou também que era maçon, que tinha alguns problemas com o álcool e que estava ali por necessidade. Sabia o quão injusto o mundo era e que a “podridão não vem só da pobreza”. Naquela mesma semana havia passado mal enquanto estava na biblioteca e foi levado ao hospital, onde permaneceu por oito dias. – Quando minha pressão caiu veio tudo na cabeça, as coisas boas, as ruins, o futuro das minhas filhas... Por mais que para quem vê a situação de fora a tristeza pareça ser uma condição, naquela momento a vi como uma opção, que só era escolhida por quem se entregava a ela. Os que resistem parecem viver suas vidas no ócio do diaa-dia, como se baseados no absurdismo de Camus: indiferentes ao sistema sem sentido que os rodeia, cheio de regras e assim mesmo defeituoso. Alguns deles não parecem se importam nem mesmo com o frio, e resistem até mesmo a situações emergenciais para não abrir mão de sua liberdade nas ruas. Já os que procuram uma saída possuem o apoio dos assistentes sociais dos abrigos, que os encaminham para obter seus documentos e procurar emprego para que futuramente possam ir para uma república ou até mesmo conseguir uma casa própria. No período noturno, o Centro conta com 200 vagas para conviventes que podem dormir lá duas vezes por semana, mas não em dias seguidos. Esses recebem correspondências e possuem seu próprio armário para guardar seus pertences. A estadia máxima é de seis meses. Há alguns complexos que excedem o número de moradores permitidos, tornando o atendimento que deveria ser individualizado muito amplo e ineficaz, além de piorar as condições dos Centros de Acolhida, que já são bastante insatisfatórias.
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Centro de Acolhida Vila Leopoldina
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Vila Leopoldina Era sábado, dia 13 de setembro de 2013, o dia em que resolvi visitar um albergue localizado na Vila Leopoldina. O dia estava ensolarado, muito bonito e quente. Um dia diferente para mim, mas comum e igual para todos os outros que eu encontraria em poucos minutos. A rua era estreita. Minha primeira dificuldade foi encontrar o número do local em meio a tantos outros estabelecimentos velhos que estavam próximos dali. Eis que avistei o número e então revolvi procurar a campainha. Assim que pensei em tocá-la, o portão se abriu. Era a assistente social que trabalhava para a casa há algum tempo auxiliando nas atividades básicas e estava para jogar alguns lixos no lado de fora. Até então eu só tinha imaginado como seria minha visita, mas quando o portão se levantou que eu realmente tive o choque de ver todos em minha frente. Meu primeiro sentimento foi medo, pois naquele momento, diversos homens largados, desarrumados, sujos olharam para mim e culpo-me por isso. Alguns sentados na varanda, outros perto do portão, comendo frutas, e o que mais me chamou atenção foi um homem com a calça muito baixa deixando mostrar, sem nenhuma noção, sua roupa íntima. Logo questionei à assistente social sobre minha possível entrevista, perguntei: - Não tem problema eu entrar, né? Estou um pouco aflita. - Estava me sentindo assim e quando entrei muitos deles começaram a falar alto e me assediar com os olhos, imaginei que nada impediria de deles se levantarem, mexerem comigo ou me agredirem, por isso questionei se haveria
“O LUGAR ERA COMO UMA CASA, SEM NADA DEMAIS (...) era realmente onde eles ficavam” problema e a assistente respondeu: Relaxa, minha filha, estou aqui todos os dias. Eles não fazem nada. A primeira vez é assim mesmo. Não pensei. Deixei me afetar pela situação e, dessa forma, continuei. O lugar era como uma casa, sem nada demais, achei que aquilo era um ponto de encontro, mas logo descobri que era realmente onde eles ficavam. Fui levada até a sala, ainda com um pouco de receio e me culpando por essa sensação. Assim que cheguei lá, fui apresentada para Edvalda Ferreira, gerente do Albergue, que pareceu não estar interessada em conceder-me uma entrevista, seu rosto estava cansado e aflito e imaginei que fosse uma senhora um tanto quanto fria. Entretanto, eu estava enganada, assim que começou a falar sobre o que fazia, mudou completamente sua fisionomia, passando a impressão de que era uma senhora com um coração gigante, disposta a ajudar pessoas que geralmente são desprezíveis perante a sociedade. Segundo ela o local, que funciona 24 horas, foi feito devido a um levantamento em meados de 2002 que apontou a existência de muitos moradores de rua na região, dessa forma, eles resolveram criar o Zancone. Hoje, a casa abriga cerca de 100 homens e a seleção do sexo é devido à grande quantidade de homens na rua, desde pedreiros, carregadores de caixas, de carros até aqueles que ficam andando sem propósito nenhum. O fato é que nenhum deles tem casa para morar e muito menos a quem pedir ajuda, e por isso senti que eles gostam de ficar no albergue, a maioria é morador fixo que usufrui de um bom banho, de um almoço, de um jantar e de um lugar para dormir. De acordo com a gerente, há alguns que passam durante a tarde, até mesmo
mulheres e crianças. Pelo que percebi, além de oferecer o necessário, que é a alimentação e local para dormir, Edvalda investe na vida profissional de cada um, sabendo que a dificuldade de entrar no mercado formal é grande. A gerente, juntamente com as assistentes sociais que disseram amar o que fazem, procura fazer toda a documentação necessária para poder empregá-los e também colocar o albergue como referência para que eles possam abrir contas no banco e ter as próprias coisas. Durante nossa conversa, Edvalda falou que geralmente eles assistem TV, discutem filmes, conversam com as assistentes sociais e têm aulas de música. Fico imaginando como seria a discussão deles, essas pessoas devem ter pontos de vista extremamente interessantes a respeito da sociedade, quando sóbrias, obviamente. Quando a questionei sobre as principais dificuldades, a doce senhora sem esconder sua expressão de simplicidade, dizia que era o medo de ser agredida, devido à quantidade de embriagados e drogados com quem convive diariamente. Enquanto relatava os principais problemas, aconteceu algo estranho, ela citou: “A maioria das pessoas que vem para cá, além de Aids, Hepatite, tem tuberculose”. Nessa hora, senti meu rosto mudar de expressão naturalmente, afinal, essa doença se adquire pelo ar, portanto fiquei muito assustada e me distraí nos minutos seguintes da nossa discussão. Confiando na minha sorte e sabendo que esse tipo de situação é bem comum para quem faz jornalismo, respirei fundo e prossegui com a entrevista. Aquela expressão de desinteresse havia morrido dentro de Edvalda, assim que nossa conversa fluía, dava para perceber como ela gosta do que faz. Há 15 anos na área diz que não se vê fazendo outra coisa e o mais importante é que modificando a vida de uma pessoa, ela transforma uma família inteira. O mais gratificante para ela, é ver alguém tocando a campainha e dizendo que conseguiu um emprego e alugar sua própria moradia. “Aqui é o único lugar que a gente fica feliz quando a pessoa vai embora e não volta nunca mais”, falou sorrindo. No meio da entrevista, surgiu um senhor que começou a vasculhar o saco de roupas doadas, eles disseram que só possuem roupa de mulher, e quando chega coisa nova, eles correm para pegar,
pois roupa masculina é o que mais falta. Na hora de ir embora, conversei com a assistente que me recebera com um largo sorriso no começo, moça de boa vontade, que se identifica pelo trabalho e está disposta ajudar cada um que aparece. Para ela, o que mais é marcante no trabalho são as lembrancinhas que faz para cada um dos moradores de rua, que reconhecem o trabalho e gostam de voltar ao abrigo. Afinal, parece que não os tira a liberdade, tudo que eles precisam é de atenção, portanto eles vão embora quando querem, mas a maioria volta, volta para a cama, para comida e para o carinho, que eles não encontram na rua. Brigadeiro A Casa contava com 133 mulheres, com filhos (desde recém nascidos até com 17 anos), que dividiam ou, dependendo do caso, tinham seu próprio quarto. A permanência máxima era de um ano e seis meses, caso não acontecesse nenhum episódio de roubo ou mau comportamento. Como o abrigo era destinado a mulheres, logo na entrada via-se um quadro de avisos, inteiro desenhado e colorido, com uma folha pregada que perguntava “Como está se sentindo hoje?”, e algumas opções de estados de espírito embaixo, mas nenhuma estava assinalada. Subi as escadas até o primeiro andar daquele prédio de sete andares, que era todo ambientado para mulheres – desde suas cores até a decoração. Fui atendida pela recepcionista, que me encaminhou para a sala de espera. Uma criança de uns seis anos apareceu na meia porta e perguntou se podia jogar bola. A funcionária olhou para as câmeras de segurança no computador em sua frente (para ver qual era o movimento no playground do prédio) e respondeu que sim. – “Esse aí tem mais cinco irmãos”, afirmou assim que o menino desapareceu de sua vista.
“133 mulheres com filhos (desde recém nascidos até com 17 anos)” Narrativa | 107
Morador de rua nos arredores do bairro Bela Vista, próximo ao Centro de Acolhida Pedroso
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Durante a permanência no abrigo, visitei cada quarto, sala e banheiro de todo o edifício. Um dos maiores problemas no momento – que foi resolvido no final do dia – era a ausência de água quente para tomar banho. Ao entrar em um dos quartos que abrigavam mães com seus filhos, me deparei com uma mulher que aparentava ter uns 23 anos com uma toalha enrolada nos cabelos e pedindo sua roupa para sua filha. – Ouvi o barulho de água e fui correndo tomar banho! No decorrer da visita pude observar diferentes comportamentos. Algumas mulheres pareciam dispostas e fortes, como que preparadas para qualquer situação. Outras aparentavam frustradas, deitadas em suas camas como se estivessem ali há semanas. Mas as que mais me chamaram atenção foram as felizes, que transbordam paz de espírito e contagiavam o ambiente, tornando tudo aquilo suportável. Ao chegar em outro andar me deparei com uma moça jovem, com seus 20 anos, cantando uma música enquanto lavava o chão de seu banheiro. Ao lado do carrinho de seu bebê havia uma janela cheia de bonecas barbie que, apesar de serem velhas, pareciam bem cuidadas. Parecendo impaciente, disse – Para de chorar, filho! Não vou pegar você agora não. Oxe, parece que não passa essa sua fome nunca! A assistente social, depois de me explicar como todo o lugar funcionava – horários para café da manhã, almoço e janta; arrumação de quartos (turnos entre as moradoras), horário para sala de TV,
pintura e biblioteca – também ressaltou que nenhuma das conviventes gostava de seguir as regras e que, para ela, essa ainda era a principal resistência ao abrigo. Outro grande problema eram as brigas entre as moradoras. De acordo com ela, “mulher tem disputa de ego”. Quando perguntei o que ela achava sobre a assistência que os abrigos ofereciam, ela respondeu, – Talvez não seja eficiente. A intenção é fazer um trabalho com o usuário, mas até que ponto podemos interferir em suas vidas? Precisamos ajuda-los a buscar autonomia e não assistencialismo. Enquanto guardava meus pertences para ir embora, uma nova moradora chegava ao abrigo. Sentada na sala de espera, com roupas gastas e uma expressão indiferente, respondia com um “ok” para tudo o que estava sendo lido pela recepcionista, que segurava um papel com as condições da Casa em suas mãos. Com essa cena na memória, peguei minhas coisas, agradeci pela atenção e me retirei. Um mês depois, vi a mesma mulher que estava chegando ao abrigo distribuindo panfletos em um dos semáforos da praça 14 Bis. Sua fisionomia me fez lembrar da primeira vez que a vi e, por alguns instantes, senti como se aquela mulher houvesse marcado minha vida para sempre. Por algum motivo, lembrei da frase de Gandhi: “Tudo o que você fizer na vida vai ser insignificante, mas é muito importante que você faça”.
Flávia Mengar Isabella Filippini Livia Geampaulo
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Vila Maria Zélia é um condomínio fechado, localizado no bairro do Belenzinho (Zona Leste de São Paulo). Mas não se engane, não é um condomínio habitual, com muros altos e casas exuberantes. Apesar de ser fechado, o local se assemelha muito com uma vila propriamente dita. Dentro, há ruas com casas no estilo do início do século XX, comércio, teatro, igreja e dois colégios abandonados. Foi idealizada e fundada por Jorge Street, construída entre 1911 e 1916. Maria Zélia foi inaugurada em 1917, sendo a primeira vila operária do Brasil, e construída com a intenção de hospedar os operários da fábrica Cia. Nacional de Tecidos de Juta, que hoje também está em ruínas. Hoje é composta de cerca de 200 casas e em torno de 600 a 700 habitantes. Ao chegar à vila, fomos procurar o zelador voluntário, Edélcio Pereira Pinto, mais conhecido como “Seu Dedé”. A sua casa é tradicional, pintada de rosa claro. Assim que batemos à sua porta e explicamos o motivo da nossa vista, Seu Dedé foi extremamente gentil e ficou animado para nos explicar a história da vila. Dedé nos levou até o colégio feminino, contando durante o caminho, que foi fundado,
junto com o masculino, em 1914, um de frente para o outro. Suas mãos ágeis e felizes apontavam para a parte de cima das escolas, impecavelmente iguais. É o único caso no mundo de duas escolas terem a arquitetura espelhada, pois não se diferem nem na estrutura e nem nos produtos utilizados na construção. O masculino está interditado, pois houve um pequeno incêndio dentro, causado por usuários de drogas, que ficavam no local durante a madrugada. O fogo fez com que uma parte do teto caísse e, desde então, o prédio está em iminência de desabamento. Mesmo bastante destruído e em ruínas, o colégio para meninas chega a ser arrepiante pelo fato de ainda possuir parte da arquitetura original, como os pilares e as escadas. O simpático e atencioso senhor de 64 anos deixou algumas lágrimas caírem ao lembrar-se da época em que era jovem e estudava no local. Suas mãos tremiam por conta do tratamento de hemodiálise. Dentro do local, é possível ver alguns bancos jogados da época em que as escolas funcionavam. Infelizmente, as paredes internas foram tomadas por pichações. Seu Dedé justifica o fato dizendo que alguns jovens pulam os muros do colégio durante a noite e ficam por lá “fazendo baderna”. Ao dizer isso, o rosto do idoso toma uma coloração avermelhada. Ficou bons e longos
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seis minutos dizendo como acha que os jovens de hoje são preguiçosos e não tem noção nenhuma da vida. – A geração de você é a do “tipo assim”. Se for proibido falar “tipo assim”, vocês ficam mudas. Eu sou autodidata, tenho facilidade em me expressar. E isso me revolta. Lá dentro é frio, gelado, entra uma brisa que parece fazer curvas. O espaço está entreaberto. Enquanto os pés rondam por cima das folhas e galhos secos, é possível perceber que os muros e paredes, desgastados, jogam pedaços de concreto fora. Basta passar a mão e se desfazem. Seu Dedé explicou que esses colégios foram desativados em 1969 por conta da abertura de um SESI na Rua Catumbi,
“a geração de vocês é a do ‘tipo assim’. Se tirarem, vocês ficam mudas.”
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Livia Geampaulo
A Vila Maria Zélia é um local cheio de história. Apesar de ser um condomínio fechado, fica aberto para a visitação.
bem próxima da vila. Os alunos se transferiram para a nova escola e, como não tinha mais para quem dar aula, foram obrigados a fechar as portas. O lugar fez parte do cenário da novela infantil Carrossel, recém-terminada no SBT. O cenário é tão famoso que sempre aparece na mídia, em campanhas publicitárias, novelas e até mesmo em pequenas séries. O último reality show Menina Fantástica, exibido na revista eletrônica Fantástico, da Rede Globo, e que se refere a um concurso de moda, trouxe seu último ensaio fotográfico da edição ao colégio feminino. Seu Dedé nos revela que ali é um lugar muito disputado para eventos, e por esse motivo, tem uma agenda já lotada até o final do ano. A arquitetura dos colégios feminino e masculino foi pensada pelo francês Paul Pedarrieux e sua estrutura foi inteiramente importada da Europa. Nenhum produto usado na construção é produzido aqui no Brasil. Todo ferro utilizado é sueco. - Esse prédio ficou pronto em 1914. Nessa época no Brasil não se fabricava nem prego. O material pra construção veio todo de navio - conta o Seu Dedé. A comunidade europeia quis restaurar os dois colégios recentemente para construir duas ETECs, doando aproximadamente 65 milhões de reais. A prefeitura, que toma conta – sem exatamente tomar conta porque as escolas estão abandonadas – achou que as ETECs não trariam lucro para o estado
de São Paulo e demorou a começar a pensar na restauração, apesar do dinheiro já estar disponível. A Europa entrou em crise e isso fez com que o dinheiro fosse pedido de volta e a restauração deixada para trás. - Nesse momento, eu tive a esperança de ver essas duas escolas que eram belíssimas sendo restauradas. Hoje, eu sei que vou morrer vendo apenas ruínas. – lamenta. Na Vila, encontramos uma igreja, que foi construída na época em que o papa era Bento XV, e segundo o zelador voluntário de olhos extremamente azuis, a autoridade católica doou à Vila um mimo: um pedaço da cruz de Cristo. – Até a Capela traz uma história bonita –. Por dentro, vitrais vindos da Áustria. Por fora, a calçada que ronda a igreja traz um jogo de amarelinha pintado. Servia para as crianças brincarem e não atrapalharem a missa. Enquanto caminhamos, o vento bate gelado. Seu Dedé tem sede de ensinar. Seu chaveiro preto de couro balança levemente por todo o tempo, conforme treme as mãos. No trajeto, podemos notar uma arquitetura bem diferente nas poucas casas que se encontram ali. Ouvimos atentamente o ensinamento de que se trata de arquitetura italiana, portuguesa e espanhola. E ainda descobrimos de onde vem e expressão “sem eira nem beira”. Um pouco mais a frente, nos deparamos com chalés. – Esses chalés são como nos Alpes Suíços,
e são assim porque lá neva. Foram os poloneses que fizeram esse quarteirão -. Pausadamente, tentando conter a animação, o senhorzinho conta de uma casa totalmente preservada, que foi usada na gravação do filme do Mazzaropi, O Corintiano. – O Mazzaropi morou aqui. Compra o DVD. Na banca de jornal é R$7,00. Antigamente a Vila tinha aspecto de cidade. Havia até mesmo prefeito, que morava em uma casa de doze quartos e uma piscina, a maior já construída ali. Nos anos 40, O Grupo Escolar Maria Zélia virou o Colégio Manuel da Nóbrega, a primeira escola de química industrial do estado de São Paulo. Atualmente, o grupo de teatro da Universidade de São Paulo usa um dos
As escadarias do colégio feminino mostram o piso da época e alguns detalhes de construção.
“O Mazaroppi morou aqui. Compra o DVD. Na banca é R$7,00.” Narrativa | 111
Livia Geampaulo A máquina para produzir sapatos continua intacta, assim como outras, exemplo da de fabricar chapéu.
espaços para guardar equipamentos de cena. Desde 2012 o grupo atua na Vila, sempre trazendo novas peças e incentivando a cultura. – Se vocês não tiverem programa no final de semana, vem ver a peça. Chama Vestido de Noiva, vocês vão morrer de rir. Encontra-se por lá, também, a primeira indústria da cidade de São Paulo. A Companhia Nacional de Tecidos de Juta, fabricava a sacaria para ensacar o café. Além disso, há uma fabriqueta de Jorge Street, pioneiro na indústria de calçados e chapéus. Dentro, só o esqueleto das máquinas; são grandes e pesadas, e ainda que sem uso, estão em bom estado. Ao todo são três: duas de chapéu e uma de calçado. No canto, alguns pedaços de ferro, que logo descobrimos que a “molequecada”, segundo Seu Dedé, quebraram uma máquina e roubaram os pedaços para vender em ferro velho. O chão, de ladrilho hidráulico, é de origem francesa. Lembram vagamente um formato tridimensional e tem 100 anos de idade. As janelas são cobertas por tábuas, deixando o local escuro. E é impossível não sentir cheiro de lugar fechado e não
“Nessa época no brasil não se fabricava prego. o material veio de navio.” 112 | Narrativa
perceber os resquícios de velharia: pó em toda parte. – Tira uma foto aqui pra vocês fazerem parte da história também – disparou seu Dedé, logo nos posicionando pra uma foto. Ao fim do passeio pela Vila, estacionamos em uma antiga farmácia. Uma estante de madeira escura cheia de fotos antigas emocionou o nosso guia. Fotos de Tim Maia, do time de basquete masculino dos anos 50 da Vila Maria Zélia, do grupo da terceira idade, de uma fogueira enorme de uma festa junina e a mais emocionante de todas, aos nossos olhos e aos olhos de Seu Dedé. Uma foto dele com seu irmão, ainda bem pequenos, sentados em uma calçada. Eldécio Pereira Pinto dorme no quarto em que nasceu. Nunca saiu de lá e já avisa que nunca sairá. Faz parte de toda a história dessa Vila e nutre um amor incondicional por onde viver toda a vida. Com lágrimas dos olhos, conta de uma palestra que deu na Universidade de São Paulo sobre o início da Vila Maria Zélia. – Avistei uma moça com um pano de veludo verde. Não sabia o que era. Ela abriu e era uma medalha. – Pausa por uns segundos, enquanto segura a emoção. Não há como não se emocionar junto a ele. Em uma mistura de ternura e alegria, prossegue. – O reitor disse “seu Edélcio, ao poder a mim exercido, eu lhe dou o título de Amigo Cultural da Memória Viva do início da industrialização da cidade de São Paulo, para o senhor não dizer que nunca sentou em uma mesa de faculdade. Porque nunca precisou disso, nós é que precisamos do senhor hoje aqui pra nos dar essa palestra. – finaliza, já bem emocionado e com as lágrimas escorrendo pelo rosto cansado pelo tempo. A Vila conta hoje com uma sociedade civil, sem fins lucrativos, criada nos anos 80. A Sociedade Amigos da Vila Maria Zélia tem como objetivo cuida e manter o local em ótimo estado, dispondo de salões de festas, churrasqueiras, playground e outras áreas de lazer. Podemos notar a existência de uma mistura entre passado e presente. A Vila Maria Zélia é cercada de história. É uma relíquia no meio de São Paulo. Entramos curiosas e saímos arrepiadas. Seu Dedé nos acompanhou até o portão e fomos embora tão acesas quanto àquele lugar cheio de luz.
Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie comemora seu Jubileu com rico acervo de histórias que marcam a trajetória do ensino jurídico brasileiro Lucas Souza Nicolau Neto
Instituições tradicionais são verdadeiros patrimônios da cidade de São Paulo. Quando se fala na Universidade Presbiteriana Mackenzie, são “simplesmente” 61 anos de existência e atuação no mundo do ensino. Localizado bem na região central paulistana, na esquina da Rua Maria Antônia com a Itambé, dentro do campus Higienópolis, o Centro Histórico e Cultural Mackenzie abriga toda a documentação que conta os detalhes dos acontecimentos da trajetória mackenzista. É lá que nossa reportagem marca encontro com outro patrimônio vivo da universidade: Almiro Joaquim de Oliveira, de 75 anos. Miro chega ao local pontualmente. Com seus cabelos brancos, corte baixo, veio elegante: o terno preto bem passado parece recémcomprado. A cor da gravata é azul e o nó foi feito ao estilo americano (four in hand). Não é esse o traje mais comum para ele que trabalha hoje como encarregado do controle acadêmico. “Mas a ocasião é especial”, diz ele com seu sorriso discreto. O baiano da cidade de Livramento começou a trabalhar na Mackenzie no ano de 1953. A primeira função de Miro, que começou sua história na universidade aos 16 anos, era cuidar da entrada e saída do material de construção para as obras que estavam sendo finalizadas no prédio do Direito da Mackenzie. A partir daí,
o funcionário já passou a ser conhecido pelas primeiras turmas. Em outro momento, mudou de cargo e passou a ser um “bedel”. - O que é isso? – pergunto assumindo minha ignorância. - Uma espécie de inspetor. Eu fazia o controle disciplinar - responde ele com uma calma admirável. Miro parecia ter prazer em ser bem claro no que dizia. Suas palavras eram pausadas, mas não tendiam para o tédio. Nosso personagem olhava em nossos olhos enquanto falava. Passar credibilidade parecia ser uma obsessão e algo já dominado por ele. Talvez a convivência com professores de oratória persuasiva tenham lhe ensinado essa característica. - A educação e a discrição de Jânio Quadros e Ulysses Guimarães eram incríveis. Tive o prazer de fazer a chamada para eles. O ex-presidente da República e o presidente da Assembleia Nacional Constituinte foram professores da Mackenzie e tiveram o auxílio de Miro nas suas aulas. Jânio lecionava Direito Civil. Ulysses, por sua vez, ensinava Direito Internacional Público. Mas essas experiências não seriam as mais marcantes de Miro. A inauguração do auditório Ruy Barbosa da universidade foi o que mais lhe marcou. Era a formatura da primeira turma do curso de Direito em 1959. Quando ele menos
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Retrato da primeira turma de Direito do Mackenzie em 1959 (Foto: Acervo CHM)
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esperava, foi chamado ao palco. Em meio à presença de juristas, professores e autoridades universitárias, o querido bedel foi um dos homenageados da ocasião. - Sempre me relacionei muito bem os diretores. Naquele dia, não sabia que ia ser homenageado. Esse evento ficou marcado na minha história. Apesar de negar, provavelmente devido à sua timidez, Miro já está acostumado a receber homenagens. Em 2013, no mesmo auditório Ruy Barbosa, ele foi chamado para mais uma honraria especial. A ocasião era o aniversário de 60 anos da Faculdade de Direito. O funcionário mais antigo da instituição virou protagonista de um banner comemorativo que foi espalhado em todo o campus. Ele aparece na forma de desenho, ao centro, em meio a bexigas e fitas festivas que navegam no ar. O próprio personagem, o “Mirinho”, até ganhou uma fala atribuída a ele: “É nesse espírito mackenzista de alegria que a nossa casa faz 60 anos”. Uma versão digital do banner foi exibida ao público composto por alunos calouros e recém-formados. Ao subir ao palco, o encarregado do controle acadêmico foi ovacionado com os aplausos da plateia, cumprimentou os membros da mesa solene e foi alvo dos flashes dos fotógrafos da cobertura oficial do evento. Na recepção a Miro na festa, estava a professora Ana Scalquette, diretora da Comissão de Comemoração do Jubileu da Universidade Mackenzie. Ter um momento de conversa com ela era praticamente impossível diante dos
inúmeros afazeres da organização. - Já falo com você, Lucas – dizia ela sorrindo para mim, esforçando-se para não parecer insensível com o meu pedido insistente. Enquanto não era possível obter algumas palavras da organizadora do evento, nossa equipe passou a ouvir palavras do pronunciamento do vice-reitor, Marcel Mendes. Apesar de sua primeira graduação ter sido em Engenharia, ele tinha muito a acrescentar a esta reportagem. O professor tem Doutorado na área de História Social e é especialista em Mackenzie. Após ajeitar o seus cabelos grisalhos um tanto escassos, iniciou sua fala antecipando: - Não tenho nenhum discurso pronto. O que vou dizer aqui é de coração. É a partir de frases como essa que surgem os discursos mais envolventes. A estratégia usada pelo vice-reitor foi a naturalidade de sua fala. Nada era lido, decorado ou sem emoção. As palavras surgiam naturalmente e revelavam o caráter de “enciclopédia ambulante” do engenheiro. A faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie nasceu no dia 11 de agosto de 1953 através de decreto assinado pelo presidente da República à época, Café Filho. A própria instituição universitária carrega o nome de um advogado norte-americano. Através das doações de John Theron Mackenzie, que deixou parte de sua herança para a chamada até então (1896) de “Escola Americana”, foi possível fazer o investimento nos cursos de graduação e na estrutura física da universidade. - Aliás, vocês sabem qual o nome do auditório em que estamos agora? – perguntou o vice-reitor à plateia. Foi possível ouvir a voz de cerca de dez pessoas que sabiam responder à pergunta. Havia muitos calouros presentes ao evento. Mendes explicou que Ruy Barbosa foi o advogado da Igreja Presbiteriana do Brasil em um momento crítico. Durante os primeiros anos de consolidação daquilo que seria o Instituto Presbiteriano Mackenzie no país, era necessário um doutor das leis que pudesse orientar o crescimento da futura universidade sem esbarrar na legislação brasileira. Uma publicação da OAB-SP de 2012 já diz: o advogado tem a vocação de diminuir a angústia das pessoas. Como parte da tradição mackenzista, a faculdade de Direito cultiva o ambiente “Isto é Mackenzie” de companheirismo e
camaradagem entre os alunos que estão estudando ou que já estão formados e atuam no mercado. Em um pacto firmado internamente na direção da faculdade, o objetivo firmado é promover ações para mudar o Brasil. “Apesar de dizerem que nós [advogados] criamos problemas, somos nós que resolvemos os problemas que acabam surgindo. O advogado tem um papel preponderante num mundo em que a justiça é mais do que uma necessidade”, afirmou o sorridente professor José Siqueira Neto que acrescenta: - Confesso pra você. Estou muito feliz por estar aqui. O Centro Histórico e Cultural Mackenzie é chamado pelos universitários de prédio 1 da universidade. Foi o primeiro edifício a ser construído dentro do campus Higienópolis entre os anos de 1894 a 1896 para abrigar uma Escola de Engenharia. Nos anos 90, o CHM passou a ter missão de preservar a memória da instituição, busca ser um espaço cultural vivo, com uma agenda diversa e constante. Tombado pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), o imóvel recebe lançamentos de livros da editora Mackenzie, apresentações musicais, gravações do programa “Mackenzie em Movimento” exibido em rede nacional pela TV Bandeirantes, entre outros. Naquela noite, porém, o evento fugia da rotina do Centro Histórico. Funcionários corriam de um lado para o outro. Levavam cadeiras, petiscos, equipamentos de som e áudio ao mesmo tempo em que esbarravam nos convidados engravatados. Às dezenove horas, o salão principal estava lotado e ultrapassa a sua capacidade que era cinquenta pessoas. Numa rápida conta, havia pelo menos sessenta homens e mulheres presentes ali. São autoridades universitárias, professores, juristas, familiares, alunos e ex-alunos. Todos procuravam olhar para o fundo e ouvir as palavras do diretor da Faculdade de Direito do Mackenzie, José Siqueira Neto. Com os olhos levemente avermelhados em razão dos eventos longos do dia, o professor discursava mais uma vez sobre a festa do Jubileu da instituição. Desta vez, o foco era voltado ao lançamento da coletânea dos “60 desafios do Direito”, trabalho que reúne juristas renomados que trazem os tópicos que consideram “essenciais” para o desenvolvimento do país. “Este livro é a realização de
um sonho”, diz Siqueira com a voz embargada. - Que alegria dar essa contribuição para o debate! É uma trilogia grandiosa! A cem metros da tribuna de discurso do professor estava a mesa da Editora Mackenzie. Dispostos por cima do móvel de madeira da Acácia, que mais parece uma escrivaninha pelo seu tamanho mediano, estão mais de 10 volumes da coletânea que estavam à venda. Um dos professores presentes, que passou ao menos meia hora ao lado dos livros, parecia incomodado. Com uma das mãos no bolso da calça e a outra coçando insistentemente os cabelos pretos, ele aborda um dos jornalistas da nossa equipe de reportagem. - Vocês estão cobrindo para quem? – questiona o docente, apontando para o microfone em minhas mãos. - TV Mackenzie. Também é para um trabalho aqui da graduação – respondo antes que meu colega reaja. Talvez ele não dissesse que a matéria seria exibida na televisão. Afinal, apenas eu tinha um vínculo empregatício com a universidade. Quem porta uma câmera de vídeo e traz um microfone com o cubo de uma emissora (pode ser qualquer uma!) recebe mais abertura do que o jornalista de um veículo impresso. São coisas que apenas a experiência prática na profissão pode mostrar. - Vocês da imprensa ganharam um dos volumes? - Não, por quê? – pergunto.
