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NONATO REIS

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FERNANDO BRAGA

FERNANDO BRAGA

RAIMUNDO DA PALMELA E ZÉ BRITO, LENDAS DO RIO MARACU

NONATO REIS Escritor - Autor de Lipe e Juliana, A Saga de Amaralinda, A Fazenda Bacazinho e Ossos do Ofício

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Sempre que viajo de carro para Viana e aquelas paisagens de campos e planícies verdejantes tomam a visão de assalto, a partir de Arari, vejo-me como que transportado para uma época remota. Quando a vida parecia girar numa rotação muito mais lenta e o cotidiano se resumia a um punhado de obrigações e brincadeiras. Não necessariamente nessa ordem, porque, sob a ótica de menino prestes a ingressar no mundo dos adultos, as diversões se sobrepunham aos deveres, como se o universo fosse um mundo encantado de riso e prazer. Até mesmo quando o compromisso assumia a ordem do dia, dava-se um jeito de suavizá-lo com as cores alegres da infância. Assim era na coivara do rio Maracu, onde novos e velhos se reuniam para pescar e vadiar. Se os peixes, enfastiados, corriam do anzol, alguém quebrava um pedaço de pau, danava-se a bater nas bordas da canoa. Outro mergulhava nas águas turvas do rio. De repente contava-se uma história engraçada... No rebuliço que se seguia, ninguém ficava normal, e até os peixes, como que fascinados por aquela aura de magia, voltavam a morder as iscas.

Terminado o “compromisso” na coivara e entregue a pescaria para o tratamento devido, era a hora da ganzola na enseada de Atanásio Muniz. A ganzola é uma brincadeira em que se tenta atingir um ponto demarcado do rio, mergulhando, sem ser notado por aquele que faz o papel de sentinela. O cerco se prolongava até que, já pelo meio-dia, os pais, das janelas das casas, chamassem os filhos para o almoço. Depois da ceia – servida invariavelmente com peixe cozido, arroz branco e pirão de farinha de mandioca, entregavam-se todos à sagrada “sesta” que, ao contrário de outros lugares, no Ibacazinho se prolongava até as três da tarde, quando então se dava início ao conserto das tarrafas e redes de pesca. Lá pelas quatro e meia, um baque surdo, ritmado, no campo de Ribamar Cidreira, anunciava a pelada de todos os dias. Se era noite de lua, havia brincadeiras de sobra: casamento oculto, “cair no poço”, pegador, roda e por aí vai. Se não, a opção era o jogo de cartas na casa de Dudu Mendonça ou a reunião em volta do bule de café na cozinha da patriarca dos Mendonça, a minha avó Mariana. Havia, porém, em meio a esse leque de diversões, uma em especial que me atraía o olhar. Eram as porfias (apostas) em canoas ao longo do rio Maracu. A prática, passada de geração a geração, constituía uma herança indígena, numa época em que as margens do rio eram habitadas pelos Tupinambás e Tremembés. Nos anos setenta, o costume era de tal modo difundido que na ascensão de Nossa Senhora, em maio, organizavam-se torneios em Viana com dezenas de concorrentes. Entre os atletas do Ibacazinho, Zé Brito e Raimundo da Palmela construíram fama dentro e fora do município e não havia quem não os conhecesse pela exímia habilidade com os remos. Zé Brito era forte como um touro, pernas e braços atarracados. Remava num ritmo frenético do Ibacazinho a Viana e atingia o destino como se fosse um simples passageiro, calmo e risonho. Raimundo da Palmela parecia um gentleman, com sua voz tranquila e suave. Alto e esguio, quando pegava o remo ou a vara, sua figura forte e impávida fazia lembrar um príncipe. Ninguém se atrevia a dizer quem dos dois detinha supremacia sobre o outro. Como arqueiros que se medem e se reconhecem, eles próprios faziam de tudo para evitar um confronto direto. Até que um dia, fartos de tantas provocações, decidiram brindar os moradores do Ibacazinho com uma solene apresentação. Colocaram-se observadores na partida do Porto do Padre e também no destino, na Gurguéia, em Viana. Ao longo do trajeto de quatro quilômetros sobre as águas montaram guardas para aferir as prévias.

Eu, que sempre me declarei fã de Raimundo, cruzei os dedos por ele, o coração disparado, entre ansioso e preocupado. Não poderia jamais admitir uma derrota daquele que fora o meu primeiro ídolo. Um tiro de espingarda anunciou a partida. Remos a postos, lá se foram eles naquela corrida alucinada. Minutos depois, a notícia correu beirada, como se costuma dizer no Ibacazinho. Zé Brito e Raimundo da Palmela tocaram o chão lamacento da Gurgueia, precisamente no mesmo instante. Viajando num barquinho a motor, ainda cheguei a tempo de ver Raimundo se abanando com a aba do inseparável chapéu de palha, o suor a escorrer pelo rosto, e Zé Brito, ao seu lado às gargalhadas, como quem diz: “entre mortos e feridos, todos escaparam, meu compadre”.

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