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Capítulo 5. A Vida nas Fazendas
PELOS CAMINHOS DA VIDA
CAPÍTULO 5 - A VIDA NAS FAZENDAS
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5.1. Fazenda do Rosado – Um mundo longe de tudo e de todos
Nasci no dia 1º de outubro de 1944, exatamente ao meio dia, segundo a minha mãe, na fazenda do Rosado, quando ela estava fazendo suas tradicionais quitandas. Segundo ela, quando a parteira chegou, eu já havia nascido. Fui registrado e também batizado no distrito de Santo Antonio do Rio do Peixe, hoje Alvorada de Minas, bem próximo à cidade do Serro.
Foi ali, numa enorme fazenda, pertencente ao meu avô Gabriel, que comecei a minha caminhada pela vida. Fiquei ali até próximo dos cinco ou seis anos, quando a fazenda foi vendida e tivemos que mudar para outro local.
Lembro-me muito bem do enorme casarão, estilo colonial, como era antigamente, do enorme curral principal logo em frente à varanda, com cinco coqueiros enfileirados (um deles já quebrado). O curral principal é onde ficava toda a boiada para distribuir nos pastos, onde havia as pastagens para o gado comer.
Ao lado esquerdo da casa havia uma porteira de chegada do Serro ou de Alvorada, e outra porteira de saída para a fazenda do tio Nenrod. Logo à frente uma porteira para outro pasto e uma terceira à direita, que dava acesso à casa do Teobaldo e de sua mulher Terezinha, local aonde íamos, de vez em quando, passear e buscar mexerica. Teobaldo era o principal ajudante do meu pai, gente boa para “caramba”. Viveu muitos anos. A última vez que o vi foi na casa da Dinha em BH, já bem velhinho.
Na casa tinham uns seis ou oito quartos, não me lembro do número certo. A cozinha com fogão à lenha e logo abaixo o forno de barro, onde minha mãe fazia suas quitandas.
A horta era próxima à cozinha e tinha uma enorme variedade de hortaliças. Tudo cultivado de maneira orgânica. Um enorme pomar com muitos pés de laranja, mexerica, goiaba, figo, jambo, araçá, dentre outras. Não me lembro se tinha manga e jabuticaba. Logo na entrada da fazenda vindo do Serro ou Alvorada havia uma enorme plantação de bananas, que era utilizada para a nossa alimentação, fabricação de doces e também para tratar dos porcos.
A vida na fazenda era dura, muito difícil e trabalhosa. Uma rotina danada. De vez em quando nascia um bezerro ou morria uma vaca. E as atividades começavam sempre muito cedo: lá pelas cinco da manhã as vacas eram recolhidas para se tirar o leite, ou seja, fazer a ordenha. O processo era todo manual. O leite era colhido nos baldes e colocado nos tambores
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para coalhar e depois colocavam a massa nas formas para fazer o queijo. Em seguida, salgavam (sal grosso em cima do queijo) e, alguns dias depois tiravam da forma e colocava para curar.
Quando o pessoal estava tirando leite eu gostava de tomá-lo quentinho saindo diretamente da fonte. Mas o primeiro leite tirado era sempre para consumo diário. Ia diretamente para o fogão à lenha, para ferver. Daí era só colocar algo para complementar; farinha, para fazer o mingau e depois rapadura e/ou queijo picado para fazer a primeira refeição do dia. Era o nosso café da manhã. Além disso, para variar, tinham ainda as gemadas. Não podia esquecer os remédios: Biotônico Fontoura e Emulsão Scott. Este era ruim demais. Mas tinha que tomar à força.
As vacas, depois da ordenha, eram soltas nos pastos e todos os dias à tardinha os bezerros eram recolhidos para não mamar o leite produzido durante a noite. Tinha ainda que tratar de todos os animais, bois, vacas, cavalos, porcos e galinhas.
Tudo isto era feito à luz do dia. Naquela época não havia luz elétrica e nem água encanada, apenas luz de lamparina a querosene e água em uma bica próxima.
Na fazenda plantava-se de tudo: milho, arroz, feijão, mandioca, banana, entre outros, pois para adquirir os produtos tinha que ir à cidade para comprá-los. Para transportar a produção eram utilizados os carros de boi, com dois, quatro ou até seis deles atrelados. Para tudo isso, meu pai contava com os ajudantes, pessoas muito simples que moravam em pequenas casas de barro e sapé em diversos locais na fazenda.
Foi no curral, em frente ao casarão, que sofri o meu primeiro acidente. Ainda criança, talvez 5 anos, fui ajudar o meu pai a separar os bezerros e um deles foi tentar passar por mim e tentei impedi-lo. Resultado: ele me derrubou e ainda pisou no meu olho, que ficou todo roxo. Como não havia médico na região meus pais colocaram picumã (acúmulo de fuligem da cinza na chaminé do fogão à lenha) sobre ele para desinflamar. E não é que deu certo? Melhorou!