Uma das primeiras reuniões do corpo docente mackenzista em 1955 (Foto: Acervo CHM)
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- Vale a pena você dar uma olhada. - Mas o que eles têm de tão interessante? O professor insistente é Vicente Bagnoli. Sua empolgação pelo livro tem um motivo bem específico: ele é um dos organizadores do volume 2: Economia, Direito e Desenvolvimento. As discussões giram em torno da ordem econômica, consumo e problemas relacionados ao desenvolvimento do país. Os outros volumes trazem pensamentos filosóficos do direito ligados à pós-modernidade e sobre como a área jurídica pode consolidar cada vez mais a democracia brasileira. “Eu acho que o mais difícil na elaboração desse trabalho foi escolher os sessenta desafios. O Brasil está cheio de oportunidades e situações a resolver”, confessa o professor que também coordena o curso de pós-graduação em Direito Político e Econômico na Mackenzie. Com o fim do discurso de Siqueira, os garçons começam a circular no salão erguendo suas bandejas carregadas de petiscos, sucos e refrigerantes. Naquela altura, eram sete e meia da noite. Já estava na hora do jantar e eu, mesmo não sendo um convidado da festa, resolvi me servir de bolinhas de queijo, um copo de suco de limão com hortelã e outro de Coca-Cola. Estava apreciando meu último gole quando alguém cutuca minhas costas levemente. A professora Ana Scalquette não tinha se esquecido de mim e cumpriu a promessa de me responder uma pergunta sobre o evento. Como responsável pela organização geral
Armando Iazetta Filho: formando da primeira turma de Direito. Hoje ele é integrante da ABA Mack (Foto: Acervo CHM)
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das comemorações dos 60 anos, talvez aquele fosse o único momento em que poderíamos conversar. “Daqui a pouco teremos uma sessão solene. Então preciso me preparar”, disse ela ajeitando os seus longos cabelos loiros. Ao contrário de uma visão estereotipada da área jurídica (profissionais com seriedade extrema e inflexíveis), a professora Ana tinha um sorriso fácil. Tinha escova progressiva em seus cabelos que, mesmo assim, teimavam em encaracolar. Usava blazer e calça social, mas que traziam um ar de informalidade pela cor: rosa claro. - Fui uma das organizadoras da coletânea dos 60 desafios. Colocamos lá específicos sobre economia, cidadania, politica e nós vamos aplicar a análise desses artigos não só com os alunos da graduação, mas também com os alunos de pós-graduação. - É verdade. Quem é o sortudo? - Os antigos alunos. Você entrevistou o Dr. Armando? Eu não conseguia imaginar quem seria o tal Armando. Mas pelo tratamento dado pela professora a ele, passei a pensar que se tratava de uma autoridade na área acadêmica ou jurídica. Eu fingi que estava por dentro da situação e mantive a compostura. - Ainda não. Onde ele está? Ele estava logo ao lado da professora e foi apresentado a mim como “aluno formado na primeira turma de Direito na Mackenzie”. Ana agradeceu e me deixou com ele. Parecia que algo diferente estava sendo preparado para o experiente bacharel em Direito e a professora precisava correr com aquilo. Armando Iazetta Filho, de 72 anos e morador da região central da cidade de São Paulo, se formou em 1959 e foi um dos fundadores da associação ABA MACK (Associação de Bacharéis de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie). A organização busca estreitar a relação dos ex-alunos com a instituição universitária. No seu blazer cinza, usava um broche com o símbolo do “M” vermelho mackenzista. - Por que existe essa identificação dos ex-alunos com o Mackenzie? - Por que você disse “ex-alunos”? – indaga Armando. - O senhor está cursando a pós? – pensei. - Não. Mas não existe ex-aluno na Mackenzie. Uma vez mackenzista, para sempre mackenzista. Essa coisa de exaluno é para outras universidades.
A ABA MACK é fruto de momentos de descontração. A ideia de se fazer uma associação nasceu das reuniões de antigos colegas de sala no Bar São Pedro São Paulo, localizado no bairro do Itaim Bibi. Em maio de 2012, os fundadores foram recebidos dentro do próprio Mackenzie para uma reunião inaugural. Hoje o grupo conta cerca de setenta associados que contribuem semestralmente para manter os gastos de eventos, festas e seminários promovidos durante o ano. Dr. Armando atua como secretário de comunicação da ABA Mack e tem seu nome registrado no documento de fundação. Para ele, criar a associação foi a forma encontrada para manter a sua proximidade com o Mackenzie. - O Mackenzie para mim é como se fosse família. Meus filhos estudaram aqui, minha mulher se formou aqui. Eu frequento aqui há muito tempo. Então a minha família também é o Mackenzie. A noite era especial não só para o eterno mackenzista Armando, mas para toda a ABA MACK. Em meio ao coquetel de petiscos, salgados, sucos e refrigerantes, o vereador de São Paulo Floriano Pesaro, com os seus mesmerizantes olhos azuis, surge cercado de assessores e duas equipes de reportagem da TV Câmara. O parlamentar do PSDB iria presidir uma sessão solene da Câmara Municipal que homenagearia o jubileu mackenzista. O vice-reitor Marcel Mendes e o diretor da Faculdade de Direito José Siqueira Neto receberam das mãos do vereador placas comemorativas que reconheciam a chamada “qualidade de ensino de primeiro nível”. No instante em que a cerimônia parecia ter acabado, Pesaro havia deixado o surpreendente para o final. Após
todas as homenagens às autoridades mackenzistas, o vereador fez o seu último chamado: - Onde estão os alunos já formados? Armando, o secretário, e Guilherme Ramalho Netto, presidente da associação, receberam também as placas da Câmara Municipal e posaram ao lado do parlamentar para as fotos que vão eternizar o auge histórico da ABA Mack: o reconhecimento da universidade se une agora ao reconhecimento do Estado. É a prova de que o grupo acerta em suas iniciativas na busca pela união dos estudantes e no aperfeiçoamento do Direito. “Já pensamos em desistir no começo”, diz o presidente. Com a mão fechada e erguida como símbolo de sua vitória, ele completa: - Isto mostra que tudo valeu a pena. Naquele fim de tarde, é bem provável que Miro estivesse cansado. Havia passado cerca de duas horas conversando, falando de suas memórias e respondendo a uma série de perguntas. Perguntas que aparentemente nunca haviam sido feitas por ninguém. O encarregado do controle acadêmico mostrava entusiasmo a cada resposta e evidenciava a sua vontade de preservar e rebuscar tudo aquilo que viveu. Mas são poucos que se interessam em ouvi-lo. - É isso, Miro. Terminamos por hoje! – disse eu aliviado e cansado, após um dia estressante com faculdade, trabalho e, por fim, uma entrevista. - Só tenho a agradecer pela oportunidade concedida a mim. Posso dizer que, se não fosse a chance que o Mackenzie me deu lá atrás, eu não estaria aqui contigo. - Obrigado, Miro!
À esquerda: formatura da primeira turma de Direito em 1959. À direita: parte do corpo docente de 1955. (Foto: Acervo CHM)
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Embora haja contradições e diversos estereótipos. ONGs e diversas outras iniciativas sociais evidenciam que é possivel mudar o futuro dos jovens das periferias do brasileira.
Gabriela Gongalves e Renata Vomero
O
s filmes, novelas e seriados têm um estereótipo muito claro quando o assunto é periferia. Um lugar abandonado pelas religiões, sociedade e governo. Um lugar precário, violento e triste. E mesmo quando Tropa de Elite aponta as ONGs como uma forma de salvação deste ambiente mal tratado, faz isso de forma pejorativa. Pessoas burguesas, que se drogam, que exploram e que têm uma vida dupla. O filme diz que não acredita na salvação. Então, qual é a solução? Onde está essa resposta? Mas, a realidade pode divergir dos filmes. Evidente que existem estes estereótipos, mas não é só isso. Nas periferias existem trabalhadores, famílias e crianças que querem estudar e se profissionalizar. Além de pessoas interessadas em ajudar. O cenário não agrada. Casas com tijolo aparecendo, carros em cima da calçada. Ruas estreitas, fios caídos. Os fios de eletricidade são baixos. Precisamos desviar deles. Nenhum prédio com mais de quatro andares nas redondezas. A escola é grande, é cinza. As janelas são pequenas, com grades enferrujadas. O mato está crescido. A merenda está sendo distribuída; macarrão e frango fazem a diversão das crianças de sete a nove anos que estão aguardando no pátio.
Na quadra da Escola Estadual Messias Freire, o professor de educação física Geraldo Afonso Gonçalves nos aguarda. Sentado na arquibancada, também cinza, com uma rachadura escandalosa. Sempre olhando ao redor, como se procurasse algum de seus alunos ou ex-alunos. Afinal, em trinta anos de profissão ex-alunos que não faltam. - Trabalho na região - Jardim Leônidas Moreira; Campo Limpo, região Sul de São Paulo - tem trinta anos. Hoje, os meus alunos são os filhos dos meus ex-alunos. É um processo natural, só tem essa escola nessa parte do bairro, quem quer estudar vai vir para cá Com seus sessenta anos de idade, boa forma e poucos cabelos brancos, o professor que dedicou metade de sua vida à educação não está muito satisfeito com os rumos que a história tem levado. - Estou para me aposentar, creio que até o fim do ano que vem eu me aposento. Sinceramente? Me aposento triste. Me aposento sabendo que a maior parte dos meus alunos não sairá da vida que os pais deles levam hoje. Dos poucos que terminam o ensino médio, pouquíssimos fazem um faculdade e saem desse mundo. Por aqui, não tem cursos profissionalizantes, não tem algo que incentive que eles saiam das ruas. O professor descruza as pernas, se arruma na arquibancada e começa a brincar com seu
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apito vermelho, seu velho instrumento de guerra. “O que eu faço é usar o esporte para diminuir o tempo deles na rua. Pego essas crianças e coloco pra treinar handebol ou futebol nos sábados. Das 9h até às 12h eles ficam por aqui, treinando, correndo e jogando. A cada dois meses faço um campeonato e eles usam o que aprenderam. Eu tento conversar, aconselhar, mas eu tenho aluna de 13 anos tendo um bebê nesse exato momento. Eu tenho que nadar contra a corrente o tempo todo, percebe?”, fala o professor que não esconde a decepção. Quando perguntamos se ele acredita que as ONGs poderiam contribuir com os jovens ele é categórico: “Claro que sim, desde que elas sejam certinhas e honestas. E isso é muito difícil; achar
Ensaio musical para a apresentação de fim de ano da casa da cultura e cidadania
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“a maior parte dos alunos não sairá da vida que os pais deles levam”
alguém que esteja disposto ajudar pelo simples fato de ajudar, sem levar algum por fora, isso é muito difícil”. Seu semblante muda, ele volta a procurar ao redor um reforço para o seu raciocínio. Como não encontra, nos chama para conhecer o bairro. Nós vamos. Entre um aceno e outro, o professor vai tecendo comentários: “Aquele é o Vitor ele tem treze anos e ainda está na quarta série. Se eu te falar que ele não sabe escrever você vai acreditar?”, pergunta o professor mostrando um pouco daquele universo que ele se recusa a aceitar. “Infelizmente, eu acredito”, respondo um pouco abalada. “Ele acha engraçado. Outro dia zombou de mim, porque o celular dele é mais moderno que o meu. Essa é a preocupação, não só dele. O importante é ter, ter e ter”, fala enquanto acena para outro aluno. Eu não respondo, não tinha o que responder. O cheiro do Pobre Enquanto quase todos os estereótipos da periferia são esfregados em nossas caras através de diversos mecanismos burgueses da sociedade, vemos Heloisa Melillo provando que estereótipos são ainda mais complicados do que a própria realidade. “ Criança é tudo igual, não importa onde ela esteja”, diz a educadora com mais de quarenta anos de experiência sabe do que está falando. Os olhos maternos são a prova de toda a dedicação com crianças e jovens carentes de São Paulo. Fundadora do Instituto Agires, que tem por objetivo fomentar a cidadania e a cultura e ser um articulador de ações sociais nos campos da cultura, do esporte e da profissionalização. Estamos indo visitar um de seus projetos, talvez o seu xodó, a Casa de Cultura e Cidadania, que fica no bairro Vila Guacuri, zonal sul da cidade de São Paulo na divisa com diadema. Enquanto conversa conosco no carro, ela guia sua assessora, de maneira impecável, conhece São Paulo de olhos fechados. Saímos de seu escritório em Moema direto para a Casa. Assim que chegamos na unidade da Casa da Cultura e Cidadania, percebemos o porquê do nome. Apesar de tenda de circo enorme logo na entrada, o lugar parece uma casa. Está limpo e organizado. “Queremos que esse lugar pareça uma casa, o jovem tem que se sentir bem aqui.” - A maioria das crianças aqui são de baixa renda, por isso procuramos trazer o melhor a elas. Oferecemos uma alimentação balanceada e rica em
diversos tipos de alimentos, para ampliar o universo dessas crianças e jovens. - Como assim? - Por exemplo, essas crianças e esses jovens só conhecem banana, laranja e maçã. Nós tentamos dar a eles kiwi, ameixa, amora, framboesa etc. Dessa forma o conhecimento delas fica ampliado. Parcerias são realizadas para trazer atendimento completo às crianças. “ Já que elas têm dente, corpo e sentimentos” brinca Heloisa. Logo que entramos no local somos recepcionadas pelo diretor da unidade, Rodrigo Francisco. Nos deparamos com algo que já nos é familiar: a lona do circo, mas a correria e a barulheira de crianças embaixo dela não nos é habitual. Sentimos arrepios quando vemos uma menininha que estava a cerca de 100 metros do chão agarrada a um tecido. Como ela, tão pequena, conseguia fazer aquilo? Passamos pela sala de teatro, brincadeiras e música, onde nos encantamos com a afinação da meninada. Não conseguimos identificar a música que elas cantavam, provavelmente por nossa falha de conhecimento cultural, mas o som e a harmonia eram extremamente agradáveis. Em todas as salas fomos recepcionadas por diversos acenos de mãos e olhares curiosos. Alguns meninos mais ousados repetiam : “Boa tarde, tia” e se olhavam sorrindo. Diante de
todo aquele espetáculo, nós éramos as novidades que recebiam as atenções. A Casa de Cultura e Cidadania é o projeto mais antigo do instituto. Existe desde 2007 e nasceu como um pedido da ES Eletropaulo. Na Casa, que cuida de crianças e jovens entre seus seis e dezessete anos, os jovens podem escolher as linguagens artísticas da preferência deles. Para cada ano é escolhido um tema que será explorado nessas linguagens para uma apresentação ao fim de cada semestre. A intenção é fazer com que os alunos consigam alargar cada vez mais suas referências e percepções, entendendo que ele é um agente transformador da comunidade e de si mesmo. Heloisa sempre teve o desejo de ajudar crianças carentes, essa é a
Garota fazendo um número circense para a preparação da apresentação de fim de ano da casa
“aqui PARECE UMA CASA, o jovem tem que se sentir bem.” Narrativa | 121
Garotinho aprender a tocar os instrumentos da sala de música da casa razão que a fez abandonar a escola particular onde trabalhava e ficar com o ensino público. “Acredito que as crianças carentes têm menos recursos de aprendizagem e eu quis ajudá-los”, conta. Sentamos tranquilamente para conversar com a educadora, que foi professora e diretora de uma das escolas mais violentas de São Paulo, a Levy de Azevedo Sodré, no Jardim Vale das Virtude em Campo Limpo, zona sul da cidade. - Eu era professora de todos os filhos de traficantes, bandidos e marginalizados, a historia se reproduz. Entendi que quando respeitamos as crianças, quando mostramos essa vontade pelo bem dela, quando isso faz parte de nós, as crianças se envolvem, pois elas estão desejosas desse carinho e dessa atenção Ela retirou a polícia da escola, em troca ganhou a confiança dos alunos para pedir que não cometessem violência na instituição. Não se via mais sangue pela escola. - Tem uma frase que eu digo, que pode parecer preconceituosa, mas eu gosto e ela é muito verdadeira: Não pode
“Não pode trabalhar com isso, gente que não gosta do cheiro do pobre” 122 | Narrativa
trabalhar com isso, gente que não gosta do cheiro do pobre. Mas eu explico, não pode ter nojo de remela, piolho, catarro e essas coisas comuns em crianças. Para Heloisa, nós vivemos em uma sociedade que não enxerga o outro, uma sociedade cujas relações humanas são frias e distantes, não apenas para os jovens carentes, mas para todo mundo. - Se aquilo que o outro tem por fora te impede de chegar nele, então você nunca vai chegar, nunca”. São 150 de 560 jovens que estão na unidade via conselho tutelar ou vara da infância e da juventude. Alguns estão cumprindo medidas socioeducativas. -Eu duvido que você saiba quem são essas crianças no meio das outras daqui. Porque antes de qualquer coisa, elas são crianças. Os adolescentes têm os mesmos desejos. A menina que vende droga na boca é a mesma que usa maquiagem, fofoca com as amigas e quer namorar. Nossa sociedade é excludente, baseando-se em padrões construídos por minorias que buscam ser majoritárias, ou seja, a elite. A escola não fica fora dessa exclusão, ela marginaliza seus alunos. -Não é o aluno que abandona a escola, é a escola que expulsa o aluno. Nosso sistema é excludente, por isso nasceu a errada ideia da progressão automática [ um projeto do governo que visa fazer com que as crianças passem de ano automaticamente] A intenção do projeto da Agires é mostrar novas possibilidades para as crianças e os jovens, dessa maneira eles podem ter a liberdade de escolher um
“AGORA ENXERGO E PLANEJO MEU FUTURO” futuro que talvez seja aquela diferente do já conhecido envolvimento com o crime. - Queremos ensiná-los a construir um mundo ético, mas, além disso, mostrar que através disso eles podem construir pontes para realizar seus sonhos. Um dos adolescentes que estavam na sala de música vem conversar conosco, o menino que mostra-se simpático e tranquilo, fica tímido ao apertarmos o botão do gravador. Sorri, faz brincadeiras, mas mantém o olhar desconfiado, se senta na ponta da cadeira, pouco confortável. Talvez nunca tenha dado uma entrevista. A princípio ele se intimida com a quantidade de perguntas, mas logo se solta, encosta-se na cadeira e cruza a perna no joelho. Daniel Muniz, tem 15 anos e é o mais velho de três irmãos. Morador do bairro Sete Praias, próximo à unidade do projeto. Daniel faz as atividades de música e circo, mas sua paixão é musical. Fã de Rock, Rap e Raggae, o menino se solta com uma de nós, em parte por estar vestindo a camiseta do Ramones, banda conhecida do jovem. - Eu adoro quando fazemos apresentações e as pessoas aplaudem - Então você gosta de que as pessoas lhe aplaudam? - Gosto muito! Daniel sente que os amigos que não fazem parte do projeto, e até mesmo os professores da escola, não acreditam na força transformadora dessa iniciativa social. - Muitos falam: ‘ Ah, vai ser palhaço? Isso não dá futuro’ - E o que você quer fazer na faculdade? - Eu tenho vontade de fazer engenharia mecânica na universidade. - E como você via o seu futuro antes de entrar aqui? - Antes eu não via o meu futuro. Quando entrei aqui comecei a enxergá-lo e planejá-lo. As disciplinas favoritas de Daniel são matemática e português.
- A música tem muito da matemática, na tablatura vemos números, assim como a matemática. O português é bom para me ajudar nas letras das músicas. Os pais são obrigados a acompanhar as crianças em pelo menos três atividades durante o ano. Todos eles têm consciência da importância desse projeto para a vida dos filhos e para a convivência social dessas crianças. Os pais de Daniel já viram as melhoras no filho. - Gosto de ver meus pais comentando sobre as minhas mudanças, por eu estar planejando o meu futuro e falando bem do que eu faço aqui. Adoro quando eles vão ver a minha apresentação. Nos despedimos e voltamos para nossas rotinas comuns, mas algo de incomum acontece conosco, vemos o mundo por meio de um novo olhar, a luz do fim do túnel ilumina nossa visão.
As meninas se reunem para tocar os instrumentos de samba e maracatu disponíveis na sala de música
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Impressões de voluntários da expedição Amazon Vida, sobre as histórias, os dilemas, e a as alegrias das populações ribeirinhas. Viajantes que, antes de tudo, tinham a percepção de que a ajuda psicológica vale mais do que a material Texto: Isabella Dias e Mariana Collini Fotos: Flávio Régis, fotógrafo da expedição
A Expedição Entre os dias sete e doze de julho de 2013, partia da base da Força Aérea Brasileira, na capital paulista, a 4ª Expedição Amazon Vida, rumo às comunidades ribeirinhas dos rios Amazonas e Solimões (AM). Expedição essa que – patrocinada pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie em parceria com a Igreja Presbiteriana de Manaus e a ONG Visão Mundial, em uma semana de viagem – visitou cinco comunidades ribeirinhas para realizar trabalhos sociais e educacionais em regiões tão distantes geograficamente, onde a população clama por ajuda e atenção. Com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, os trabalhos realizados por meio de oficinas incluíam mecânica de motor, instalação elétrica, horta flutuante com garrafas pet, artesanato, atividade com crianças e cuidado com crianças especiais. Dentro do barco havia também consultórios de saúde equipados, aptos a realizar tratamentos dentários e pequenas cirurgias, com dois médios e dois dentistas à disposição; levantamento de renda e laboratórios de cultura de sangue, a fim de descobrir possíveis casos de anemia, e alterações de glicemia e colesterol. O J.J. Mesquita, barco da expedição que leva o nome do Reverendo José João Mesquita, pastor da I Igreja Presbiteriana de Manaus, percorre as águas escuras dos rios, Negro, Solimões e Amazonas, por 28 rotas para levar os voluntários à 100 comunidades ribeirinhas durante todo o ano. O projeto Amazon Vida atua o ano todo com profissionais e voluntários que dedicam seis dias por semana para alcançar as comunidades mais desprovidas de acesso aos cuidados de saúde e social. Porém, infelizmente, ainda existe um total de 14.400 comunidades que precisam ser atendidas. Na 4ª expedição, os povoados visitados foram Bom Jesus, Caviana, Repartimento, Jacaré e São Francisco. Alguns outros voluntários, tanto professores, como ganhadores de outros projetos do Mackenzie Voluntario pelo Brasil, puderam participar durante uma semana do
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trabalho em uma região que se encontrava na terceira maior cheia do Amazonas, e que irá se prolongar até dezembro, uma vez que são seis meses de cheia, e seis meses de seca. Um dos tripulantes dessa jornada social foi Carlos Alberto Dias, pastor da I Igreja Presbiteriana de Caxambu, participante da expedição como ganhador do 1º lugar das premiações dos melhores Mackenzie Voluntários de 2012, com o projeto do 4ª Caxambu fazendo o Bem, que realiza trabalhos de educação, saúde, assistência social, reparos e manutenção na cidade de Caxambu – MG. Um pastor, as ovelhas e vários sentimentos Com seus 51 anos, expressados pelos fios brancos na cabeça, e a simplicidade tanto no falar, quanto nas roupas casuais, escolhidas para um almoço em família, Carlos Alberto Dias relembra as experiências vividas no Amazonas, há doze horas de viagem de sua pacata cidade. O ar calmo e tranquilizador transmitido em sua voz, se misturavam ao barulho de um rio que passava ao lado, do balançar de uma floresta de bambus e do canto de pássaros conhecidos de um sitio da igreja, no interior do Sul de Minas, onde passava o feriado de aniversário da cidade com a família. Com um sorriso como o de uma criança que havia ganhado o presente que tanto sonhara, Pastor Carlos relata a alegria pelo projeto de ação social, IX Caxambu Fazendo bem, do qual foi líder, ter ganhado o primeiro lugar de todo o Brasil, dos projeto do Mackenzie Voluntário. Ao saber, posteriormente, na cerimonia de premiação dos ganhadores, de que seria parabenizado com uma viagem ao Projeto Amazon Vida, seus olhos verdes brilhavam tentando expressar a emoção da experiência que só em sonhos via se concretizar. Mas desta vez, a realidade era muito maior do que o sonho. A viagem à Amazônia daria sua partida com o avião da Força Aérea Brasileira. O medo de altura ficaria de lado pela segurança em ver ali com ele, dois pilotos fardados, os engenheiros de voo, com mais de trinta anos de experiência, e os mecânicos que também participariam da
expedição. A vertigem, companheira sempre presente quando o assunto é altitude, nem chegou perto. A paisagem até Brasília começou a mudar. A vista, de plantação em forma circular, e o céu azul e limpo, compunha a visão a oito mil metros, em uma velocidade de 500 km por hora. O avião ia chegando ao seu rumo final, Manaus. ‘’Da janela do avião pude ver que o rio estava cheio’’, comentava Carlos, olhando baixo por se deparar, pela primeira vez com aquele cenário que seria o seu por sete dias. “E fiquei triste ao ver a floresta devastada”, completa. Após o voo de seis horas, um ônibus esperava a equipe para embarcar no barco J. J. Mesquita. O barco, nada arcaico, como imaginavam os participantes da expedição a princípio, estava longe de ter diversas redes penduradas onde os passageiros pudessem dormi. No lugar, quartos com beliches, e grandes espaços para a cozinha e as oficinas. – Fiquei um bom tempo na parte superior do barco contemplado aquela imensidão, olhando para o lado e só enxergando água, sem sinal das margens – relatou Pastor Carlos, relembrando a paisagem da imensidão de água que se expandia por 30 km de distância entre uma margem e outra. O almoço no refeitório do barco, logo após, tinha gosto de novidade. Os sucos com as frutas típicas da região ajudavam a refrescar o corpo num ambiente de mais de 35 graus. O cenário, ao fundo, era a Floresta Amazônica e um pôr do sol maravilhoso refletindo nas águas escuras do rio. O barco já navegava nas águas escuras do rio Amazonas há 17 horas. Via-se mais água do que a vegetação. Mas já era possível enxergar algumas casas nas margens. A embarcação ancorava na sua primeira comunidade, Bom Jesus. – A chegada de um barco de serviços sociais em um povoado é um momento único para o povo que espera tão ansiosamente por socorro. Veio a minha mente o texto bíblico de quando Jesus desembarcou em uma praia, assim como naquela comunidade em frente ao mundaréu de água, e vendo uma grande multidão, compadeceu-se deles, pois tanto precisavam de ajuda; elas eram como ovelhas sem pastor. E esse foi exatamente o mesmo sentimento que tive – descreve pastor Carlos. O pastor ajudava como voluntário na oficina de mecânica de barco do professor Pucci, com o qual teve grande simpatia, pela forma extraordinária em que, mesmo sendo um erudito, se colocava em pé de
“fiquei triste ao ver a floresta devastada” igualde com aquelas pessoas e os ensinava perfeitamente. No período da tarde, Carlos aproveitava para fazer uma pesquisa nas igrejas locais e descobrir as histórias de vida, as dificuldades e problemas enfrentados por aqueles que estão por trás do ministério evangelístico naquela região. – Fiquei impressionado em como o evangelho já havia chegado entre as populações ribeirinhas. Haviam comunidades que existiam oito igrejas para cerca de 1500 habitantes. Mas percebi que essa diversidade religiosa era um problema, devido às diferenças de ensino e por isso, são distantes uma das outras. E muitas não se uniam em prol do crescimento bíblico e social da comunidade – relata o pastor. Algo percebido por Carlos durante as visitas aos pastores das comunidades foi o sustento precários das igrejas. Como o índice de desemprego na região é grande, não há salários e consequentemente, não há dízimos para o sustento do pastor e manutenção da igreja. Há problemas na estruturação das
Fim de tarde na comunidade de Bom Jesus, a 17h de barco de Manaus.
