Jornal Resistência – Julho 2020

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Publicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Ano 43. JULHO/2020

Esse vírus não foi deus que mandou pra nós, na nossa visão, dos nossos pajés, foi feito pelos cientistas,

governo Daydu (Daydu é tatu

para povo Munduruku e na cosmologia Munduruku é um trapaceiro, o que engana), pra nos matar, os indígenas Munduruku

Leuza Cosme Kaba Munduruku

Foto Amanda Rabelo

Foto Akira Onuma

Foto Cristivan Alves

Quilombos no combate ao novo coronavírus. Pag. 9.

Padre Bruno Sechi: uma vida de generosidade . Pag. 10.

Carimbó toca os tambores da solidariedade. Pag. 12.


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Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Ano 43 JULHO/2020

Editorial

O

ano de 2020 marcará irreparavelmente a história da humanidade, em razão da maior pandemia dos últimos 100 anos onde a população mundial experimenta um alto nível de mortalidade. Essa catástrofe traz consigo a revelação ou põe em questionamento os princípios do sistema socioeconômico e político neoliberal, posto que verifica-se que as respostas neoliberais à crise provocada pelo chamado “coronavírus” mostram-se evidentemente insuficientes. O que tem se revelado é que valores como as políticas de acesso universal e voltadas para as populações mais vulneráveis devem ser vetor primeiro do Estado, desde o entendimento que o cuidado individual também traz consigo o cuidado coletivo. Pois, com esta infecção de altíssima taxa de contágio, é necessário que todos e todas tenham acesso às medias profiláticas e de atendimento do sistema de seguridade. Entretanto, aqui no Brasil, em meio a um governo de fortes características neofascista as vísceras desse sistema marcado pela desumanização, a pandemia provocou forte fissuras deixando evidente as limitações políticas de seu projeto, que é extremamente excludente e contrários aos mais altos princípios civilizatórios trazidos com a evolução dos direitos humanos. E nesse quadro de crise que traz em seu escopo suas contradições, se vê surgir movimentos de resistência a exemplo do antirracismo nos Estados Unidos e antifascista no Brasil, os quais trazem denúncias do racismo estrutural e os dispositivos eugenistas deixando evidente histórico processo excludente que vem a humanidade. Para além disso se vê uma reorientação das organizações sociais fortalecendo cada vez mais o discurso da solidariedade e a importância do fortalecimento dos laços comunitários como princípio norteador e necessário para preservação da humanidade. Dentro dessa perspectiva a SDDH vem atuando na busca do enfrentamento das violações de direitos humanos e fortalecimentos dos laços comunitários dentro dos territórios quem vêm historicamente e sistematicamente sofrendo ataques por meio de uma verdadeira necropolítica e cobiça de uma elite tacanha que não consegue ver o outro como sujeito de direitos. Nesta edição do Jornal Resistência nossa rede de defensores e defensoras abordam temas com reflexões e iniciativas diante dos desafios na luta contra o desmatamento na amazônia, da mineração, da violência contra as mulheres, da situação dos encarcerados/as no Pará, indígenas, quilombolas, ataque aos jornalistas, aos ativistas do rock além da luta da/os mestres e mestras de carimbó. Apresentamos a campanha de solidariedade e nossa homenagem ao querido Padre Bruno Sechi e nossos sentimentos de pesar pelas vítimas da pandemia da covid-19 e do genocídio do governo Bolsonaro.

Expediente O Jornal Resistência é uma publicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH).

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Defender a vida é nossa tarefa prioritária! Por Max Costa Coordenador da UNIPOP

A

pandemia da Covid-19 expressa uma tragédia sem precedentes no Brasil, que até o mês de junho já totalizava cerca de 60 mil óbitos e quase 1,5 milhão de pessoas contaminadas. Por trás destes números estão vidas interrompidas, histórias paralisadas, famílias destruídas, mas sobretudo o genocídio enquanto política pública. O desencontro de informações, a ausência de estrutura mínima de atendimento na rede de saúde pública e o despreparo de quem deveria liderar o enfrentamento à pandemia mostram que o desprezo pelas vidas foi uma política deliberada do governo federal, cuja preocupação exclusiva era salvar a economia, que já estava debilitada muito antes do Coronavírus, e ao que tudo indica, seguirá em crise, com prognósticos de queda de 10% no PIB neste ano e podendo chegar a 30 milhões de desempregados no Brasil. O genocídio estimulado pelo governo federal tem classe, cor e endereço. São os pobres, negros e negras e moradores de periferia que, em sua maioria, se contaminaram nos transportes públicos lotados indo em direção ao trabalho que não podia parar; se aglomeraram nas filas das agências da Caixa e de lotéricas para receber o Auxílio-emergencial que vivia em uma eterna análise; peregrinaram em busca de leitos de hospitais ou de UTIs cada vez mais ínfimos; e morreram na portas de unidades de saúde fechadas por conta de uma sistema que colapsou e não teve condições mínimas de enfrentamento à Covid-19. É certo que o novo Coronavírus é de extrema gravidade e o sistema de saúde não estava preparado para atender a demanda. Porém, as políticas de austeridade adotadas pelos últimos governos, e que se intensificaram a partir da Emenda Constitucional 95 em 2016, agravaram o caos na saúde. Inúmeras foram as vezes

Coordenação Executiva: Marco Apolo Santana Leão - Coordenação Geral Eliana Fonseca - Coordenação de Administração e Finanças Antônia Salgado - Coordenação de Comunicação Fátima Matos e Domingos Conceição - Coordenação de Formação José Weyl (Caeté) – Coordenação de Secretaria

Jornal Resistência

Endereço: Rua 25 de Junho, nº 2015-A, Guamá Belém - Pará - Amazônia - Brasil Fone: +55 (91) 3241-1518

Diagramação: Josi Mendes

Realização

Apoio Institucional

que os profissionais de saúde sequer possuíam Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para trabalhar. Respiradores e leitos em UTI viraram loteria. Isso sem contar a ausência de médicos e medicamentos nos municípios Brasil a fora, em que o poder público, por práticas corruptas, não deu a destinação devida aos recursos da saúde, como no Pará, onde o governo do Estado segue sendo investigado por denúncias de corrupção envolvendo a aquisição de materiais para o combate à pandemia. Mas enquanto as famílias brasileiras sofrem com a pandemia, a preocupação maior de Bolsonaro é salvar os filhos da prisão, e apoiado em setores fascistas, nas bases mais atrasadas do militarismo e nos segmentos retrógrados do neopentecostalismo, ameaça a democracia para calar as críticas e continuar governando para proteger a família e os mercados. Assim, em meio à tragédia da pandemia, a crise institucional a que o Brasil está envolvido só se agrava com as investigações sobre o financiamento de fakenews, com o inquérito sobre a convocação dos atos de extrema-direita e ameaças ao STF, e mais recentemente, com a prisão de Queiroz, operador da rachadinha e dos esquemas criminosos da família Bolsonaro, segundo o Ministério Público. Neste cenário, a defesa da vida deve estar na ordem do dia e ser a tarefa prioritária dos movimentos sociais. Defender a vida perpassa, sobretudo, por: a) exigir o impeachment e a imediata saída de Bolsonaro da Presidência da República; b) lutar por mais investimentos no SUS, pela revogação da EC 95 e pela valorização dos trabalhadores da saúde; c) cobrar uma renda básica permanente e a taxação das grandes fortunas; d) defender a ciência, a tecnologia e o conhecimento produzido pelas universidades para enfrentar a pandemia e salvar vidas.

Direção Geral: Marco Apolo Santana Leão Editoras: Viviane Brigida e Erika Morhy Jornalistas responsáveis: Viviane Brígida (DRT-PA 2661) e Erika Morhy (DRT-PA 1325) Edição de fotografia: Dioclecio Gomes Colaboração: Rede de Comunicadores e Comunicadoras por Direitos Humanos no Pará

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Mulheres são as mais afetadas pela pandemia do novo coronavírus Por Carol Pombo