Lembro ainda que quando íamos visitar o tio Nenrod passávamos a cavalo em uma mata onde havia muitos macacos, que davam medo, pois começavam a gritar e a nos seguir. Mas, felizmente, não atacavam.
Já ia me esquecendo, na fazenda tinham muitos cachorros, que meu pai falava que eram da raça americana. Os cachorros além de protegerem a casa eram utilizados nas caçadas, que meu pai fazia todos os domingos, para matar veados, somente para tirar o couro e deixá-los comer a carne. E
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como tinha couro sobre os colchões! Quando chegava sempre falava que tinha matado dois ou três e deixava os cachorros comerem.
5.2. Fazenda do Nonô 5.2.1. Quase Tudo Muito Igual
Quando o meu avô vendeu a fazenda do Rosado, segundo soube, para fazer o casamento de minha tia mais nova, tia Lucy, meu pai teve que mudar do local para entregá-la. A alternativa foi arranjar uma fazenda próxima para transferir tudo. Foi quando ele alugou a fazenda do Nonô de Duzita, bem próxima a Alvorada de Minas. Quando nos mudamos, acho que eu tinha seis anos.
A fazenda era muito parecida com a outra, mas acho que um pouco menor e com uma parreira em toda a varanda. Na frente do curral principal, um pouco íngreme, e na entrada à esquerda, no alto, um grande paiol, onde se guardava o milho (e como tinha rato).
No local onde se tirava o leite, tinha um cocho para tratar dos porcos. Quando queríamos pescar, sujávamos a água do córrego que passava dentro do chiqueiro e lá colocávamos um jequi (peça apropriada para pescar) com canjiquinha para atrair os peixes. Quando o tirávamos da água estava cheio de lambaris e também de mandis. Aí era só limpar, fritar e comer.
Além da casa principal tinha um enorme engenho onde se moía a cana de açúcar para fazer a rapadura, num enorme tacho sobre a fornalha à lenha, na parte mais baixa. Neste local, o canarinho chapinha (para nós eram os cabeçinha de fogo) gostavam de fazer os seus ninhos. Apaixonei por estes bichinhos e fazia tudo para pegá-los e colocar na gaiola. Cheguei a criá-los no viveiro e a soltar ou dar para amigos. Hoje as cidades já estão cheias deles. Acho um barato. Mas o mais gostoso no engenho era na época da moagem da cana, tomar aquele copão de garapa (caldo de cana) e provar o melaço que dá o ponto da rapadura. Que delícia! E olha só, muitas vezes era a gente que mexia a pá no tacho com o melaço borbulhando e tirava o ponto da rapadura. Um enorme perigo, mas enfim, o perigo sempre fez parte de nossa vida enquanto crianças.
À frente do curral principal, na saída para Alvorada de Minas tinha um moinho, onde se fazia o fubá e a canjiquinha. Vivia cheio de canarinhos chapinhas. E como tinha canarinhos! E também papa capins, pois ali era farta a comida. Quando abríamos a porta voavam para todos os lados. Lembro-me de ter matado um papa capim que estava chocando num pé de araçá, mas foi sem querer. Toquei-o do ninho e joguei uma pedra só
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para assustar, mas a pedra pegou nele e o bichinho caiu morto e, o pior, tinha dois ou três ovinhos no ninho. Fiquei arrependido, mas já era tarde.
Uma das porteiras da fazenda dava saída para a fazendinha do Dalvo (filho do Nonô), onde havia um pequeno riacho, onde costumávamos também brincar e onde meu pai, de vez em quando, pescava umas traíras.
Os pastos eram separados por cercas de arame. Ao passar debaixo de uma delas cortei a cabeça e a marca ficou para sempre. Foi também descendo uma pequena escada para o local onde minha mãe fazia suas quitandas, logo abaixo da cozinha, que escorreguei e bati a testa na madeira que sustentava o forno de barro e, como consequência, mais uma marca na testa.
Nessa fazenda, a atividade principal continuava sendo a fabricação de queijo. Os queijos produzidos eram acumulados até serem levados de caminhão para o Serro e depois, juntamente com o de outros produtores, eram vendidos para os comerciantes do mercado central de Belo Horizonte.
Lá também não havia luz elétrica. Eram usadas lamparinas, mas já havia algo mais moderno, ou seja, um lampião da marca Aladim, com camisinha de náilon, que queimava com certa facilidade se não controlasse o calor. Já para ter acesso às notícias meu pai comprou um rádio daqueles grandes, com uma enorme bateria e uma longa antena. É por ele que acessávamos a rádio Nacional para escutar primeiro a novela de Jerônimo, o herói do sertão e, depois, as notícias do país. Nas duas fazendas tinham galinheiros bem grandes para proteger as galinhas contra as raposas, que de vez em quando apareciam. Eram muitas galinhas e galos. Estes de vez em quando se pegavam e se não os separasse brigavam até a morte, pois eram da raça índia. De vez em quando apareciam galinhas com um bando de pintinhos, pois botavam e chocavam no mato.
