Revista Corifeu N. 03

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NÚMERO 3 – JULHO DE 2014

Revista

CORIFEU

CORIFEU:

Uma Perspectiva do Direito Desenvolvimento: Núcleo de Ética Jurídica (NEJ) revistacorifeu.nej@gmail.com

Distribuição gratuita

Arché José Manuel de Sacadura Rocha – NEJ

http://profsacadura.blogspot.com.br

A Luta pelo Amor A partir do século XIX os sistemas industriais de mercado exigiram das ciências humanas que o homem fosse desvendado dimensões.

Escrutinado,

em o

todas

as

homem

pode

suas ser

submetido, dominado, explorado, objetivado, quer dizer, extrair dele sua energia física e psíquica no ‘trabalho’, como o suco espremido de uma laranja. No final apenas o ‘bagaço’, seco, palha. Só que neste caso, o trabalho é a superfície de uma ‘máquina desejante’ tecnicamente disposta a esgotar-se em produção e consumo. Instituída

a

logística

perversa

do

fluxo

produtivo de capitais, o homem é um número leiloado no pavilhão indecifrável de coisas úteis, quer dizer, transacionado, financiado, etiquetado, uma cifra, um ponto, uma tira, uma legenda ínfima, uma barra-espaço branco-negra na etiqueta do perfume que compra com seu sangue, seu sêmen. Força perdida, energia requintada de tão reusada, azedado, rançoso, o ‘homem oco’ fede a carniça e atiça mais e mais as hienas e os urubus de paletó e gravata que desfilam de carros importados, impassíveis

pelos

shoppings,

pelas

alamedas

sofisticadas e pelos restaurantes gourmets. Eles são, temporariamente, os que precisam do perfume que compram. Logo o saberão, mas será tarde! No iluminismo anterior a civilização aparece como

redentora

da

ética

(Kant),

pois

como

suprassumo da racionalidade coletiva - objetiva, ela poderia educar os homens e os fazer encontra-la, a ética, em seus espíritos. Paradoxo que não comoveu (Schopenhauer e Nietzsche); a ética deontológica não pode ser resgatada por um ser-agente (deôntico) que é, ele mesmo, a coisa-objeto, o “coiso”, dessa ‘civilização’. Para fugir do redemoinho, ele precisa ser único e rebelde, precisa se subjetivar, cultivar e aprender a apreciar descobrir o que ele é, foi, pode ser, para lá da logística, do planejamento, dos roteiros, das estatísticas dos números, dos rótulos. Das regras e das leis, que não as suas próprias.

Mas estas, as que escolheu, pelas quais ele se responsabiliza estão doravante impregnadas de uma pseudoliberdade: relaciono-me com quem assim é, não porque almejo a liberdade – conceito ecumênico do discurso burguês -, mas, antes de tudo,

porque

não

sou

“coiso”

e

respeito

condignamente os que não são “coisos”, ou amo os que têm altivez e coragem para escolher. Na filosofia da antiguidade não é por acaso que o Amor seja tão reincidente, tão discutido, tão acalentado. Ele é a energia que pertence ao homem e que o torna único, superior, ‘proprietário de si mesmo’, a energia e o gozo que se expele (do redemoinho

devastador

maquinarias

biopolíticas

e

vampiresco

modernas

das

(Foucault)).

Gozar (como em Epicuro) é constituir-me a mim mesmo. Mas dificilmente isto pode ser realizado, consistente e dilatadamente, sozinho. Daí que ser livre não é ser só, solidão não é um modo de existir, mas de ultrapassar essa existência, ou seja, viver. Viver é amar e amar é uma arte emancipatória conjunta. Motivo pelo qual a filosofia na antiguidade, se via o amor como a potência de opostos a serem harmonizados, não via esta harmonia diante da lei, mas sim da arte, uma arte de ser-aproximar, de cuidar-de-si-junto, onde o prazer sexual é parte de uma ‘medicina’ do corpo e da alma. Esta medicinaarte (Erixímaco) propõe a aculturação de uma ‘estética de existência’ diluviana, uma ação mixis (mistura), uma copula (migein) contra o sistema de máquinas inumanas.