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Liberdade das crianças nas águas profundas do rio Solimões, em Repartimento. E o acesso precário para a entrada na comunidade.
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congregações e na falta de material didático para ensino dos ribeirinhos. Mas a alegria e o amor pela obra missionária se sobrepõem às adversidades da vida simples e humilde às margens do Solimões. E foi o que pastor Carlos tomou para si como o saldo positivo da viagem, depois de conversar com tantas pessoas distintas e ser, por uma semana, o capelão de um povoado carente de amor e cuidado. Uma juventude que possui valor O pastor Josué Ferreira, capelão do Ensino Médio do Colégio Mackenzie, de aparência mais séria, mas só quando não está envolvido com no universo infantil através de seu boneco ventríloquo Barnabé, foi outro voluntário da expedição. Teve a iniciativa de participar do Amazon Vida a partir da indignação de uma aluna do ensino médio do colégio em saber que a virgindade de meninas indígenas na Amazônia são negociadas pelo preço de R$ 20,00. Junto com os alunos começou o projeto “Infância e adolescência não tem preço, tem valor. Propus ao Mackenzie que os alunos pudessem conhecer as reais circunstâncias tanto da situação indígena, quanto da população ribeirinha”, era a fala do pastor e capelão que possuía, pelos anos de ministério, cabelos castanhos já com alguns reflexos brancos, e semblante apreensivo pela situação narrada entre as crianças e adolescentes da Amazônia. O capelão Josué Ferreira e os alunos partiram antes dos outros voluntários para a região norte a fim de conhecer e entender melhor o que poderia propiciar maiores abusos sexuais de crianças e adolescentes. Um fato impulsionador disso é o Brasil sediar a Copa do Mundo no próximo ano. “Traria maiores problemas, pois o ajuntamento de pessoas para trabalhar e construir os
estádios aumenta o risco de abuso sexual de crianças e adolescentes na região”, explica o capelão. As assistentes sociais da região informaram ao capelão Josué, que o abuso sexual acaba por ser uma questão cultural na região: uma mãe já foi abusada no passado, e em vários casos, não evita que aconteça também com a filha. Muitos barcos chegam às comunidades ribeirinhas entre os índios, oferecendo dinheiro e passeios, e exploram sexualmente as crianças. – Além dessa conscientização com as famílias, sobre o valor dos filhos, realizamos um trabalho com crianças e adolescentes, com atividades recreativas dos monitores e logo após eu contava histórias com meu boneco ventríloquo, Barnabé, com que trabalho em meu ministério. – A fala do pastor soava a contentamento por ver o engajamento dos alunos com a situação dos ribeirinho, em até doarem um dinheiro para compra de bolas Cafuzas, as oficiais da Copa do Mundo, para deixar em cada comunidade que visitaram. O trabalho com a as crianças e adolescentes, não muda muito de região para região. “Criança é criança em todo lugar. A única diferença é que elas tinham mais liberdade”, descrevia o pastor, sobre a liberdade das crianças de subir em pau de sebo na frente da escola e pular no rio, logo que viam o barco ancorando, sem se importarem com a profundidade; e lembrava ele, da sua infância, no interior de Minas Gerais, que assim como aquelas crianças, tinha mais liberdade para correr pra tudo quanto é lado, brincar, pular, entrar na água, sem qualquer preocupação. Para o pastor, o saldo foi positivo. Um único porém, seria repensar a utilização do excelentes professores compunham a equipe já que durante a noite, os alunos somente aprendiam através de vídeo-aulas por não haver professores suficientes nas comunidades. Ensinar é também aprender Participando da expedição como engenheiro mecânico responsável pelas oficinas de motor de poupa, motor bomba, motocicleta, o professor José Pucci, acompanha o projeto na Amazônia pela terceira vez. Com os cabelos grisalhos pelo tempo de trabalho, altura mediana e uma inteligência que poderia muito bem o tornar um altivo sabichão se contrapõe a simplicidade e a simpatia de seu falar, quando contava do tempo de dedicação ao voluntariado que sempre encontra espaço em sua agenda lotada com aulas da USP, Mackenzie e outras faculdades em Santos.
O amor pelo próximo e a dedicação com o trabalho era algo que podia ser visto em seus olhos. No período da tarde, o professor Pucci aproveitava para conhecer a comunidade, o estilo de vida e a condição da população. De uma forma carinhosa e ao mesmo tempo preocupada, o contado com a rotina das comunidades foi o mais marcante. A condição de vida dos ribeirinhos, casas muito simples, muito pobres, entretanto diversas casas possuíam antenas de TV a cabo, televisões de tela plana e celulares de última geração. – Mas isso não os impediam ser tão receptivos. – Em uma casa que fui visitar, por exemplo, para salvar o motor de um barco, a família me serviu castanhas do Pará, recém caída da árvores, que ao quebrar é cheio de sementes, frutas da região. A gratidão nos olhos da população é algo muito visível. – Pucci relembrava sua hora preferida da expedição, quando consegui visitar as famílias das comunidades e conhecer as histórias daquele lugar e toda a estrutura de vida daquelas pessoas. As oficinas que o professor oferecia eram mais descritivas, com apresentações e fotos e utilizaram as salas de aulas das comunidades em que havia escolas, para realizarem as oficinas. Quando não existiam escolas, as oficinas funcionavam em ginásios esportivos. Não tinham como levar muita coisa de mostruário para as pessoas que participariam da oficina, já que para ir
para a expedição tinha limitação de cara, cada passageiro no avião da FAB poderia levar somente 10,5 kg de bagagem. Em algumas situações era preciso sair das salas, como por exemplo quando um dos participantes da oficina estavam com alguma motocicleta do lado de fora, podendo explicar o funcionamento de um motor mais especificamente. – Dependendo da comunidade, a absorção das oficinas eram mais acentuadas do que em outras. - O professor descrevia suas oficinais como quem realmente faz aquilo com amor, independente de ser uma população leiga. As oficinas se alternavam no horário, para que houvesse público suficiente para participar das aulas, pois em anos anteriores, havia uma concorrência entre as duas oficinais, pois eram no mesmo horário, e não atingia a população tão diretamente, que tinha que escolher qual oficina aprender e não poder aprender as duas aulas tão importante para o cotidiano das comunidades. A viagem à Amazônia, representou muito mais do que simplesmente uma doação de tempo e conhecimento ao professor Pucci. Enquanto falava de suas experiências no contato corpo a corpo com a comunidade, que apesar de tanta bagagem e conhecimento em cursos no exterior, ele não imaginava que seu maior aprendizado seria com um garotinho às margens do rio Amazonas.
Casa de colônos ribeirinhos no rio Solimøões no percurso a caminho das comunidades.
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“Vem pra rua!” era o grito mais ouvido em junho e julho de 2013 em todo o país. Brasileiros de todas as idades se juntaram de forma surpreendente e, em uníssono, pediram mudanças em todos os setores da política nacional. E o gatilho foram apenas vinte centavos. Mariana Lima, Natália André, Rebecca Silva
A redação estava em polvorosa. Não tinha um corpo estático. Todos os dez funcionários na Rádio Bandeirantes se mexiam em suas cadeiras, cada um olhando para um lado, mas para as mesmas coisas: as televisões ligadas nas várias manifestações pelo país. Todos foram surpreendidos por tudo. A violência da polícia, a união de pessoas muito diferentes por diversos motivos sendo gritados em cantos e exclamados em cartazes, coloridos, divertidos, trágicos. Denunciavam verdades. Ninguém sabia o que fazer. Parecia que precisávamos de um tempinho a mais para analisar e daí entrar ao vivo para tentar explicar para a população o “sem explicação”, o “não existem palavras”, o “gente, olha a avenida Paulista, foi tomada por jovens da classe média!”. Quando entramos em um acordo, o Itamaraty começou a pegar fogo na televisão do meio. A de cima e a de baixo que mostravam a situação no Rio de Janeiro, foram em um impulso para as mesmas imagens: Manifestantes indo, indo, indo cada vez mais próximos do Palácio em Brasília. O plano tinha sido desarmado. Não tínhamos mais tempo, era preciso entrar, colocar um repórter ao vivo e deixá-lo falar as suas próprias impressões. Leia-se própria como a ótica do ser humano que se formou em jornalismo, que estava atrás daquele microfone, respirando gás lacrimogêneo como o resto da população que lá se encontrava. O jornalismo ali só ia permitir
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algumas técnicas de fala. De resto, o medo, a surpresa, as emoções, eram iguais a de qualquer um naquele momento. Bombas explodiam, tiros eram disparados. Na região central de São Paulo, no coração da cidade, corações bombeavam sangue para os corpos daqueles que resolveram se expressar nas ruas. Perdido com um gravador na mão e um bloco de anotações, o jovem jornalista Renan Rezende, recém-formado, cobria a sua primeira pauta da vida pela Rádio Estadão, que também era o primeiro emprego numa redação. Foi retirado momentaneamente de seu cargo tranquilo de produtor e jogado na rua, em meio a confusão por falta de efetivo. Da rua da Consolação, no centro expandido de São Paulo, ele passava as informações para a Estadão. Quilômetros de distância separavam as duas redações. O sentimento das estagiárias, Natália André, na Rádio Bandeirantes e Rebecca Silva, na Rádio Estadão, porém, era o mesmo: gostariam de estar na rua, junto a amigos e desconhecidos, lutando por uma mesma causa, que depois atrairia vozes que gritariam por tantas outras. A frustração era grande, mas não havia tempo para decepção. O foco era o trabalho, a cobertura jornalística daquele fato inesperado e, por que não dizer, inacreditável. Não se pode tirar a graça da posição delas. Só puderam se tocar dela depois que tudo tinha passado. Estavam numa redação,
“nunca passei tanto medo na minha vida” tentando entender aquelas milhares de movimentações sociais diárias, documentando através de boletins sonoros e ajudando o resto do Brasil a acompanhar aquilo tudo de forma histórica. Ninguém poderá falar que não foi incrível também. Não estavam na mira de um policial e as suas balas de borracha, mas o corre-corre as deixava atordoadas de forma parecida. Parecia que tinham corrido quilômetros de distância. As jornadas que deveriam ter cinco horas, passaram a ter sete horas e meia. A janta que deveria ocorrer por volta das 20h30, no trabalho, só ocorreria às 3h, em casa. Mas o cansaço só foi possível ser sentido, quando as manifestações deram uma pausa, talvez um recesso. “Eu quero ir embora daqui”. Era a terceira vez que Renan ligava para o estúdio para conversar com o apresentador do programa, Emanuel Bomfim. Perdi a conta dos desabafos. Era fácil notar em sua voz o medo que sentia. - Renan, você está bem? - Sabe aqueles filmes de guerra, Rebecca, quando uma bomba explode do lado do mocinho e ele fica atordoado, meio surdo, sem saber direito o que está acontecendo? Quando a única coisa que sente é um medo que toma conta de todo o corpo? É isso que está acontecendo. Uma bomba acabou de explodir do meu lado, depois que alguns manifestantes provocaram e insultaram a Polícia Militar. Antes disso, os gritos eram de “sem violência”. - Se cuida! Tenta não se machucar! - Não posso mais fazer isso aqui. Foi a minha primeira e última participação. Quero sair daqui o mais rápido possível. Aquele fora o dia mais violento das manifestações do meio do ano, marcado
pela ação desmedida da polícia contra não só os que protestavam, mas também jornalistas que cobriam o acontecimento. 13 de junho de 2013. Letícia Carvalho, 23 anos, estudante de jornalismo do quarto ano da Universidade Presbiteriana Mackenzie, faltou ao trabalho diversas vezes, na Rede Bandeirantes de Televisão, para apoiar as manifestações. Ela tem experiência nesses movimentos e foi também para ajudar os diversos leigos e simpatizantes no assunto, talvez o grande diferencial desses protestos que tanto nos chocavam. “Tinha muita gente que não sabia lidar com a situação, foram muito despreparados e foi o dia mais violento. Muitas crianças, grávidas, senhores de idade. O pessoal não levou nada para proteger o rosto. Dava desespero ver tanta gente passando muito mal com o gás lacrimogêneo e o spray de pimenta”. “Pelas ruas marchando, indecisos cordões. Ainda fazem da flor, seu mais forte refrão. E acreditam nas flores, vencendo o canhão”. “Estávamos subindo a rua da Consolação cantando ‘Pra não dizer que não falei das flores’, de Geraldo Vandré. Tínhamos passado o Mackenzie. Estávamos nos aproximando do cemitério, na pista de subida para a Paulista, quando a tropa de policiais veio em nossa direção fechando toda a avenida. Estavam em cima de cavalos, todos muito bem equipados. Um cenário de guerra”, afirma Felipe Germano, estudante de jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Na passeata, corpos foram desenhados no chão dos pontos em que houve violência policial.
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Manifestantes fecharam a pista sentido Paraíso, em protesto contra a violência policial praticada em manifestações anteriores.
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“Nunca passei tanto medo na minha vida”. - Mas, Fê, quando eles começaram a usar daquela violência grotesca contra vocês? Por que, se só estavam cantando? - Não conseguia ouvir de onde estava, mas pelo que entendi, chamaram o líder do nosso grupo para tentar negociar. Aí, responderam que não tínhamos um líder. “Somos uma massa unida. Com várias caras”. Só ouvi o primeiro tiro e corri como não sabia que eu conseguia. “Há soldados armados. Amados ou não. Quase todos perdidos, de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam, uma antiga lição: De morrer pela pátria, e viver sem razão”. Pelas mesmas ruas, um outro jornalista desviava de pedras, corria da polícia. Em sua terceira entrada para a Rádio Bandeirantes, Gabriel Prado achou que teria a chance de contar mais do que viu quando o gás lacrimogêneo entupiu a sua traqueia e o fez vomitar o pouco que tinha comido durante o dia de militância forçada. Cortaram o microfone do repórter e depois não conseguiram mais contato. Gabriel tinha sido encaminhado para o hospital, já sem voz, onde ficou até a manhã seguinte. A redação sofreu desfalques na noite posterior. Dois de seus três jornalistas noturnos estavam sem voz. O último foi para o combate com a pouca força que sobrava em seu corpo cansado de uma semana de protestos diários. “O que mais
me desespera é não saber quando isso vai acabar”. 19 de junho de 2013. O governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, figura todas as telas das televisões com uma gravata vermelho-sangue. Nenhum respiro. Um silêncio quase morto. Podia ter o estalo que fosse na redação, ninguém moveria os olhos. “No caso do metrô e do trem, nós vamos revogar o reajuste dado, voltando à tarifa original de R$ 3. É um sacrifício grande.”. Depois, o prefeito Haddad aparece, com uma gravata azul marinho. E não solta a frase mais suplicada por mais de uma semana. Não como os movimentos queriam, como “Voltamos o preço da passagem do ônibus para R$ 3!”. Foi um bem bolado de firulas, rodeios, para dizer isso mesmo. Parecia ser difícil confessar. Um discurso repetitivo. “Não há como fazê-la sem as dispensas dos investimentos. O investimento acaba sendo comprometido”, “Temos de explicar as consequências deste gesto para a cidade. Teremos de repensar o orçamento com essa nova realidade”. Assim como apareceram com força, os movimentos foram diminuindo. Nunca desaparecendo. Transformando-se. O grito das ruas, que mobilizava, dava força e convocava, agora só choca, atrapalha, empaca. Movimentos sociais de todos os tipos de redes pipocam diariamente, em todo o país. Nem se sabe mais sobre o
que se protesta. Alguns mais resistentes persistem por dias, às vezes semanas. Mas a verdade é que nenhum deles chega aos pés do que foi presenciado no meio deste ano de 2013. Surgiram os Black Blocs, dominando os protestos. A Mídia Ninja despontou no cenário virtual e se perdeu em meio às criticas, com uma carreira tão rápida quanto o seu objeto de estudo. Após meses de análise, podemos dizer que as manifestações voltaram para o status quo anterior. Os movimentos de junho e julho foram exceções. Hoje, os protestos voltaram a ser vistos como reivindicações de pequenos grupos. Não mais de duzentos ocupando faixas da Avenida Paulista. Atingido o objetivo inicial da redução da tarifa, os jovens que aparentavam de repente ter acordado para o cenário político nacional, voltaram a dormir. O mais triste é comprovar que tudo foi efêmero, um produto da banalização típica da sociedade da qual fazemos parte. Presentes apenas para marcar presença. De caras pintadas e carregando cartazes pela graça, pela farra. Em véspera de eleições presidenciais, a hibernação da juventude é, no mínimo, preocupante. E no cenário em que protestar virou moda, não podemos esquecer das manifestações decorrentes de outras manifestações. Confuso, mas real. E foi numa dessas que uma das estagiárias conseguiu ir. Marcaram de aparecer na do dia 7 de setembro. Dia da independência do Brasil. Dia do país se manifestar mais uma vez. Cada um sairia na rua para gritar o que tivesse vontade de reclamar. Pelas selvas, para acabar com a corrupção, pela PEC não sei das quantas. Era um sábado, folga de duas delas, no grupo de três. Talvez por medo ou desconfiança de que a manifestação não se efetivasse, não foram. Acertaram. Se fossem, talvez tivessem sido uma das vítimas que perderam a visão, foram alvejadas por um projétil de arma de fogo policial, ou atropeladas por viaturas. Foi violento, muito violento. Motivo para emplacar outra no sábado que vem, dia 14. Natália foi sozinha. Rebecca tinha retirado o ciso. Não podia sair de casa. Mariana Lima, tinha plantão na Rede Record de Televisão. Desceu na estação de metrô Consolação e foi caminhando pela avenida Paulista sentido Paraíso. Foi fotografando todas as viaturas, os policiais, tudo de suspeito que via até
o MASP, ponto de encontro e partida do movimento. Meio desacreditada, desapontada. Cadê a mobilização? As pessoas com os rostos pintados? Os capuzes? Os Black Blocs? Chegando no parque Trianon, começou a sentir que estava no lugar certo. Desse lado, duas viaturas, uma base militar num trailer e umas dez motos. Muitos policiais caminhando e observando o famoso vão do MASP. Lá, umas trinta, quarenta pessoas, com camisetas do Movimento Liberdade à Vida, do V de Vingança, do Grupo de Apoio ao Protesto Popular e de uma variedade de manifestações têxteis. Algumas faixas com dizeres contra o governo, com relutâncias e pedidos. O mais curioso, eram os tampões em um olho só. É que, o estudante Vitor Araújo, de 19 anos, participante da manifestação do dia 7 de setembro, foi atingido por uma lasca de bomba de efeito moral no olho direito jogada por um policial. O garoto perdeu a visão dessa vista. Os tampões eram para homenageá-lo, já que ainda estava internado no Hospital das Clínicas e não pode comparecer no movimento do dia 14.
O uso das máscaras nos protestos causou muita polêmica. No Rio de Janeiro, inclusive, o acessório foi proibido nas manifestações.
“sou uma mãe de família e quero que o meu filho volte normal da rua.” Narrativa | 131
Uma pergunta frequente na redação era: “Como esses caras conseguem parar a Paulista tão rapidamente?”. A resposta, com palavras, numa explicação linear, não devia ser simples, mas pessoalmente, era compreendida em segundos. Por volta das 16h, o grupo começou a se encaminhar para a faixa de pedestre da frente do MASP. Usaram uma das faixas para segurar o trânsito e pronto. Paulista fechada sentido Consolação, esperaram a maior parte passar e fecharam o outro lado. Todos foram para o sentido Paraíso e lá começou o som de alguns instrumentos de bateria de escola de samba. Ligaram um mega fone e a ideologia começou a ser espalhada. “Vocês estão vendo os nossos rostos tampados, nosso olho direito hoje ficará cerrado em homenagem a um amigo nosso que estava lutando pelos nossos direitos e recebeu a repressão do nosso governo democrático e agressivo!” Foram caminhando e rabiscando o chão. Fazendo marcações dos lugares onde manifestantes foram agredidos pela polícia. Como se fossem cenas de crime daqueles enlatados americanos. Do corpo caído no chão, riscado de giz. Muitos fotógrafos não paravam de disparar. Trocar de câmeras. Passar as fotos para os notebooks. No cruzamento da alameda Campinas, o único tumulto. Uma motorista, irritada com o bloqueio, fingiu querer passar por cima da barreira humana com o seu Cinquecento, um Fiat do tamanho de um Smart. Um Black Bloc que acompanhava o movimento, irritou-se e foi para cima do carro. A polícia controlou o garoto e a moça fechou o vidro o mais rápido possível. Tinha uma senhora que não se aquietava. Não parava de distribuir folhetos, dar explicações. Bem enturmada com os líderes dos grupos. - Você é a mãe do Victor? - Amiga de manifestação. - Como ele está? - Se recuperando para voltar para as ruas. - Vocês fazem parte de algum grupo? - Não, nós somos cidadãos e nos manifestamos contra tudo que não concordamos. Contra a impunidade, corrupção e hoje, contra a violência policial. Sou uma mãe de família e quero que o meu filho volte normal da rua. Não mutilado pela própria polícia. Ela deveria estar nos defendendo! - É verdade. - Estamos apenas dizendo um basta
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para o governo. A gente não aguenta mais! A senhora se chamava Patrícia Ramos, de 40 anos. Era gerente de vendas. Desviaram para a descida na Brigadeiro, seguiram para a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e depois voltaram para a Paulista. Foi a sua primeira manifestação. Mas faltou alguma coisa. Não sei se um maior agrupamento de pessoas, ou aquela polícia agressiva, ou a destruição dos Black Blocs. Tipo, uma alma. Aliás, sem alma. Faltou alma. Não eram mais do que trinta pessoas gritando por coisas diferentes, um olhando para um lado diferente. A polícia seguindo sem nenhum tipo de preocupação. Sabiam que éramos inofensivos. Mesmo na folga, Natália gravou sonoras, fotografou, filmou e mandou tudo para a Rádio Bandeirantes. Ajudou na elaboração dos famosos “foguetinhos”, palavra do jargão da rádio quando nos referimos a pequenos boletins informativos. A redação ficou abastecida. A manifestação vazia. E uma decepção eminente por parte da jornalista juvenil. Oito horas da noite. Outubro de 2013. Manifestações com presença de Black Blocs ocupam as ruas do centro de São Paulo e Rio de Janeiro. Desta vez, a demanda é maior. O foco é a educação. Paulistanos vão às ruas em solidariedade à greve carioca, que já dura dois meses. As ruas pegam fogo, literalmente. Carros são revirados, pedras são atiradas e a polícia assiste imóvel. Na redação, as imagens na tv não chocam mais. As chamas, a correria, a baderna e a violência já viraram lugar comum. No bairro do Limão, zona norte de São Paulo, a redação da Rádio Estadão está tranquila, em silêncio. Cada um dedicado a sua rotina de tarefas. “Faz uma entrada rápida de trânsito?”, foi tudo que o chefe falou para a estagiária. Mais do que nunca, os protestos eram noticiados como fardo, como o terrível motivo para os ouvintes demorarem tanto para chegar em casa depois de um dia de trabalho. Fez seu dever jornalístico apurando as informações sobre a situação das vias da cidade, redigiu seu texto e seguiu para o estúdio. A luz vermelha indica que o microfone está aberto. Estão ao vivo. “Mais uma manifestação ocupa vias importantes da cidade, prejudicando o trânsito na noite desta segunda-feira...”