A

crise social, econômica e sanitária provocada pelo novo coronavírus expôs ainda mais as desigualdades de gênero, de raça e de classe que as mulheres enfrentam todos os dias. Embora o confinamento domiciliar seja a medida mais eficaz para evitar a transmissão da doença, atingiu em cheio o emprego e a renda de milhares de mulheres que, historicamente, ocupam posições menos favoráveis no mercado de trabalho. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no primeiro trimestre do ano, a taxa de desemprego das mulheres foi 34,9% superior a dos homens. As demissões ocorreram principalmente porque os postos de trabalho das atividades consideradas essenciais, como indústria, segurança e transporte, são majoritariamente masculinos. A exceção é a área de assistência à saúde. Dados recentes do “Atlas do Estado Brasileiro”, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), demonstram que elas são maioria absoluta no setor público e privado, estão na linha de frente do combate ao vírus e também mais expostas ao risco de contaminação. A enfermeira Marcella Pantoja, que passa o dia inteiro numa UTI com pacientes infectados, afirma que a maior presença de mulheres na saúde não garante igualdade de renda e destacou que “podemos ter a mesma carga horária exaustiva, o mesmo número de plantões, o mesmo tempo de prática, a mesma qualificação. A nossa remuneração é sempre menor que a dos homens”. Entretanto, são as trabalhadoras informais as mais vulneráveis em meio à pandemia. Muitas domésticas e diaristas, a maioria negras, pobres e sem carteira assinada, foram dispensadas com pouca ou nenhuma remuneração e ainda enfrentam dificuldades para receber o auxílio emergencial do governo. Mas há também aquelas que não foram liberadas de suas funções, independente de pertencerem a grupos de risco ou não, e são obrigadas a conviver com o temor de pegar coronavírus, seja nos transportes coletivos ou na própria casa dos empregadores. Alguns estados, como o Pará, Maranhão e Rio Grande do Sul, chegaram a publicar decretos que incluíam o serviço doméstico como atividade essencial e só recuaram da decisão após a repercussão negativa nas redes sociais.

semprego, as mulheres dedicam praticamente o dobro do tempo aos cuidados com a casa, quando comparado aos homens. A pesquisa também indica que os homens estão mais ativos dentro de casa, mas em tarefas mais leves, como dar atenção aos filhos, executar pequenos reparos e fazer companhia. “Isso porque o serviço doméstico ainda é visto essencialmente como uma atribuição feminina. É um trabalho diário, não remunerado e pouco valorizado, que pesa muito sobre as mulheres”, disse a sindicalista Tatiana Oliveira. Violência Outro fator preocupante é o aumento da violência doméstica e do abuso sexual. O regime de isolamento obriga as mulheres a passar mais tempo dentro de casa junto com os seus agressores, em uma convivência forçada, e muitas vezes não conseguem sair para pedir ajuda, o que reduz drasticamente a possibilidade de denunciar. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) produziu um relatório, a partir de dados oficiais coletados junto as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social e Tribunais de Justiça relativos à violência doméstica, e constatou que, no Pará, ocorreu uma queda de 13,2% no registro de boletins de ocorrência em março de 2020, quando comparado com o mesmo período do ano anterior.

Vale lembrar que as mulheres já são chefes de famílias em quase metade dos domicílios brasileiros. Segundo o IBGE, o número cresce a cada ano e já chega a 34,4 milhões, sendo que boa parte delas está nas classes mais baixas da população e ganha menos que os homens. Nessa conjuntura, a saúde fica em segundo lugar. A preocupação básica é manter o emprego para prover o sustento da casa e colocar comida na mesa.

Para interromper a escalada das violações à integridade física e aos direitos das vítimas, a bancada feminina do Congresso, conseguiu a aprovação do PL 1.291/2020, que tornou essenciais os serviços e atividades públicas de atendimento (social, psicológico e jurídico) a qualquer tipo de ameaça à vida das mulheres, todos previstos na Lei Maria da Penha.

Sobrecarga de trabalho

PenhaS Oferece apoio para mulheres em relacionamentos abusivos. Nele, mulheres (em situação de violência ou não) podem ter acesso a: informação, diálogo sigiloso, apoio, rede de acolhimento e botão de pânico.

Com as famílias em casa em período integral, a manutenção da vida doméstica recaiu ainda mais nas costas das mulheres. Em muitos lares, são elas que executam as tarefas rotineiras, repetitivas e desgastantes de cozinhar, lavar, passar e limpar, além de alimentar, vestir, dar banho e auxiliar nos estudos das crianças, devido à suspensão das aulas presenciais nas escolas e creches. As atividades são ainda mais intensas para aquelas que têm um emprego, formal ou informal, possível de ser executado remotamente. Agora elas realizam jornadas simultâneas: desempenham as funções domésticas e profissionais ao mesmo tempo, sem hora pra começar nem terminar. Conforme a PNAD, a jornada semanal das mulheres dura em média 3,1 horas a mais do que a dos homens nas mesmas condições. Em situação de de-

Aplicativos gratuitos de denúncias

Mete a Colher Conecta mulheres que oferecem e recebem ajuda, como apoio psicológico, orientação jurídica ou inserção no mercado de trabalho, para enfrentar um relacionamento abusivo e romper o ciclo de violência doméstica. Tudo de forma anônima.

ISA.bot É uma robô virtual que dá orientações tanto para mulheres vítimas de violência doméstica quanto para pessoas que estejam ao redor delas e possam ajudar. Para ativá-la, basta ir ao Messenger da página Isa.Bot, no Facebook. Me Respeita! Permite alertar outras usuárias sobre a ocorrência de assédios sexuais ou psicológicos em determinados locais e horários.

Onde procurar ajuda Disque Denúncia 180 ou 181 Parápaz Belém (91) 98503-3025 Parápaz Bragança (91) 93245-4952 Delegacia da Mulher Belém (91) 3246-6803 / 985125297 / 98515-8168 / 989151888 Delegacia da Mulher Ananindeua (91) 98435-2596 / 985116840 / 98510-5609 Núcleo Mulher do Ministério Público Estadual (91) 98802-4071 Núcleo Mulher da Defensoria Pública Estadual (91) 99172-6296 / 981545300 Tribunal de Justiça do Estado do Pará (91) 3205-2123 / 3205-2124 / 3205-2208 / 9126-3949 Delegacia Virtual do Pará www.delegaciavirtual.pa.gov.br Atendimento Biopsicossocial para Vítimas de Violência Doméstica e Familiar (91) 98503-3025 Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (91) 99126-3949 Linha Direta sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos (81) 98580-7506


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Foto Mídia NINJA

Mineração não é essencial. A vida, sim! Por Fabiano de Oliveira Bringel Coordenação Estadual do MAM/Pará

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odos vivemos um período da história extremamente difícil. Nesta pandemia, o Brasil se torna vanguarda mundial de mortes diárias pelo novo coronavírus. Vidas perdidas, empregos sumindo, deterioração das condições mínimas de trabalho, aumento do desmatamento em todos os biomas nacionais e crescimento do fascismo em escala mundial. Todos os requintes de crueldade de uma grande crise no interior do modo de produção capitalista. Contudo, dois indicadores saltam os olhos neste início de quadra junina confinada: a maior mineradora do mundo, a Vale, fechou seu primeiro trimestre no ano de 2020 com um faturamento na ordem de 1 bilhão de reais. Outro sintoma: uma das maiores indústrias automobilísticas do mundo, a Porsche, bateu recordes de venda de carros de luxo neste semestre de pandemia no Brasil. Foram 264 unidades em território nacional. O número pode parecer baixo, mas foi o período que a fábrica mais vendeu em todo território nacional, desde sua implantação, cinco anos atrás. Desses automóveis, o esportivo 911, veículo cuja versão mais barata é o Carrera cujo valor não sai por menos de R$ 519,00 (quinhentos e dezenove mil reais), foram vendidos 62 exemplares só no mês de maio. Nos perguntamos, então, que crise é essa? Muitas “lives” estão sendo realizadas para tentar responder essa pergunta em meio ao distanciamento social. Alguns dizem que é uma crise do capitalismo, outros argumentam que a crise é humanitária. De uma forma ou de outra, para que possamos entender a expansão dos lucros da Vale e da Porsche no Brasil, precisamos discutir a mineração neste país. Esta atividade econômica não parou, apesar dos números altíssimos de contaminação e morte nos municípios mineradores. Para termos uma ideia, depois da capital do Pará, Parauapebas, território do Programa Ferro Carajás – PFC, ostenta a segunda colocação com número de casos de Covid-19 no Estado com mais de 5 mil casos para uma população de pouco mais 200 mil pessoas. Temos aglomerações de trabalhadores da mineração, ao longo do Programa Grande Carajás, em alojamentos amontoados com 1.500 a 2.000 operários. É um verdadeiro crime que a indústria mineradora comete aos olhos do Estado e da sociedade civil. Números que podemos inferir claramente como um genocídio e

um terricídio nas regiões de mineração na Amazônia e no Brasil. Existe, então, uma lógica perversa implantada a partir de um projeto moderno colonial. Sobre isso nos fala Alberto Acosta de um determinado “Paradoxo da abundância” ou “Maldição dos recursos naturais” para nos explicar sobre a estranheza de possuir tanto acúmulo de matéria e energia, de fonte de recursos que seriam abundantes e que poderiam ser usados em benefício de excelente qualidade de vida para aqueles que vivem em suas proximidades. No entanto, o paradoxo se estabelece e o que era fonte de riqueza se torna sinônimo de maldição, de morte e intensificação da degradação da existência física e espiritual do povo que vive no entorno das áreas mineradas. A tarefa dos Movimentos Sociais, em especial, a do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração - MAM é importantíssima neste contexto. Dialogando com os trabalhadores da mineração e com camponeses e povos tradicionais no entorno das áreas mineradas, propomos a construção de mecanismos de controle popular frente ao capital minerário. Primeiramente, democratizando o acesso ao CFEM (Compensação Financeira para Exploração dos Recursos Minerais). Discutir em quê e quanto iremos aplicar desses recursos, incluindo áreas sociais como educação e, em especial, a saúde que, com a pandemia, vimos o quanto é importante valorizar o SUS (Sistema Único de Saúde). Principalmente na ponta do processo que são os municípios. Além disso, é preciso organizar lutas em todo território nacional pelo fim da Lei Kandir que isenta de impostos as empresas nos estados onde se têm minas de exploração. Duas grandes tarefas iniciais para começarmos a barrar esse projeto de morte do neoextrativismo no Brasil e na Amazônia. Fora isso, apostar na formação de nosso povo. Discutir muito os vetores fundacionais de nosso continente latino americano se opondo ao desenvolvimento e a sua lógica de extração linear de nossos bens naturais. Tudo isso para que um dia entendamos que nem os minérios e nem os automóveis, como os Porsches da vida, se come, se bebe e se respira. Por um país soberano e sério! Contra o saque de nossos minérios!