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CORIFEU

Ágora Plínio Marcos (1935-1999): Jornalista e Dramaturgo Nos “anos de chumbo”, Plínio Marcos foi um boêmio, um “mendigo”, jornalista incomodado que se negou a aceitar. Plínio foi um incomodado insurreto, um “homem infame” que com seu teatro de rua na pauliceia noturna deu o tom de uma arte off-road, uma alternativa beat, o nosso Jack Kerouac. Plínio era, e o seu teatro fantástico de prostitutas, malandros e bêbados, “o pino redondo no buraco quadrado”. Neusa, Vado e Veludo, personagens de sua peça Navalha na Carne (censurada por 13 anos), são os correspondentes de nossas crianças

de

rua,

nossos

traficantes

favelados,

nossos

esfomeados puxadores de carrocinhas. Outros tempos, a mesma miséria humana, a mesma “divina comédia humana”.

Aforismo: “Não faço teatro para o povo, mas o faço em favor do povo. Faço teatro para incomodar os que estão sossegados. Só para isso faço teatro”.

Areópago NEJ

Descartes e o Direito Quântico - Esboço

especifica e detalhada do objeto que se estuda, seja coisa inanimada, seja um ser com vida. A rigor, o método, o

René Descartes (1596-1650), afirmou duas coisas:

sistema de conhecimento experimental, que detalha ao

“Vou demonstrar que é possível chegar à verdade e vou

infinitésimo grau o objeto dado, é que garante a verdade

provar que Deus existe”. Nesta frase se deposita toda a

científica. Assim o homem foi à lua, assim o homem

ciência e a filosofia do conhecimento moderna. Todo o

descobriu o Bóson de Higgs!

conhecimento que se pretende científico margeia o cogito

Com o rigor metodológico e com a análise em

cartesiano. Inclusive o Direito, que empresta à ideia de

pormenor das partes constitutivas em essência do objeto,

verdade científica a possibilidade filosófica de “Justiça”. Seria

o ser pensante, o homem, pode descobrir e compreender

impossível pensar-se em uma ciência jurídica se a ideia de

o mundo das coisas e dos seres. Mas pode o rigor

Justiça não fosse absoluta, ou seja, uma verdade per se, quer

metodológico cartesiano entender o próprio homem?

dizer, “algo” que pode ser provado cientificamente. O que

Basta o método para o homem se conhecer a si mesmo?

seria uma justiça relativa, ou o que o Direito poderia fazer

Coisas inertes, inanimadas ou seres cuja vida seja

que não a sentença “justa”?

bastante premeditada e determinada por características e

Portanto, obter-se a verdade é inquestionável e uma

fatores repetitivos, podem ‘se dar a conhecer’ ao

necessidade de princípio, a verdade está na origem do

engenho humano formando paradigmas de certeza,

pensamento científico moderno, e a ela se pode chegar se o

verdades a partir das quais podemos produzir a vida

método

O

humana, obviamente, dominando e explorando essas

em

coisas e esses seres pelo conhecimento que deles temos.

essência. Descartes não foi o primeiro a cogitar sobre a

Podemos fazer o mesmo com os outros (homens)? A

importância do método para a ciência – veja-se, por

questão não é “simplesmente” ética, é, antes, uma

exemplo, Francis Bacon (1561-1626) -, mas o método

questão epistemológica: o homem, e a existência humana

dedutivo, analítico, criado por ele, levou o homem moderno a

por

descobrir em detalhes e especificamente as coisas da

inconstantes, amorfos, incontroláveis. Dominá-los e às

natureza e do seu próprio mundo humano. Partindo do

suas forças é dominar e explorar o próprio homem! O

observável, da realidade dada, o homem defronta-se com as

Direito deve se ater a isso, pois é uma ciência humana,

coisas e os seres, e pode, por esforço intelectual, por sua

não uma coisa inanimada ou repetitiva, que lida com

inteligência, usando a razão, obter a compreensão do mundo

fenômenos humanos.