Contadores de histórias infantis relatam suas experiências, momentos e conquistas nesse meio, cada vez mais necessário para a boa formação humana das crianças
Jorge Barros e Osvaldo Albuquerque
“Senta que lá vem história!”. Essa frase certamente faz parte do imaginário de todo adulto que já teve a experiência de sentar para ouvir, e viver, histórias. Elas normalmente são transmitidas pelos pais antes de dormir ou relatadas no aconchego da casa dos avós. Independentemente da fonte, o processo de contação de histórias faz-se fundamental no desenvolvimento de todo ser humano e suas consequências são levadas por toda a vida. Contar histórias deixou de ser um hobby noturno das famílias, para tornar-se um tipo de trabalho voluntário ou, em muitos casos, profissão. Para esses novos profissionais da magia e do encantamento da palavra, o efeito que as lendas e contos transmitidos causam na vida daqueles que os escutam são levados muito a sério e o empenho feito pelos contadores é “pra valer”! Dedicação é o sobrenome de Diana Ishimitsu, profissional da área de marketing e contadora de histórias aos finais de semana, levando a todos a tradição japonesa. Através de barquinhos e passarinhos feitos pela prática oriental do origami, ela cria uma atmosfera mágica de fatos, sonhos, imaginação e realidade, a começar pela transformação de um simples pedaço de papel, sem graça e quase inútil, na imitação de um ser real. Esses objetos feitos por meio de dobras ganham vida e são capazes de passear pela imaginação dos leitores atentos. No dia de contar as histórias, Diana compõese em figurino tipicamente japonês, com
um quimono colorido das cores mais belas, maquiagem bem feita e alma infantil. Com o auxílio da técnica oriental do Kamishibai, a contadora vai narrando a lenda e ao mesmo tempo ilustrando os passos da história, dando ainda mais realidade para aquilo que ela transmite. E como tudo na vida, as histórias também não podem sobreviver sem música. Levantando a bandeira de sua origem, Diana usa um instrumento oriental de três cordas: o shamisen: -é semelhante ao tradicional cavaquinho, entretanto com um braço mais longo. A partir daí os contos viajam pelo imaginário, transforma toda a gente em eterna criança. Não é só Diana quem faz das histórias uma atividade profissional. Fabiana Prando também trabalha em prol da imaginação. Formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou como professora, entretanto a vida exigiu dela outros rumos. Um dia, a moça recebeu a ligação de uma instituição pedindo donativos e ela, prontamente, resolveu contribuir contando histórias. Desde então foram só alegrias: - Fabiana começei a contar, tudo aquilo que se fazia necessário. Criei meu projeto, chamado “A casa na árvore”, com o objetivo de levar as narrativas para ambientes e públicos diversos e criação de oficinas de formação. A performance de Fabiana também é repleta de acessórios. A contadora compõe cenário colorido e formado por muitos objetos necessários para expressar a realidade do conto
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Diana explicando a arte do origami (foto: Jorge Barros).
apresentado. Além disso, faz do seu corpo marionete das personagens que sustenta, expressando as emoções e reações de cada um, presentificando cada agente da história. É como se cada personagem visitasse a cena e puxasse cada ouvinteleitor para dentro da narração. A respeito da estrutura da contação de histórias, perguntei a Diana como é feito o repertório das apresentações. Ela gentilmente respondeu com um sorriso leve no rosto, como o sorriso das pessoas que acabam de ouvi-la: - As Lendas escolhidas, têm mensagens importantes para a vida em sociedade, como ajuda ao próximo, importância da amizade, honestidade, otimismo, trabalho em equipe, compaixão. Incentivar as crianças à leitura, difundir de forma lúdica e criativa os valores
“O melhor das histórias é o encontro especial entre as pessoas” 134 | Narrativa
universais humanos, resultará numa sociedade mais harmoniosa e um mundo melhor. Não apenas organizada em cenário, textos e performance, as apresentações resultam em muito mais que entretenimento: São encharcadas de emoção. Fabiana tem experiências muito particulares com a contação de histórias. - O melhor das histórias é o encontro especial entre as pessoas. Vivo isso com muita força. Certa vez, atuando como voluntária, vi uma menina abraçar um livro e suspirar de emoção pois aquele objeto estava distante da sua realidade de vida. Tanto Fabiana quanto Diana são frutos de uma série de histórias contadas a elas. Desde a infância, ambas foram muitíssimo influenciadas pelas histórias que chegavam ao seu imaginário e trouxeram suas experiências infantis com as palavras para suas atuações como contadoras. Diana, escutando muitas histórias de seus avós orientais, despertou para o gosto pela leitura, fazendo da prática parte de seu trabalho. Ela viu nas lendas uma maneira de dar continuidade à riquíssima cultura japonesa que permeava sua família e a de tantas outras pessoas. Contar histórias é colocar um brilho estelar nos olhos das pessoas. Com Fabiana o empurrão não foi só por parte da família. Na verdade, seus pais trabalhavam muito e suas heranças literárias foram deixadas por uma coleção chamada “disquinho”, na qual as histórias eram musicadas e constantemente escutadas pela moça. - Também sonhei com os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, um grande sucesso da TV na época. Tinha alguns livros infantis que eu gostava muito, os contos de fadas clássicos, Clara Luz, a fada que tinha ideias e por aí vai… Sem dúvidas, o universo das lendas e contos arrebata pessoas de todos os tamanhos e idades e deixa marcas para o resto da vida. Quem não tem uma boa história para contar, que atire o primeiro livro. E não pense, caro leitor, que apenas crianças são tomadas pela magia do conto. A moça ainda relata que já presenciou num hospital adulto emocionar-se ao final de uma história: - A chefe da pediatria deu um longo suspiro, disse muito obrigada e compartilhou que tinha voltado ao seu lugar de infância e que precisava muito viver essa experiência porque a rotina do hospital era devastadora. Relembra
Fabiana. O relato certamente emociona. Quantas pessoas não sairiam de suas rotinas sanguessugas caso ouvissem mais histórias? Foi pensando em todos os benefícios e aspectos como quem conta, quem escuta, como contar, e quando contar gerados pelos contos, que a Biblioteca Hans Christian Andersen, localizada no Tatuapé e subsidiada da Prefeitura Municipal de São Paulo, criou um grupo de formação de profissionais do conto, isto é, um núcleo com cursos gratuitos para novos contadores de históris. Um belo impulso para a propagação da cultura através de palavras. O curso básico de formação e semestral é muito disputado, tendo em sua última edição 250 inscritos para 35 vagas: é um vestibular do conto! O site do município de São Paulo informa que a importância dessa atividade para o desenvolvimento da criança é justamente atrair o futuro leitor, ampliando sua criatividade e imaginação. Luciana Melo, uma das responsáveis pelo curso na biblioteca, relata que dentro do projeto, conheceu uma menininha de uns 9 anos que não sabia ler, mas adorava as leituras e - Comecei a ensiná-la através das histórias e hoje ela é uma aluna exemplar de literatura. O poder transformador das histórias pode ser facilmente percebido quando se é possível observar as mudanças ocorridas no modo de vida dos indivíduos. Ouvir histórias, ler histórias e contar histórias deveriam ser práticas obrigatórias para todas as pessoas desde a infância. -Esses exercícios, aparentemente simples e quase involuntários, trazem à vida adulta vantagens descomunais. Afirma Viviane Montanheri, psicóloga infantil do hospital Albert Einstein. Newton Kimishigue é psicopedagogo e atua na área da educação há treze anos. Ouvinte de histórias também desde a infância, ele ressalta muitas vantagens para quem é leitor assíduo das lendas: - A contação de histórias é importante para, primeiro, estar desenvolvendo a parte lúdica da criança, o sonhar. Com o sonhar na contação associado ao aprendizado da leitura, a criança é estimulada a buscar aquilo que viveu na imaginação num livro e isso abre portas para o hábito de ler. Por conta desse processo associativo entre imaginação e leitura, o indivíduo é capaz de desenvolver sua interpretação de textos e isso é de grande proveito para a fase
adulta. Ele, mesmo amparado por conceitos técnicos também foi muito estimulado a ler através das histórias de sua mãe. Ela, com todo o carinho e cuidado maternal, pegava recortes de revistas e jornal para contar histórias aos filhos. Essa atitude deixou muitas marcas na vida de Newton. - Lembro-me da minha mãe juntando as letras para dar significado àquilo que ela contava. Como tenho uma origem oriental, ela aproveitava esses momentos lúdicos em família para nos trazer a tradição oriental e isso tem um grande valor. Um dia, na praia de Ubatuba, aos 11 anos, depois de uma longa tarde chuvosa
“a contação de histórias é importante para desenvolver a parte lúdica da criança”
Crianças se divertem durante contação de histórias ministrada pela Diana (foto: Jorge Barros).
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Diana explicando técnica de origami (foto: Jorge Barros).
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jogando xadrez com o tio, engenheiro de profissão, e o homem já cansado de tantos xeque-mate, pegou o sobrinho e através de uma história lúdica ensinou matemática ao menino Newton: - Nunca me esqueci. Meu tio desenhou um círculo na areia e através de formas, sombreados, objetos, foi me ensinando o ciclo trigonométrico. Isso foi aos 11 anos, hoje tenho 43, mas nunca me esqueci. A maneira mágica com a qual ele me ensinou matemática fez com que nunca saísse de minha memória. Contar histórias não é só ensinar a ler, mas sim introduzir todos os indivíduos no universo do conhecimento. A mágica do saber está em todas lições carregadas de significado. Até agora foi possível notar que é dentro de casa que as grandes influências surgem. Foi assim com Diana, Fabiana, Newton e assim foi também com Gabriel Schimidt. Menino de 17 anos, estudante e escritor. Sim! Escritor! Ele está produzindo sua saga intitulada de “A ordem perdida” e revela a importância da leitura para sua profissão. - Acredito que houve uma grande influência por parte do meu irmão, Caio Schmidt, pois, aos seis anos de idade, percebia que ele gostava bastante de ler os livros de Harry Potter e eu, como todo irmão caçula, queria fazer a mesma coisa. Também quem me contava muitas histórias era o meu pai, Antônio Rondini, mas eram contos infantis que ele mesmo criava. Além disso, eu assistia a muitos filmes de fantasia e animes. Desde então, o menino passou a devorar tudo aquilo que possuía letras,
páginas, capa e principalmente, mistério. - Desde pequeno, eu sempre tinha o hábito de escrever contos, porém nunca com a intenção de publicá-los. Em 2011, Tive a ideia de escrever um conto, mas aos poucos ele foi tomando proporções maiores até chegar ao ponto que resolvi que a história teria que virar livros. Hoje, tenho anotado os nomes e as histórias de todos os livros da saga de sete. A Ordem Perdida é o primeiro da saga. Admito que foi um processo inovador, porque escrevia e depois lia com “olhos de leitor” para deixar tudo muito bem engrenado. E assim se fez na vida de Gabriel o qual esteve presente na Bienal do Rio e acha muito gratificante contar com o carinho dos fãs. - Conhecer e reencontrar autores. Conversar com leitores e conhecer pessoas que admiram o seu trabalho é sensacional. Com Gabriel a contação de histórias foi o combustível necessário para que ele pudesse seguir o caminho mágico da leitura e da escrita. Com Newton, as histórias fizeram-no despertar para a educação, área na qual atua há cerca de 13 anos. Fabiana e Diana desenvolveram tal amor pelas lendas e pelo universo lúdico da tradição oral que fizeram do encantamento um canal para transmitir um pouquinho de alegria e imaginação para a vida tantas vezes cinzenta de adultos e crianças. Histórias acordam o ser-humano para sua essência: a humanidade. E, nas palavras de Fabiana: - As histórias são um presente de amor. Tocamos as pessoas profundamente e nos relacionamos com elas de nossa parte mais autêntica e profunda. Vai muito mais longe do que estimular a leitura, nos acorda para a nossa condição humana.
“contar é introduzir indivíduos no universo do conhecimento”
Profissionais da enfermagem relatam, em face às suas numerosas experiências, a importância da profissão como um elo entre a vida e a morte. Juliana Azar Thaís Carapiá
Quando perguntamos a qualquer leigo sobre o trabalho do enfermeiro ou, na maior parte das vezes, da enfermeira, inevitavelmente ele falará que esse profissional cuida. Não há dúvidas de que a essência é o cuidar, mas esse cuidar não se limita simplesmente à ação, uma vez que há, entre o enfermeiro e o paciente, uma relação de proximidade dificilmente encontrada em outras circunstâncias. Há o cuidado na chegada de mais uma vida ao mundo durante o nascimento, seguido do cuidado para que a saúde seja mantida e, no caso de uma doença já ter se instalado, o cuidado para restabelecê-la. E quando tudo o que era possível já foi feito, o cuidado do corpo após a morte. Ou seja, o profissional de enfermagem está presente em todas as fases da vida, que é repleta de emoções. Paixão e envolvimento Laura Miria de 26 anos foi motivada por sua paixão pela área da saúde a seguir carreira como enfermeira, sentimento notório pelo brilho dos seus olhos ao falar de suas experiências profissionais. Durante o ensino médio, formouse auxiliar de Enfermagem, o que a levou a ingressar na graduação, período no qual estagiou em diversas clínicas e hospitais, vivenciando a profissão.
Atualmente, ela se dedica a cuidados estéticos, lidando com pessoas que desejam melhorar sua aparência, mas que não apresentam problemas de saúde. Em seus relatos, é perceptível que de fato ela se envolvia emocionalmente com o estado dos pacientes, ao que ela mesma atribui ter sido o motivo de sua “mudança de área” de atuação. Experiências marcantes enquanto atuou como enfermeira foram várias. Dentre elas, a que viveu em uma clínica de repouso. Um dos pacientes da clínica, senhor Hugo, que à época tinha noventa e três anos, tratava-a com muito carinho, principalmente por ela ter o mesmo nome de sua esposa, já falecida. Parecia que o idoso a acolhera como neta, apreciando sua companhia e seus cuidados cantarolando Lady Laura, de Roberto Carlos. Na mesma clínica, havia também uma senhora que sofria do mal de Alzheimer. Ela recebia com uma frequência muito maior que os demais pacientes a visita do esposo, que a tratava como uma rainha. Devoto, o marido lia para sua esposa, em todas as suas visitas, uma linda carta, escrita por ele, na qual recitava todo seu amor, emocionando todas as enfermeiras, contou Laura, em tom nostálgico. Em seu estágio em uma clínica psiquiátrica, Laura conheceu um rapaz, muito bonito,
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Laura Miria com suas colegas enfermeiras (foto: arquivo pessoal).
simpático e inteligente, chamado Gabriel. Ele, que estava na ala de dependentes químicos e alcoólatras, falava, com convicção, que em breve, assim que saísse de lá, viajaria para os Estados Unidos para estudar. Tendo que escolher um dos pacientes para estudo de caso, conforme proposta do estágio, Laura escolheu-o. Estudando o prontuário de Gabriel, a jovem enfermeira constatou que ele havia sido diagnosticado como esquizofrênico, o que a deixou bastante surpresa, uma vez que havia na clínica uma ala destinada àqueles doentes. Um dia, Laura chegou à clínica e não o encontrou na ala em que ele costumava ficar. Intrigada, perguntou às enfermeiras mais experientes onde ele estava, ao que foi informada que ele havia tido, na noite anterior, um surto de agressividade contra
“DESDE QUE EU ME conheço por gente, eu sabia que faria algo na área de biológicas” 138 | Narrativa
um enfermeiro, sendo destinado a um quarto recluso sob outra medicação. Os relatos mais chocantes de Laura foram os de sua experiência no prontosocorro de um hospital localizado em uma região periférica da cidade de São Paulo. Responsável por trocar a sonda dos pacientes, ela recebeu uma mulher, na faixa dos 30, que havia sido liberada do uso, uma vez que já havia se recuperado da cirurgia. No entanto, a paciente se recusava a tirá-la. Indagada, falava que era melhor continuar usando a sonda, que passava por um orifício em seu abdômen. Diante disso, Laura relatou o fato ao médico responsável que, espantado e desconfiado, indagou a mulher com mais firmeza. Horrorizada, Laura contou que, depois de muita insistência, a paciente contou que o marido gostava de manter relações sexuais através do orifício da sonda. Outro caso que ela presenciou no pronto-socorro, e que contou esmorecida, foi o de um rapaz que ia com frequência ao hospital para trocar a sonda. Ele havia inserido, tempos antes, uma garrafa no ânus que, com a pressão, estourou, obstruindo seus intestinos completamente. Sabedoria e serenidade Suzana Klinow Vaineras, 50 anos, ingressou no curso de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP) com 17 anos. Desde mocinha, já havia decidido que trabalharia na área de biológicas. “Sempre gostei da área de biológicas, da área de saúde, situações em que você ajuda a outra pessoa, seja como assistente social, psicólogo ou nutricionista. Desde que eu me conheço por gente eu sabia que faria algo na área de biológicas. Medicina eu nunca quis. Nunca fui apaixonada por Medicina” – disse Suzana, serena e sabiamente. Assim que se formou no ensino médio, prestou vestibulares tanto para Enfermagem, quanto para Odontologia, carreira a que seu pai se dedicou toda vida. “Prestei os dois cursos, fui aprovada nos dois vestibulares, o que me deixou em uma dúvida cruel” – contou Suzana com ar nostálgico. “A faculdade de Odontologia era muito longe, paga e nada barata. Em Odontologia, eu já sabia até a especialização: bucomaxilo, na área de cirurgia. Pensei, pensei... Na época, eu não sabia muito sobre enfermagem. Fui por exclusão”. Tomada a decisão, Suzana foi
animada, como sempre, ao primeiro dia de aula na Escola de Enfermagem da USP. Sua primeira aula foi de anatomia, a qual ela descreveu ter sido básica, teórica, a princípio, para depois irem aos cadáveres. Depois da aula, foram almoçar antes de retornarem ao segundo turno de aulas. Assim que ela chegou em casa, lembra-se perfeitamente do pai tê-la questionado: “Você almoçou?”. Estranhando a pergunta, e apresentando a mesma expressão de dúvida que deveria tê-la acometido anos atrás, Suzana contou ter respondido “Por quê? Não podia almoçar? Eu almocei”. Feliz, seu pai lhe falou que, então, ela estava na profissão certa. Suzana se considera uma pessoa muito sensível, o que para ela é essencial a qualquer profissional da área ao ajudar os pacientes. Apesar disso, a doce enfermeira salienta que a sensibilidade deve ser acompanhada de conhecimento e calma, necessários para tomar decisões com cautela, como, por exemplo, na escolha de uma determinada medicação, certificando-se se é correta ou não, levando-se em consideração a prescrição médica ao paciente e os procedimentos necessários. Depois de formada, Suzana saiu em busca de emprego, com seu currículo debaixo do braço. O primeiro processo do qual participou foi no Hospital Nossa Senhora de Lourdes, onde passou, segundo suas próprias palavras, por “uma situação meio traumática, digamos assim”. Primeiro passo foi a avaliação do currículo. Depois, passou por uma avaliação prática, em que trabalhou quatro dias nas unidades ou setores do hospital para, ao final, passar por uma entrevista. Caso fosse aprovada, ela seria alocada na unidade que necessitasse de um enfermeiro ou na qual demonstrou maior habilidade. Quando Suzana chegou para o primeiro dia de avaliação prática, o funcionário que controlava o ponto lhe falou que ela deveria assinar o ponto na entrada e na saída, mesmo estando no processo de seleção. Ao final dos quatro dias, ela foi à entrevista com a enfermeira-chefe, que olhou seu currículo e disse que era muito bom. Quando ela viu seu sobrenome, Klinow, perguntou sua origem, ao que Suzana respondeu ser russa. Logo depois, a enfermeirachefe lhe perguntou se era judia, ao que Suzana respondeu afirmativamente. “Falei que era e ela disse que não tinham vaga. Voltei para casa em prantos. Contei para o meu pai e nós fomos, no
dia seguinte, falar com a enfermeirachefe. Muito educado, meu pai falou que eu havia trabalhado quatro dias e que eu tinha direito de receber por eles. Muito arrogante, ela falou que não, que eu não havia passado no processo seletivo. Aí ele falou que eu havia assinado o caderno de ponto, onde constavam meus horários de entrada e saída, então, ele falaria com um advogado. A enfermeira-chefe ficou branca, verde, amarela, azul... Aí, o hospital me pagou certinho os meus direitos”. Suzana começou a trabalhar, em janeiro de 1985, no Hospital Jaraguá, instituição particular localizada no bairro
“UM LUGAR GOSTOSO DE TRABALHAR, MAS MUITO PESADO”
Suzana Klinow Vaineras na formatura da graduação em enfermagem (foto: arquivo pessoal).
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dar à luz seu primeiro filho, em novembro de 1987, optou por parar de trabalhar. “Eu me arrependo e não me arrependo, ao mesmo tempo, de ter escolhido Enfermagem. Não me arrependo porque eu sempre gostei muito. Me arrependo por não poder conciliar casa e filhos com a profissão”. Seu cotidiano, enquanto trabalhou, foi repleto de situações marcantes, não tendo tido para ela uma experiência única que a marcou. Ter realizado bem seu trabalho e ter ouvido algumas vezes “Muito obrigada! Você salvou minha vida!” era muito gratificante.
Suzana Klinow Vaineras atualmente (foto: Thaís Carapiá).
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de Moema, zona sul de São Paulo. Lá ficou responsável pelo setor de clínica médica e cirúrgica. “Um lugar gostoso de trabalhar, mas muito pesado”, descreveu ela sua primeira experiência profissional, onde os plantões eram bastante frequentes e o cotidiano muito agitado, mal lhe restando tempo para almoçar. Dois meses depois, tendo sido aprovada no concurso público específico para trabalhar no Hospital Municipal Professor Waldomiro de Paula, em Itaquera, abandonou o emprego no Hospital Jaraguá. Suzana contou que os funcionários da prefeitura formavam uma família. Faziam vaquinha para a compra de pães e frios para o café da tarde, organizavam festinhas. Uma experiência inesquecível para Suzana foi um acidente horroroso que ocorreu nas proximidades do Hospital Municipal com o descarrilamento de um trem. Como o Hospital Tatuapé, onde seu marido trabalhava, estava lotado, muitos pacientes foram encaminhados ao de Itaquera, onde, sem leitos suficientes no pronto-socorro, tiveram que ser atendidos no chão. “Eu voltei para casa eu era sangue da ponta do cabelo a ponta do sapato. Era uma visão horrorosa. Aquele dia, saímos umas 22h do hospital”, contou com seus olhos azuis arregalados. Depois de pensar muito junto com seu marido, médico infectologista, Suzana, ao
Experiência e dedicação Ediná Vieira, 55 anos, entrou em contato com a Enfermagem como atendente no Hospital Santa Marcelina. Envolvida com o ambiente hospitalar, ela decidiu se tornar auxiliar de Enfermagem, seguindo com o curso técnico, até formar-se, em 2006, na graduação. Lá trabalhou entre 1987 a 2008, tendo participado, durante sete anos, do projeto piloto Hospital Referência da Aids, uma parceria entre a prefeitura de São Paulo e o Hospital Santa Marcelina. Paralelamente, Ediná trabalhava em home care, tratando de pacientes com Alzheimer, cardiopatas, crianças, além de pacientes terminais. “Todos os dias tem uma coisa nova. Todos os dias tem uma coisa que marca. Todos os dias você vê coisas diferentes. Cada paciente é um”, disse do cotidiano da profissão. Em 2012, Ediná terminou a pós-graduação em licenciatura. “Ainda vou dar aula um dia. Passar meu aprendizado, porque quando você guarda para você ele não tem valor. Ele só passa a ter valor quando você passa o que você aprendeu. Do contrário ele morre com você e não vai servir de nada. Se você aprende e guarda, você não fez nada para ninguém”. Atualmente, Ediná trabalha no Centro de Referência e Treinamento DST/AIDSSP na área de coleta de exames.
“TODOS OS DIAS TEM UMA COISA NOVA”
Baseado no Segundo Salão do Jornalista Redator, que aconteceu no Memorial da América Latina, entenda o Jornalismo Literário
Karol Candido Yuri Codonho
Ahh.. a literatura. Aquele universo onde você pode ser quem quiser, descobrir novos mundos e cenários cinematográficos, passar por grandes aventuras, encontrar o maior desafio de sua vida e lutar contra ele durante horas e vencê-lo para no final poder viver a vida dos sonhos. Caso você não possa realmente viver essa vida, apenas abra um livro e mergulhe de cabeça nesse mundo, se imaginando nessa vida - e desejando pertencer a ela. Mas, convenhamos, literatura geralmente é apenas ficção; a única realidade, nesses casos, está em ler/escrever. Entretanto há um gênero literário muito interessante voltado para a realidade, mais exatamente para o jornalismo, ou então é o jornalismo focado na literatura e nas suas características distintas. Felipe Pena, em seu texto ‘O jornalismo Literário como gênero e conceito’ define essa espécie de redação assim: “Não se trata apenas de fugir das amarras da redação, significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade. No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira”. Ou você pode ter uma visão mais radical, como “jornalismo literário não necessita dessa adjetivação de ‘literário’. Isso só serve para dar uma impressão de grandiosidade a uma narrativa
mais detalhada e melhor escrita de uma matéria jornalística. O jornalismo já é literário”, descreve com uma voz suave, olhando para todos da plateia ansiosos pela resposta, o tranquilo Ricardo Ramos Filho. Ou seja, escrevendo utilizando as características de um texto ficcional, o redator pode se colocar como protagonista, descobrir os novos mundos e os cenários cinematográficos, passar por grandes aventuras, encontrar um grande desafio e superá-lo para no final ficar tudo certo. Sem contar que sobra para o leitor imaginar qual é o grande desafio e em que cenário está presente a história. aIsso é jornalismo literário. Isso é detalhar, passar a sua impressão, caracterizar a cena e o cenário e deixar o leitor conhecendo toda a situação, se familiarizar com o local, com os personagens, adentrar no mundo em que apenas o escritor e o entrevistado estavam presentes. Para você entender melhor, a partir de agora ficará sabendo através dessa matéria literária como é feita a construção de uma matéria literária. Metalinguagem é tudo. Construção Acordar num sábado de manhã após chegar em casa na madrugada de sexta para o final de semana é sempre uma tarefa árdua. A
Narrativa | 141
Busto de Simón Bolívar, libertador da América, que dá nome ao auditório do Menorial da América Latina, local do evento.
cabeça ainda rodava pelo tempo que permanecemos no bar, mas foi necessário levantar da cama e pesquisar sobre alguns jornalistas e sobre o evento o qual havia mos confirmado nossa presença. Após o almoço partimos para o II Salão Nacional do Jornalista Escritor, no auditório Simon Bolívar do Memorial da América Latina. Irônico pensar que você está se prendendo a algo que será realizado num recinto que homenageia um dos símbolos da liberdade e independência. Provavelmente foi apenas um pensamento de quem não ficou nada feliz de acordar num sábado de manhã. Enfim, partimos rumo ao evento. Aquela velha história de descobrir novos mundos foi comprovada durante a busca pelo local. O Memorial foi fácil de encontrar, porém até entrar no prédio correto levou tempo.
“Com uma realidade tão rica, para que a ficcão?” 142 | Narrativa
O “novo mundo” era realmente muito novo, pois, apesar de termos ido para a estação de Metrô Barra Funda (fica a aproximadamente duzentos metros do Memorial) inúmeras vezes, nunca tínhamos visto essa grande obra do Oscar Niemeyer. Uns bons minutos foram gastos até encontrar o auditório - uma série de barracas de comida num lugar vazio nos levou para o lado oposto do evento e o surpreendente baixo número de pessoas ao redor do local correto foram cruciais para essa perca de tempo. Enfim no edifício certo, uma passeada rápida pelo local só aumentou a indagação sobre tão poucas pessoas estarem presentes - questão jamais respondida. Uma coleção de obras à venda de jornalismo literário, de biografias e afins nos agradou bastante, mas não aos nossos bolsos, que, em um dos casos, abrigava apenas um celular e uma carteira somente com documentos. Chegamos uns cinco minutos atrasados à palestra, mas aparentemente nada de especial foi perdido. Quando entramos no auditório, um grande trio já estava sob o palco, numa conversa extremamente divertida e interativa com o público que ocupava um pouco mais da metade dos assentos. A âncora desse workshop, Regina Echeverria, jornalista e “escritora especialista em biografias de personalidades mortas”, como ela mesma se define, conduziu muito bem o papo, especialmente pelos outros dois nomes serem de peso: a sua esquerda, o expolítico, escritor e jornalista Fernando Morais, autor de diversas obras literárias de biografias e reportagens; a direita, Ricardo Ramos Filho, nada menos que o filho do lendário Graciliano Ramos. O diálogo entre os três abria espaço para perguntas e mais perguntas, que a todo o momento chegavam via papel à âncora. As questões eram respondidas de maneira muito divertida e quanto melhor a pergunta, melhor a resposta. Óbvio! Muitas risadas da plateia foram tiradas quando a Regina leu a pergunta direcionada ao Ricardo: “Há a possibilidade de escrever uma obra sobre a cachorra Baleia [personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos]?”. Pelo visto, Ricardo gostou da ideia, não sabemos se a ponto de se empolgar e escrevê-la, mas valeu a tentativa. Em meio das perguntas e da conversa, muitas dicas de como ser um grande
escritor foram dadas, muitas vezes por dúvidas vindas do público. Uma resposta chamou bastante atenção, especialmente pela maneira série como Ricardo a disse. “Literatura nasce da realidade. Observe a realidade”, respondeu o filho caçula de Graciliano Ramos com sua costumeira tranquilidade acompanhada por uma voz suave, e em seguida deu exemplos de como suas obras foram criadas a partir da observação. Características como o cenário, comportamento das pessoas e detalhes foram veementemente descritos. Em um tom mais descontraído, Fernando Morais disse “leia. Se puder, leia gênios, se não, leia de boa ou então bula de remédio”. Infelizmente o momento foi interrompido por alguém dizendo “é tiro”. Esse alguém foi o próprio Fernando Morais em relação à interferência nos microfones que se assemelhou ao som de um pequeno tiroteio. Felizmente ninguém se feriu. Acredito ser interessante dar alguma - ou toda - importância a um pequeno discurso da Regina sobre sua insatisfação com a maneira de apuração da imprensa brasileira. “A imprensa brasileira é chata e a apuração é preguiçosa. É dever do jornalista ir até a fonte, até alguma local e esclarecer a situação”, ressaltou. Depois de uma pequena pausa, de olhar fixamente para o centro da plateia, com um olhar que nos pareceu de desilusão, concluiu: “Qualquer um pode pegar o telefone e conversar com o entrevistado, mas não é a mesma coisa, não, pois bem faltará a impressão do jornalista. Faltará os olhos no olhos para poder informar o seu leitor não apenas o que está ouvindo, mas, sim, observando e percebendo”. Uma rápida ajeitada em sua roupa um pouco justa a fez sentir-se confortável e dizer “por isso que prefiro trabalhar com os mortos”. Não podíamos sair sem ouvir nossas perguntas serem respondidas. “No jornalismo literário, o adjetivo ‘literário’ serve para separar os jornalistas dos grandes jornalistas?”, Regina leu vagarosamente, em alto e bom tom, direcionando a pergunta para Fernando Morais responder. Ricardo Graciliano Ramos, antes da resposta do companheiro, esboçou uma pequena reação que, claramente aos olhos de todos, simbolizava um ‘não’ bem grande. Fernando, por sua vez, respondeu serenamente, ainda com a certa descontração apresentada durante as
quase duas horas de workshop: “Existem jornalistas que são excelentes em fazer o simples, que fazem com maestria. Já vi casos de grandes jornalistas, capazes de escrever uma excelente reportagem com traços de uma também excelente literatura não conseguirem redigirem uma pirâmide invertida que esteja nos moldes de um jornal”. Os dedos da mão esquerda esfregavam na palma da mesma mão enquanto respondia e parecia desconfortável a responder isso, mas continuou: “não é porque o jornalista não é bom em escrever uma história que seja um mau jornalista”. Foi muito aplaudido... e com todos os méritos. Sobre a outra pergunta, um erro ocorreu. Foi descartada ou por falta de tempo, pois a apresentação estava no fim, ou porque não era de qualidade.