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A fragilidade do sistema penal diante da pandemia de coronavírus 2,000,000

1,800,000

1,726,379

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1,400,000

1,200,000

1,000,000

931,425

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Por Coordenação Carcerária da SDDH

508,703

400,000

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O

340,652 280,282 167,546 129,260

385,828 309,310 254,957

349,620

282,596

5,860

0 Consultas médicas realizadas externamente

Estado brasileiro estabeleceu um modelo de desenvolvimento focado no crescimento econômico excludente e violador dos direitos humanos. O modelo econômico neo desenvolvimentista em curso prioriza ganhos a curto prazo nos índices macroeconômicos e promove impactos no acesso a direitos à grande parte da população brasileira.

Consultas médicas realizadas no estabelecimento

Consultas psicológicas

Consultas odontológicas

Quantidade de exames e testagem

42,455

Quantidade de intervenções cirúrgicas

Quantidade de vacinas

Quantidade de outros procedimentos, como sutura e curativo

E se pensarmos que fora esse número de possíveis atendimentos e as doenças já presentes no sistema penitenciário temos o agravamento da covid-19 que também é transmissível. Estamos em frente ao colapso já declarado. Senão vejamos o gráfico a A Amazônia é marcada por violações históricas e estruturais de direitos humanos, e registra seguir: elevados índices de violência, tortura no cárcere, conflitos e degradação ambiental, cenários ad- Quantidade de pessoas com agravos transmissíveis vindos da colonização e de um estado ditatorial. Dito isto, estamos em frente a uma luta diária da advocacia pela garantia de Direitos fundamentais que se agravou com a chegada do novo coronavírus. Junho 2019

Dezembro 2019

10,000.00

9,113.00

9,000.00

8,688.00

8,523.00

O advogado busca resguardar a vida, a liberdade entre outros direitos. As medidas de enfrentamento à Covid-19 na população carcerária se fez de forma imediata com a suspensão de visitas familiares, em casos determinou-se o cumprimento da pena em regime de prisão domiciliar de gestantes, lactantes, mães ou responsável por criança até 12 anos ou pessoa com deficiência, idosos maiores de 70 anos e demais presos com doenças graves que demandem tratamento que não possa ser prestado nas unidades prisionais. Além da determinação de análise o levantamento de processos de pessoas que progredirão de regime até 30 de junho, e análise de processos de presos provisórios que não sejam acusados de crimes que envolvam violência ou grave ameaça.

8,000.00

7,742.00 6,920.00

7,000.00

5,949.00

6,000.00

4,927.00

5,000.00

4,156.00 4,000.00 3,030.00 2,748.00

3,000.00

2,000.00

1,000.00

Conforme os dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) a Covid-19 levou 42 dias para chegar ao sistema carcerário brasileiro. No dia 09 de abril de 2020, o Depen anunciou o primeiro caso de detento com a doença, no Centro de Progressão Penitenciária do Fonte: Infopen/Desembro 2019 Pará, em Belém. Neste sistema prisional que opera em Estado Inconstitucional de coisas, segundo o Supremo Tribunal Federal o maior risco está no próprio sistema, que não reconhece sua precariedade. Quando se pensa numa pandemia, a fragilidade do sistema peEm 09 de abril de 2020 foi publicado o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias nal salta aos olhos e, levando em consideração o grande déficit (Infopen) de dezembro de 2019. Observamos que a população prisional no Brasil é de 748.009, de vagas existente no sistema, não há outra alternativa senão excluindo presos em delegacias. O total é de 755.274, o déficit de vagas era 312.925. No entan- iniciar uma política de desencarceramento. Se não promoverto, em 13 de abril de 2020, conforme dados do Depen, existiam 115 suspeitas de Covid-19, 03 mos debates a respeito desta medida, corremos o risco de testemunhar um verdadeiro genocídio em nossas prisões nos confirmações e zero óbitos. próximos meses. A solução, na atual circunstância, é o desenEssa superlotação e a falta de estrutura são aspectos claros do risco de contágio do novo corocarceramento. O cumprimento da recomendação 62 do Consenavírus no sistema prisional antes mesmo da pandemia. Em 2019, a Secretaria de Estado de lho Nacional de Justiça é essencial. Caso contrário, presenciareAdministração Penitenciária (SEAP) afirmava que o “número de presos no Pará é o dobro do total mos um colapso no sistema prisional e no sistema de saúde de de vagas nas unidades prisionais”. uma forma geral. A recomendação dada pela OMS/ONU é o implemento do isolamento social. E quando observamos o sistema prisional brasileiro sabemos que é uma medida impossível dados os índices de superlotação, o que resulta na aglomeração de presos em celas, com pouca ou nenhuma ventilação, sem iluminação e sem mínimas condições sanitárias. 0.00

HIV

Sífilis

Hepatite

Junho 2019

De acordo com o relatório fornecido pelo Depen, de dezembro de 2019, apenas 62% dos estabelecimentos penitenciários possuíam consultório médico e 54% dispunham de farmácia ou sala de estoque/ dispensação de medicamentos. Gráfico dos tipos de procedimentos 2,000,000

1,800,000

1,726,379

1,600,000

Outros

BIBLIOGRAFIA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). A CIDH urge os Estados a garantir a saúde e a integridade das pessoas privadas de liberdade e de suas famílias diante da pandemia da COVID-19. Disponível em: http:// www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2020/066.asp. Acesso em: 06 jun. 2020. TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

1,400,000

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1,000,000

931,425

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508,703

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Tuberculose

Dezembro 2019

340,652 280,282 167,546 129,260

385,828 309,310 254,957

349,620

282,596

5,860

0 Consultas médicas realizadas externamente

Consultas médicas realizadas no estabelecimento

Consultas psicológicas

Consultas odontológicas Junho 2019

Fonte: Infopen/Desembro 2019

Quantidade de exames e testagem Dezembro 2019

42,455

Quantidade de intervenções cirúrgicas

Quantidade de vacinas

Quantidade de outros procedimentos, como sutura e curativo

Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de dezembro de 2019. Disponível em: http://depen.gov. br/DEPEN/depen-lanca-infopen-com-dados-de-dezembro-de-2019. Acesso em: 06 jun. 2020. Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado (SUSIPE). O número de presos no Pará alcança o dobro do número de vagas existentes nas unidades prisionais. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/03/09/numero-de-presos-no-para-e-o-dobro-do-total-de-vagas-nas-unidades-prisionais-diz-susipe. ghtml. Acesso em: 06 jun. 2020.


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Um índio descerá de uma estrela O tom apocalíptico da música Um Índio, de Caetano Veloso, é de uma atualidade desconcertante em 2020, apesar de seu lançamento ter sido em 1977. Os povos indígenas têm sido sistematicamente atacados pelos não indígenas ao longo da história do Brasil, a despeito de seus direitos como povos originários e de seus impagáveis serviços pela manutenção da vida na Terra. Mas o bolsonarismo tem estirado os finos marcos civilizatórios ainda existentes no país. Tem conseguido “passar a boiada”, como se ouviu na voz do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Tem assegurado o pacote de maldades econômicas do ministro Paulo Guedes; a satisfação do ódio do então ministro da Educação, Abrahan Weintraub; o autoritarismo religioso da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. No relato que segue, Luah Sampaio descreve sua experiência junto a comunidades Munduruku, no Pará, durante o alastramento do novo coronavírus. Por Luah Sampaio

E

um sistema

Portanto, antes de tudo, reverenciemos aos mais velhos, sabedores, anciões, guardiões da memória e que nos deixaram. O triste trabalho de contabilizar perdas de pessoas tão importantes para todo o povo Munduruku, perdas irreparáveis para a manutenção do povo e manutenção de sua cultura, suas políticas. Para reverenciar, manter sua presença viva, saúdo Jerônimo Manhuary (86 anos); Angélico Yori (76 anos); Raimundo Dace (70 anos); Vicente Saw (71 anos); Amâncio Ikõ (60 anos), Acelino Dace (77 anos), Benedito Karo (70 anos) e Martinho Boro Munduruku (77 anos) e Bernardo Akay. E ainda, faleceu em Altamira, Francidalva Saw.