de

conhecimento

pesquisa científico

for

rigoroso

moderno

é

e

adequado.

metodológico

ele

produzida,

são

entes

fluídos,

versáteis,

que o rodeia. Seguindo um determinado sistema ou método

Descartes não se importou muito em reduzir o

de conhecimento, chega-se assim à verdade científica,

homem a ‘coisa’ experimentável, dominável e explorável. Mas teve a intuição maior que mesmo usando o rigor me-


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todológico nunca poderia chegar ao fim do conhecimento,

os

interesses

coletivos

são

pois cada parte que fragmenta para estudar e compreender,

conscientemente coletivos? A utilidade coletiva é

imediatamente

nova

efetivamente de interesse coletivo? Existe uma

fragmentação e uma multidão de novas constatações, e assim

consciência coletiva politicamente ativa? Eis o

ao infinito. Em uma palavra, o conhecimento é infinito,

poder:

inesgotável! De forma, que o método experimental é útil, mas

convencionadas é o poder! Por isso o cartesianismo,

insuficiente para determinar o objeto de conhecimento em sua

o cogito e o método cartesiano, para além de um

totalidade essencial e específica. Daí que a verdade, não

simples método de conhecimento, esconde, por

definitiva, não absoluta, apenas é a compreensão determinada

trás do seu cientificismo, uma realidade política,

em um dado momento e dentro de condições possíveis de

uma filosofia que serve o poder!

descobre

que

é

possível

uma

quem

pode

dizer

dessas

utilidades

tecnologia e entendimento humano. Mas, no mundo humano,

Entrementes, e de forma muito paradoxal

na experiência mais imediata, nas condições bastante estáveis

em termos ditos científicos, a intuição maior de

e repetitivas, como no caso de nosso planeta, ou no caso das

Descartes derivou para Deus. Como vimos, ao

instituições humanas consagradas (daí a origem e função do

homem apenas está dada a possibilidade de

poder,

humano

compreender usando a razão para decifrar em

compreender o que consegue compreender e viver-se a partir

minúcias as entranhas, por assim dizer, do mundo

desse conhecimento, colocado como finito temporariamente,

que o rodeia, humano ou inumano. Diferentemente

até que nova descoberta e novo conhecimento se agreguem

dos outros seres, somos um ente inacabado,

ao já existente

imberbe, desqualificado, temeroso mesmo diante

consagrá-las!),

e

é

possível

ao

engenho

assim sucessivamente,

infinitamente,

da permanente e insuspeitada descoberta que põe

eternamente. Em verdade, a vida, da forma como a vemos e

abaixo o edifício que outrora pudemos erguer para

entendemos, é uma grande convenção povoada de infinitas

nossa pretensa, mas imatura segurança. É o nosso

crenças! Paradigmas, padrões, convenções, crenças, são

intelecto

determinadas pelo nível e estágio de compreensão possível do

aparentemente

real, mas, contudo, e precisamente porque se sabe que o real

silogismo que nos dá a tão sonhada coerência e

é o que será descoberto, provado e proposto “amanhã”,

harmonia, por exemplo, no Direito. E da mesma

exatamente porque o que é, é o que pode vir a ser, em tese

forma como as coisas da vida nos parecem tão

qualquer coisa, o devir precisa ser ordenado e controlado. A

seguras e firmes, nossas convenções e ideias

utilidade do que sabemos, e que apelidamos de verdade, pode

jurídicas parecem tão soberbas para “fazer justiça”!

ser o fator determinante daquilo que se escolhe por

que

nos

põe

no

consistente.