“Literatura nasce da realidade. observe a realidade”
Entrada do local, surpreendentemente vazia, no dia do evento.
Narrativa | 143
Rota 66, Bling Ring e Crime Castigo. Três obras de diferentes estilos do New Journalism.
144 | Narrativa
É fato, também, que foi descartada de nossos cérebros, pois nenhum de nós dois nos recorda exatamente sobre o que falava. E se não nos lembramos, provavelmente era realmente uma péssima pergunta. Após esse trio terminar sua “apresentação”, depois de uma pausa de aproximados vinte minutos, foi a vez de outro trio aparecer. Liderados pelo Florestan Fernandes Júnior, Lira Neto e Alberto Dinis contaram boas histórias. O tom menos descontraído e mais politizado tornou parte do workshop entediante e mais chato. Um grito abafado de alguém logo no início mostrou como seria algo mais sério. “Não me manda calar a boca”, gritou esse “alguém” por algum motivo desconhecido para alguém desconhecido. O clima sério se tornava mais divertido toda vez que o Alberto Dinis falava sem microfone e o Lira Neto dava uma bronca descontraída, pedindo para o Dinis parar de gesticular para levar o microfone à boca. Um fator que intensificou a situação foi à presença de possíveis calouros de jornalismo sentado na fileira atrás da nossa: a conversa alta e o assunto que estavam falando - combinando quem faria o que do trabalho - entregavam o nível hierárquico deles na faculdade de jornalismo. Apesar das longas duas horas, apenas a fala de Lira Neto, descrita no segundo parágrafo dessa matéria, quando foi questionado sobre o new jornalism, foi de suma importância. Algumas pessoas dormindo e o alto nível de conversa comprovava isso.
Todavia nem de tudo foi desinteressante o tediante segundo workshop. Isso nos abre espaço para voltar ao primeiro trio e terminar esse texto com talvez a frase mais bela de toda a apresentação. Fernando Morais - sempre ele, o mais interativo e interessante entre os presentes acima do palco -, questionado sobre qual o segredo para escrever um bom livro de ficção, apenas sorriu e respondeu “com uma realidade tão rica, para que a ficção?”.
“A Imprensa Brasileira é Chata e a apuração é preguiçosa. é dever do jornalista ir até a fonte”
A renovação de uma região pelo comércio local
Lígia Leite Maina Pantaleon Natália Quinta
Era meio-dia de uma segunda-feira ensolarada na Rua Augusta, altura da Rua Paranaguá. A rua estava movimentada por pedestres procurando o ponto de ônibus ou algum lugar para almoçar. Quem passou por ali há 10 anos com certeza se surpreende com as novas fachadas que se destacam não só nessa rua histórica da cidade, mas como em toda a região e no centro. A mistura entre os letreiros neons, lotes em construção, o grafite e a arte contemporânea, formam uma paisagem e arquitetura característica da Rua Augusta atual. As pessoas que frequentam a região da Augusta são normalmente separadas entre diferentes “tipos”: os que estão apenas de passagem para pegar um ônibus; os “alternativos” que se vestem com roupas de brechós; os que estão vestidos com trajes sociais para trabalhar em seus escritórios e as que estão na rua para marcar reuniões em escritórios mais escuros, fantasiosos e sem nota fiscal. Sem esquecer também moradores de rua – que vivem em seus mundos paralelos, vendedores ambulantes insistindo para que você compre qualquer coisa e pessoas a passeio. Cada bairro da cidade de São Paulo possui a sua própria identidade cultural, mas essa denominação de grupos é um olhar estereotipado e preconceituoso do Centro de São Paulo, criado principalmente no início da década de 1990.
Um exemplo da mistura do novo e do antigo da Rua Augusta está a esquina com a Paranaguá, ponto de alta visibilidade para quem desce e cruza o pedaço tanto a pé quanto de carro. A Rotisserie Bolonha inaugurada em 1920, é um dos comércios sobreviventes de uma região que passou por diferentes transformações de estabelecimentos ao longo das décadas, acompanhando também as transformações ideológicas da história paulistana. Hoje, é um restaurante com ares retrô, que fica aberto até às onze da noite, composto por uma decoração inspirada nos anos de 1950: com uma parede revestida de espelhos, detalhes em dourado no alto das paredes, assentos de couro vermelho, mesas de mármore claro e piso xadrez preto e branco. Sem esquecer também do parking dog, um estacionamento para cachorros (como é chamado) do lado de fora, com água e sombra fresca para os melhores amigos dos homens que acompanham seus donos até lá. O Sr. Alfredo de Carvalho é um simpático português grisalho, de Tras-os-Montes, com sotaque acentuado, que veio para o Brasil ainda criança e que foi criado em São Paulo, é garçom da Bologna desde 1985. Apesar de não morar ali, passa a maior parte de seus dias no meio de toda essa mudança confusa. Mesmo com clientes para atender, o português conta que a padaria não tinha mesas, e era onde pessoas famosas, “como
Narrativa | 145
Fachada da rotisserie Bologna localizada na Rua Augusta desde 1920
Silvio Santos, compravam para a viagem”. Um dos poucos itens que sobraram da antiga rotisseria é a máquina de triturar gelo de 1950, tida entre os funcionários como uma relíquia de trabalho. “A Rua Augusta dos anos 1980 era um encontro de pessoas animadas que gostavam de socializar... Queriam sair para dançar, encontrar os amigos, enfim”. Segundo ele, foram esses os anos dourados da região, já que não havia prostíbulos e o local era repleto de alegria. Foi a partir dos anos 1990 que a Rua Augusta “de ouro” mudou e foi perdendo seu valor familiar. Vinte e duas casas de prostituição funcionavam entre a Rua Peixoto Gomide e a Praça Roosevelt. Mas hoje, já não passam de seis, e no lugar delas, bares, restaurantes,
“1980: foram esses os anos dourados da região da augusta” 146 | Narrativa
lojas de roupa, escritórios e salões de beleza inauguraram. Desde janeiro deste ano, quando a Bologna foi reformada, o Sr. Alfredo percebeu uma grande mudança da frequência das pessoas. O público jovem é mais comum, e pessoas aproveitam o intervalo do almoço e circulam pela área. E apesar da região do baixo Augusta ter sido caracterizada pelos seus “inferninhos”, a falta de segurança nunca foi um problema já que há uma delegacia na esquina da Augusta com a Rua Paranaguá. Mas este é apenas um dos exemplos de reforma e construção de lotes. Ainda existem pontos mal-cheirosos, esgoto à céu aberto – expelindo água suja nas calçadas, em plena rota de passagem de pessoas. Os edifícios em obras e a inauguração de novos estabelecimentos dão a esperaça de que a infraestrutura da rua ainda tem perspectivas de melhora. Mudanças semelhantes aconteceram nos outros bairros da região central de São Paulo. O que parecia ser um projeto ininterrupto de criação do exprefeito Gilberto Kassab, o plano de urbanização do Projeto Nova Luz na área do centro tinha como objetivo principal a revitalização da cracolândia, removendo seus moradores dali, que custaria em torno de quatro bilhões de reais. Tudo consistiria em uma concessão urbanística, que daria a empresa vencedora o direito de desapropriar qualquer área de seu interesse. Por comprovar um nãoenvolvimento público na ação, a juíza da Defensoria Pública não permitiu que o projeto entrasse em vigor, e por esse motivo, ele não foi concluído em sua gestão. O atual prefeito Fernando Haddad, eleito na eleição após a gestão de Kassab, em janeiro deste ano decidiu instituir os projetos PPPs (parcerias públicoprivadas), lançando casas e apartamentos de num preço bem acessível de 20 mil reais pelo outro projeto “Minha Casa, Minha Vida”, porém nenhum deles seria na região do centro. O interesse disso tudo era de que construtoras fizessem as obras por conta própria, assim o capital seria privado e o dinheiro que a prefeitura usaria para isso poderia ser facilmente desviado. Porém em abril, o governo estadual liderado por Geraldo Alckmin aderiu a essa PPP, e assim, Haddad e Alckmin resolveram enfim voltar a revitalizar o centro, que segundo o prefeito é a primeira com interesse social. O projeto estima construir 20.200 casas, gastanto cerca de 4.6 bilhões de
reais, com cerca de 2.6 bilhões sendo arcados pela iniciativa privada e de 1.6 bilhão pelo governo estadual. Os prédios e casas deverão ocupar áreas onde hoje estão imóveis velhos ou abandonados e terrenos baldios e ficarão próximos de estações de metrô e trens da CPTM e de avenidas principais. Apesar do projeto ter um interesse social, Fernando Haddad teve como uma das propostas de sua candidatura, no fim de 2012, não prosseguir com o projeto do prefeito anterior, alegando que seus outros projetos seriam mais prioridades e que Kassab não sabia governar. Ninguém sabe o objetivo dessa mudança de planos. A República é um outro exemplo de bairros do centro que foram deixados de lado pelas reformas urbanistas da Prefeitura desde os anos 2000, apesar de ter ganhado sua própria estação de metrô, incluída na linha amarela, a mais nova e tecnológica linha da cidade. Ali, você sente as suas narinas queimarem ao respirar e os olhos lacrimejarem por causa do odor de esgoto e do ar de poluição visível. Não é uma região conhecida por ser convidativa, porque nela também reside uma cracolândia, casas de prostituição e moradores de rua. Apesar de tudo isso, ali ainda se encontram restaurantes, baladas, lojas, estúdios de dança, teatros e galerias de arte que sobrevivem à deterioração urbana e promovem atividades culturais para atrair o público interessado em arte e cultura para a região. A arte de rua e a expressão artística também são presentes. As paredes são uma mistura de grafite com pichação e inúmeros cartazes e lambe-lambes com propostas ideológicas, como “mais amor, por favor” e “não há amor em SP”, estão espalhados por suas ruas e principais avenidas. Uma prova disso é a Rua Barão de Itapetininga, no coração do bairro. Nela há edifícios que de tão malconservados e encardidos por causa da poluição e negligência de seus donos, não é fácil de identificar sua arquitetura que um dia foi responsável pelo glamour do Centro, a não ser que você já tenha visitado o local em 1950. Mas se olharmos além da degradação, é possível enxergar um prédio de estilo neoclássico, todo reformado e pintado de branco, com escadas internas de mármore decoradas com pétalas de rosas e ambiente simples. No seu segundo andar, está situado o Apfel, um restaurante vegetariano ali presente há 30 anos. O empresário Carlos Beutel, sócio
do restaurante, é um personagem importante na batalha para a renovação do centro da cidade. “Eu gosto muito do centro de São Paulo. Eu vi a região se deteriorar, cinemas famosos e restaurantes chiques fecharem as portas. As pessoas não queriam mais andar nas ruas. Mas eu insisti em ficar aqui e luto para continuar”. Ele é uma pessoa otimista pelo seu trabalho cultural na região. Sua simpatia e marketing conquistou uma clientela fiel e - para o bem do centro - interessada em cultura e arte dessa região da cidade.
“Eu vi a região se deteriorar, lugares fecharem as portas”
Falta de manutenção no encanamento de uma propriedade na Rua Augusta, na altura da Rua Da. Antônia de Queiros
Narrativa | 147
Terreno em construção na Rua Augusta, uma obra das várias ocorrendo na região.
Obra financiada pelo Itaú, chamada “Augusta Hype Living”
Carlos está lá desde 1984 e é responsável por organizar passeios culturais noturnos na República e na Sé, que reúne grupos de 20 a 40 pessoas por dia. As caminhadas são temáticas, então cada dia os pontos visitados são diferentes. É uma prova que, dentro de ruas que sofreram muitos anos com o preconceito de uma elite, existem locais preservados que tentam difundir a cultura. “Na década de 90, eu vi vários centros culturais serem reformados, como o Mercadão, a Pinacoteca e o Theatro Municipal”. Ele sempre inclui pelo menos uma destas clássicas atrações nos passeios. “De 20 pessoas, pelo menos cinco voltam para fazer um passeio em outro dia”, conta com felicidade e sentimento de dever cumprido. A jornalista freelancer Cristianna
Gomes mora e trabalha na região central da cidade - no bairro da República - e presenciou as suas mudanças ao longo de vinte anos. “Nunca tive problemas ao caminhar no Centro. Não fui assaltada ou furtada, mas claro que sou muito cuidadosa. Eu gosto de morar aqui pela história e também pela proximidade da família”. Ela contou que este ano, quando estava andando na Avenida Ipiranga, conseguiu escapar de um furto. “E você não tem medo de morar aqui?” “Não”, ela responde. “Qualquer bairro tem os seus problemas e o Centro na minha opinião, é o lugar mais culturalmente diversificado de São Paulo. E os restaurantes e lojas daqui você não encontra em outro lugar”. A área central de São Paulo é com certeza seu coração e faz jus a fama que tem, boa ou má. Ela é o centro geográfico, cultural e artístico da cidade, que está à espera de reformas privadas e estatais para se renovar e devolver esse seu lado para os moradores e frequentadores da região até a década de 1950.
“o comércio daqui você não encontra em outro lugar” 148 | Narrativa
O mar invade a cidade, engole a areia e os moradores ficam preoucopados com a fúria da natureza. Maizi Navarro e Renato Blasco
Sentados no banco, à beirada da praia a luz do Sol e ao som do mar profundo. Uma sensação de harmonia e de liberdade absurda. Os mais antigos, passando por toda aquela areia que, de tão clara, chega a ser branca como as nuvens que permeiam o céu santista, narram como era no tempo em que eles eram crianças e que tudo parecia ser um pouco mais calmo e tranqüilo, como a marola chegando à areia. Mas há um senhor que por ali passava todos os dias sem mudar a sua rota, hora sentava, hora caminhava, parecia que seu trabalho era exatamente esse, ficar andando por aquele pedaço de orla, tornando-se assim uma figura conhecida por diversos moradores da região. Esta figura carrega consigo uma variadade e enormidade de historias e eventos, era um armazenamento sem igual, podíamos ter tudo que achávamos interessante a respeito de Santos e das praias na redondeza, só de olhar em seus profundos olhos. Seu Ralph, cabelos brancos e uma pele morena de sol, como o dos velhos pescadores da praia,passa horas contando os causos da cidade, mas uma história é marcante e faz com que refletimos sobre o que realmente está acontecendo com o Mundo de hoje. Ralph lembra-se de quando era pequeno, ainda com cabelos e muito mais disposição. Na longínqua década de 40, a faixa de areia da praia
era muito maior do que hoje em dia, diríamos que ali naquele lugar da praia era realmente uma faixa de areia, as ondas do mar chegavam à areia e saiam, deixavam um rastro que logo se apagara, diferentemente do que acontece hoje em dia. A água do mar vem invadindo a cidade de forma espantosa, uma mini Tsunami que provoca sensações inacreditáveis nos corações daqueles que vivem na cidade, sendo imperceptível para os novos moradores e aos turistas que passam as férias de verão ao redor de uma fogueira tocando violão e cantando musicas calmas, que lembram os velhos tempos de calmaria da cidade que era apenas mais um reduto praiano, e que ficam deliciando-se com os frutos do mar típicos da região. Uma cidade tão bonita com uma bela praia e com o maior jardim extenso do mundo, 7km de extensão, que embeleza a cidade, pode ser devorada pela toda poderosa mãe natureza, que ao ser desafiada pelos meros mortais ,mostra quem realmente manda na terra. Ralph, com semblante suave, ainda diz que se todas as pessoas tivessem vivido como ele viveu, ou ter nascido com o portão de casa praticamente na areia da praia, (portão esse que servia para namorar as garotas que passavam pela praia, era a forma em que antigamente as pessoas tinham
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Victor Costa, Alexandre Gomes e Vinicius Soares surfando em Santos. Foto: Renato Blasco.
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mais contato, hoje algo que só acontece, quando acontece, nas cidades do interior) sentindo aquela brisa bater e a maresia tornando tudo aquilo mais emocionante e envolvente, hoje estaríamos em uma situação muito melhor do que nessa na qual nos encontramos. Aos seus 71 anos no auge de sua experiência e consciência , não consegue enxergar o mundo com bons olhos e com uma boa perspectiva para os anos que chegarão, muito por conta do que chamamos de tecnologia, ‘’essa brincadeira de tecladinhos vai acabar com o nosso mundo,eu acho’’. Com um longo suspiro, Ralph pede para que nossa conversa acabe, pois são tantas lembraças que fazem com que ele precise de um tempo descansando a sós. Caminhando ao longo da praia, com o sol brilhando de tal maneira que refletia no mar e era capaz de transformar aquela paisagem em um ambiente paradisíaco, uma senhora aproxima-se. Com um chapéu e um guarda chuva, que fazia a função de uma poderosa sombreira, para espantar todo aquele sol que castiga a sua pele marcada pelos tempos difíceis que viveu em sua juventude - juventude essa marcada por uma Guerra e uma ditadura. Wanda, a antiga moradora da cidade litorânea espanta-se com a rapidez e ferocidade do mar. Assemelha-se a um caçador que, faminto, corre atrás da presa e a devora em poucos instantes.
“Será bom o mar engolir a cidade teremos mais onda para pegar, que coisa boa!” Uma espécie de agonia e calafrio, cujo os cabelos brancos e as rugas de sua pele, enfraquecida pelos tempos cruéis de outrora, não suportarão. O mar, que é o sonho de muitos, transforma-se aos poucos no pesadelo dos moradores da cidade do litoral paulista. A maior cidade do litoral, tanto pelo seu time de futebol (por ele passou o melhor jogador da historia, o rei Pelé), tanto pela extensão e pelo porto, imponente e o maior de toda a América Latina, onde passam milhares de pessoas todos os anos para trabalhar e para embarcar nos navios de luxo e fazer as viagens de seus sonhos. As ondas que embelezavam o lugar bucólico, hoje deixam um rastro de incerteza e ww. Wanda relembra que em sua juventude passear pelo Canal 7 era algo de sua rotina. Com seus irmãos a brincadeira ficava cade mais divertida, correr pela aquela areia limpa e observar aquela fortaleza, o Forte de Nossa Senhora do Montesserat (O forte foi iniciado a partir de 1543 por determinação de Brás Cubas para defesa das pessoas da povoação de Santos, ante as repetidas incursões dos Tamoios). Os tempos passavam rápido, aos olhos de uma simples criança, e hoje já passam devagar, uma eternidade para uma senhora que não pode mais andar onde brincava, a não ser que conseguisse flutuar ou andar sobre a água, já que ali não existe mais nenhuma espécie de areia, de praia. O que tem naquele lugar é apenas o mar e a memória de alguém que, com lagrimas nos olhos ao lembrar dos tempos de antigamente, por mais que fique aflita, não consegue sair da
cidade que ama, vive e respira. Para poder falar de tudo o que vivenciou e relatar os diversos acontecimentos, precisamos ir muito além de simples fatos e fazer viagens por muitos lugares dentro de um mundo completamente particular e, que por conta da idade, por hora fragmenta-se. Uma deliciosa aventura pra dentro da cabeça de dona Wanda. Uma odisséia que vale muito experimentar. ‘’aaah,que saudades de outrora’’. O mar calmo e bonito mostrava tudo aquilo que gostaríamos de ter para o resto dos dias, uma sensação de liberdade, relaxamento e euforia. Moradora de Santos desde que nasceu, Elizabeth andava na praia e comemorava o fato de ser santista. Nos tempos passados caminhava por toda a extensão, hoje não é possível e mesmo assim não se assusta com a presença intimidadora e voraz do mar. “ Vejo que o mar está comendo a nossa faixa de areia e, assim, a nossa cidade, não sei que medidas vão ser tomadas para que nada em Santos seja engolido, ou que a própria cidade seja engolida, mas o que importa? O mar é tão bonito que não me importaria nem um pouco de perder mais um pouco de areia, a única dor disso tudo é não poder caminhar sobre as águas, imagina como isso deve ser bom.” Enquanto isso, pesquisas mostram que o nível do mar aumentou em 11,1 milímetros nos últimos anos, 20% da elevação das águas dos oceanos. Algo relevante para a cidade litorânea mais importante do Estado de São Paulo, que é a base da economia da região, pelo seu imponente porto e pelos turistas, que levam suas bebidas nas caixas de isopor cheias de colante e lotadas de gelo até o topo, para gelar a cerveja sagrada, que será consumida em poucos minutos debaixo de um sol escaldante, cujo queima a pele e deixa as pessoas bronzeadas como celebridades em capa de revista. As pessoas vivem no “medo mascarado”, esse é o nome dado pelo jovem morador santista, Vinicius Soares. Observando todo aquele volume de água, se sentia literalmente em uma ilha, rodeado de água por todos os lados e abismado que o mar invade a cidade e, apesar de ir à praia e nadar, sabe que por mais que ninguém diga e demonstre aflição pelo assunto, há, no fundo, um sentimento de medo. “ Não posso deixar de andar na praia e nadar porque hoje em dia o mar está mais próximo da
cidade do que antes, espero não vivenciar a experiência de ver o mar engolindo nossa cidade, mas há sempre um receio”, diz com um semblante pesado e medroso. De bermudão, sem camisa, descalço e com uma enorme prancha de surf, esporte que no Brasil nasceu em Santos, - a cidade é a percursora do esporte chegado ao país na década de 50 e tornou-se quase que religião com Picuruta Salazar. Aparece deslizando na praia Victor Costa, 26 anos, com o pensamento de enfrentar as ondas e sentir-se livre. Sorridente e com uma enorme satisfação surge Alexandre Gomes, companheiro de surf de Victor, segurando mais uma enorme prancha, dessas para fazer stand up, modalidade crescente nas praias, basta ficar em pé na prancha e remar, muitas vezes, sem rumo. “ Me responda uma coisa: Há algo melhor nessa vida do que sentir-se bem? Andar sobre as águas? É assim que eu me sinto quando faço stand up” ,diz Alexandre. O surfista ainda canta em alto e bom som.” Um céu, um sol e um mar, quero as ondas desses mares, universo em fim de tarde” música da banda Natiruts, que faz muito sucesso entre os amigos surfistas de Alexandre. O mar é uma aventura desejada por muitos, ou para enfrenta-lo e dizer: “Venci!”, ou para simplesmente apreciar e tentar viver numa calmaria, quase como um bem estar espiritual.
Entardecer na cidade de Santos. Foto: Renato Blasco.
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Nesse prédio, o primeiro conjunto multiuso moderno de São Paulo, multidões e mais multidões circulam diariamente, exemplificando a heterogeneidade da maior cidade do Brasil Igor Vaineras e Sady Santana
“Sinto-me uma formiguinha aqui no Conjunto Nacional”, disse Bruna Ferreira Paixão, analista de recursos-humanos da Livraria Cultura, em seu ambiente de trabalho. Sentada a seu computador, ora ligando ora recebendo algum telefonema, às vezes conversando com algum(a) colega ao lado, poucas vezes sossegada para conseguir entrar no Facebook, ela trabalha no nono andar do Edifício Horsa II, no Conjunto Nacional, um lugar plural e heterogêneo localizado na Avenida Paulista, que vive cheio de gente, gente com ritmos diferentes e com passos variados, gente que vai, volta, vai e vem sem parar. Uma pequena cidade numa cidade maior ainda. Nesse meado de setembro, o ar-condicionado gelado do escritório em que Paixão trabalha é muito bem-vindo, pois, fora do edifício, a temperatura atinge facilmente a casa dos trinta graus. Lá fora, o movimento também é outro, devido aos carros e ônibus circulando pela Avenida Paulista freneticamente; não existe um segundo sequer a ser perdido naqueles asfaltos desgastados. Talvez a circulação de gente no Conjunto Nacional seja mais sossegada, pois ali nem todo mundo tem pressa e alguns curtem sua arquitetura bem pensada e projetada apenas para se isolar do mundo externo. Há quem vá para lá trabalhar, que nem Bruna, e ali gastar um punhado de horas por dia e depois voltar para casa, porém há quem gaste o tempo por lá apenas passeando, flertando, comprando, vislumbrando os outros. Não à toa, Paixão se sente perdida na imensidão do Conjunto Nacional, justo ela que, apesar da pele branquinha que nem leite (desculpa a descrição brega, mas é quase isso), está acostumada às multidões das praias
cariocas – principalmente, a de Copacabana. Para ela, o Conjunto Nacional é um espaço em que todo mundo está numa conexão diferente, tem pensamentos diferentes, tem objetivos diferentes; você nunca vai encontrar alguém igual a você, disso pode ter certeza. Contudo, ao mesmo tempo, ela acha que cada um procura respeitar o outro: “a gente vive numa coexistência bastante saudável aqui”, afirma a RH. Justamente por causa desse “mosaico” harmonioso do qual é composto o Conjunto Nacional, esse ambiente é, talvez, o extrato mais fiel e aproximado do que seja a metrópole de São Paulo, quase sua réplica, uma cidade que, por natureza, já é plural e democrática. Gênese Muito provavelmente, os frequentadores do Conjunto Nacional não saibam que a ideia por trás da criação desse complexo tem a ver com a ambição de justamente criar uma nova São Paulo dentro de São Paulo. Mal deve passar pela cabeça da artista-plástica Renata, de 46 anos, por exemplo, que o CN foi projetado exatamente para que ela pudesse simplesmente estar ali, “transitando livremente” como confessa fazer sempre, sem compromisso algum. Ela, que adora vagar pelas livrarias e, de vez em quando, ler os livros de que tanto gosta, acha que o conforto e liberdade encontrados ali são algo de outro mundo: “ninguém incomoda ninguém e ficamos a vontade”, orgulha-se. Além disso, o CN a inspira na criação de seus quadros, pois ela, enquanto uma verdadeira voyeur (no bom sentido da palavra) de multidões, fica horas contemplando o movimento das pessoas que entram e saem de lá.