Foto Secretária Associação Wakoborun

screvo esse prólogo ao findar de uma semana amazônica de tristeza. Aqui do baixo Tapajós, de onde falo, o luto se estende pelos rios, pelas comunidades, aldeias e cidades, assim como pelos outros rios que formam o Amazonas, a floresta saqueada, sentindo o passar da boiada anualmente mais sangrenta, como disse o ministro do meio ambiente, e com o povo doente, assolado pela covid-19. “Aqui em casa todos os adultos ficaram doentes velha”, disse uma amiga do alto Tapajós. A tristeza percorre por cima das cachoeiras e chega nas cidades de Itaituba e Jacareacanga no final da rodovia transamazônica, no estado do Pará. No alto e médio Tapajós, onde se encontra a maior parte de terras indígenas do povo Munduruku demarcadas e em processo de autodemarcação, as mensagens que recebíamos, todas as manhãs, nessa semana, todos os dias, nas redes de whatsapp dos grupos era: “Perdemos mais um parente do povo Munduruku”.

se não conseguisse chegar mesmo nos Territórios de dominação com os mesmos termos da ditadura, Indígenas do povo Munduruku, ultrapassar as ou seja, o problema é histórico e colonial. A partir de dados do projeto Prodes, do Instituto Nacional cachoeiras famosas do rio Tapajós. O novo coronavírus chegou silencioso, como um de Pesquisas Espaciais-INPE, a terra Indígena susto, foi o que sentimos nestas últimas semana Munduruku no Alto Tapajós foi reconhecida, em 2018 de maio. Em menos de dez dias o povo Munduruku e 2019, como a sexta mais desmatada do Brasil. contabilizou dez mortes de parentes. A situação é Sabemos que esse desmatamento se dá por conta de emergência e de provável contato comunitário, do garimpo ilegal na região que está em profundo por terem duas mortes em uma aldeia, mas a crescimento, aproveitando o “bom momento” político confirmação é improvável no momento. Os testes, em para se intensificar e expandir, atualmente utilizando falta em todo Brasil, especialmente na região norte, grandes máquinas e constante degradação e os que chegam são testes sorológicos que não têm ambiental não retornável. Em meio ao caos, ainda a mesma, faltam médicos e UTIS e os números são com a necessidade de resistir. Em toda Amazônia contrastantes demais em comparação com o que os indígenas que guerreavam contra garimpeiros, se vê de doentes e de mortos em vários contextos madeireiros, grileiros e contra as políticas racistas amazônicos. Há subnotificação em termos absurdos. O do estado brasileiro, tiveram que recuar, se isolar e governo ultra direitista e popular assiste sem máscara assim além do vírus, está explodindo a exploração e inerte; tem as mãos sujas com tantas mortes. No das terras que como “tratores” chegam esmagando último dia 10 de junho, em declaração sobre o plano os povos e querendo retirar o que é seu de direito, de contingência para os povos indígenas, apresenta a terra. O marco temporal, suspenso pelo Ministro números mentirosos e ainda culpabiliza o clima da Eduardo Fachin, no último 7 de maio, é outro nome região norte pelo agravamento do quadro. A Fiocruz dado para a contínua violação dos direitos indígenas.

Manifestos foram elaborados pelo movimento Munduruku ipereg ayu onde relembram que perder um ancião: “É como perder uma biblioteca que ensinava a todos”. E também manifesto da associação Pariri, que se posiciona politicamente pela ineficiência da saúde indígena quando diz: “O descaso do Governo com a saúde pública e a precariedade de atendimento na saúde indígena não são por acaso. Todos os que sempre se omitiram e ignoraram nossas reivindicações pela saúde e os que agora se omitem diante dessa situação emergencial e descontrolada nos apresenta que a população mais massacrada são responsáveis”. Os manifestos podem ser lidos na com esse vírus são os povos indígenas, termo esse íntegra no site da associação Pariri. que o atual ministro da educação mencionou sentir Dois anos atrás, após viver muitos momentos ódio, na reunião ministerial do dia 22 de abril, ao que com o povo, em seus movimentos educativos e de parece toda a tragédia está sendo comemorado por resistência, fomos convidadas pelo grupo de mulheres representantes genocidas. precursoras da associação de mulheres Munduruku Soa assustador pensar nas regras minuciosas para Wakoborun para colaborarmos em questões higiene pessoal, que provavelmente não estão técnicas sobre projetos e comunicação. São muitos sendo aplicadas nas comunidades. Reconhecendo o desafios, com os cenários do “desenvolvimento” da contexto amazônico que vivemos, os diversos saques região, mas as mulheres guerreiras relembram seu de matéria prima, onde nem um tributo é direcionado passado, as organizações dos antepassados, e estão para a renda da população, trazendo com isso um construindo história e alianças. Mas em nenhum caos nos aspectos sociais geográficos e sanitários, momento imaginaríamos uma situação como esta em relação a quarentena percebemos nitidamente que estamos vivendo agora, tínhamos um ano dificuldades estruturais para poder acontecer. O planejado e uma assembleia que nesse momento Brasil não é Europa e a região norte não é a região estaria quase acontecendo. No final de março, início sudeste. Enfrentamos na pele a desestruturação e de quarentena, sentíamos o vírus distante, como

É como perder uma biblioteca que ensinava a todos

As autoras Bruna Rocha e Rosamaria Loures tratam destes aspectos sociais e políticos da região do alto e médio rio Tapajós em artigo no jornal El Pais [03.06.2020] e em artigo ainda prestes a ser lançado. Elas relacionam a intensificação de doenças virais ao povo Munduruku com a degradação dos rios e florestas, fazendo um panorama histórico de como estas impactam os povos indígenas em especial


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colorida e brilhante...

o povo Munduruku. As mulheres da Wakoborun reunindo informações e dores, preocupadas com seus filhos e os anciões, caciques e cacicas, vêm procurando novas formas de difundir informação e conhecimento mesmo em momentos difíceis. Está travando alianças com o povo exigindo um plano de ação em relação ao vírus, lutando em conjunto por mais leitos de UTI, equipamentos de hospital de campanha para as aldeias, profissionais preparados e ainda procurando meios de colaboração da alimentação para que as comunidades não precisem ir às cidades, em busca de cestas básicas e materiais de roça e pesca. Construíram cartazes e informativos bilingues e ouviram os pajés que já decidiram: “Precisamos usar medicina nossa tradicional e comer comida tradicional; a comida do pariwat está nos envenenando”. No começo de junho, as associações Wakoborun e Pariri lançam a campanha Povo Munduruku contra covid-19, onde os objetivos são a real ativação do plano de contingência assinado por grande parcela do povo, exigindo mais leitos de UTI, recursos para cada polo base para que o indígena não seja levado para cidade. Para saber mais como ajudar, siga a associação Pariri e Wakoborun nas mídias sociais. O presidente Bolsonaro e todos os que estão compactuando com a morte dos povos indígenas por falta de verba e equipamento suficiente são também responsáveis por essa morte. Portanto, mais um capítulo de genocídio entre povos. Helder, os povos indígenas no Pará precisam de mais leitos de UTI! #vidasindigenasimportam e muito. Em luto com o povo Munduruku! ENTREVISTA A associação de mulheres Munduruku Wakoborun - que trabalha com a luta pela soberania alimentar do povo Munduruku, o bem viver e a proteção dos territórios - tem como coordenadora a grande liderança Leuza Cosme Kaba Munduruku, além de uma diretoria de doze mulheres dos rios Cururu, Rio das Tropas e Tapajós no Alto Tapajós. A Assembleia das Mulheres Munduruku Wakoborun aconteceria no início de julho e infelizmente continua sem data marcada. Como assessoras em comunicação e projetos, Rosamaria Loures e Luah Sampaio. É com Leuza Munduruku a entrevista que segue.