mundo É

de

nossa

forma

lógica

e

No fundo, a famosa frase atribuída a

paradigma, por verdade, partindo da premissa que em um

Descartes,

mundo considerado, uma certa estabilidade e repetitividade

idealismo, pouca metafísica; ela reflete apenas a

“Penso

logo

existo!”,

tem

pouco

possibilita que a razão diga e detecte o que é útil. Mas, ainda

condição bastante pragmática humana, qual seja, a

assim, mesmo nessas condições humanas de estabilidade

obrigatoriedade de usar o intelecto para poder

superficialmente percebidas por nosso escasso aparelho

conhecer e enfrentar o meio em que me sinto

perceptivo e intelectual, o que é útil para um ou para uns,

preso. Pensar é para o homem o seu fado, a sua

pode não ser para outros. Logo, uma convenção precisa ser

“maldição”,

porque

não

sabemos

uma crença, ou o que os antigos chamavam de “doxa”,

entendemos

nada,

não

temos

inquestionável em alto grau, pois não existe outra forma de

podemos fazer-nos sabendo, entendendo, fazendo.

nada,

nada,

não

apenas

os

Ora, também pragmática e logicamente, se

homens segundo determinados interesses, coletivos que

de antemão nada sabemos, se antecipadamente

sejam.

nada entendemos e se nos fazemos a partir do que

uniformizar, universalizar, logo

ordenar

e

controlar

já está feito, e se o conhecimento sobre o que aí está à priori não é obra nossa e é inesgotável em seu entendimento, inevitavelmente tem que existir algo ou alguma coisa que está antes, está além e bem acima do homem: por isso Deus deve existir! E, afinal, diz Descartes, de onde o homem em seu infinito e inesgotável saber teria ânimo para continuar a saber, a pesquisar, a descobrir, a compreender e a fazer? O ânimus em continuar a perscrutar o eternamente insondável só encontra,

Bóson de Higgs

afinal, razão e sentido nesse Deus. Assim, pois, pode-se falar em uma psicologia do conhecimento cartesiana “divina”, pouco explorada, por sinal.


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CORIFEU

Para que Deus não existisse o pensamento não

E o Direito? São muitas as possibilidades

poderia simplesmente se apropriar, como pode e o que pode,

que a Física Quântica traz ao jurídico, mas, no

do que nos cerca, quer dizer, nada antes e além, superior e

âmbito deste esboço, eu resumiria em alguns itens

maior do que o próprio pensamento poderia existir. Daí que, a

fundamentais relacionados com o que vimos, a

menos que o próprio pensamento produza as coisas e os

saber: 1. Não existe verdade, apenas uma ficção,

seres, estamos diante sempre do incognoscível, do infindável,

estrito

da fragilidade, do quase desprezível. Então, se Descartes

existenciais e sociais, no limite de nossas condições

provou a existência de Deus a partir do “pensar” posterior à

bastante humanas de pesquisa e conhecimento,

realidade dada, e o que é a realidade?, o homem para se

determinadas no tempo e espaço – isto destrói o

‘agigantar’ deveria produzir a própria realidade a partir de

caráter mecanicista e tecnocrata da justiça herdado

suas forças, não apenas a realidade social, convencional, mas

de Descartes (como em Sócrates-Platão, melhor

a própria existência da matéria. A matéria, e tudo o mais,

como em Aristóteles e Wittgenstein: linguagem é

devem ser consequências de um “colapso” de “consciência

argumentação lógica, logo, negociativa, construtiva,

mesmo que inconsciente”.

