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I. Colagens
Nesse momento, guiada pelos acúmulos e reflexões em torno das experiências apresentadas no capítulo anterior e das vivências no TRAMA, elenco 3 (três) práticas/experimentos/aprendizados metodológicos que se mostraram relevantes para se prospectar um incremento de ferramental, tendo em vista o objetivo de reimaginar as possibilidades de atuação em arquitetura e urbanismo. Reconheço, nessas práticas, denominadores comuns de muitos dos processos que me envolvi ao longo da minha trajetória como aluna, e também as pontes que este percurso me permitiu construir, o “nós” nas linhas que se emaranham na trama.
Mais do que uma técnica artística, a colagem é − e tem sido para o TRAMA − uma orientação estética e um lugar de pensamento. Com exceção da Campanha Xô Corona, todas as outras 4 (quatro) experiências que analisei mais detidamente (mas também tantas outras anteriormente apresentadas) mobilizaram colagens como recurso na comunicação dos projetos. Frequentemente nos deparamos com o desafio de fabular visualmente a(s) cidade(s). E as cidades, para nós aqui entendidas, são lugares plurais, heterogêneos, com uma vida urbana diversa na qual interagem múltiplas identidades e culturas. Há uma sobreposição de tempos, de práticas de espaço e de disputas. Cidades são ruidosas, fragmentadas, descontínuas. Como as colagens podem ser. Para dar conta de abarcar a complexidade dos territórios, optamos por não recorrer a uma imagem única, mas sim, buscamos compor um mosaico de visualidades, cenas, texturas. As colagens da Plataforma Pipoco e do Simpósio Fazeres da Cidade (Figuras 8 e 9) são exemplares nesse sentido.
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Figuras 8 e 9 (de cima para baixo): Colagem Simpósio Fazeres da Cidade e Colagem Plataforma Pipoco
A descontinuidade da colagem também se relaciona com a constituição das memórias, que, por sua vez, se (des)organizam a partir de fragmentos, nunca estando completamente puras ou límpidas. O fi lósofo camaronês Achille Mbembe (2019) argumenta que isso é uma consequência da própria experiência de colonização dos nossos povos, fazendo com que tivessem suas memórias violadas, sendo impossível reconstituí-las em sua unidade original (CORDEIRO et al., 2021, p.8).
Além de ser uma ferramenta a ser usada para retratar o que já existe, sendo agenciada para contemplar a diversidade urbana, a colagem também é um recurso criativo para fabular novas realidades. Usada para recontar a história, a colagem pode (re)criar e subverter arquivos, como é o caso da colagem que criamos coletivamente para o material de divulgação do evento Cidades Pretas; nesta colagem, provocamos a união de um mapa colonial com o mapa do Quilombo Buraco do Tatu (Figura 10). Com essa imagem, queremos convocar a des/re/pensar e re/imaginar cidades através de fabulações im/possíveis.


Figura 10: Card de divulgação do encontro Cidades Pretas com colagem mapa colonial e Quilombo Buraco do Tatu.
Mobilizada como uma forma de “artivismo”, a colagem também é um potente instrumento de denúncia. Na experiência da Escola de Verão, a ausência de divulgação de imagens do projeto do Monotrilho nos instigou a criar visualidades que demonstrassem o impacto da obra na paisagem (Figura 11).

Figura 11: Colagem para podcast Elas Fazem Cidade a partir de fotos do Acervo Arlete Soares
Na experiência do podcast Elas Fazem Cidade, usamos colagens para comunicar aquilo que o projeto buscava enfocar: o protagonismo feminino negro na constituição da cidade. No episódio 1, “Com e para as juventudes”, Irmã Jacira Queiroz, educadora de Valéria, relatou como a profissão de baiana de acarajé possibilitou à sua mãe a permanência no bairro, gerando renda e, sobretudo, tecendo redes de articulação com a vizinhança. O tabuleiro que se abre para a rua faz presente a convivência comunitária, característica do povo de África, segundo Jacira. Já no terceiro episódio, “Saberes das águas”, Maria de Xindó, ganhadeira de Itapuã, afirma a importância da Lagoa do Abaeté na sua vida, ao
dizer que considera esse lugar como extensão de sua casa, sua universidade. Movida por esses dois relatos, elaborei colagens que buscaram potencializar as memórias e saberes dessas mulheres (Figuras 12 e 13). Jogando com as escalas do corpo e da cidade, as mulheres se engrandecem na imagem, suas existências são ressaltadas: elas, agentes que produzem o território. Nessa criação, recorri aos arquivos do acervo da fotógrafa Arlete Soares, baiana que registrou e registra práticas urbanas em Salvador, e que é foco de estudo no projeto de pesquisa“Cidade, imagem, arquivo”, desenvolvido no âmbito do grupo LEIA, da FAUFBA, onde sou bolsista PIBIC.

Figura 12: Colagem para podcast Elas Fazem Cidade a partir de fotos do Acervo Arlete Soares

Figura 13: Colagem para podcast Elas Fazem Cidade a partir de fotos do Acervo Arlete Soares
O processo de feitura de uma colagem, por sua vez, talvez seja um dos pontos mais importantes no aporte metodológico. Subvertendo a ordem ocidental cartesiana, “esculhambando” a realidade, nos termos de Luiz Rufi no (2019), fazer colagem abre a possibilidade para experimentar a criação de algo sem saber aprioristicamente aonde se vai chegar. Recentemente, uma atividade que contribuiu para a construção das refl exões aqui apresentadas foi a “Ofi cina de Colagem TRAMA”, atividade de extensão facilitada por mim e pela arquiteta
urbanista Marina Novais (também integrante do TRAMA), no âmbito da disciplina História da Arquitetura Contemporânea na FAUFBA, a convite da professora e co-orientadora deste trabalho, Junia Mortimer. Nessa atividade, além de apresentar e discutir as possibilidades da colagem enquanto técnica, linguagem e recurso estético, propomos um momento de atividade prática, estimulando os estudantes a testarem uma criação em colagem manual.
A partir dos relatos dos estudantes, novamente constatamos como o desenvolvimento da colagem abre possibilidades para uma experimentação metodológica flexível. O processo vai revelando seu próprio final, que é muitas vezes é incerto, pela constante sensação de inacabamento da obra; sem planejamento ou rigidez, algo de intuitivo e de íntimo, conduz a junção de fragmentos e a composição de camadas da imagem que vai sendo criada. Mais uma vez, recusa-se a ideia de que existe um procedimento correto a se seguir. Esse aspecto da colagem se relaciona diretamente à prática metodológica tratada no próximo tópico, o jogo de cintura.

Oficina de colagem TRAMA na FAUFBA. Acervo da autora, 2022