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Renata e as outras tantas pessoas que passam suas manhãs, tardes e/ou noites desse jeito no Conjunto Nacional foram a razão do jovem arquiteto David Libeskind projetá-lo lá pelos meados da década de 50. A ideia que moveu a construção desse “gigante modernista” era bem simples: proporcionar às pessoas um espaço democrático e livre em que elas pudessem se expressar e criar seus próprios ritmos, sem a criação de bolhas que separassem umas das outras e proporcionando um contato entre si. Ou seja, trata-se de um complexo multifuncional com lojas, edifícios corporativos, residências e restaurantes, que permite que seus visitantes façam suas próprias experiências e desfrutem do seu ambiente segundo seus princípios e valores. Pode-se dizer, por isso, que o Conjunto Nacional, quando abriu ao público em 1956, implantou um novo conceito arquitetônico na cidade, se enquadrando
Pelo Conjunto Nacional, circulam diariamente 30 mil pessoas, de todas as regiões de São Paulo e até turistas (foto: Igor Vaineras).
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“A GENTE VIVE NUMA COEXISTêNCIA bastante saudável aqui”
na época de mudanças intensas pela qual toda a Avenida Paulista estava passando – uma época de reinvenção, em que vários casarões do ciclo do café cederam espaço para os arranhacéus e os empreendimentos brutalistas (como a sede do MASP). Mais do que apenas um conceito arquitetônico novo, aliás, o Conjunto Nacional de Libeskind representa o Progresso Econômico da década de 1950 e tem se configurado, desde então, como um exemplo da vitalidade brasileira; por isso, sua inauguração, em 1958, contou com a presença de ninguém menos que o ilustríssimo presidente da República, Juscelino Kubitscheck, o homem dos “cinquenta anos em cinco”, e até hoje uma bandeira do Brasil, um pouco suja por causa da poluição, tremula pelos céus arranhados do Conjunto Nacional. Atualmente, o CN é memória de um tempo remoto e de uma épocachave para as sociedades paulistana e brasileira, sendo inclusive tombado pelo Condephaat, mas ele continua, enquanto um senhor de idade muito bempreservado, atraindo multidões para seus corredores, multidões que têm sintonia em suas diferenças gritantes. Terra do trabalho O Conjunto Nacional, antiga casa da família Horácio Sabino, é despertado bem cedo pelos muitos funcionários que chegam, a maioria deles vindos de metrô e que desembarcam na estação Consolação, a um quarteirão dali, para ganhar seu pão de cada dia. Essa movimentação diária segue realizando assim um dos sonhos do empresário argentino José Tijurs, que decidiu construir o complexo de edifícios com a intenção de que pudesse ajudar a transformar a Avenida Paulista em uma réplica da Quinta Avenida, uma ilustre conhecida dele em suas diversas viagens rumo a Nova Iorque. Muitos desses funcionários só vão encarar o trânsito frenético para voltar para casa no final da tarde, ao pôr do sol, no entanto. Bruna Paixão é uma dessas pessoas que desenvolvem com o Conjunto Nacional uma relação estritamente profissional. Ela gasta ali pelo menos oito horas e, quando chega o fim de semana, quer fazer de tudo, menos desfrutar o lado ocioso do CN: “acho o máximo quem vem aqui simplesmente para comprar livros ou ir ao cinema. Não sou dessas pessoas, já que aos finais de semana é bem raro que eu queira
gastar meu tempo onde, de segunda a sexta, me estressei trabalhando”, diz ela, gargalhando. Em frente a Bruna Paixão, trabalha Carolina Coutinho, comunicação-interna da Livraria Cultura. Os óculos de moça inteligente e séria mascaram a menina alegre e sorridente que, diferentemente da RH Bruna Paixão, tem uma relação com o Conjunto Nacional quase afetiva, que vai além do âmbito profissional: - É claro que aqui nos estressamos. Não estamos aqui para brincar ou se entreter, mas para trabalhar. Porém, isso não significa que eu queira distância daqui fora do expediente. Quando eu vou namorar, eu e meu namorado aproveitamos que estamos num lugar tão rico e ficamos por aqui. Vamos ao cinema, que tem ótimos filmes, ao teatro ou, quando queremos algo mais diferente, só descemos a Augusta. Acho que essa é a vantagem de se trabalhar no Conjunto Nacional, está perto de tudo! Pelo fato de que gasta horas apenas numa parte do Conjunto Nacional, enclausurada em um escritório, logo não faz sentido para ela querer ir embora rapidamente dali. “Eu fico em frente ao computador o dia inteiro, por isso nunca me canso de sair do expediente e dar umas voltas pelo restante do Conjunto. Não quero ir imediatamente para casa, às
vezes”. Mas trabalho não significa necessariamente algo estressante e cansativo. Os artistas de rua, por exemplo, vão para as calçadas em frente ao Conjunto Nacional exercer seu métier, ao mesmo tempo em que fazem algo que lhes dá prazer – um prazer inenarrável. De cabelo punk e casaco de couro, o irlandês Tommy Headon, 30, toca sua guitarra com energia e como se o show não fosse para os outros, mas, sim, para si mesmo. É como ele disse: ele veio para o Brasil por causa da namorada Priscila Santos, 29, que ele conheceu quando ela
Da esq. para a dir.: Fumaça, José Roberto, Paulo Rodrigo e Élio Medeiros tocam música popular das “antigas” para alegrar o pessoal que vai e volta do Conjunto Nacional (foto: Igor Vaineras).
“ACHO O MÁximo quem vem aqui simplesmente comprar livros” Narrativa | 155
lugares da cidade, como a Praça da República e a Rua Oscar Freire. Assim, ganhamos visibilidade e mais recursos”, disse Fumaça, 76, que, junto com José Roberto, 58, Paulo Rodrigo, 69, e Élio Medeiros, 80, compõe o grupo. E o curioso é que eles vêm de (beeeeem) longe só para deixar as noites da Avenida Paulista mais leves e mais alegres: um vem de Pirituba, outro vem de Itaquera, tem um da Vila Maria e um quarto da Mooca, o mais perto de todos. “A gente vem pra cá porque aqui é onde tem o pessoal bacana, inteligente, que gosta de boa música. Vira e mexe, nós somos parados por umas meninas que querem bater um papo com a gente, tirar foto e tudo o mais. A gente é famoso, viu?”, comentou Fumaça.
Sob o Conjunto Nacional, tremula a bandeira brasileira, provando que o prédio está enquadrado nos ideais progressistas do “país do futuro” (foto: Igor Vaineras)
fazia um curso de inglês lá na Irlanda, e decidiu se sustentar aqui nas terras tupiniquins fazendo aquilo que ele melhor entende, para o qual ele nasceu – isto é, a música. “E o pessoal gosta de me ouvir. Todo mundo está saindo cansado do trabalho e indo para o metrô fazer o caminho da volta, e a música que eu todo acaba animando-os, deixando-os mais leves. A galera do Conjunto Nacional, com certeza, curte meu som”, disse Tommy, num inglês tão acelerado que foi até difícil entender. Já a banda “concorrente” de Tommy, que toca músicas populares brasileiras, sambas, bossa-nova e fado como antigamente, faz suas apresentações durante a noite em frente ao Conjunto Nacional para divulgar um pouquinho seu trabalho e conseguir grandes eventos. “A gente é aposentado, não tem muito o que fazer e o dinheiro está apertado. Resolvemos aproveitar que a gente já toca junto há algum tempo e levar nossa música para a Paulista e para outros
“todo mundo está saindo cansado do trabalho, e a música que eu toco acaba deixando-os mais leves” 156 | Narrativa
Terra do ócio Lá no início dos anos 60, uma modernidade foi instalada bem no meio do centro comercial: estamos falando das duas escadas rolantes, símbolo-maior da facilidade e da conveniência típicas de nossos tempos. De lá para cá, são apenas os mais afortunados que transitam pelo Conjunto Nacional sem precisar “bater o ponto”, ou sem hora marcada, que desfrutam confortavelmente do ambiente, vagueando pelos corredores com calma, podendo vislumbrar as vitrines sem pressa e subindo e descendo as escadas rolantes desimpedidamente. Esses transeuntes, em cujas mãos repousa um tempo descansado e arrastado e que sentem-se livres para “viver a vida”, podemos dizer que curtem o “ficar por ficar” e que desenvolveram com o Conjunto Nacional uma relação apaixonada, verdadeiramente afetiva e voluntária. Ana Lúcia, advogada de 44 anos, faz parte desse grupo de pessoas pela vantagem de morar na região há 7 anos. Com estilo esportivo e ares apressados, já até estava de saída quando lhe pedimos que nos desse uma palavra. Ela nos confessou que faz do Conjunto Nacional uma extensão da sua própria casa. Nas folgas, disse que fica a “perambular” pelas livrarias por um bom par de horas, sentada num pufe folheando alguma coisa. O carismático empresário André, por sua vez, aproveita o Conjunto Nacional como ponto de encontro, marcando com os amigos por ali mesmo nos restaurantes e bares e gastando bastante tempo em conversas. Isso lembra um pouco os primeiros frequentadores do
depois de uma passadinha no masp, que tal se aventurar no conjunto nacional? sofisticado Restaurante Fasano que se instalou no Conjunto já em 1957, os quais aproveitavam o ambiente charmoso e elegante para encontrar pessoas de seu círculo social e para conhecer novos amigos. Com suas mesas espalhadas na calçada fervilhando de clientes amantes da boa mesa, o Restaurante Fasano fez História e foi um importante point da alta-sociedade paulistana, assim como o Cine Astor, da década de 60, que foi o mais luxuoso e o mais moderno cinema da cidade de então; hoje, ele deu origem ao Cine Livraria Cultura, cinema de duas salas voltadas a uma programação mais cult. Apesar dos tempos terem mudado e do Conjunto Nacional atualmente hospedar outras marcas e outras lojas, ele ainda agrada aos paulistanos como um espaço de lazer, entretenimento e “ócio”, como um lugar de liberdade e de prazeres.
ela acha simplesmente delicioso estar ali, acha confortável a atmosfera que o Conjunto Nacional exala. Pergunta. Se ir a Roma e não ver o papa é inconcebível, o que podemos dizer que seja imprescindível visitar em São Paulo? Há quem diga, com o peito estufado e o estômago saciado, “o Mercadão, meu!”. Outros, os amantes do futebol, dizem: “Vai visitar o Pacaembu, o templo do futebol-paulistano”. Mas a maioria concorda que a Paulista é um point obrigatório, um verdadeiro must go. E, depois de uma passadinha no MASP, que tal se aventurar no Conjunto Nacional, bater perna em cada um de seus cantinhos e depois dar uma passadinha para tomar um cafezinho? Artistas de rua, turistas, um empresário que vai para lá só para se encontrar com os amigos, uma pintora voyeur que aproveita a multidão para se inspirar, os trabalhadores... é desse conjunto interminável de pessoas que vive o Conjunto Nacional, desde os anos 1950 um dos lugares mais emblemáticos dessa imensa cidade chamada São Paulo. Não à toa, ele tem uma população flutuante de 30 mil pessoas a cada dia, pessoas que vão e partem, mas que voltam, seja na manhã seguinte, seja o quanto antes for possível, para preencher de vida o sonho de José Tijurs e David Libeskind.
O roqueiro irlandês Tommy Headon, 30, veio para o Brasil só por causa da namorada; para ganhar a vida, ele toca guitarra em frente ao Conjunto Nacional (foto: Igor Vaineras)
Cartão-postal de Sampa Mas nem só de glórias e glamour viveu o Conjunto Nacional. Devido a problemas administrativos, o que se viu no vitorioso empreendimento das primeiras décadas foi decadência e abandono, isso no final dos anos 70. Um grande incêndio abalou o prédio como colheita de uma administração equivocada, porém nem por isso o empreendimento perdeu-se. Já em 1984 foram iniciadas obras de recuperação, e em pouco tempo surge uma nova era na vida do Conjunto Nacional, acentuando ainda mais o seu perfil turístico. Margareth, vendedora mineira de 40 anos, sabe muito bem dessa vocação turística do CN e, por isso, aproveitou para mostrar a uma amiga de Minas o complexo. Afinal de contas,
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Viajando junto com as memórias de alguns dos colecionadores mais apaixonados por essa gorduchinha, a reportagem mergulha nas histórias do clássico da Volkswagen, que se despede oficialmente da fábrica de São Bernardo em 2013.
Sofia Stipkovic e Mariana Menezes
Estava com muita pressa. Não podia deixar passar a oportunidade de chegar primeiro, sem que houvesse estudante algum para se organizar ao redor dela. Queria encontrá-la sem ninguém por perto e o mais rápido possível, pois o final do dia também traria dificuldades para o trabalho já que ninguém consegue trabalhar bem batendo o queixo de frio. Desci a ladeira da João Ramalho alvoroçada, torcendo para que ela estivesse ali. Antes de chegar à esquina, me alegrei ao ver seu bumbum redondo e tímido: lá estava a Kombi. Um dia, já tinha sido branca. Hoje, mostrava um tom encardido de creme, refinado pelos anos de sol forte no lombo da lataria sofrida e enferrujada. O vento zumbia passando por dentro de suas janelas e rodas, mas ela se mantinha quente porque dentro havia fogo. Literalmente. Uma cozinha com fogão, uma pequena geladeira e diversas latas cheias de legumes e carne, encobertos por uma névoa cheirosa de vapor e molho de soja. Carne daquelas que a gente acha uma delícia, mas prefere ficar sem saber de onde veio. Pilotando o fogão e picando os legumes, dois chineses que alimentavam uma quantidade massiva de alunos da PUC e demais pessoas famintas pelo yakissoba que faziam. Um rapaz chegou de repente e debruçou-se no balcão da Kombi para falar:
- Boa tarde. - Boa tarde. - Me vê aí um yakissoba pra viagem, por favor. - Claro. – O chinês assentiu com a cabeça, puxando levemente a aba do boné encardido com a mão em tom de deferência. Meu rosto se encheu de esperança. Sua fama na vizinhança e seu ponto fixo naquela esquina me fizeram pensar que talvez o seu português pudesse ser tão bom quanto o tal yakissoba. Ilusão. O chinês não iria abrir sua vida e memórias para uma desconhecida, mas mesmo assim iniciei uma aproximação – por que não? O chinês me cumprimentou abaixando a cabeça mecanicamente, quase como um pombo. Repeti o gesto. - Olá, tudo bem? – O chinês arregalou os olhos e sorriu de boa vontade, apesar dos maus dentes. Tinha algum problema nos olhos, acinzentados por uma provável catarata. Mas, prestou atenção em mim. O chinesinho, seu filho, aguardava reticente por mais palavras enquanto remexia uma lata de repolho picado. Silêncio desagradável. O som do yakissoba fritando estava tão próximo dos ouvidos que o macarrão parecia estar estalando em uma panela em cima da minha cabeça. Continuei. - Oi, meu nome é Mariana, estudo jornalismo,
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e queria falar com vocês... - Cêis? - É... vocês. – O chinês pai apontou para uma placa de preços pregada na janela da Kombi, esperançoso. - Non, non non. Aqui, yakissoba pequeno cinco, e do glande nove. - Não, não quero yakissoba. Quero falar com vocês, entrevistar pessoas que dirigem kombis. – Quando dei por mim já estava fazendo mímica, apontando para minha boca e dirigindo um carrinho invisível com as mãos. – Quero saber sobre a sua vida, onde mora, idade, se tem filhos, é casado. A expressão no rosto dele havia mudado. Opa. Ele reconheceu aquelas palavras e achou estranho. Um desconhecido de repente começa a querer saber sobre seus dados? De repente algum problema com documentações do carro, vigilância sanitária ou imigração. O chinês não podia se dar ao luxo e abaixou de novo a cabeça para, ao mesmo tempo, agradecer e recusar a oferta. Que maluquice, abaixar a cabeça pra dizer sim e não. - Soble vida? Ah non, obligado, mas non fala potuguês bem. Non qué. - Mas e seu filho, fala português? – O chinesinho pôs o dedo no próprio peito, rindo sem graça, com um leve tom de desconforto disfarçado na voz. Ao mesmo tempo, se divertia com a minha confusão, mas não queria falar nada. - Êo? Fala potuguês muito pequeno, muito pequeno. E virou-se para mexer em outra lata de legumes. Mais outro silêncio desagradável que fazia o som da panela chiando no fogo ecoar no vento frio. Ao ver que eu não pretendia comprar nada, abriu um telefone e começou a falar em mandarim. E assim acabou a malfadada entrevista. Provavelmente aquele homem ficou desconfiado de que eu pudesse usar suas respostas para tirar algo que ele tanto guarda: sua Kombi velha de guerra, cheia
“não vendo (a kombi). nem se pagassem bem. nem a pau” 160 | Narrativa
de remendos e caindo aos pedaços, com um forte aroma de legumes e macarrão na chapa impregnado no estofamento dos bancos. Quem tem Fusca, quer ter Kombi A Kombi pode ser usada para os mais variados propósitos sem dó nem piedade. Popular, versátil e barata, deve ter sido uma boa opção para o chinês que provavelmente não encontrou alternativa mais rentável e com capacidade de adaptação equivalente. Se ele tinha afeto pela Kombi que o ajudava a trabalhar, não perguntei porque não tive chance para isso. Mas, há quem tenha o “pão de forma” na garagem puramente por gosto e afeto. Eduardo Gedrait Pires é um deles. O advogado de 38 anos trabalha numa companhia de energia elétrica e, portanto, lida com assuntos que exigem segurança e cuidados quase o tempo todo. Paradoxalmente, tem uma Kombi que guarda e dirige com a maior alegria. O encontro para a entrevista foi marcado em sua casa para que ele nos mostrasse sua menina dos olhos. Dali, iríamos para uma sessão de fotos no Beco do Batman – que curiosamente não é um beco, mas um conjunto de ruas e vielas lindamente grafitadas – para fotografálo junto com ela. Ao chegar perto do endereço marcado, procurei por alguém à minha espera no portão do edifício. E lá estava ele, com grandes óculos escuros, sentado num banco de pernas cruzadas, esperando alguém aparecer. Me senti mal porque atrasei a entrevista por ter me perdido, e o presidente do Sampa Kombi Clube passou uns bons minutos esquentando a careca debaixo de sol. Mas, por ser um cara tranquilo, me cumprimentou gentilmente e deu início a entrevista sem esforço nenhum enquanto descíamos as escadas para a garagem. - Bom, sobre o Sampa Kombi Clube, eu agora vou abrir a administração dele para mais quatro amigos meus que também são sócios. Porque até então eu administrava sozinho. Atualmente o clube é uma página no facebook. Os sócios do clube seriam as pessoas que trocam informações sobre as kombis e recebem um mailing, o conjunto de dados importantes sobre as kombis e os eventos. Estamos na página da Volkswagen, se procurar lá, mas não há nenhuma personalidade jurídica. Por enquanto, só é um adesivo pregado no vidro mesmo. – Finalizou, depois de chegar até a Kombi que ostentava num
canto do vidro o adesivo do SKC. Quis entrar no banco da frente, mas o cinto só era fechado na cintura e o espaço da cabine, mínimo. Não tinha encosto para a cabeça de nenhum dos passageiros. Vieram à cabeça todas as cenas de acidentes que envolviam Kombis e não contive um “Vixe”, acompanhado de um certo frio na barriga ao ouvir o estalido metálico da porta do motorista se fechando. O carro amassaria mais que sanfona se batesse em algo. Eduardo, que já estava sentado no banco e a postos para dirigir, reparou. - Você já andou em Kombi antes? - Não. - Vai se arrepender. O som de nossas risadas preencheu o interior da Kombi, e o desespero inicial deu lugar a uma espécie de fascinação quando Eduardo começou a fazer baliza para sair da garagem, ficando a uma distância desesperadora do capô de um Ford Ecosport novinho. - Meu Deus do céu, vai bater! – Eduardo se limitou a dar uma risadinha tranquila. - Não vai, não. Isso aqui não tem para-choque. - Ah. É mesmo. – Respondi, achando a constatação divertidamente perigosa. “Não tem para-choque”, repetia o eco
na minha cabeça durante os primeiros metros percorridos da rua. Mas a novidade em andar pela primeira vez no banco de uma Kombi acalmava as coisas. Um modelo raríssimo da Volkswagen no Brasil, com vidros bipartidos, itens originais muitíssimo conservados e um radiador refrigerado a ar. E outro acessório muito interessante: a bananinha. Uma peça laranja e preta (nada parecida com uma banana, aliás) que espocava nas laterais do carro com o apertar de um botão próximo ao motorista, como uma versão primária da seta conhecida hoje. Se quisesse mudar de faixa, o botão era pressionado e puf! Lá estava a bananinha. Pena que de nada servia à noite. O carro sacolejava por qualquer coisa e a cada buraco no asfalto a suspensão descia e subia como em uma montanharussa, fazendo um rangido engraçado que soava um pouco abafado pelo barulho do motor que zumbia sem parar. Mas os vidros estavam abertos, o dia estava ensolarado e curiosamente, combinava de maneira perfeita com a Kombi: de repente, o dia de compromisso parecia um passeio completamente livre. Enquanto um homem que dirigia um Porsche conversível estalando de novo ficou de boca aberta ao ver a Kombi, com
Uma das onze Kombis de Otávio Frasson estacionada no Beco do Batman.
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Para quem gosta, a Kombi vale mais do que qualquer outro carro e compensa o prejuízo. E de onde, afinal, vem isso tudo? Por que de repente esse gosto por Kombi? - Ah, sei lá. Eu comecei com fusca. E quem tem fusca, quer ter Kombi. A máxima dada por Eduardo é lei entre colecionadores e aficionados. Quem tem Fusca, quer mesmo ter Kombi.
Adeus, pão de forma
A pequena gorduchinha de Renato Francisco da Silva chama atenção onde quer que ele vá e levanta olhares “Olha a mini Kombi!”.
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um fascínio tamanho que ultrapassava a beleza do próprio carro que dirigia. Aposto que também queria uma. E muita gente, se não quer, também acha no mínimo bacana. É incrível ver uma Kombi restaurada e conservada. Porque a dita Kombi verdinha virou uma verdadeira febre quando foi estacionada no Beco. Uma modelo acompanhada por uma fotógrafa e duas produtoras pediu para bater as fotos dentro do carro. A danada da Kombi tinha a cor parecida com a do figurino e das pedras nas joias da moça. E fez um ensaio incrível junto com ela. Além de casa, cozinha, quarto, restaurante, guardaroupas, transportadora e sofredora, a Kombi podia ser modelo fotográfica. Apesar de ter ciúmes do carro e não emprestar a ninguém, Eduardo sequer se abalou. Acostumado com o assédio do carro (a sua Kombi é a única do ano 1958 que existe no Brasil) , Eduardo mostra cuidadosamente para quem gosta do que vê, pois sabe que estragar a restauração do carro por pouco é uma verdadeira heresia. - O trabalho de restauração nunca vai fazer com que o carro valha mais, pelo menos aqui no Brasil. Isso porque o custo de funilaria é muito caro. Não é qualquer funileiro que aceita fazer esse tipo de trabalho, e se não for de confiança, vai te enrolar o quanto puder pra lucrar mais. Fora as peças, que são importadas.. Nacionalmente, vender uma Kombi restaurada seria puro prejuízo. - Então, você não venderia sua Kombi. - Não vendo. Mas nem se pagassem bem também. Nem a pau.
Do Fusca para a Kombi: o caminho também é trilhado por Otávio Frasson, que sob um sol saariano de sábado a tarde, de volta ao Beco do Batman, estacionou uma das suas Kombis de frente para um grafite bem vibrante. Embora seja dono de uma construtora, o empreendimento do qual se orgulha mesmo é seu acervo automobilístico, com direito a vinte e cinco brinquedinhos, motocicletas e automóveis de tirar o fôlego. E mais um entrará em breve para a coleção. Otávio investirá cerca de R$ 85 mil para garantir um modelo da edição final das Kombis porque “não tem como não ter a última, né. Afinal, é a última! Faz parte da história, não tem como perder.” O processo de aquisição custará mais que algmas cifras. A repercussão do adeus à Kombi fez a Volks dobrar a quantidade de unidades produzidas e criasse até um sistema de sorteio entre funcionários e concessionárias, além de uma longa lista de espera que já acumula mais de 600 quase felizardos, vindos até de outros países, que querem comprar um carro sem nenhum item de segurança contemporâneo além de um cinto. Ao menos Otávio não enfrentará a concorrência de Eduardo e outros colecionadores membros do Sampa Kombi Clube, que garantem “que Kombi nova nenhuma vale esse preço”. Mas ele é determinado. Seus flertes com os carros são longos e insistentes. - Namorei essa cinquentinha por mais de ano até o cara decidir vender – se vangloria o engenheiro no alto do banco do motorista da Kombi 1950 pouco antes de passar o volante para o barrigão de grávida da loira que registrava pelo lugar os meses de espera pelo filho. A ideia era fazer as fotos no Beco para retratar o momento com um fundo colorido. Agora o tom do álbum também seria azul gelo, tom da gorduchinha de Otávio, que estava ali dando sopa. Dessa vez, o ensaio era para um álbum de grávida. E novamente, o carro não escapou. Até
“quem tem fusca, quer ter kombi” ursinho cor de rosa no volante colocaram pra dirigir. Apesar de tranquilo, Otávio não conseguia disfarçar uma leve preocupação enquanto observava. - Tenho o maior ciúme. – admite ele entre uma risadinha e outra olhada de canto para espiar qual é a pose da vez da grávida dentro da sua Kombi, clicada por mais de oito fotógrafos de uma vez.
Amor que não se mede por tamanho
Outro ciumento por Kombi é o empresário Renato Francisco da Silva que, entre uma garoa chata e outra durante o evento Auto Show Collection, confessou: “Não, ninguém mexe nela”. Ela em questão é pequeno grande orgulho de Renato. Uma Kombi 68 que, após muito tempo de transformação – e ainda não está pronta, diga-se de passagem – se tornou única: a mini Kombi. Um brinco. Toda decorada, reluzente, com assentos de couro bege mais macios do que metade das camas do planeta. Tinha visto diversas fotos da perua reduzida por vários lugares do mundo e se inspirou para fazer o carro que deixará de herança para o filho de três anos, que depois de ter conhecido a Kombi, segundo ele, “só quer andar de piua”. - Se minha mulher descobre quanto eu já gastei e ainda vou gastar para a pequena ficar pronta, acho que ela me mata! – soltou um sorriso largo e, ao mesmo tempo, tenso só de imaginar o desfecho dessa situação. A amarelinha motivou um burburinho de resmungos e inveja. “Pronto, agora todo mundo vai parar ali”. Ali era o lugar na apoteose onde Renato estacionou a gorduchinha que, apesar do tamanho, entrou imponente e empinando. Renato se vangloria satisfeito. - Eu fiz tudo isso para o meu filho. Essa Kombi vai ser dele, estou deixando ela no jeito para ele. Ainda faltam algumas coisas para consertar, como eu te falei, mas ela já é dele. - E ela vai ficar pronta até os dezoito
anos do meninão? - Ô, se vai! E vai durar até lá. Não deixo ninguém mexer ou pegar emprestado. Aquela história: arma, mulher e carro a gente não empresta pra ninguém. O amor pela Kombi se ganha também pelas histórias que ela traz consigo. Leonardo é um rapaz de feições árabes e rosto bondoso que faz eventos de locação com sua Kombi personalizada com o logotipo e as cores da Harley Davidson para conduzir noivas. - Cada uma carrega uma história, com altos, baixos, defeitos e qualidades, que chegou até ali. E é muito gratificante poder participar disso. O interessante é que a Kombi é mais ou menos como um casamento: a gente preserva porque ama, acha importante. E na Kombi, pelo menos pra mim, todos os defeitos que ela tem são as coisas que a tornam ainda mais especial. O sentimento que envolve as pessoas quando se fala de Kombi é quase inevitável. Um dos carros mais fabricados na história do Brasil, conviver com ele ou simplesmente vê-lo traz lembranças de infância, parente ou amigo querido que gostava ou tinha o carro e até mesmo a memória de alguma situação muito alegre ou bastante perigosa com a peruazinha. Além disso, a Kombi carrega um sentimento de liberdade quase sobrenatural. Não diria isso com tanta certeza se não tivesse entrado em uma para dar um passeio e tivesse sido invadida por uma onda de descompromisso, uma sensação divertida e inusitada que dava vontade de sair rodando por aí vendo gente, céu e coisa até a gasolina acabar. Sérgio acredita que essa é o outro atributo que mantém a Kombi no imaginário e no gosto de muita gente. - Apesar de ter muita gente querendo ter Kombi pra ser hipster e ficar na moda já que vão parar de fabricar, geralmente quem tem carro antigo não se importa com a opinião alheia e faz o que gosta. O carro complementa essa ideologia livre, sem formalidade. E a Kombi em si traz isso: ela te abriga, te leva onde você quer, independente da maneira que você tenha pra adaptá-la. Pouco importa se gostam ou não, ela está lá, e pode te levar pra onde for. Quando cansar, você pode dormir nela, parar onde quiser. Ela faz parte de quem gosta de ser livre. E enquanto tiver gente que gosta disso, ela vai ser conservada.