verdade consensuada); 2. Os agentes do Direito

No inicio do século XX, por acaso, usando os mesmos

senso,

um

conjunto

de

convenções

“colapsam” suas atitudes e escolhem depois os

em

instrumentos (direito material) e os mecanismos

laboratório, um experimento ótico estarreceu o mundo

(direito processual) para justificarem suas escolhas

científico e ainda hoje se procura entender exatamente a

– juízes decidem e justificam; defensores acreditam

extensão e a profundidade de tal experimento. Um fóton de

em

luz pode se comportar ora como matéria, ora como força-

infelizmente, o acusador, o promotor, faz o mesmo,

energia. Sem presença de observador as partículas de luz ou

mas na perspectiva errada de “defensor público”:

fótons se expandem e se projetam aleatoriamente em uma

acredita tanto que proteger a sociedade é condenar,

superfície lisa, mas quando o experimento é observado, e só o

que acaba incriminando inclusive aquilo que é

homem em algum sentido pode observar, quer dizer dar

banal, de menor potencial ofensivo, negligenciando

sentido ao que se vê, a luz se colapsa e se comporta de forma

alternativas punitivas com melhores resultados

coerente

pressupostos

cartesianos

de

pesquisa

científica,

suas

causas

e

comprovam

suas

crenças;

pelas

sociais; 3. Daí que as teorias abolicionistas podem e

propriedades materiais que contém, por exemplo, reagir à

devem ser defendidas com mais intensidade em

gravidade. Este é um dos experimentos fundamentais da

áreas

Teoria Quântica.

linguagens

projetando-se

como

seria

de

esperar

jurídicas,

como

menos

a

academia,

coagentes,

na

em novas formação

e

Talvez o exemplo seja caótico e inexpressivo demais

qualificação para futuros profissionais que vejam a

para que mude nossas vidas de forma prática, mas a filosofia

justiça como ação educacional, restaurativa, e

se pergunta se afinal o pensamento pode agir de forma a

menos vingativa, exclusivamente retributiva; na

produzir a realidade e se “pensar” não é verdadeiramente

prática da justiça cotidiana em bases conciliatórias

“existir” em outros termos, não cartesianos, não divinos, quer

e consensuadas entre os agentes envolvidos nas

dizer, o que é, ou melhor, o que será é o que efetivamente

situações-problema.

queremos que seja e não o que vemos e pretendemos

Novas

entender, ou seja, o entendimento está antes do real, ainda

doutrinadores

que não tenhamos disso consciência. Mas existem fenômenos

Mathiesen,

que

Wolkmer, Pedro Scuro Neto,

experimentamos

que

podem

ser

explicados

pela

teorias

e

como

Nilo

novos

Hulsman,

Batista,

juristas WacQuant,

Zaffaroni,

Pierangeli,

Rui Portanova, são

Quântica, como os relatos denominados “pós-morte”, ou mais

autores que já há algum tempo nos brindam com

comumente a sensação de “dejá-vu”.

perspectivas abolicionistas teorizadas por vários aspectos,

como

a

ineficácia

preventiva

e

restaurativa dos sistemas punitivos, as cifras negras que ocultam a verdadeira violência e instigam a uma visão única sobre a função estatal da punição, a desconsideração da desigualdade social abismal entre os agentes sociais e o verdadeiro descaso com as causas estruturais e sistêmicas dos sistemas produtivos na base da violência, a funcionalidade criminológica

que

as

situações

problemáticas

executam em nome de uma pretensa segurança jurídica, a irracionalidade filosófica da violência punitiva que gera mais violência, quando não alimentada pelos meios midiáticos atuais etc. Se não desejas algo, pensa e transforma-te!


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CORIFEU

Poíesis Luiz Fernando Veríssimo

Crônica de um Amor Louco

- Quando ele era hétero. A Veruska.

-Mãe, vou casar.

- Que Veruska?

- Jura, meu filho?! Estou tão feliz! Quem é a moça?

- Namorada da Bel...

- Não é moça. Vou casar com um moço. O nome dele é

- "Peraí". A ex-namorada do teu atual namorado...É a atual

Murilo.

namorada da tua irmã... que é minha filha também... que se

- Você falou Murilo... ou foi meu cérebro que sofreu um

chama Bel. É isso? Porque eu me perdi um pouco...

pequeno surto psicótico?