Conta para gente sobre você, o que está sentindo agora? Primeiramente, quero agradecer a deus, ele que dá à luz dia e noite pra nós, ele me dá sabedoria também. Meu nome é Leuza Cosme Kaba Munduruku. A minha profissão é técnico de enfermagem, formada, e também tenho a função de coordenadora da associação de mulheres Munduruku do Alto Tapajós. O momento que nós estamos vivendo, as mulheres, tantos homens quanto as crianças, guerreiros, caciques e cacicas, pajés, o que eu entendo nesse momento dentro da pandemia, ficamos mudo, né? Como se fosse paralisados, isolados na suas aldeias e que ninguém pode mais sair pra onde eles quiserem ir, não pode mais sair das suas aldeias, das comunidades, isolados, não se pode mais fazer nossas atividades que estava planejado pra esse ano 2020, com projetos que foram aprovados nas aldeias. O que acha sobre esse momento? Esse vírus não foi deus que mandou pra nós, na nossa visão, dos nossos pajés, foi feito pelos cientistas, governo, governo Daydu (Daydu é tatu para povo Munduruku e na cosmologia Munduruku é um trapaceiro, o que engana), pra nos matar, os indígenas Munduruku. Foi feito na China passou para o Brasil, passou pro Pará, do Pará entrou nas aldeias. Isso foi feito pra isso mesmo, pro governo tomar o nosso território. Porque de qualquer maneira ele quer tomar o nosso território Mundurukania, porque ele ainda não conseguiu. Primeiro ele criou as leias, hidrovias, barragem, ferrovias, ele já trouxe, já tem as leis aprovadas para ser aplicada no território, e outros empreendimentos, mas nós não calamos, sempre estamos na luta e sempre vamos vencer. Mas a gente não calamos. Mas a gente não vamos calar, mesmo que não pode fazer manifestação na cidade, nós temos redes sociais pra isso.

Qual sua fala para os parentes? Então nossa fala pra comunidade para os meus parentes Munduruku é o que sempre falamos, não nos calamos, sempre falamos mesmo estando isolados. Estamos aqui, né? A associação Wakoborun foi criado pra isso, pra ajudar nosso povo na Mundurukania, enquanto eles não podem, estamos aqui, e estamos a procura, procurando apoio pra nossa comunidade de todos os meios possíveis. Esse é meu conhecimento que tô passando pra vocês.

Adeus, Guardiões da memória Acelino Dace Amâncio Ikõ Angélico Yori Benedito Karo Bernardo Akay Francidalva Saw Jerônimo Manhuary Martinho Boro Munduruku Raimundo Dace Vicente Saw Acompanhe pela internet: www.aipariri.com.br Associação Indígena Pariri - Munduruku, Médio Tapajós @associacaowakoborun


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DESMATAMENTO E PANDEMIA: o que o Conselho Nacional da Amazônia está fazendo contra você Por Marcela Vecchione Professora Doutora do NAEA-UFPA e membro do Grupo Carta de Belém

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ias de fogo, pandemia e caos nos serviços públicos. Das endemias, que não são tão de dentro assim, à devastação e morte das florestas e de suas gentes, a história da(s) Amazônia(s), o período de contato espoliativo, que aqui se perpetra, tem sido de violência, de produção e reprodução de desigualdades abissais que se sobrepõem à imensa variedade e diversidade de vida e formas de viver, bem conhecida como sociobiodiversidade. Em tempos de Coronavírus, a violência, provocada por experiência colonial contínua e violenta, não tem sido distinta. Na verdade, sobreposições violentas aos modos de vida amazônicos na pandemia acabam sendo uma radiografia aumentada e potencializada de problemas já existentes e das desigualdades que mediam as relações entre os significados e significantes do progresso, que são os megaprojetos infraestruturais, logísticos, agrícolas e minerários. Do pandemônio evidenciado no dia do fogo, em agosto de 2019, que justificou a conformação do Conselho Nacional da Amazônia (CNA) em novembro do mesmo ano, à pandemia de 2020, quando é lançado em fevereiro o Decreto nº 10.239 e, em 17 de abril, as Portarias nº 46, 48 e 50 que o regulamentam, é importante avaliar o que o conselho nos diz em seu texto fundacional sobre a posição do que seja o Estado na Amazônia. É relevante também avaliar o que caracteriza a atuação deste órgão como ente aglutinador para resolução, não dos problemas que existem na região, mas do problema – ou oportunidade – que a região representa para a atual administração federal. Este fator não é meramente analítico na medida em que historicamente as políticas e órgãos do Estado, em vários níveis, bem como suas omissões, tem sido as maiores fontes de violação de direitos humanos na região.

Pedro Martins

Assessor Jurídico da Terra de Direitos e membro do Grupo Carta de Belém

Não parece pela composição das Câmaras no CNA que o grave problema da violação de direitos humanos na Amazônia, onde se fundem, via de regra, avanços sobre os territórios de povos e comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas e camponeses, e o desmatamento e a degradação ambiental será resolvido. No CNA, além de não estarem presentes os conselhos representativos, como é o caso do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), também não estão os órgãos ou secretarias (algumas até extintas ao longo de 2019), que poderiam oferecer conhecimento e experiências bem sucedidas que levam à proteção territorial e garantia de qualidade de vida das comunidades. Este era o caso da extinta Secretaria de Extrativismo, no Ministério do Meio Ambiente, das coordenações especiais de assistência ao povo quilombola para a garantia de uma política pública específica à sua gestão territorial e ambiental, no INCRA. No campo da reprodução das desigualdades na região Norte, que vimos brutalmente evidenciadas em cidades como Manaus e Belém, e, agora, repetem-se mortalmente na expansão da contaminação para os interiores dos estados do Amazonas e do Pará, o fato de Manaus ter sido uma das primeiras capitais do Brasil a colapsar no atendimento básico e nas internações de complexidade não foi por acaso. Não é casual também que os primeiros casos de pessoas indígenas infectadas e chegando a óbito também foram no estado do Amazonas e do Pará, tendo, tristemente, seu direito à personalidade negados para serem registrados enquanto tais. Falar de desigualdades regionais no período da pandemia exige envolver quais estruturas de poder são reforçadas e quais os moldes para a reformulação desse cenário político. Um dos fatores princi-

pais é a relação entre governos estaduais e federal. Mesmo que a maior parte dos estados amazônicos tenha governadores alinhados a Bolsonaro, suas atuações privilegiaram estruturas de autonomia, diga-se constitucionais, especialmente para garantir entrada de recursos próprios para as políticas locais. Entretanto, Bolsonaro segue no propósito de centralizar o poder, propondo uma gestão federativa centralizada. Um segundo fator, ligado diretamente ao CNA, é que essa gestão não só é centralizada, como, também, militarizada. Cabe ressaltar que esta militarização ocorre com forte instrumentalização da política ambiental, especialmente a de monitoramento e fiscalização, esvaziando o papel dos órgãos federais especializados e das secretarias estaduais no desdobramento de ações de verificação e territorialização da fiscalização e proteção no longo prazo. Durante a pandemia, acompanhamos as primeiras decretações de Garantia de Lei e de Ordem (GLO) ambientais na Amazônia para lidar com o aumento do desmatamento. As pessoas do lugar, as dinâmicas desiguais de acesso à terra, bem como os arranjos locais de resistência aos processos de avanço sobre os territórios não são ponto de pauta no desenvolvimento desta política que, em verdade, resume-me à ato de exceção. Para saber um pouco mais sobre a conformação do CNA e seu provável papel na reprodução das desigualdades amazônicas, confira o texto completo desse artigo, no link: https:// terradedireitos.org.br/acervo/artigos/desmatamento-e-pandemia-o-que-o-conselho-nacional-da-amazonia-esta-fazendo-contra-voce/23297.


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Foto Cristivan Alves

Foto Cristivan Alves

Quilombos no combate ao novo coronavírus Por Cristivan Alves

Nesta edição do jornal resistência queremos respaldar a luta de todos os defensores dos direitos humanos, nesta nossa gigantesca Amazônia que não está desvinculada do mundo e isso faz com que passe pela mesma crise sanitária da pandemia da COVID- 19. O Pará sendo o segundo estado com maior extensão territorial da região Norte, tendo o terceiro estado com maior número de comunidade quilombolas, este grupo que historicamente sofreu e sofre os descasos das políticas públicas, crimi- cia dos testes para covid-19 nos quilombos e do medo exisnalização e, racismo que cerca os remanescentes. tente. “Muitas pessoas apreQuando citamos acima que o racismo é constante com os qui- sentam os sintomas do corolombolas, isso acontece desde sempre por causa da forma como navírus, mas pelo fato de não os negros africanos foram retirados dos seus países de origem. A ter os testes na comunidade resistência sempre esteve presente na vida dos negros, a utiliza- para comprovar, acabam leção de seus corpos nas longas jornadas de viagens nos “navios vando suas vidas normalmennegreiros” e, as resistências das correntes nos grandes roçados te, muitos passam momento de canas de açúcar e café. O sonho de esperança, a luta por liber- difíceis, mas conseguiram se dade sempre presente na sua batalha cotidiana, cuja alternativa recuperar e até o momento em muitos casos foi a fuga para os lugares mais distantes possí- apenas uma pessoa faleceu. veis, longe da escravidão. Criando assim, as vilas de pretos, os Particularmente convivemos mocambos, os quilombos. Nossos quilombos resistiram e ajuda- com um sentimento de medo ram a vencer a cabanagem, em busca de sua liberdade. porque dentro das nossas coAs comunidades quilombolas do estado do Pará, mais uma vez vi- munidades existem muitas vem os abandonos das poucas políticas públicas. Principalmente na pessoas idosas e com doenárea da saúde se aprofundam os problemas com esta grave crise ças crônicas”. Relata Borralho. que afeta o mundo. Os nossos quilombos no estado tem sim acesso O quilombola afirma que moque são através de ramais, estradas, igarapés, rios e etc. rar perto da cidade é um ris-