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Gostaríamos de informá-los de que amanhã estaremos em outro país utilizando os nossos cérebros Rodrigo Lima & Gabriel Biscaia
A
inda que as rodas do carro girem, há um certo silêncio. Renan Lima, 19, já sente saudades. Na verdade não apenas ele, mas todos se lamentam. A mãe, o pai e o resto da família. Ainda um pouco incrédulo e com um folheto da universidade estrangeira na mão, ele tentava se convencer de que viajava pelo próprio bem. Vacilante, olhava pela janela do carro como se visse o seu país pela última vez. “Já chegamos?”, pergunta ele, que, ironicamente, será estudante de medicina nos Estados Unidos, enquanto o Brasil ainda luta para preencher a sua cota de médicos para a saúde pública. Já nos banquinhos arqueados do aeroporto, todos permanecem mudos. O folhetinho que Renan carregava já está amarrotado. O menino amassa o papel convulsivamente por entre as mãos. Tudo é silêncio apesar do barulho. Após alguns minutos se divisa, ao longe, a voz mecânica, quase metálica dos anúncios do aeroporto. “Atenção senhores passageiros...”. O
último sinal é dado, chegou a hora de voar. Quando o leitor da presente matéria se deparar com essas páginas, provavelmente Renan já terá se juntado a outros milhares de jovens que deixaram o Brasil com o intuito de desfrutar de melhores condições educacionais. Livros novos. Carteiras intactas. Tecnologia integrada. Professores estimulados – tudo isso dentro de um ambiente que valoriza a educação universitária. Assim como Renan, os brasileiros que cursam o ensino superior no exterior representam pouco menos de 2% de um total de 6,7 milhões de universitários, de acordo com dados do Ministério da Educação. Até 2015, o MEC planeja que outros 100 mil estudantes também possam realizar a graduação-sanduíche – quando parte dos estudos é conduzido em países que possuem um acordo de cooperação nos ramos educacionais e tecnológicos. Mesmo as melhores universidades brasileiras ainda lutam para oferecer condições otimizadas de ensino e suporte aos seus alunos. O caso da USP é emblemático. Embora seja amplamente considerada como a melhor instituição de ensino do país, ainda luta para integrar a parte de baixo da tabela dos rankings mais prestigiados do mundo tais como o QS World University ou o Shanghai Ranking.
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Para os britânicos do “Times Higher Education”, uma das organizações mais influentes dentro da área educacional, a universidade pública de São Paulo não se encontra nem entre as 150 melhores do mundo – um alarme perante um investimento anual de 500 milhões de reais injetados diretamente pela Fapesp e pelo CNPq, duas agências de fomento para pesquisas. “Está tudo caindo aos pedaços. Ainda hoje eu me lembro de uma excursão que fiz ao departamento de física da USP quando estava no ensino fundamental. As condições, comparadas a qualquer universidade americana em que eu já tenha estado, eram simplesmente deploráveis”, lamenta-se Renan Carvalho, 20, hoje estudante de engenharia elétrica
Renan Carvalho, 20, não se lamenta de ter optado por uma graduação no exterior.
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“Está tudo caindo aos pedaços, condições deploráveis”
na Ohio State, e que fechou o ensino médio no Brasil com uma média global rondando a casa dos 9 pontos entre os 10 possíveis. O fenômeno da fuga de cérebros – termo cunhado pela ONU na década de 60, quando jovens da Alemanha Oriental migravam para a vizinha Ocidental – pode ser, inclusive, observado no Brasil. Estados da Federação tais como Rondônia e Acre perdem cerca de 89% dos jovens mais capacitados da região para grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Todo ano o ciclo se repete, ameaçando o crescimento da região de acordo com dados extraoficiais de organizações não governamentais. No caso, o Brasil é derrotado pelo próprio Brasil. O eixo norte-sul se torna cada vez menos equilibrado. A competitividade dos estados cai e o Brasil deixa de combater a pobreza na sua raiz. Foi após cursar um ano do ensino superior no Brasil que Paulo Nascimento, 22, também se decidiu por estudar no exterior. “Eu decidi morar na Bélgica, pois a faculdade aqui é mais reconhecida que no Brasil. Isso é um diferencial para a carreira, além do fato de que o ensino e as aulas são integrais”, acrescenta com segurança. Panorama nacional. O Brasil investe apenas 1% de seu PIB em inovação tecnológica. E muito menos do que isso em pesquisas acadêmicas dentro do campo das ciências sociais. Há uma falta de preparo para oferecer condições básicas de trabalho para profissionais eficientes, assim como no caso do pesquisador brasileiro Miguel Nicolelis – que apesar de hoje trabalhar em conjunto com o governo brasileiro – precisou inicialmente capitanear recursos em universidades norte-americanas como a Duke University para o prosseguimento de suas pesquisas no ramo médico. Outro grande problema é a falta de competitividade do Brasil dentro do âmbito internacional científico – o país carece de uma forte ferramenta de divulgação. Muitos pesquisadores dizem que apesar da possibilidade de execução das pesquisas em solo nacional, os procedimentos sofrem com a forte burocracia no repasse de recursos e acessos a importantes materiais. Nomes famosos da cena científica já criticaram duramente o planejamento do governo para o campo. Para muitos, a pesquisa brasileira ainda é gerenciada de
forma amadora. Sávius Castro, 49, que se prepara para retomar o seu doutorado em biologia marinha pela Federal do Rio de Janeiro concorda. “Muitas vezes se opta pelo exterior por conta da facilidade e do conforto. Lá fora é realmente mais fácil realizar pesquisas que também seriam possíveis no Brasil. O acesso aos materiais específicos para a pesquisa é rápido e no ramo acadêmico o tempo é crucial”, assume. Banco de cérebros. Se as universidades do país não conseguem segurar seus maiores tesouros, as empresas se desdobram para manter os seus melhores funcionários. É um Deus nos acuda, mas a iniciativa privada tem cumprido bem o seu papel. Empresas como Votorantim, Embraer e Petrobrás criaram universidades coorporativas e assinaram extensos acordos de cooperação com instituições superiores para usufruir da inteligência de seus funcionários. Hoje em dia, é possível trabalhar na Embraer e estudar na renomada Universidade de Oxford ou na Universidade de Manchester, por exemplo. Funcionários com um bom projeto de pesquisa podem realizar uma parceria que beneficie tanto a empresa como ao
próprio campo acadêmico, sobretudo no ramo da engenharia. A necessidade por mão-de-obra de primeiro nível é tamanha que as companhias pagam quase o triplo de um salário comum para um brasileiro especializado. Matar cachorro a grito se tornou compulsório, porém cada vez mais, a voz vai se tornando escassa. Quem berra, já se cansou de gritar. “Hoje, a gestão do conhecimento é quase uma obrigação dentro do mundo coorporativo. A iniciativa privada brasileira está criando uma noção de meritocracia”. É isso que explica Tânia Sampaio, 50, especialista na área de Recursos Humanos. “O problema é o custo. Enquanto o Brasil precisa garimpar muito,
Cada vez mais as universidades do exterior se internacionalizam. Os campi universitários franceses e americanos se tornaram pólos multiculturais.
“Matar cachorro a grito se tornou compulsório” Narrativa | 167
Renan Lima, 19, já chegou aos Estados Unidos e tem desfrutado da infraestrutura oferecida pela universidade.
outros países já recebem um profissional de excelente formação”. Intercâmbio acelera processo Viajar para fora era inacessível para muitos brasileiros antes do início dos anos 90, pois a moeda nacional era trocada constantemente, fazendo com que o valor do câmbio também se alterasse do dia para noite. A economia foi, por um longo período, muito instável. Mas desde que os mercados foram abertos com o plano real já na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, ficou mais fácil estudar no exterior. Seja pela estabilização da moeda ou mesmo pelo aumento de bolsas fornecidas pelo governo federal, o sonho de morar fora deixou de ser uma realidade distante. Apesar da burocracia (e some-se a isso a má vontade dos funcionários de qualquer consulado), há hoje no mercado uma quantidade considerável de agências estudantis, que fazem a ponte entre os alunos e a instituição no país escolhido. Além da terra do Tio Sam, Inglaterra, Canadá e França também graduam
“Há um maior preparo inclusive em história do brasil” 168 | Narrativa
brasileiros frequentemente. Para Fábia Portugal, 32, gerente de uma agência de intercâmbio, o que impulsiona esses estudantes a estudar fora é o desejo de mudança, de se aventurar, aprender uma nova língua e amadurecer longe dos familiares e amigos. “Quase trinta por cento dos estudantes que fazem o programa do high school americano decidem permanecer no exterior para dar prosseguimento aos estudos”, assegura. Com os irmãos Rodini, foi quase a mesma coisa. Enquanto o irmão mais velho Jobi Rodini, 25, estava na França, o mais novo possuía um objetivo parecido e também desejava estudar no exterior. “Ao ver o meu irmão eu me empolguei, queria conhecer coisas novas, viajar e desfrutar de um ambiente acadêmico mais intenso e regular, algo que acrescentasse à minha formação”, afirma o dinâmico João Rodini, 23, além de muitas outras histórias e curiosidades que conta. “Estudar lá foi mais difícil. Há um maior preparo inclusive em temas muito específicos como a história do Brasil, por exemplo. Eu me surpreendi”, confessa o ex-sorbonista. Ambos os irmãos viajaram por meio de acordos universitários e, se não fosse pelas oportunidades oferecidas pela Petrobrás, Jobi provavelmente ainda estaria a analisar suas opções de trabalho na França e no exterior. Já chegamos? A história de todos os personagens revela-se como uma tendência do ponto de vista educacional. Muitas vezes viajar ou ir embora é necessário. Afinal, como já dizia santo Agostinho, “o mundo é como um livro, e quem não viaja conhece apenas uma página”. O problema é quando aquele mesmo prospecto que circundou os dedos de Renan voa pelo aeroporto. Gira com o vento e termina por cair na mão de mais outro menino, e depois outro e mais outro e assim sucessivamente. Até o ponto em que nos sobram apenas os laboratórios vazios, universidades desertas e pesquisas por fazer; fantasmas e nada além disso. Quando não há catetos para a hipotenusa, quando não delta para Bhaskara e nem eixos para as parábolas; quando não há tinta para as páginas e nem estantes para os livros, é sinal de que a hora chegou. Quem subiu no avião, buscou melhores ares para voar.
Toda relação tem seus momentos de glória e os conturbados. A relação de fã e ídolo pode proporcionar tudo isso com uma boa dose de aventura
Natália Melo Natália Rodrigues
“Fiz um empréstimo, negociei uma folga com o antigo chefe e comprei as passagens e o ingresso através de uma agência de viagens. O show seria num sábado e eu embarcaria na quinta-feira”, consta Gustavo Rodrigues, encantado. Dando início ao que seria uma verdadeira declaração sobre sua proximidade com seu ídolo. Começou em 1998. A voz boêmia do espanhol Alejandro Sanz conta seus casos de Corazón Partio na trilha sonora de Torre de Babel, novela da Globo, e conquista centenas de fãs. Dentre eles, estava Gus, como é conhecido. Jovem, cheio de sonhos, pais que não concordavam com sua obstinação em não medir esforços para vê-lo. Era o começo de uma relação que mudaria sua vida. Ele ainda era garoto, nunca tinha viajado, nem tinha feito grandes loucuras ou esforços por algo ou alguém, mas depois de ter ouvido o hit mais famoso do cantor espanhol, Gus sabia de quem se tornaria fã. Quem contou de quem era a voz foi sua mãe, e ele logo foi pesquisar coisas sobre o artista. Não teria tão cedo show no Brasil, mas o rapaz de Santa Cruz, Rio Grande do Sul, não se importava de ir até Buenos Aires para assisti-lo. Bom, essa “pequena” distância para Mimmo Restifo é simples, pequena. O italiano está no livro dos recordes por ser o fã que mais
assistiu shows de um cantor no período de um ano. A cantora em questão é Laura Pausini, a artista italiana que mais faz shows ao redor do mundo, e Mimmo a acompanhou. Tarefa longa e, diga-se de passagem, nada barata. Imagine só, ouvir La solitudine ou então Strani Amori (grandes hits da italiana de 39 anos) durante todo um ano, sem cessar, sem enjoar, ao vivo, e, claro, sendo reconhecido sempre por Laura. O carinho e dedicação tem que ser imenso. Não é para menos, Mimmo antes de 2009 passou por um longo período de depressão, e viu o “investir em shows” da italiana como uma luz no fim do túnel. Daí a importância dela para ele, ou dos fãs para ela... Foram 60 shows em 2009, 55 em 2012 e mais de 300 desde que se tornou fã, há 20 anos, quando Laura debutou na música no Festival dela musica Italiana – Sanremo, em 1993, e tornou-se uma das cantoras de maior sucesso da música italiana. Já a relação de Sara Rezende com seu ídolo, além de ser mais recente, a mais recente de todas essas que já foram citadas, a história começou em 2005, quando Sara viu pintado em um muro de sua cidade, Goiânia, que teria show do Engenheiros do Hawaii, despretensiosamente ela optou em ir. “Lembro como se fosse hoje da palpitação que me deu”, conta Sara em meio ao típico afobamento
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Gus Rodrigues com o espanhol Alejandro Sanz, em sua viagem em 1998.
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de fã. Mas a banda, pode-se dizer, é apenas um acessório. A fã não admira apenas a isso, mas sim, um integrante em especial, ao qual durante toda a entrevista ela sustenta o quão acessível ele é: Humberto Gessinger. Tatuada, seguidora, admiradora, colecionadora... Sara junta um milhão de aspectos que a faz uma típica fã, que, no mínimo vê-se que tem sorte, muito mais do que outras coisas. Cada um se vira como pode. Enquanto Mimmo, por exemplo, roda o mundo atrás de Pausini, Sara já teve que passar por trancos e barrancos para se achegar ao seu ídolo. Esforços que sempre valeram a pena. “Ser fã do HG me ensinou a ser mais paciente”, conta. Mas voltemos ao jovem aventureiro, Gus Rodrigues. A “loucura”, e entre aspas apenas porque não pensamos, ainda, num melhor modo de descrever tal dedicação, mesmo sabendo que, com certeza existe. “Obviamente meus pais não quiseram me ajudar. Acharam que era muita loucura eu sair de Santa Cruz do Sul, sozinho, e ir a Buenos Aires ver o show de um cantor. Tive que me virar sozinho [...] Nunca tinha viajado de avião. Nunca tinha saído do Brasil. Jovem, inexperiente e cheio de medos. Mas fui!”, a animação se nota no digitar do hoje professor de matemática. E essa inexperiência quase fez de sua viagem um caos. A agência que havia auxiliado todos os preparativos de viagem, afirmou que não era necessário
“Ser fã me ensinou a ser mais paciente” o uso de passaporte, porém, o que Gus não sabia, e nem a operadora, era que ele era filho de militar, e isso era anotado em sua carteira de identidade, quer dizer, RG de militar e de filhos de militar só valem em território nacional, o que não era o caso, já que ele iria pra terrinha dos hermanos. Detalhe, que se tornaria um monstro na hora do embarque. Bingo! “Olha aqui, minha identidade vale em TODO o território nacional”, disse Gus cheio de si. “Sim, e tu vai sair do território nacional... lá fora isso não vale!!!”, respondeu a querida moça do check in. O jovem sonhador não poderia embarcar. Foi então que, além da sua irmã, o rapaz ganhou outro acompanhante nessa primeira fase de sua viagem: o desespero. Ah, e que fique claro, que a irmã dele só iria acompanhá-lo até Porto Alegre, o resto da viagem, se acontecesse, seria só entre Gustavo e seu sonho. “Sorte que minha irmã foi junto comigo. Saímos do aeroporto e fomos direto ao local onde faz o passaporte. Chegamos lá e a fila era enorme. Minha irmã, com um estado de espírito genial, parou na frente de todos da fila, pediu a atenção do pessoal”, Gus observa o quão cômica foi a cena, mas prossegue: “e contou TODA a minha história. Explicou do show, disse que eu era fã do Alejandro Sanz, falou que a mulher da agência tinha errado feio comigo, relatou o que tinha acabado de acontecer no aeroporto e pediu pra que o pessoal da fila deixasse eu passar na frente de todos. Nossa estratégia era tentar encaminhar o passaporte na quinta pra eu poder embarcar na sexta”, completa. Deu certo! O povo aceitou! Com o passaporte em mãos, o próximo passo, já voltando para Santa Cruz, seria convencer a agência do erro. A empresa alegou que o erro era do cliente, e vice-versa. Cada um em busca de seus direitos, claro. A agência não queria ajudar, e a irmã, novamente
Mimmo no camarim da Laura Pausini, em 2009.
entra na parada. “Querem que eu chame a imprensa?”, ameaçou. E nós, pobres da comunicação fomos lembrados. Pelo menos o mito do quarto poder funcionou, o voo foi reagendado e ele embarcaria no dia seguinte, na sexta feira... O show seria no dia seguinte! Porém nem tudo estava resolvido. O pai dele emprestaria uma, mas não duas vezes o carro para ele ir de sua cidade à capital de Rio Grande do Sul. A grana dele já era curta, e então, mais um item entrou pra lista do orçamento e dívidas pró-Sanz. Enfim, na sexta, Gustavo retoma o caminho de Porto Alegre, dessa vez sua mãe resolveu acompanha-lo. “São tantos problemas antes desse show. Alguma coisa muito grandiosa vai acontecer contigo lá, só pode!”, disse a mãe, quase, vidente. Adiantemos os fatos: Gus chegou em Buenos Aires, conseguiu pegar seus ingressos com a agente de viagem, foi para o hotel. Enquanto o menino sonhador/ tribulado/filho de militar/que paga mico pra tirar passaporte dorme, falemos um pouco mais dos nossos outros personagens. Sara guarda de lembrança não só as inúmeras declarações de afeto e amor que já fez para seu ídolo, mas também é bem reconhecida por ele. Em uma de suas buscas pelo músico, e, claro, contato com ele, ela não esconde a emoção e alegria de
perceber que Humberto a conhecia graças às redes sociais. “Humberto, desculpa te incomodar, mas eu queria te mostrar a tatuagem que eu fiz ano passado”, disse Sara mostrando a tattoo do disco “Ouça o que digo, não ouça ninguém”, que ela tem nas costas. “Ah, esse é teu avatar, né?!”, respondeu Gessinger como se estivesse entre amigos, e, a fã, apaixonada e, lembre-se, tatuada, ficou incrédula. Esse reconhecimento todo para Mimmo é mais comum, devido ao fato de ter o seu nome no Guinnes Book, e ter saído em todos os jornais italianos, Laura, claro, conheceu ele. Mas obviamente antes disso a cantora já sabia de sua existência. Há vídeos na internet dela citando ele durante shows, sem contar várias aparições dele em vídeos oficiais de concertos. Ele é bem daqueles fãs famosos, que todos conhecem, mas não quer ficar com nenhum reconhecimento. “O Guinnes foi e será sempre um presente para Laura, o meu eu ganhei quando ela me abraçou!”, completa. Agora Gustavo já acordou e enfim, era o dia do tão esperado show. Ele amou! Estava realizando um sonho e mal sabia o que ainda estava por vir. Quando acabou ele quis chegar mais perto do palco, seu banco era na arquibancada e então ele foi se aproximando. Ele era músico profissional na época, então, claro, o
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Gus esbanjando felicidade após o show do Alejandro em Buenos Aires.
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coração pulsava e implorava por uma aproximação. Chegou no palco, já sem músicos, e começou a observar, até que alguém da equipe perguntou se ele queria uma foto, ele aceitou, óbvio. Ela o perguntou da onde ele era, e, quando disse que brasileiro, uma esperança surgiu. “O Alejandro vai sair por essa porta e vai pegar aquela van. Se tu esperar aqui, vai conseguir vê-lo. Mas ele vai demorar até atender todos os fãs.”, disse a moça dando todas as dicas. Ele, lógico, foi! Fez amizade com os seguranças e entre uma conversa e outra chegaram meninas que teriam acesso ao camarim. Ele logo conversou com elas, e em um ato impensado, entregou sua câmera pra uma delas para tirarem fotos do Sanz pra ele. Quando se deu conta, ele estava sozinho e tinha entregado sua câmera com todas as fotos do show para uma desconhecida. Bateu a raiva! Passaram vários minutos que pareceram horas, e as “amigas” não voltavam... Até que enfim elas chegaram. “Conseguiu tirar fotos?”, perguntou Gus ansioso. “Não. Mas toma”, disse a menina colando um adesivo no peito do “amigo”, “essa etiqueta dá acesso ao camarim. Sobe três lances de escada e você já vai ver a porta”, completou. Gus em um piscar de olhos estava de frente a Alejandro
Sanz e... a uma mesa cheia de comes e bebes. Sim, ele preferiu matar a fome, embolsou uma latinha de refrigerante e guardou umas lembrancinhas. Pegou uma pequena fila de fãs, e, enfim, seu contato com o ídolo. “Cara, eu vim do Brasil pra te ver”, disse o viajante sonhador. “Eu também falo portunhol”, respondeu um espanhol. Fim do diálogo que para Gustavo valeu muito! Ele pegou o autógrafo e guardou, veja só, no mesmo bolso da latinha gelada de refrigerante. Nos recusamos a explicar o resultado dessa linda ideia. Antes de ir, entre uma porta e outra, Gus teve a oportunidade de conhecer e ter um bom contato com Jesús Sanchez, pai de Sanz. Grata surpresa. Quando todos os fãs começaram a ir embora, Jesús disse que ele poderia ficar, era amigo dele. Pronto, a mãe do “garoto” estava certa, algo muito randioso aconteceria. Gus, que entrou nessa vida de fã por acaso, e, apesar de ainda viver intensamente cada gesto de fã... Depois disso foi a outros shows em Buenos Aires e no Brasil, ainda sonha com que Alejandro toque em seu casamento. Ele sabe que é quase impossível, mas metade dessa sua história também seria se ele não tivesse sonhado.
Vendedores de cachorro quente enfrentam dificuldades e atritos com a prefeitura para exercer seu trabalho nas ruas de São Paulo.
Nicole Vicente Renata Ferro
Os vendedores de cachorro quente já fazem parte da tradição paulista, em todos os lugares por onde andamos na cidade encontramos uma barraquinha vendendo “dogs”. Um desses locais fica no bairro do Tatuapé, zona leste da cidade, a Praça Silvio Romero é conhecida pelos vendedores que estacionam as vans ao redor do quarteirão e passam a noite vendendo os deliciosos hot-dogs, a praça virou um ponto de encontro dos jovens no pós-balada. Estes vendedores voltam na hora do almoço e se posicionam perto de instituições de ensino, como cursinho e faculdade. O local, uma das mais conhecidas do bairro, é onde Márcia de Andrade tem seu ponto há mais de nove anos, ela chega todos os dias às dez horas da manhã e estaciona em frente ao cursinho Objetivo, e é ali que começa a preparar os ingredientes, para que tudo esteja pronto quando os alunos começam a sair das aulas “morrendo de fome” como dizem e prontos para comer os deliciosos dogs. Muitos desses jovens que comem os dogs todos os dias, como Mateus de Oliveira de 18 anos que tenta passar em engenharia, “mata” algumas aulas chatas como história e geografia com os amigos nos banquinhos que dona Márcia disponibiliza ao redor da van, Mateus afirma que não troca o dog da “tia Marcia” por nada, mas conta que nas
sextas-feiras come um pastel da feira, é nessa hora que a dona Márcia rindo diz que ele deixou de ganhar descontos nos dogs. Dona Márcia é uma das poucas vendedoras que possui o alvará, que ela expõe na janela da van para que todos possam ver. Ela afirma que demorou três meses para conseguir tirar sua licença, que possui desde que começou a vender os cachorros-quentes. Muitos dos vendedores da praça não possuem alvarás, mas continuam trabalhando, pois consideram ter uma clientela fiel que não se importam se os vendedores possuem ou não os alvarás. A maioria dos estudantes e pessoas que passam pela praça todos os dias, dizem não ligar pela falta de alvarás dos vendedores, mas que se possuem a opção de comprar em um que tenha, é nesse que eles compram. Já no dog do Zé, que de Zé não tem nada, já que o nome dele é Eduardo da Silva, trabalha na praça há apenas dois anos e não possui alvará, algo que ele considera não necessário. Ele mantém sua van sempre limpa e prepara os ingredientes todos os dias, que prepara o purê, o milho, as ervilhas, tudo o que utiliza. O dog do Zé é uma das vans que sempre está movimentada, o nome surgiu de um dos alunos que sempre o chamava de Zé e os amigos começaram a adotar o apelido e passaram a chamar de “dog do Zé” e
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Praça Silvio Romero, Zona Leste da cidade.
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o apelido pegou entre os estudantes. As duas vans ficam estacionadas lado a lado, logo em frente ao cursinho, e os clientes do Zé dizem não se importar com a falta do alvará, pois sabem que a van está sempre limpa e que os alimentos são da melhor qualidade. Igor Pereira de dezenove anos que tenta prestar direito é um dos clientes fiéis do Zé, “eu sempre fico aqui sentando com os moleques depois da aula, a gente tem que se distrair um pouco” e quando menciono o assunto do alvará ele é claro “não acho essa questão do alvará uma coisa essencial, confio demais no Zé, e eu to aqui rodos os dias, vejo como ele toma todo o cuidado do mundo em relação a limpeza, e pra mim é isso que importa.” O Decreto-Lei n.º 289/78, de 16 de Setembro, assinado pela prefeitura afirma que os vendedores ambulantes não podem mais trabalhar nas ruas a não ser que obtenham alvarás. “Para legalizar a situação, estes vendedores precisam apresentar os documentos necessários, como DUC (Documento Único de Cadastro) preenchido, assinado e com firma reconhecida; termo de compromisso; comprovante de residência; declaração de procedência das mercadorias e carteira de saúde. Só assim é liberado o alvará e eles podem voltar a trabalhar sem mais preocupações.” Renan Pinarel, advogado trabalhista acredita que “a burocracia para liberar o alvará é o que mais atrapalha na hora de regularizar a situação, muitos vendedores ambulantes
“Não acho a questão do alvará uma coisa essencial” desistem antes de conseguir, por que acreditam que não vão obter todos os documentos necessários e não aguentam esperar a resposta da prefeitura”. João Cunha tem seu trailer localizado na Avenida Paulista á três anos e nunca regularizou sua situação. Ele comentou que o processo para adquirir a permissão é lento e complicado. Cátia Nascimento tem o mesmo ponto de vista e questionou a lentidão da prefeitura para regularizar sua situação. “Estava há oito meses com um ponto fixo na Liberdade, mas fui impedida de trabalhar por não ter permissão legal, há três meses dei entrada nos papéis, mas sempre falta um documento aqui, outro ali e até agora nada, isso é um absurdo, é através deste trabalho que eu pago as minhas contas, os impostos que governo cobra da gente.” Outro trailer conhecido na praça da zona leste, é o dog da Ana Maria, onde a própria apresentadora, Ana Maria Braga, apareceu para conhecer o local e experimentar os lanches. Este é um dos trailers mais movimentados do local, mas que não trabalha durante os finais de semana e feriados, só durante os dias da semana e das 10:00 as 20:00 horas. Ana e Paulo Rodriguez, o casal dono do dog, conseguiram o alvara antes de começarem a vender os dogs. Mas mesmo assim, são a favor das manifestações e apoiam os vendedores que foram as ruas lutar pelos seus direitos. Este foi um dos motivos da manifestação que aconteceu em São Paulo no dia 12 de Agosto deste ano. Os vendedores ambulantes se organizaram e foram as ruas lutar pelo direito de exercer o seu trabalho sem a intervenção da polícia e da prefeitura. A passeata de
Praça Silvio Romero, Zona Leste da cidade.
carrinhos de cachorro quente circulou a cidade, e os cartazes colados nas janelas dos automóveis estampavam frases como “Só queremos trabalhar em paz”, “Este é o nosso ganho pão”, “Nosso trabalho é honesto”, “Cansamos de fugir como ladrões”. Um senhor de cabelos brancos e ralos, olhos azuis da cor do mar e sozinho amarelo, que atende pelo nome de Joaquim Matos Ribeiro, contou como foi participar desta luta. “As ruas da cidade pararam, o dia estava reluzente e os carros como de costume estavam todos apressados, alguns paravam para falar mal ou faziam gestos obscenos da janela, outros queriam entender o porquê daquilo tudo, e eu estava completamente orgulhoso de participar desta luta com tantos outros parceiros, porque acredito na minha causa, porque ela é o bem”. Encontramos Maria da Silva, em sua singela barraquinha de hot dog, com toldo vermelho, e com ar de antiguidade, próximo a cada noturna Woods, que se localiza na Rua Quatá, zona sul da cidade. Eram quatro horas da manhã, e a baixinha de quadris largos ainda exalava disposição. Então batemos um longo papo sobre as condições de seu trabalho, e sobre o protesto, e ela como todo bom de vendedor de cachorro quente defendeu a causa como ninguém. Enquanto prepara um cachorro quente, comentou sobre a burocracia exigida pela prefeitura para se conseguir uma permissão para trabalhar nas ruas.