- É isso. Pois é... a Veruska doou os óvulos. E nós vamos

- Eu falei Murilo. Por que, mãe? Tá acontecendo alguma

alugar um útero.

coisa?

- De quem?

- Nada, não... Só minha visão que esta um pouco turva. E

- Da Bel.

meu coração, que talvez dê uma parada. No mais, tá tudo

- Logo da Bel?! Quer dizer então... que a Bel vai gerar um

ótimo.

filho teu do Biscoito. Com o teu espermatozoide e com o

- Se você tiver algum problema em relação a isto, melhor

óvulo da namorada dela, que é a Veruska?!?...

falar logo...

- Isso.

- Problema? Problema nenhum. Só pensei que algum dia ia

- Essa criança, de uma certa forma, vai ser tua filha, filha

ter uma nora... Ou isso..

do Biscoito, filha da Veruska e filha da Bel.

- Você vai ter uma nora. Só que uma nora... meio macho.

- Em termos...

Ou um genro meio fêmea. Resumindo: uma nora quase

- A criança vai ter duas mães: Você e o Biscoito. E dois pais:

macho, tendendo a um genro quase fêmea.

a Veruska e a Bel.

- E quando eu vou conhecer o meu... a minha... o Murilo?

- Por aí...

- Pode chamar ele de Biscoito. É o apelido.

- Por outro lado, a Bel..., além de mãe, é tia... ou tio...

- Tá! Biscoito... Já gostei dele. Alguém com esse apelido só

porque é tua irmã.

pode ser uma pessoa bacana. Quando o Biscoito vem aqui?

- Exato. E ano que vem vamos ter um segundo filho. Aí o

- Por que?

Biscoito é que entra com o espermatozoide. Que dessa vez

- Por nada. Só pra eu poder desacordar seu pai com

vai ser gerado no ventre da Veruska... Com o óvulo da Bel.

antecedência.

A gente só vai trocar.

- Você acha que o papai não vai aceitar?

- Só trocar, né? Agora o óvulo vai ser da Bel. E o ventre da

- Claro que vai aceitar! Lógico que vai. Só não sei... se ele

Veruska.

vai sobreviver... Mas isso também é uma bobagem. Ele

- Exato.

morre sabendo que você

- Agora eu entendi ! Agora eu realmente entendi...

achou sua cara-metade. E olha que espetáculo: as duas

- Entendeu o que?

metades com bigode...

- Entendi que é uma espécie de swing dos tempos

- Mãe, que besteira ... hoje em dia ... praticamente todos

modernos !

os meus amigos são gays.

- Que swing, mãe?!!...

- Só espero que tenha sobrado algum que não seja... pra

- É swing, sim! Uma troca de casais... com os óvulos e os

poder apresentar pra tua irmã.

espermatozoides, uma hora no útero de uma, outra hora no

- A Bel já tá namorando.

útero de outra...

- A Bel? Namorando?! Ela não me falou nada... Quem é?

- Mas...

- Uma tal de Veruska.

- Mas uns tomates! Isso é um bacanal de última geração! E

- Como?

pior... com incesto no meio.

- Veruska...

- A Bel e a Veruska só vão ajudar na concepção do nosso

- Ah!, bom! Que susto! Pensei que você tivesse falado

filho, só isso...

Veruska.

- Sei... E quando elas quiserem ter filhos...

- Mãe!!!...

- Nós ajudamos.

- Tá..., tá..., tudo bem... Se vocês são felizes. Só fico triste

- Quer saber? No final das contas não entendi mais nada.

porque não vou ter um neto..

Não entendi quem vai ser mãe de quem, quem vai ser pai

- Por que não? Eu e o Biscoito queremos dois filhos. Eu

de quem, de quem vai ser o útero, o espermatozoide... A

vou doar os espermatozoides. E a ex-namorada do

única coisa que eu entendi é que...

Biscoito vai doar os óvulos.

- Que...

- Ex-namorada? O Biscoito tem ex-namorada?

