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2. Os conflitos, no passado e hoje

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Bibliografia

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um tipo de conflito (ou uma dimensão do mesmo) que envolve fenômenos paradoxais,

ambivalentes, como rancor, ressentimento, ódio e rivalidade (que chamaremos

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rivalidade mimética – Girard, 1972) que fogem da compreensão abordada pela psicologia humanista (Farneti, 2009). Em outras palavras, a lógica da rivalidade4, do orgulho, do ressentimento, é diferente da lógica das necessidades e dos interesses5 . Cito o exemplo

do Julgamento de Salomão para ilustrar o que estamos dizendo. Nesse julgamento, a

rivalidade entre as duas mulheres é tão forte que uma delas (dominada pelo ciúme),

aceita a proposta de Salomão: sacrificar um bebê a fim de que o conflito seja resolvido.

Explicaremos melhor a complexidade desse mecanismo no capítulo 5.

Por isso tudo, é fundamental observar e tratar com seriedade os conflitos de

nosso dia a dia pois, como diz o ditado popular “os pequenos riachos se tornam grandes

rios”. Da mesma forma, um conflito, por mais insignificante que pareça ser em

determinado momento, pode crescer como uma bola de neve ao ponto de causar muita

destruição pelo caminho.

Antes de entrar na descrição dos mecanismos dos conflitos, é importante nos perguntarmos se eles estão mais presentes hoje do que no passado. É fundamental

também compreendermos a relação entre violência (e a evolução da violência) e os

conflitos, o que trataremos a seguir.

Depoimento

"A temática que o professor Ludovic oferece é de uma necessidade gigantesca na atualíssima Torre de Babel em que se encontra ancorada nossa comunicação. Seja no trabalho, no social ou nas nossas mais íntimas relações. O convite à escuta, à vontade e à ação para resolvermos nossos conflitos são uma chave preciosa na libertação de nossos presentes e atávicos desentendimentos."

Karla Melo, CEO Editora Confraria do V ento

4 Iremos descrever esses fenômenos de desejo mimético e rivalidade mimética (Girard, 1961, 1972). 5 Embora técnicas de escuta e de reformulação possam ajudar a satisfazer (ao menos parcialmente) uma possível necessidade de reconhecimento ou consideração sentida pela pessoa.

2. Os conflitos, no passado e hoje

“Enquanto a primeira metade do século 20 marcou um período de violência extraordinária, o mundo se tornou mais pacífico nos últimos 30 anos.” Brennen et al

“Seja qual for o sistema político e social que se consiga lhes impor, os homens não alcançarão nem a felicidade nem a paz com que sonham os revolucionários, nem a harmonia dos balidos com que se assustam os reacionários. Eles sempre se entenderão o bastante para nunca se entenderem. Eles se adaptarão às circunstâncias que parecem as menos propícias à discórdia e inventarão sem descanso novas formas de conflito.” René Girard

Essas citações revelam a contradição do momento que vivemos. Por um lado, o

processo de civilização do Ocidente amenizou ou baniu certas formas de violência: como

os castigos físicos e a pena de morte (Elias, 1973). Por outro lado, a tecnologia fez entrar

a humanidade numa era apocalíptica (Anders, 1952) onde ela se tornou capaz de se

autodestruir (ex.: bombas atômicas). Enquanto o processo civilizatório nos deixa mais

intolerantes a certas formas de violência (por exemplo: a violência doméstica e escolar),

a conflitualidade aumenta na mesma proporção, pois não se tolera mais práticas,

condutas, palavras outrora consideradas normais e hoje consideradas ofensivas e

inaceitáveis.

Costumo começar meus cursos perguntando para os participantes se eles acham que existem mais conflitos hoje do que nas sociedades do passado. É uma pergunta difícil,

que requer uma resposta um tanto paradoxal. Na escola, aprendemos que a maior parte

da História é composta por conflitos, alianças entre países contra um terceiro, guerras

pelos recursos, pelas fronteiras etc. Hoje, é evidente que nossa sociedade passa também

por muitos conflitos, em vários níveis (casais, famílias, grupos de amigos, comunidades,

equipes gestoras, na política etc.). As nações encontram-se divididas. Isso tudo é

conhecido e visível. Porém, será que isso nos revela algo positivo sobre as sociedades de

hoje?

Acredito que sim. Estamos com toda a certeza em uma era de revelações e de

suspeitas. Hoje, as vítimas têm direitos, se empoderam e se organizam para poder reivindicá-los e denunciar os autores de violências6 . O que acontecia escondido atrás dos

muros das instituições ou das casas e era considerado fatalidade é hoje revelado ao

público nas redes sociais, nas mídias. O que era contado pela única voz do Poder (a versão

oficial do Estado em nome da segurança nacional), hoje é contestado, questionado. Claro,

essa situação, pode gerar excessos, manipulações, exageros. Mas não devemos perder

de vista o alcance histórico do momento. Esse fenômeno é profundo, inédito e com

certeza irreversível. Por isso gera desconforto, turbulências, instabilidade e, justamente,

conflitos, afetando nossa imagem do mundo como sendo um lugar angustiante, sem

harmonia possível. No entanto, não podemos esquecer a radical novidade desse

acontecimento: doravante, as vítimas têm direitos e o “Mal” precisa se esconder ou se

vestir com as roupas do “Bem” para se perpetuar. Por essas razões, estamos, de certa

forma, em uma sociedade mais conflitante porque a sua estrutura injusta, as suas hierarquias7 arbitrariamente e historicamente mantidas, estão sendo hoje

profundamente questionadas nem sempre de forma adequada ou construtiva.

Simultaneamente, a eventualidade de um colapso civilizacional gera um ambiente

de suspeitas e acusações generalizadas que cria as condições de uma conflitualidade

constante e quase onipresente.

Enfim, conhecemos o fenômeno de “judicialização da vida social”, ou seja, a

expectativa de que a justiça resolva todos os nossos conflitos, o que pode acarretar a

perda da capacidade de diálogo. Esses fenômenos se alimentam em círculos: quanto

menos existe diálogo, mais a justiça deverá agir e vice-versa.

Consequentemente, percebemos que, na nossa sociedade atual, está cada vez

mais difícil manter relações harmoniosas ou, pelo menos, de respeito, tanto na esfera

6 Basta ver como o #Metoo liberou a palavra de milhares de mulheres vítimas de violência sexual em diversos setores e indústrias (cinema, jornalismo, medicina etc.) 7 René Girard analisou de forma esclarecedora um dos paradoxos fundamentais da modernidade: quando os obstáculos simbólicos das hierarquias antigas são derrubados (proibições, obrigações, tabus, respeito incondicional às figuras de autoridade), os sujeitos modernos ganham em mobilidade, em liberdade, mas correm também o risco de se confrontarem a um obstáculo vivo, ou seja, o outro, o colega, o igual, o par.

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