RAIMUNDO DA PALMELA E ZÉ BRITO, LENDAS DO RIO MARACU NONATO REIS Escritor - Autor de Lipe e Juliana, A Saga de Amaralinda, A Fazenda Bacazinho e Ossos do Ofício Sempre que viajo de carro para Viana e aquelas paisagens de campos e planícies verdejantes tomam a visão de assalto, a partir de Arari, vejo-me como que transportado para uma época remota. Quando a vida parecia girar numa rotação muito mais lenta e o cotidiano se resumia a um punhado de obrigações e brincadeiras. Não necessariamente nessa ordem, porque, sob a ótica de menino prestes a ingressar no mundo dos adultos, as diversões se sobrepunham aos deveres, como se o universo fosse um mundo encantado de riso e prazer. Até mesmo quando o compromisso assumia a ordem do dia, dava-se um jeito de suavizá-lo com as cores alegres da infância. Assim era na coivara do rio Maracu, onde novos e velhos se reuniam para pescar e vadiar. Se os peixes, enfastiados, corriam do anzol, alguém quebrava um pedaço de pau, danava-se a bater nas bordas da canoa. Outro mergulhava nas águas turvas do rio. De repente contava-se uma história engraçada... No rebuliço que se seguia, ninguém ficava normal, e até os peixes, como que fascinados por aquela aura de magia, voltavam a morder as iscas. Terminado o “compromisso” na coivara e entregue a pescaria para o tratamento devido, era a hora da ganzola na enseada de Atanásio Muniz. A ganzola é uma brincadeira em que se tenta atingir um ponto demarcado do rio, mergulhando, sem ser notado por aquele que faz o papel de sentinela. O cerco se prolongava até que, já pelo meio-dia, os pais, das janelas das casas, chamassem os filhos para o almoço. Depois da ceia – servida invariavelmente com peixe cozido, arroz branco e pirão de farinha de mandioca, entregavam-se todos à sagrada “sesta” que, ao contrário de outros lugares, no Ibacazinho se prolongava até as três da tarde, quando então se dava início ao conserto das tarrafas e redes de pesca. Lá pelas quatro e meia, um baque surdo, ritmado, no campo de Ribamar Cidreira, anunciava a pelada de todos os dias. Se era noite de lua, havia brincadeiras de sobra: casamento oculto, “cair no poço”, pegador, roda e por aí vai. Se não, a opção era o jogo de cartas na casa de Dudu Mendonça ou a reunião em volta do bule de café na cozinha da patriarca dos Mendonça, a minha avó Mariana. Havia, porém, em meio a esse leque de diversões, uma em especial que me atraía o olhar. Eram as porfias (apostas) em canoas ao longo do rio Maracu. A prática, passada de geração a geração, constituía uma herança indígena, numa época em que as margens do rio eram habitadas pelos Tupinambás e Tremembés. Nos anos setenta, o costume era de tal modo difundido que na ascensão de Nossa Senhora, em maio, organizavam-se torneios em Viana com dezenas de concorrentes. Entre os atletas do Ibacazinho, Zé Brito e Raimundo da Palmela construíram fama dentro e fora do município e não havia quem não os conhecesse pela exímia habilidade com os remos. Zé Brito era forte como um touro, pernas e braços atarracados. Remava num ritmo frenético do Ibacazinho a Viana e atingia o destino como se fosse um simples passageiro, calmo e risonho. Raimundo da Palmela parecia um gentleman, com sua voz tranquila e suave. Alto e esguio, quando pegava o remo ou a vara, sua figura forte e impávida fazia lembrar um príncipe. Ninguém se atrevia a dizer quem dos dois detinha supremacia sobre o outro. Como arqueiros que se medem e se reconhecem, eles próprios faziam de tudo para evitar um confronto direto. Até que um dia, fartos de tantas provocações, decidiram brindar os moradores do Ibacazinho com uma solene apresentação. Colocaram-se observadores na partida do Porto do Padre e também no destino, na Gurguéia, em Viana. Ao longo do trajeto de quatro quilômetros sobre as águas montaram guardas para aferir as prévias.