- Fazer árvore genealógica daqui pra frente... vai ser uma M ---


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Roland Barthes

CORIFEU

ver sofrer as pessoas que se ama, mas ao mesmo tempo, continuo seco, impermeável. Minha identificação

Fragmentos do Discurso Amoroso

é imperfeita. Sou uma Mãe (o outro me preocupa), mas sou

uma

Mãe

insuficiente;

me

agito

demais,

Ascese: 1. Já sou culpado disso, daquilo (tenho em

proporcionalmente à profunda reserva onde de fato me

me dou mil razões de sê-lo), vou me punir, arruinar meu

apoio. Pois, ao mesmo tempo que me identifico

corpo: cortar o cabelo curtinho, esconder meu olhar atrás de

“sinceramente” à infelicidade do outro, o que leio nessa

óculos escuros (maneira de entrar para o convento), me

infelicidade é que ela tem lugar sem mim, e que ao estar

dedicar ao estudo de uma ciência abstrata. Vou me levantar

infeliz por si mesmo, o outro me abandona: se ele sofre

cedo, ainda escuro, para trabalhar, feito um monge. Vou ser

sem que eu seja a causa disso, é que não conto para ele:

muito paciente, um pouco triste, em uma só palavra, digno,

seu sofrimento me anula na medida que ele se constitui

como convém ao homem do ressentimento. Vou marcar

fora de mim.

histericamente meu luto (o luto que suponho) na minha roupa, no corte do meu cabelo, na regularidade dos meus

2. A partir de então, reviravolta: já que o outro

hábitos. Será um retiro doce; apenas esse pouco de retiro

sofre sem mim, por que sofrer no lugar dele? Sua

necessário ao bom funcionamento de um patético discreto.

infelicidade o leva para longe de mim, se eu ficar correndo atrás dele só vou perder o fôlego, sem nunca

2. A ascese (a veleidade da ascese) se dirige ao outro:

poder esperar alcança-lo, coincidir com ele. Afastemo-

volte-se, olhe-me, veja o que você faz de mim. É uma

nos então um pouco, façamos o aprendizado de uma

chantagem: ergo diante do outro a figura do meu próprio

certa distância. Que surja a palavra reprimida que vem

desaparecimento, tal como ela certamente se produzirá, se

aos lábios de todo sujeito que sobreviverá à morte de

ele não ceder (a quê?).

alguém: Vivamos!

como ele mesmo se ressente – o que Schopenhauer chama de

3. Sofrerei portanto com o outro, mas sem me apoiar, sem me perder. A essa conduta, ao mesmo

compaixão e que se poderia mais exatamente chamar de

tempo muito afetiva e muito vigiada, muito amorosa e

união pelo sofrimento, unidade de sofrimento – deveríamos

muito policiada, pode-se dar um nome: é a delicadeza:

odiá-lo quando ele mesmo, como Pascal, se acha odiável”

ela é como a forma “sã” (civilizada, artística) da

(Nietzsche). Se o outro sofre de alucinações, se teme

compaixão. (Atê é a deusa da perdição, mas Platão fala da delicadeza de Atê: seu pé alado, toca levemente.)

Compaixão: 1. “Suponho que ressentimos o outro

enlouquecer, eu mesmo deveria alucinar, eu mesmo deveria ficar louco. Ora, qualquer que seja a força do amor, isso não se produz: eu fico emocionado, angustiado, porque é horrível

Revista

CORIFEU

– Uma Perspectiva do

Direito São Paulo – Capital revistacorifeu.nej@gmail.com Produção editorial voluntária Editoração: José Manuel Sacadura Eneida G Cabrera Distribuição Interna Firmes nos propósitos e ideários educacionais, somos a favor do humanismo em todas as suas formas e temos como objetivo existencial maior resgatar a dignidade, o comportamento ético e a cidadania de nosso povo, e de todos os povos dominados e explorados, sem, contudo, descorar da sublime liberdade de cada um para se encontrar a si mesmo.


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