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I. Tornar-se arquiteta

No cenário de ensino da Faculdade, muitos são os TFGs que se dedicam exclusivamente ao exercício da Arquitetura projetual, configurando uma certa tradição do que se espera como produto final para validação da finalização dessa etapa. Desviando de uma abordagem dicotômica, não pretendo argumentar aqui que a dedicação à arquitetura projetual é uma só — a priori ruim e engessada — e trabalhos de cunho téorico-crítico são necessariamente mais relevantes ou interessantes por auto-denominação. Acredito, em realidade, ser de extrema importância (e urgência), um fazer de projeto que se engaje com as problemáticas urbanas contemporâneas (sociopolíticas e ambientais), amplie sua força de trabalho para uma clientela mais plural (especialmente aquela que não acessa os serviços de arquitetos-urbanistas) e atualize as práticas construtivas a partir de premissas que assumam um compromisso ético com a sociedade. Mais do que substituir ou excluir um ao outro, a interrelacionalidade do fazer projetual e o fazer teórico-crítico é fundamental para que ambos possam se fortalecer.

No entanto, cabe analisar que, muitas vezes, nos trabalhos de cunho projetual, as metodologias e técnicas aplicadas costumam se restringir apenas ao saber acadêmico aprendido na Faculdade; ou, mesmo quando acessam outros conhecimentos, são incapazes de criar as condições para que diferentes saberes possam interagir. É imprescindível reconhecer a insuficiência do fazer técnico projetual para lidar com a complexidade das questões urbanas, quando não articulado a outros saberes. Ademais, a dimensão projetual, quando descolada de um pensamento crítico e reflexivo, tende a encarar o projeto como “solução” única que dará conta de problemas previamente “diagnosticados”, expressando a perspectiva herdada da concepção moderna do Urbanismo, que reproduz um modelo hegemônico orientado por uma noção de desenvolvimento associada à ideia de progresso (BEREINSTEIN, ROSA, 2017).

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Como exemplo para ilustrar o que argumento, poderia mencionar que a esmagadora maioria dos TFGs de projeto que são criados por estudantes universitários não “sai do papel”, e portanto, não propicia uma convivência construtiva com outros profissionais e seus conhecimentos (mestres de obras, pedreiros, e afins), fundamentais para a disciplina. Ademais, o contato com as especificidades cotidianas do local/território no qual a edificação pretende ser implantada (fluxo de pessoas e seus hábitos de apropriação do espaço, a vida que vem da rua, e mesmo as características ambientais e políticas específicas), acaba por ser muitas vezes negligenciada, ou assume uma posição coadjuvante na dinâmica projetual. A visão acadêmica de projeto, frequentemente distanciada da realidade construtiva ou das necessidades de quem habita e pratica a cidade, acaba apresentando uma espécie de ficção arquitetônica (NETO, 2007), que tanto “despolitiza” ações projetuais pretendidas, quanto não propicia aos profissionais a habilidade para encararam problemáticas reais, ausentes na abstração universitária.

Se a Universidade pública reproduz essa lógica problemática, nas Universidades particulares e no mercado de trabalho essas questões são muito mais presentes, visto que estes dois últimos caminham de mãos dadas. Isto é, faculdades particulares, frequentemente, funcionam extremamente condicionadas a moldarem a formação de estudantes para que estes sejam profissionais que facilmente se insiram no mercado de trabalho, e o mercado de trabalho, por sua vez, responde aos interesses privados e a acumulação de poder e de capital dos segmentos mais ricos.