Foto Cristivan Alves

A coordenação das comunidades quilombolas do estado do Pará - Malungu, com a Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA realizam pesquisa com as comunidades quilombolas para localizar pessoas infectadas nos quilombos, o resultado deste último boletim diz que: “As comunidades quilombolas do Pará apresenta 842 casos confirmados, 437 recuperados, 911 suspeitos sem assistência médica, com 34 óbitos, 433 casos suspeitos em tratamento médico, com 05 hospitalizados e 01 caso de óbito em investigação”. Está atualização apresentada no dia 30 de junho de 2020.

deral do Pará (UFPA) da Comunidade Quilombola Monte Alegre, no Baixo- Acará, Anderson Borralho, conta as ações de um grupo de jovens para combater à Covid-19 na sua comunidade. O estudante narra que o momento atual com a pandemia do novo coronavírus dentro dos quilombos. “Enfrentamos várias dificuldades, principalmente porque estamos ausentes das políticas públicas que possam nos amparar. Estamos preocupados com essa situação, juntamos grupo de jovens e resolvemos confeccionar algumas máscaras caseiras para doar na comunidade de Monte Alegre. Conseguimos uma quantidade de 100 máscaras metropolitana de Belém e muitas pessoas acabam vindo para que foram distribuídas para os nossas comunidades, achando que estão de férias e indo para os igarapés, aumentando assim, o risco de contaminação e promoradores”. Borralho destaca a importân- pagação da doença no nosso quilombo”. Foto Delma Brito

E

laboração de cercas de madeiras, portões na entrada que dá acesso aos quilombos, equipes de vigilância nos portões, comissões de ações de combate ao Coronavírus em algumas comunidades, distribuições de kit de higiene, campanhas de arrecadações alimentos. Essas ações tomadas em comunidades quilombolas para manter o isolamento social e para ajudar no combate a Covid-19.

Ação tardia do estado no quilombo No último final de semana uma ação do governo do estado esteve presente em outra comunidade quilombola aqui perto, onde foram comprovados mais de 100 casos de Covid-19. “Graças a Deus quase todos já estão recuperados, mas apenas uma parte da população da região compareceu para fazer o teste rápido, caso todos tivessem feito o teste esse número seria bem maior. Mas surge uma pergunta no ar, por que o governo só veio agora depois que a população já havia se contaminado?” questiona Borralho. Os quilombolas criaram neste momento, medidas de resistência e prevenção com fechamento de ramais e de estrada controlando a entrada e o acesso às comunidades quilombolas.

“Espero que esse momento de pandemia passe logo e que possamos voltar a levar nossas vidas normais, onde podemos andar em nossa comunidade e jogar nosso futebol, fazer nossas reuniões, jogar conversa fora e viver nossas vidas como sempre vivemos aqui no quilombo em comunidade”. Finaliza o estudanco: “Moramos perto da região O estudante de publicidade e propaganda da Universidade Fete quilombola.


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Organização e solidariedade salvam vidas Entidades com diferentes trajetórias na defesa dos direitos humanos uniram esforços, no Pará, e garantem a populações mais vulneráveis o acesso bens essenciais para sobrevivência.

Pessoas mobilizadas

Pessoas atendidas

Por Sandra Rocha

O

trabalho de base realizado nas comunidades há anos por sociedade civil organizada permitiu que muitas famílias tivessem o alimento, os produtos de higiene básicos e o acesso ao auxílio financeiro público para resistir à pandemia da Covid-19 no Pará. A articulação, formada por 25 organizações, foi chamada de Rede Amazônica de Solidariedade e Resistência, uma resposta coletiva de valorização da vida e de renovação da esperança.

Juscélio lembra que, diferente do trabalho já realizado pelas entidades, dessa vez foi preciso organizar a rede para garantir o atendimento da população com o mínimo de contato físico. Equipes se dedicaram ao mapeamento de lideranças responsáveis pela entrega nas casas, pela captação de doações, pela criação de canais de comunicação e pelo controle financeiro.

Juscélio Pantoja, coordenador pedagógico do Centro Alternativo de Cultura - Província dos Jesuítas (CAC), integrante da Rede, explica que a mobilização nasceu da constatação de que a pandemia impactaria o público das entidades de duas maneiras. Adultos perderiam a renda obtida com o trabalho informal e crianças perderiam a alimentação nas escolas.

A atividade dos cerca de 50 voluntários exige dedicação e não impede que eles próprios sejam vítimas da Covid-19, mas Juscélio acredita que a motivação é maior. Segundo o coordenador pedagógico do CAC, a troca de experiências fortalecida pela rede se dá entre todos e, mesmo quem também tem dificuldades, ajuda.

O trabalho se iniciou com a doação de cestas básicas, mas os cuidados sanitários passaram a exigir também a oferta de máscaras e material de higiene. Por outro lado, o acesso ao auxílio público emergencial demanda a orientação sobre o uso do aplicativo bancário e de crédito para uso da internet. O atendimento varia de acordo com a necessidade da família e do grupo em vulnerabilidade.

50 voluntários

5 toneladas

Metropolitana de Belém e dos municípios de Moju, Acará e Barcarena.

e entidades civis

de alimentos

1,5

toneladas de alimentos orgânicos e da agricultura do MST

2 mil 300 kits 400 kits cestas básicas

de higiene

educativos

ENTIDADES INTEGRANTES DA REDE Articulação da Juventude Salesiana; Cáritas Brasileira - Regional Norte 2; Centro Alternativo de Cultura- Província dos Jesuítas do Brasil (CAC); Coletivo Marias; Coletivo Mulheres de Ananindeua em Movimento (CMAM); Coletivo Tela Firme; Comissão Pastoral da Terra (CPT); Comitê Dorothy; Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB/PA e AP); Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB Regional Norte 2); Congresso do Povo; Curso de Educadores Populares na Amazônia (Igreja Anglicana da Amazônia); Fundação Magis Itália; Instituto Amazônico de Planejamento, Gestão Urbana e Ambiental (IAGUA); Irmãs de Notre Dame de Namour; Irmãs Franciscanas do Sagrado Coração; Irmãs Salesianas de Dom Bosco; Movimento de Emaús; Movimento dos (as) Trabalhadores (as) Rurais Sem Terra (MST); Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB); Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM); Rádio Cabana; Rede Eclesial Pan Amazônica (Centro REPAM Brasil); Rede Economia Solidaria e Feminista (RESF); Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH).

Foto Akira Onuma

Padre Bruno Sechi: uma vida de generosidade a República de Emaús, em 1971; a Campanha de Emaús e a Grande Coleta, em 1972; a construção da Escola Cidade de Emaús, em 1980; o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), em 1983; e o Centro de Promoção ao Trabalho (CPT).

A

2 mil famílias da Região

Ações

Trabalho que reafirma o poder coletivo

Sobre o poder da articulação, ele observa que “a própria rede já é um grande resultado da capacidade e da plasticidade dos movimentos populares que trabalham em defesa da vida”. Para Juscélio, “isso mostra que não estamos tão perdidos, como falam. A possibilidade de outro mundo nasce pelo nosso coletivo democrático, social”.

25 instituições

como se fossem políticas públicas, embora não fossem governamentais.

“Certa vez, fui em evento do Emaús em que a composição da mesa era de pessoas que estavam dando testemunhos de vida. Alguns iniciaram pelo Pequeno Vendedor e já eram parceiros do projeto! Tinham empresários, políticos e Protagonismo que ultrapassa fronteiras Padre Bruno Sechi participou de articulações muitos professores que passaram pelo Emaús. nacionais voltadas não só à defesa dos direitos Isso mostra que o projeto não foi e não é sem da criança e do adolescente. As redes de par- perspectiva. A valorização humana é necessácerias e mobilizações são amplas, conta Eliana ria”, constata. Fonseca, integrante da Coordenação Executiva Sob o arco espiritual de Padre Bruno estão a da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos criação do Movimento Nacional de Meninos e Humanos (SDDH). Meninas de Rua, 1978; a criação, em 1988,