Sempre ficava atento quando as galinhas cacarejavam após botar os ovos, pois gostava de pegar o ovo quentinho, furar um pequeno buraco na casca e tomá-lo cru. Gosto meio esquisito, mas tomei o primeiro, gostei e continuei tomando.
Nas fazendas não havia banheiros. O banho era na bica ou na bacia. O vaso sanitário era de madeira no formato de um quadrado com um buraco no meio e ficava em uma casinha próxima, com a água da bica passando por baixo.
Nunca tivemos, eu e meu irmão Ivan, muitos brinquedos. Também
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não tinha ano novo nem ano velho. Por lá nunca passou o tal de Papai Noel. Acho que era longe demais. Lembro apenas de um velocípede e de uma galinha que botava ovos. A brincadeira era com sabugo de milho e/ ou chuchu, quebrando o sabugo e fazendo deles bois, vacas e bezerros ou colocando pés e chifres nos chuchus. Outra brincadeira era andar de cavalo de pau; tiravam os cabos das vassouras para serem nossos animais. De vez em quando brincávamos até com escorpiões. Certa vez apareceu um tatu perto do paiol. Achamos que ele caiu do barranco ao lado e passamos a cuidar dele. Fez o seu buraco no barranco e foi ficando por ali. Quando queríamos vê-lo, e brincar com ele, puxávamos ele pelo rabo. Era muito difícil tirá-lo de lá. Mas de vez em quando conseguíamos. Não lembro o que foi feito dele. Acho que o soltamos.
A fazenda até hoje pertence aos filhos do Nonô que frequentam constantemente o Serro e estão sempre presentes por lá.
5.2.2. O Início da Convivência Social
Como a fazenda era bem próxima a Alvorada de Minas, minha mãe nos matriculou no grupo local. Para chegar até o grupo era uma distância de 30 km. Íamos diariamente, montados em nossos cavalos e quase sempre com os meninos dos agregados nos acompanhando a pé. Eu no Alazão e Ivan no Macaco. Deixávamos os cavalos na casa do “Butica”, um conhecido do meu pai, até o final das aulas. De lá íamos a pé até a escola – era perto e na mesma rua. Quando íamos pelo rio deixávamos na pensão que havia na parte baixa da cidade e subíamos o morro até a escola.
Lembro-me bem da escola, tudo muito simples. As cadeiras de madeira onde podiam sentar até dois alunos, com local para colocar os lápis e o tinteiro (naquela época havia somente caneta que se molhava na tinta). Minha professora era a Dona Neuza. Tinha uma filha que eu achava linda e a considerava minha namorada. Cheguei até brigar por ela com um colega. Saímos aos socos e aos pontapés. Imagina!!! Tinha só sete anos.
Para chegar até lá, tínhamos duas alternativas, pela ponte onde não havia risco, ou atravessando o próprio rio do peixe, que era mais perto, mas era muito perigoso, pois tinha duas partes bem fundas (na entrada e na saída). Mas à medida que íamos crescendo a opção era quase sempre pelo rio, pois íamos perdendo o medo. E então, quando o rio estava cheio, tínhamos a “manha” de sair em um ponto mais acima para chegarmos do outro lado no mesmo lugar de sempre, pois os cavalos além de nadar eram arrastados pela água, Para não molhar os pés, subíamos na cela e segurava
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na sua cabeceira; ficávamos tipo agachados. Olha só o perigo! Crianças são irresponsáveis. Não sabem avaliar os riscos.
No meu entender era muito perigoso e por isso a gente não contava em casa. Graças ao nosso Espírito Santo, nenhum acidente ocorreu no rio, mas por outro lado, mais uma vez fui premiado. Um dia, quando estávamos voltando, havíamos trocado os cavalos, pois o Macaco era mais esperto e nós dois gostávamos de andar com ele. Acontece que eu estava na frente e o Macaco tomou um susto com algum animal que se moveu no mato e me derrubou; como o Ivan vinha logo atrás não teve tempo para desviar e o Alazão pisou em minha cabeça. Mas foi só um susto e uma cicatriz a mais na cabeça.
Lembro-me também que um dia voltando para casa e quando passava por perto de um pé de “assa peixe”, nome dado a uma pequena árvore, puxei um dos seus galhos e fiquei com o corpo todo tomado pelo carrapatinho. Quando cheguei em casa minha mãe teve que me dar um banho na bacia e até colocar álcool na água para matar os bichinhos. E como tinha carrapatinho.
Ah, o cigarro. O meu pai fumava e a gente para imitá-lo fazia cigarro de talo de chuchu e palha de milho. Depois vimos que era mais fácil utilizar as “guimbas” que ele jogava fora. Meu pai fumava Minister. Ele fumava apenas metade do cigarro e jogava o resto fora. Aí a gente saia despistadamente e o pegava. Foi a partir daí que experimentamos o verdadeiro cigarro e quando mais velhos começamos realmente a fumar.