“Tanta gente roubando por ai, e esses malucos empacando a vida de quem quer trabalhar, dá pra entender? Todos nós estamos lutando pelo direito de sobreviver, de ter nosso “ganha pão”, e isso não faz sentindo, aliás, nada nesse país faz sentindo né, não? Lutar por direitos já é algo que completamente maluco, se é direito então não tínhamos que ir as ruas protestar por eles, deveríamos ter e pronto.” E prosseguiu falando da sensação maravilhosa de ter participado do protesto: “Uma vontade única e muita justa que uniu esse mundaréu de vendedores para conseguirmos fazer o nosso trabalho na paz, uma causa muito do bem. E olha lá, nunca fui pega pela polícia, não, mas tomei as dores dos meus colegas, sim, e se um dia isso acontecer comigo, ah... vou rodar a baiana”. Nesta mesma região, existem muitos vendedores noturnos, em voltas das boates paulistanas, então resolvi vasculhar a redondeza a procura de mais histórias e relatos. Um quarteirão a frente fica o trailer do Seu Josias, é como os jovens chamavam ele por lá, um senhor de meia idade, um metro e setenta de altura, barrigudo, e com um sotaque nordestino inconfundível. Então perguntei sobre sua vida, como havia chegado aqui, e como era a condição de seu trabalho, e ele desabou a falar. Chegou em São Paulo a cinco anos atrás, com sua esposa e dois filhos,
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começou a trabalhar como operário de obra, e assim foi por três anos mas cansou e então teve a ideia de vender cachorro quente. Conhecia um senhor que estava vendendo o trailer, pagou em onze prestações, e foi batalhar pra manter a educação do seu filho nas ruas. Um desafio e tanto. Seu Josias passou por situações com a polícia enquanto os papéis permaneciam em processo para adquirir seu alvará, teve seu carrinho apreendido por duas vezes, e se revolta por isso. “Uma situação constrangedora, você ter seu único meio de vida apreendido por três marmanjões que não entendem o valor de seu trabalho, que cumprem
Dog do Zé localizado na Praça Silvio Romero, Zona Leste da cidade.
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“foi uma luta desgraçada até eu conseguir minha permissão”
as regras absurdas destes políticos corruptos, que parecem não querer nos ajudar em nada. Foi uma luta desgraçada até eu conseguir minha permissão para trabalhar em paz, tinha dias que eu dormia na porta da prefeitura esperando abrir para resolver tudo, eu precisava pagar meus impostos, e parece que ninguém entendia isso. Mas consegui minha autorização e hoje trabalho em paz, mas nem por isso deixei de ir as ruas lutar pelos direitos dos meus parceiros. Ah... eu fui sim... Fui porque senti na pele todas as dificuldades de ser um trabalhador de rua. E foi magnifico. Não conseguimos muito coisa, além de fazer barulho, mas pelo menos a cidade tomou conta dos nossos problemas. Estou sendo até entrevistado”, Brincou. Depois me ofereceu um cachorro quente, e nossa conversa terminou por aí, quando me entregou o sanduíche, levando uma das mãos na boca e dizendo: “No capricho!”. As manifestações não obtiveram resultados, mas fizeram barulho o suficiente para que a população que utiliza esse serviço, entedesse o que estava acontecendo e passase a apoiar os vendedores e reclamassem sobre a burocracia necessaria para que os donos dos dogs conseguissem regularizar as suas situacões.
Discussões, relatos e indagações sobre um possível novo momento para o jornalismo. Nathalia Moura Rebeca Carrara
Diante das ansiedades que a finalização de um ciclo proporciona – como, por exemplo, o término daquela transição que saímos de meros adolescentes e entrarmos na maioridade, onde a escolha da carreira se torna imprescindível – nos deparamos com um quadro que nos causa certo incômodo de viver rente as incertezas da profissão que escolhemos. Dentre tantos outros, o seu nome pode ser jornalismo, mesmo que não saibamos mais como realiza-lo, ou chama-lo: Novo ou velho? No dia 1º de agosto, a Editora Abril demitiu 71 jornalistas, migrou dezenas para outras redações e fechou quatro revistas: Gloss, Alfa, Lola e Bravo!. Esse momento não retrata apenas a editora Abril, mas também grandes representações da comunicação no Brasil, que se renderam, talvez ao inevitável, momento crucial do jornalismo. A Folha de São Paulo, por exemplo, demitiu 40 jornalistas no ano passado e acabou com o caderno adolescente “Folhateen”. Além disso, a Rádio Bandeirantes demitiu neste ano o jornalista e comentarista Mauro Beting, que declarou ao portal imprensa que têm consciência de que a sua demissão só ocorreu devido aos cortes de custos da Rádio. Independente dos motivos, acontecimentos como estes apontam um possível novo cenário para o jornalismo. Para quem ainda mantém a
imagem utópica sobre esta profissão, é normal não saber como reagir diante de um jornalismo criando outra forma. Esse foi um dos assuntos que conversamos com as estagiárias Mariana Conte – que hoje está na redação da Cláudia, mas antes trabalhava na Lola – e com a Sasha Yakovleva, que recentemente se demitiu da Editora Abril, mas que trabalhava na GLOSS antes de migrar para a Capricho. Já aqueles que atuam na área há mais tempo como, por exemplo, Sergio Gwercman, atual jornalista da Quatro Rodas e ex-diretor de redação da Alfa, possuem outra visão. “Não acredito que exista uma divisão entre novo e velho jornalismo. O começo do jornalismo é totalmente diferente do jornalismo que vemos a 30, 40 anos atrás”, disse Sérgio em uma breve entrevista pelo telefone. Mesmo contrariando as normas de um bom jornalismo, onde é necessário bater perna para se fazer uma boa notícia, concordamos em fazer a entrevista por telefone, já que, nas próximas semanas, ele não teria espaço em sua agenda para almoçarmos ou tomarmos um café. Ao ser perguntado sobre a sua opinião em relação a notícia dada há mais de dois meses, Gwercman afirmou que: “Hoje vivemos numa época de marcas, quando uma revista acaba não quer dizer acabou o jornalismo. Essas coisas acontecem, uma marca sai para surgir outras”. O “novo
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a aproveitar as ferramentas que a mídia digital proporciona para inovar o jornalismo sem perder a sua essência de ir atrás, pesquisar e apurar. Na palestra também foi discutido a produção rápida da notícia, o que conversa com a era da tecnologia, sem perder a sua profundidade. Outra questão colocada no encontro pelo repórter do Estadão Ricardo Chapola, foi que o jornal impresso tornou-se um veículo de notícias frias quando o que foi noticiado pela internet no dia anterior, sai nos jornais impressos um dia depois.
Mariana Conte, 21 anos, estudante de jornalismo e atual estagiária da Revista Cláudia.
jornalismo”, assim titulado por muitos, também não assusta o jornalista de 36 anos: - Não acredito que exista uma divisão entre novo e velho jornalismo (...) É claro que existe a diferença entre impresso e internet, mas só o segmento. Não acho que um está tomando o lugar do outro. Mostrando uma posição diferente de Sérgio Gwercman, Lucas Rossi, repórter da Revista S/A, acredita que o jornalismo impresso no digital não adianta, é preciso adaptar. Em uma palestra dada em setembro, na Universidade Presbiteriana Mackenzie no Encontro de Comunicação, Rossi disse que não adianta tentarem colocar, por exemplo, um texto para revista no portal de um site de notícias. É preciso usar a interatividade e as outras novas formas que estimulem o internauta
“Eu me lembro de cada detalhe”, afirma Mariana 178 | Narrativa
Eram 11:30hs quando chegamos no local marcado para a entrevista. Em frente ao prédio da PUC, em Perdizes, uma garota alta, com longos cabelos escuros e uma franja no rosto, óculos rayban e casaco verde, estava nos esperando. Mariana Conte, 21 anos estudante do sexto semestre de jornalismo da PUC apareceu. Sorridente, logo que nos cumprimentou, começou a falar e depois dali, não parou mais. Contou-nos tudo. Cada momento da experiência que viveu dentro da Revista Lola desde a sua entrada na redação, até o fechamento dela. “Há algum tempo sentíamos um clima tenso nas redações da Abril. Já tinham comentado sobre a possibilidade da Lola fechar, mas sempre prosseguíamos com o trabalho como se nada tivesse acontecido”, afirma. Os olhos não paravam. Mariana mostrava-se um pouco emocionada. As mãos sempre em movimento mexiam os anéis, os brincos, a caixinha de suco de morango da Vigor que havia acabado de tirar da bolsa, chacoalhado e perfurado para tomar. Inspirando profundamente, a cada lembrança, um olhar para cima. “Eu me lembro de cada detalhe. Sempre fui muito emotiva, então lembro quando a chefe de redação me convidou para tomar uma água e avisou para segurar o choro. Então, me deu a notícia. Engoli o choro e voltei para o trabalho”, conta. Ela explica que a revista já tinha duas edições prontas, inclusive uma de aniversário especial que levava na capa a atriz Mariana Ximenes, na frente da Torre Eiffel em Paris e que mesmo depois de tanto trabalho, não foi liberada pela Editora Abril como edição de despedida. “Acredito que o fechamento da revista tenha sido um baque para mim. Eu já vivia com dúvidas sobre a minha profissão, mas agora, após o ocorrido, realmente reflito sobre se é o que quero
para a minha vida”. Mariana também conta que a Editora Abril garantiu a todos os estagiários que nenhum deles seriam demitidos, mas realocados. “Ficamos vários dias em casa, aguardando a resposta da Editora. Foi angustiante. Alguns colegas não conseguiram migrar para edições ou redações que tinham a sua cara. Outros, se demitiram”, diz. A estagiária foi transferida da editoria de beleza da Revista Lola para a editoria de comportamento da Revista Cláudia. Conversamos com Mariana sobre a ansiedade e frio na barriga das incertezas que nos esperam: Como faremos? O que podemos fazer para que essa avalanche de novas informações, formas de comunicar, transformações de sociedade e comportamento assim como as modernizações em tecnologia não engulam a nossa vontade e ânsia de fazer um bom jornalismo? Como enfrentar tudo isso e não perder os conceitos iniciais que nos levaram a escolher essa profissão. Além disso, como não desistir da esperança de conseguir um bom cargo, um bom emprego na área e continuar impulsionados a prosseguir? Mariana entende que o caminho é sem volta. “Está nítido que o jornalismo antigo, impresso, não rola mais. A Abril, por exemplo precisa descobrir como continuar mandando bem no online assim como manda bem no impresso”, afirma.
o celular e terminando o pedido que havia feito ao balconista. Rapidamente nos cumprimentamos e subimos para o terceiro andar da loja, em busca de um lugar apropriado para falarmos de um assunto que foi, no ponto de vista pessoal da entrevistada, tão delicado. Encontramos e logo nos arrumamos para iniciar o que havíamos combinado. Ligamos o gravador e deixamos ela, que tinha muito o que falar – como já tinha nos avisado – expressar todas as suas opiniões e indagações. A estudante de jornalismo do oitavo semestre da Faculdade Anhembi tem os olhos azuis mais penetrantes que já
“EstÁ nítido que o jornalismo antigo, (...) não rola mais”.
Redação destruída da revista Capricho, devido as migrações
Atenciosa, a ex-estagiária da Capricho (última redação que trabalhou, antes de pedir demissão), Sasha Yakovleva, de 25 anos, respondeu prontamente a mensagem que mandamos pelo Facebook, o mesmo meio que utilizamos para entrar em contato com Mariana. Sem mais informações e delongas, marcamos um café, às 19 horas, em plena Avenida Paulista. Saímos do metrô Consolação sem saber ao certo para qual direção ir, mas como já havia ultrapassado 15 minutos da hora marcada, apressamos o passo, já que tínhamos apenas uma hora para realizar a entrevista – Sasha tinha um compromisso importante que o trabalho lhe impusera às oito da noite. Entre as mensagens do Facebook, uma notícia boa, “estou aqui dentro te esperando”, então mais que depressa viramos à esquerda, na Rua Haddock Lobo. Avistamos de longe o Starbucks e ao chegarmos, abrimos a porta e vagamos nossos olhos pelo balcão de atendimento. Lá estava ela, sentada, manuseando
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Sasha Yakovleva, 26 anos, estudante de jornalismo e ex estagiária da revista Gloss, antes de migrar para a Capricho.
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vimos, e conseguia transmitir a realidade e a vivacidade de tudo o que passou. Por hora mordendo o lábio inferior e buscando o que dizer ao olhar poucas vezes para o lado, vimos aqueles mesmos olhos azuis, por hora marejados. “Eu, sinceramente, estou em crise com a minha profissão”, pausou buscando ar para continuar, “é foda meu... Desculpa!”. “Desde que me conheço por gente, quando ainda morava na Rússia, sonhava em trabalhar no impresso. Sempre desejei fazer parte de uma redação, de escrever e de ver as minhas matérias publicadas, mas hoje confesso que não sei o destino da minha profissão”. Conversa vai e conversa vem, disse que os únicos prejudicados nessa história, além de seus próprios sonhos, foram os seus chefes. “A maioria dos editores-chefes e outros cargos mais altos foram demitidos, mas todos os estagiários permaneceram”. Por que? “Eles são espertos e dispensaram os mais tops e que tinham os salários maisaltos para sobrecarregarem os estagiários”. “Vejo hoje em dia o quanto o jornalista precisa ser completo. Quando eu entrei na faculdade, com uma impressão totalmente diferente da que eu tenho hoje, pensava que não precisaria usar boa parte do que estavam me ensinando no futuro que planejei. Mas hoje vejo o quanto isso é importante! O quanto é importante saber editar e usar todos os recursos de mídia”, revelou mexendo constantemente as mãos que, vez ou outra, se esfregavam nervosamente: - Mas eu acredito que o jornalismo impresso vai se recuperar... Hoje em dia eu invisto no meu blog e em um jornalismo de qualidade, onde eu vou bater perna pra conseguir algo que realmente valha a pena. No intervalo de uma frase e outra, me fez lembrar de seu blog que tinha acessado na mesma manhã. - Eu percebi a diferença que há quando eu viajo e escrevo sobre o lugar no meu
ponto de vista, e quando me mandavam ligar para uma pessoa que tinha visitado outro lugar, tendo que escrever através da opinião dela. Sem contato. Sem olho no olho. Como raros jornalistas pensam e procuram trabalhar atualmente, Sasha Yakovleva deixou seu recado: “Não existe jornalista de escritório”. “Vejo hoje em dia o quanto o jornalista precisa ser completo. Quando eu entrei na faculdade, com uma impressão totalmente diferente da que eu tenho hoje, pensava que não precisaria usar boa parte do que estavam me ensinando no futuro que planejei. Mas hoje vejo o quanto isso é importante! O quanto é importante saber editar e usar todos os recursos de mídia”, revelou mexendo constantemente as mãos que, vez ou outra, se esfregavam nervosamente: - Mas eu acredito que o jornalismo impresso vai se recuperar... Hoje em dia eu invisto no meu blog e em um jornalismo de qualidade, onde eu vou bater perna pra conseguir algo que realmente valha a pena. No intervalo de uma frase e outra, me fez lembrar de seu blog que tinha acessado na mesma manhã. - Eu percebi a diferença que há quando eu viajo e escrevo sobre o lugar no meu ponto de vista, e quando me mandavam ligar para uma pessoa que tinha visitado outro lugar, tendo que escrever através da opinião dela. Sem contato. Sem olho no olho. Como raros jornalistas pensam e procuram trabalhar atualmente, Sasha Yakovleva deixou seu recado: “Não existe jornalista de escritório”.
“EU, SINCERAMENTE, ESTOU EM CRISE COM A MINHA PROFISSÃO”, disse sasha
Eles estão nas grandes metrópoles e não aceitam o papel de vítima. Movimentando o mercado, o número de domicilios únicos só faz aumentar no país, principalmente nas grande cidades. Danielly Pereira Karen Nering Sarah Ayume
Seguindo as tendências mundiais que até o ano de 2011 revelavam 277 milhões de pessoas morando sozinhas no mundo, - em Nova York, por exemplo, estima-se que 50% da população não dividem o teto com ninguém -, o Brasil, segundo o IBGE, teve aumento de 80% na quantidade de domicílios únicos, sendo Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul, a cidade com maior número de residências únicas no país. Os dados mostram uma mudança no comportamento e na relação que os indivíduos estão estabelecendo entre eles e a sociedade e inevitavelmente entre eles e a cidade. Estatísticas revelam também que quem mora sozinho tende a sair mais, movimentando o mercado ao redor. O ministro religioso David Ferreira dos Santos, 27, parecia apreensivo para contar suas dificuldades e como lida com a experiência de morar sozinho. Sua gravata combinando com o traje formal transpareciam uma sensação desconfortável ao falar de sua vida pessoal, mas aos poucos foi revelando que apesar de sentir mais liberdade por morar sozinho, ainda sente falta de ter alguém por perto. “Aos 16 anos, minha mãe quis mudar de cidade, eu me recusei a ir com ela. Morei com minha tia por quatro anos, foi quando conheci uma pessoa com a qual tive um relacionamento. Moramos juntos por algum tempo, mas logo
percebemos que tínhamos objetivos diferentes e então resolvi ficar sozinho”, diz o ministro, balançando seu sapato social preto que aparentava ter sido engraxado recentemente. Aparentemente o ministro não gosta de seu passado e diz que foi uma escolha da qual não se arrepende por aproveitar a atual liberdade, mas tem em mente um futuro em que estará casado, com mulher e filhos. Uma maneira de driblar a solidão é usando o celular, jogando videogame ou qualquer coisa que o distraia. Ler a bíblia e meditar, por exemplo, são opções que o fazem preencher aquele vazio que por vezes o entristece. “Me viro bem na cozinha, sem problemas, gosto de cozinhar”, com um ar mais relaxado e tranquilo, ele tentava fugir andando de um lado para o outro, balançando suas chaves pelo chaveiro de metal que reluzia, revelando a inquietação e o desconforto que deram o tom da entrevista inteira. Se por um lado o fenômeno começou a ocorrer involuntariamente na Europa, em decorrência da viuvez, por exemplo, atualmente e cada vez mais tem sido associado à escolha de vida. Nos grandes centros urbanos do Brasil o perfil de quem mora sozinho revela que, por motivos de estudo os jovens deixam a casa dos pais, e com frequência, continuam a morar
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Jonas Pinheiro, 21 sozinhos, dessa vez por opção. O Sindicato da Habitação (SECOVI) apresenta em sua pesquisa que, na primeira metade do ano, na cidade de São Paulo, os imóveis que contam com apenas um dormitório tiveram alta de 377% em relação ao ano passado. Isso mostra que o mercado vem crescendo constantemente para esse público diferenciado, onde os imóveis pesquisados variavam entre lofts, dúplex e estúdios personalizados para solteiros. A imobiliária S1NGLE deixa evidente em seu nome que o público alvo do momento é justamente este. Em sua página no Facebook, a S1NGLE divulga diversos apartamentos com preços variados, mas apenas voltados aos solteiros. Liberdade para estabelecer suas
“Você pode passar cinco dias fora de casa sem ninguém chamar a polícia.” 182 | Narrativa
próprias regras, aproveitar os momentos de introspecção e não precisar dar satisfações a ninguém são alguns dos principais atrativos de morar só. Hugo Mendes, 19, mora sozinho há aproximadamente dois anos, entre seus estudos teatrais e acadêmicos, o universitário cujo rosto não faz jus a maturidade que adquiriu, segundo ele, devido ao fato de morar sozinho, ressalta que apesar de gostar da liberdade de viver só, nem tudo são flores e as dificuldades sempre aparecem. “Você pode passar cinco dias fora de casa sem ninguém chamar a polícia. Pode chegar em casa de madrugado com uma galera e não ter que pedir ou explicar para ninguém. Coisas desse tipo”, exemplifica os prazeres de morar sozinho. Em contraponto o rapaz de sotaque doce, típico de uma cidade com menos de 15 mil habitantes no interior de São Paulo, conta que a pior parte de viver sozinho é ter que arcar com todas as despesas sem ter com quem dividir os gastos. O apartamento bem arrumado do rapaz afirma que morar sozinho não é só bebedeira e festa; há preocupação constante com os afazeres domésticos e as contas a pagar. “Eu já fiquei uma semana tomando banho na faculdade porque meu chuveiro quebrou e eu tava sem grana e sem tempo para arrumar outro”, revela uma das dificuldades ocasionadas pela sua nova vida de solteiro em São Paulo. “Normalmente é bem tranqüilo, é mais complicado quando eu tenho que ficar “preso” em casa para receber uma encomenda ou alguém que vai fazer algo no apartamento (encanador, técnico da internet, etc.)” conta ele, antes de revelar, tímido, uma história comum entre quem vive sozinho: Hugo já passou um bom tempo se alimentando apenas com miojo e sucrilhos. Por outro lado, ocorrem momentos de solidão e é preciso sabedoria para lidar com as dificuldades e inconvenientes de só ter a si próprio para recorrer. Hugo, por exemplo, se queixa que quando fica doente, não há quem o auxilie, mas não pretende viver com alguém, ao menos não num futuro próximo. “Só pretendo morar com amigos se for em algum lugar diferente, como em outro país. Nessa situação eu acho interessante. Além disso, imagino que no futuro vou acabar vivendo com alguém”, conta sobre seus planos e expectativas. Amanda Pacheco, 21 anos, mudouse do interior de Minas Gerais para São
Paulo, e hoje mora na movimentada Avenida Paulista. Como muitos jovens, aos 20 anos Amanda deixou a pequena cidade de Pouso Alegre para estudar na capital, onde cursa biologia. Ao contrário da experiência inesquecível que lhe foi prometida, ao chegar a São Paulo Amanda apenas percebeu o quanto faz falta ficar longe de casa. Há um ano ela divide o apartamento com outras três garotas da mesma faixa etária. “Todas estudam em horários diferentes, então passo a maior parte do tempo sozinha. Muitas vezes me sinto entediada, mas por outro lado, quando estão todas no apartamento a movimentação me incomoda”, lamenta Amanda. Desde que deixou a casa dos pais, ela relembra de alguns episódios frustrantes. “Alguns meses atrás foi que comecei a perceber como é inconveniente morar tão longe da sua verdadeira casa. Um parente muito próximo faleceu, e não pude voltar imediatamente para lá”, conta a estudante. Contribuindo para esse quadro de melancolia, ela relata com desanimo que também não pode estar presente durante os últimos dias de vida de sua cachorrinha, que fazia parte da família há mais de uma década. “Esse tipo de coisa realmente mexe com a gente, faz questionar se esse sacrifício realmente vale à pena”, reflete. Desde que saiu de casa, Amanda percebeu uma piora em
sua saúde, e diz que não se alimenta tão bem quanto gostaria. “Às vezes a vontade de largar tudo é muito forte. A única coisa que me segura aqui é o apoio dos meus amigos. Conheci muitas pessoas na faculdade que estão em situações parecidas, e a gente se apóia”, diz Amanda, que faz questão de ligar para a mãe pelo menos uma vez ao dia. Dependendo de ocasionais caronas para voltar para a cidade natal nos fins de semana, ela é prova de que a iniciativa de emancipar-se da presença materna e do conforto de uma casa cheia, definitivamente, não é para qualquer um. Ao contrário do que se possa pensar, e apesar de momentos de solidão
“passo a maior parte do tempo sozinha. me sinto entediada” Hugo, 19 anos
Foto: Sarah Ayume
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Foto: Arquivo Pessoal
acontecerem, morar sozinho também esconde seus prazeres. Entre prazeres e solidões, assim é a rotina de quem não tem muita rotina. Acadêmicos do centro de neurociência da Universidade de Chicago defendem a tese de que viver em grandes centros urbanos não distancia as pessoas umas das outras, o distanciamento nas relações interpessoais e a sensação de solidão ocasionada por ela, depende da personalidade de cada um. Jonas Pinheiro, 21 anos, acredita que seu amadurecimento deve-se totalmente à decisão que tomou aos 17 anos. Sempre querendo independência, Jonas começou a trabalhar muito cedo. “Meus pais são separados e eu morava com minha mãe, mas ela logo resolveu se mudar para Campo Limpo Paulista. Eu não podia ir com ela, para não perder o emprego e continuar a faculdade. Sendo assim, me vi obrigado a morar sozinho”, relembra Jonas. Jonas nasceu e cresceu em berço evangélico, e recorda-se principalmente de seu pai. Ele conta que, na época de sua adolescência, começou a amadurecer suas próprias ideias, que não eram em nada parecidas com a de seu pai. Na busca por sua própria identidade, virou roqueiro e para evitar as discussões que estavam destinadas a acontecerem, preferiu se afastar. Um pouco desanimado, Jonas acrescenta que a maior dificuldade que sente hoje é em relação ao dinheiro. “Querendo ou não, quanto mais se ganha, mais se gasta”, diz o estudante. Morando sozinho, as saídas e gastos têm que ser bem mais controladas. Jonas, que também é designer, fotógrafo e instrumentista,
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Foto: Arquivo Pessoal hoje trabalha em período integral e faz ensino a distância, estuda Inglês, e está sempre na correria. Enquanto falava, suas pausas eram duráveis, e suas hesitações ficavam ainda mais constantes e perceptíveis quando falava de solidão, mesmo com sete irmãos. Jonas gosta de tudo e gosta de nada, típico de uma geração que leva a vida entre a razão e a emoção. Cada palavra era como se memórias e sentimentos viessem de seu interior à tona, mostrando um vazio que o incomodava. “Gosto de assistir desenhos, gosto de fotografar, gosto de estar com amigos de verdade, gosto de criar. Gosto de muitas coisas, mas não gosto de fazer nenhuma delas... Prefiro às vezes dormir a fotografar” encerra. Jonas também gosta de escrever. A seguir um trecho de seu poema intitulado “ Solidão”. “Consegui fazer uma coisa que eu sempre quis... Um sonho que muitos nutrem dentro de si Nada de gente tentando te mandar, Só você para se coordenar. (...) Não tem nada para se divertir. Vai dormir cedo para tentar esquecer, Não quero com isso me aborrecer Tentarei não pensar assim Mas o que posso fazer se me sinto assim? Jonas Pinheiro. 01/02/2011
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