teia de solidariedade que tem se formado, em especial, nas periferias de Belém (PA) durante a pandemia da Covid-19 é parte de um legado que pode, em boa medida, ser atribuído ao padre Bruno Sechi. O missionário, nascido em 31 de julho de 1939, havia sido diagnosticado com o novo coronavírus, estava em recuperação e se mantinha ativo. Foi vencido no dia 29 de maio. Eliana observa que padre Bruno tinha sensibiliDurante cinco décadas, o italiano de Sardenha, naturalizado dade para enxergar os cidadãos invisibilizados brasileiro, esteve à frente do Movimento de Emaús, mostrando e essa percepção o levou a participar da criadiariamente e de forma humilde a importância do esforço cole- ção de vários organismos hoje consolidados, tivo para transformar a realidade, combater a exclusão social e como o Fórum Nacional de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criana marginalização da pobreza. ça e do Adolescente (Fórum CDA), a SDDH, a Sacerdote da Ordem Salesiana, padre Bruno tem um histórico Federação de Órgãos para Assistência Social e de atuação que alia o olhar bondoso à provocação por mudança Educacional (Fase) e o Instituto Universidade a partir do contato com o outro, da reflexão e do agir. Em carta Popular (Unipop). de homenagem publicada pelo Emaús, a professora Georgina Kalife lembra dos caminhos que levaram à criação do Emaús e “A gente construiu junto os conselhos (de entidades como a SDDH). Ele costurava as parcesua expansão, sob a orientação dele. rias”, descreve, ao lembrar que a atuação dele O início é no Ver-o-Peso, com o Restaurante do Pequeno Vendedor, era ampla, passando pela defesa do negro e da em 1970, voltado à socialização e recreação de crianças e adomulher. E sempre se deu com humildade, alelescentes que trabalhavam no local. A atividade do grupo formado gria e a confiança de que é possível ter perspecdentro movimento jovem da igreja salesiana e orientado pelo jotivas, mesmo num contexto de adversidades. vem sacerdote também promoveu alfabetização de adultos. Para ela, o resultado do trabalho do padre BruA experiência da partilha com os cidadãos que viviam a realino está nas conquistas alcançadas, nas entidadade da exclusão social em uma das maiores feiras livres da des estruturadas e nas pessoas que mudaram América Latina foi a semente para os avanços. Diante de outras suas vidas ao passar pelos serviços criados necessidades, como renda, defesa jurídica e escola, surgiram

do Fórum DCA-Fórum Nacional de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, com contribuição essencial para a elaboração do ECA e da Constituição cidadã; e a aprovação, 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

HOMENAGENS Padre Bruno Sechi recebeu o 5º Prêmio USP de Direitos Humanos 2004, na categoria Individual. O galardão é conferido pela Universidade Federal de São Paulo a quem contribui com a promoção da cidadania, da paz e da solidariedade. A Estrada da Yamada, no bairro do Bengui, em Belém, passou a se chamar “Padre Bruno Sechi”. A mudança foi aprovada por unanimidade na Câmara de Vereadores de Belém, dia 24 de junho de 2020.


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Pilar da democracia, jornalismo sofre com ataques Por Janine Bargas Doutora em Comunicação pela UFMG, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), onde coordena o Núcleo de Pesquisas em Comunicação e Política (Nucomp).

A

Constituição Federal de 1988, nos seus artigos 5 e 220, é, atualmente, o principal instrumento garantidor da liberdade de imprensa e do exercício do jornalismo no Brasil. A Carta Cidadã, assim batizada pelos constituintes por fundamentar aspirações mais justas à sociedade brasileira após o período da ditadura militar (1964-1985), trouxe ao primeiro plano a importância da comunicação e, em particular, do jornalismo para o regime político que reinaugurara. a doença e confunde cidadãs e cidadãos na tomada de decisão Considerada por uns como mantenedora de poder e privilégios sobre o que fazer diante do medo e do vírus. nas mãos de poucos e fomentadora de miopias sociais, e por É o que a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, chama de outros como o poder moderador das sociedades democráticas, infodemia: a epidemia de desinformação marcada pela dissenão há como não pensar a mídia como um todo – para fazer minação de boatos, informações falsas e retiradas de contextos referência a todo um campo em que se encontram grandes e originais que se intensificou durante a pandemia. pequenas indústrias de comunicação, do entretenimento ao jorPara além do contexto da marcado pela COVID-19, outras situnalismo, além das plataformas de mídias digitais – como um ações se revelaram particularmente perigosas para jornalistas. espaço fundamental para pensarmos a relação entre política e Coberturas sobre assassinatos e denúncias de desmatamento sociedade. na Amazônia já se tornaram casos emblemáticos. A notícia soNo entanto, mesmo com os avanços nas garantias de liberdade bre o Dia do Fogo, protesto de produtores rurais no município de de expressão e imprensa dos últimos 30 anos, recentemente, Novo Progresso, no sudoeste paraense, produzida pelo jornaliscom o avanço de forças conservadoras sobre a política institu- ta Adecio Piran no seu jornal, tornou-se objeto de ameaças e de cional e nas ruas do país, o jornalismo e os jornalistas têm sido um panfleto em que o jornalista é acusado de ser estelionatário. alvos de ataques violentos. Em 2019, segundo a Federação Na- Adecio registrou boletim de ocorrência em que alega ser alvo de cional dos Jornalistas (FENAJ), foram registrados 208 casos de calúnia e difamação e de tentativa de intimidação. A agência violência no Brasil, que vão desde agressões físicas a tentativas Amazônia Real denunciou o caso. de questionar a credibilidade de profissionais e veículos de imEm Rondon do Pará, sudeste do estado, onde funciona a Faculprensa. De todos esses casos, chama particular atenção ao padade de Comunicação da Universidade Federal do Sul e Sudespel desempenhado pelo presidente Jair Bolsonaro, que sozinho te do Pará (Unifesspa), estudantes e professores de jornalismo foi responsável por 121 desses ataques. têm dificuldades de estabelecer relações com as fontes da cidade. Particularmente no que se refere a órgãos públicos, como Mais violência nos primeiros 4 meses de 2020 do que ao prefeitura, secretarias e câmara municipais, a indisponibilidade e a inabilidade para atender a imprensa universitária acaba se longo de todo o ano de 2019 convertendo também em uma lesão à população e ao exercício Em 2020, não está sendo diferente. Em um ano marcado pela do jornalismo, uma vez que compromete o princípio da transpapandemia do novo coronavírus, que confinou boa parte da porência pública e da liberdade de imprensa. pulação mundial nas suas casas, recolocando meios de comunicação de massa em lugar de destaque e catalisando diversas Em caso recente, na produção de reportagem sobre a contamipráticas a partir das mídias digitais, o Brasil sofre ainda mais nação de profissionais de saúde para o portal Rondon Notícias, com a violência contra o jornalismo e, mais recentemente, com a equipe de reportagem e professoras envolvidas na orientação a ocultação de dados sobre a COVID-19 por parte do governo das repórteres só obtiveram a devida atenção quando a matéria federal. Só neste ano, Bolsonaro fez 179 ataques à imprensa, foi publicada, evidenciando relatos controversos sobre a situação das vítimas na cidade. segundo o monitoramento da Fenaj. Tais ataques levaram diversos veículos de comunicação hege- Ainda segundo a Fenaj, entre os tipos de violência mais pramônicos, como Globo e Folha de São Paulo, a não enviarem ticados contra jornalistas estão agressões verbais, agressões mais equipes de reportagem para cobrir a fala matinal diária físicas, intimidações, censura e até assassinatos. Plataformas do presidente na porta do Palácio da Alvorada, em Brasília. En- de mídias digitais são os principais veículos dos casos em que tre os veículos não hegemônicos, as críticas a essa cobertura e protegidos pelo “anonimato”, agressores sobem hashtags ofenaos ataques sempre foram incisivas desde o período eleitoral sivas e atacam perfis de profissionais. de 2018, que conduziu Bolsonaro ao Executivo. O Intervozes – Tais casos só reforçam a diversidade de atos que violentam o Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma das entidades que jornalismo e seus profissionais e aprendizes. Comunicação é disistematizou e analisou os ataques à imprensa no relatório “Di- reito, e política é comunicação, seja no ato mesmo de formular reito à Comunicação no Brasil – 2018”. ações, seja no processo de circulação de informações que molNo contexto atual, além de amargar o gosto de ser o epicentro dam nossas preferências e nos ajudam a formular posicionada pandemia e, com recordes diários de óbitos, a não divulga- mentos. No nosso caso, parece que ambos os processos estão ção de dados oficiais de forma completa sobre o novo corona- prejudicados e a democracia, sustentada por este pilar, também vírus no Brasil e a dificuldade na obtenção desses dados entre parece sofrer com esses e outros ataques. jornalistas agravam ainda mais nossa capacidade de combater

Ataques de Bolsonaro à liberdade de imprensa:

Em 2019, 121 casos Em 2020 (jan/abr), 179 casos Fonte: Fenaj

“PL das Fake News” Participe do debate sobre o Projeto de Lei n° 2630/2020. Ao invés de combater a desinformação, ameaça a liberdade de expressão e a privacidade on-line, com obrigação de identificação em massa para usar redes sociais. Ataca direitos à proteção de dados e presunção de inocência. Acompanhe as informações nas mídias sociais da Coalização Direitos na Rede: Facebook: direitosnarede Instagram: direitosnarede Twitter: cdr_br

Homenagem a Luiz Maklouf Carvalho A SDDH se solidariza com familiares e amigos de Luiz Maklouf Carvalho e agradece as contribuições do jornalista para a criação do Jornal Resistência, em 1978, e construção da liberdade de imprensa do Brasil. O autor de obras emblemáticas, como “Contido a bala: a vida e a morte de Paulo Fonteles, advogado de posseiros no sul do Pará” (Editora Cejup, 1994), faleceu dia 16 de maio deste ano, aos 67 anos.


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Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Ano 43 JULHO/2020

www.sddh.org.br

A luta do carimbó em tempos de covid-19 Por

Amanda Rabelo

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m uma pandemia, o Carimbó, patrimônio cultural brasileiro, resiste e se organiza para enfrentar a Covid-19 e seus nefastos efeitos. Afinal, um dos setores mais atingidos pelo novo coronavírus e a crise econômica por ele reforçada foi a cultura, onde muitos grupos tiveram que cancelar suas apresentações e shows marcados em seus barracões e comunidades. Por isso, a necessidade de reforçar nossa solidariedade com essa luta e fazer com que o Carimbó mais uma vez saia reinventado dessa situação. Carimbó: nosso patrimônio! O Carimbó foi inscrito no Livro das Formas de Expressão em 2014, tornando-se Patrimônio Cultural do Brasil. Mas antes de ser oficializado, já era reconhecido pelo nosso povo. A manifestação remonta à Amazônia colonial, a partir “das influências culturais de índios, negros e europeus (portugueses)”, como demarca o dossiê de registro. Congrega um conjunto de festas, músicas e danças que se estendem da capital Belém ao interior do Pará. “O carimbó é comumente divulgado como uma das mais significativas formas de expressão da identidade paraense e brasileira”, completa o documento. As culturas populares e tradicionais se constituem como elemento fundamental na formação da identidade cultural brasileira, expressões ricas e autênticas de nossa história. É por meio dos saberes e fazeres, da dança, da musicalidade, de todos os sons e cores, expressões e manifestações, que conversamos com a nossa memória, nossa herança, e retratamos assim, a história do nosso povo. Fazendo parte do cotidiano de cada comunidade, seja urbana, ribeirinha, litorânea ou rural essas expressões e manifestações paraenses conseguem resistir ao tempo às mudanças impostas pela sociedade capitalista, mostrando grande capacidade de manterem viva essa cultura e transmitir para as futuras gerações. Campanha de solidariedade A campanha de “Solidariedade ao Patrimônio” surgiu de um grupo de ativistas da cultura popular, que viram a necessidade de ajudar os grupos, Mestras/Mestres para que pudessem ter o mínimo para se manter nesse período de Pandemia. A campanha foi lançada em parceria com o blog da Casa do Patrimônio vinculado ao IPHAN. Antes dessa campanha de arrecadação, foi lançada outra sobre prevenção contra o Coronavírus, intitulada “Mestres fiquem em casa”. Em contato direto com os detentores se soube que os mestres/mestras e grupos estavam sem suas rendas por conta do isolamento social. Esse foi o pontapé para iniciarem a campanha, e isso reverberou. A Campanha de Solidariedade iniciou com 5 grupos de Carimbó,

entre eles: Tambores do Pacoval (Soure), O Banzeiro (Alter do Chão – Santarém), Os Brasileirinhos (Magalhães Barata), O Popular (Salinas) e, Os Africanos de Icoaraci (Belém). Não só o problema econômico tem os acometido, mas também o de saúde. Mestre Thomaz, dos Africanos de Icoaraci, foi diagnosticado com Covid-19. Trabalhador informal e que sempre viveu de sua arte e na construção de instrumentos, teve que enfrentar a doença em casa, sem conseguir ser atendido nos hospitais da região metropolitana. A Campanha foi crucial para ter condições de comprar remédios e alimento para ele e sua família. “Iniciamos este trabalho produzindo uma cartilha de orientação e prevenção ao covid-19, e estamos em parceira com a salvaguarda da Capoeira, desenvolvendo cestas básicas para os fazedores destes patrimônios imateriais residentes na região metropolitana de Belém e outros municípios. Muitos destes guardiões, mesmo sem ferramentas e internet, solicitaram Auxílio Emergencial e permanecem até o momento em análise, outros que tentaram se inscrever no edital “Te Aquieta em Casa” da Secult, os que tiveram acesso à internet e conseguiram passar, até hoje estão esperando o pagamento. Em relação a campanha de arrecadação, já conseguimos doações de cestas básicas para o Carimbó e Capoeira em parceria com a Ouvidoria da Defensoria Públi-

ca do Estado do Pará, fora os depósitos diretos nas contas dos grupos” Cris Salgado, Documentarista e ativista do Carimbó “O Grupo de Carimbó Uirapurú Marapanim criou uma campanha de arrecadação por uma plataforma online, já teve contato até da Austrália para doação.” Mestre Manoel de Uirapurú Marapanim Segundo os ativistas da cultura popular, o patrimônio - Carimbó, segue em resistência pela sobrevivência de seus Mestres/ Mestras e Grupos em um momento tão difícil para todos nós no planeta. O Carimbó manifesta-se solidário em compartilhar seus saberes e manter o legado destes códigos que são a base de sustentação da floresta e seus povos. Portanto, se faz necessário neste momento lançar mão da rede de apoio capaz de enfrentar e salvaguardar estas comunidades que estão desamparadas pelo poder público em suas diferentes esferas. “A Cultura popular é terra, é o chão onde toda a cultura pisa, transborda de significados e valores. Toda a experiência humana é cultura, e reverencia e dialoga com nossa história, nosso passado, nosso presente e, consequentemente e inevitavelmente, com o nosso futuro.” Trecho do Manifesto da cultura popular ao povo brasileiro Exaltamos a cultura popular e o patrimônio imaterial registrado, precisamos de cultura como precisamos de água e alimento, esse é o verdadeiro significado desses códigos, é fonte de vida para nossa alma. A Campanha não tem um prazo definido e seguirá até o fim do período de isolamento e retorno das apresentações, outros grupos e Mestres/Mestras deverão ser inseridos nas próximas semanas, quem puder fazer doações acesse: Casa do Patrimônio https://casadopatrimoniopa.wordpress.com/2020/05/04/grupos-de-carimbo-realizam-campanha-de-doacoes/ ou (91) 984801857 | amandarabelo28@gmail.com Salve à todos às/os Mestras e Mestres, guardiões de sabres tradicionais, vida longa a todos eles.Cultura Popular é resistência! Patrimônio é resistência!

cas, bandeira levantada pela cena do rock autoral underground. A princípio, foram feitos alguns eventos na UFPA como forma de protesto contra o governo de Michel Temer, empossado através de um processo de impeachment que consideramos um golpe branco contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Dentre esses eventos, o mais conhecido foi o Ocupa Skate/Rock UFPA, que contou com a presença de 20 bandas paraenses.

Facada Fest,

muito mais que um festival, um ato político de resistência! Por

Tainah Chaves

O

Coletivo Facada Fest surgiu em 2016 na ocupação da UFPA, através de uma união de bandas autorais e militantes antifascistas de Belém-PA, com o intuito de organizar eventos políticos/culturais em espaços públicos, de modo a alertar sobre o descaso e a ausência de políticas públi-

De lá pra cá, o coletivo começou a fazer eventos fora da UFPA, em praças de Belém, como forma de manifestar sua indignação contra o atual presidente Jair Bolsonaro, cuja vitória eleitoral no ano de 2018 é considerada ilegítima pelo coletivo, em virtude dos disparos em massa de fake news como principal forma de propaganda eleitoreira. Além de acharmos seus posicionamentos preconceituosos e autoritários, um atentado contra a carta magna de 1988, a qual garante a democracia em nosso país.

dos filhos do presidente em suas redes. O nome Facada Fest foi associado à polêmica “facada” supostamente dada em Jair, por isso, fomos intimados por “Apologia ao crime” e “Atentado à honra do presidente”, uma criminalização aos artistas completamente arbitrária e absurda. Eu, Tainah, fui a única mulher intimada, recebemos a intimação em nome da PF, assinada pelo Juiz Sérgio Moro, um dia antes do carnaval. Foram dias bem tensos por sinal. Após nossos advogados irem atrás do inquérito, ficamos assustados. Cheguei a me perguntar: Como posso ser um perigo a segurança nacional? Parecia um pesadelo... Tentaram nos calar, mas continuamos resistindo a toda tentativa de opressão.

O Facada Fest simboliza a força do rock autoral expressa pela letra das músicas e por toda arte revelada para alertar sobre tais injustiças, o que para muitos pode parecer “agressivo”, Na terceira edição do evento em 2019, fomos para nós é um grito de socorro. perseguidos e criminalizados após um deputado local fazer uma leitura completamente de- Abram seus olhos para o fascismo velado! turpada da arte do cartaz e reproduzida por um Resistiremos!