As brechas de atuação que desviam dessa norma hegemônica não são raras, mas ainda constituem uma minoria na conjuntura atual, situando-se nas “margens” da formação. Inúmeros projetos têm buscado promover a aproximação entre a realidade popular e a academia, proporcionando trocas entre conhecimentos populares, práticos, acadêmicos e técnicos. Como referência nessa temática, destaco a Tese de Doutorado de Daniel Marostergan e Carneiro (2021). Esta apresenta um conjunto de práticas e experiências de assessoria e assistência técnica, projetos de extensão e ações coletivas em contextos urbanos da cidade de Salvador, agenciadas através daquilo que o autor define como “arranjos extensionistas”, no seu estudo de caso de colaborações com a comunidade Gamboa de Baixo. Carneiro defende “a necessidade de uma postura de experimentação metodológica para tornar viável a extensão como forma de ensino”, confluindo com o que pretendo apresentar neste TFG (Carneiro, 2021: p. 245).

Uma vez que construí críticas acerca da natureza do projeto, julgo importante também tecer uma análise sobre as proposições teórico-críticas, nas quais outras diferentes complexidades se impõem. Formulações teóricas e suas abstrações podem também estar igualmente descoladas da realidade. Muitas refletem uma produção de conhecimento de uma minoria acadêmica, encerrada em sua “bolha”, sem condições de diálogo e partilha com a sociedade

e seus habitantes, o que é igualmente problemático. Nesse sentido, códigos, linguagens e possibilidades de formulação de um trabalho teórico-crítico parecem apresentar uma abertura, sendo espaços de maior experimentação e investigação. No âmbito da Faculdade, outras teorias, criticidades e práticas de pesquisa e ação estão sendo desenvolvidas, buscando apreender a multiplicidade, heterogeneidade e complexidade da cidade, com aportes metodológicos e “ofícios de pensar”, nos termos de Luiz Antonio Souza1, discutido por Bereinstein e Rosa (2017).

Novas possibilidades de formatos, proposições e produtos têm sido explorados por estudantes, agora já arquitetas/os2, em seus trabalhos finais de graduação. A construção de planos de bairro e intervenções urbanas baseados em experiências dialógicas com grupos da sociedade — associações, movimentos sociais, ou comunidades em territórios populares (ALMEIDA; SABÓIA; STEQUE, 2012; ARAÚJO; PARDO, 2019; VALOIS, 2018; NOVAIS, 2021); a elaboração de auto etnobiografias que se debruçam sobre arquivos familiares, memória, ancestralidade e oralidade (RODRIGUES, 2020; COSTA, 2019; FERREIRA, 2021);

1 Essa ideia foi mobilizada pelo professor de Urbanismo Luis Antonio de Souza (UNEB), em uma banca de Trabalho Final de Graduação na FAUFBA, da aluna Janaína Lisiak. Na sua fala, Luiz Antonio defendeu que o ofício do arquiteto urbanista é pensar criticamente — a cidade, o espaço, as construções — mais do que cumprir tarefas já estabelecidas. Nesse sentido, deve-se reconhecer a importância do princípio básico deste ofício, uma vez que, de forma equivocada, estudantes recorrentemente são treinados a resolver problemas já dados, ao invés de construir novos questionamentos e possibilidades nos seus campos de atuação.

2 Para os que vieram antes de mim, agradeço pelos trabalhos inspiradores que abriram caminhos e me mostraram um mar de possibilidades do que se cabe fazer em um TFG: Matheus Tanajura, Marina Muniz, Zara Rodrigues, Sofia Costa, Jones Nascimento, Mariana Pardo e Ana Clara Araújo, Pedro Alban, Gabriela Rabelo, Andressa Mascarenhas, Igor Liberato, Elisa Caribé, Milena Ferreira, Daniel Sabóia, Patrícia Almeida e Fábio Esteque, Vinicius Lyra, Vitória Matos, Marina Novais, Igor Queiroz, e tantas outras e outros.

proposições de expografia, cenografia, experimentos de autoconstrução (LIBERATO, 2018; MASCARENHAS, 2019; RABELO, 2017; ALBAN, 2018) e intervenções político-artísticas no meio urbano (TANAJURA, 2017) são alguns dos exemplos e possibilidades que emergem a partir de novos entendimentos do que pode ser um projeto de conclusão de curso na Faculdade. Tais trabalhos provocam deslocamentos e tensionamentos apresentando um campo de atuação que não está dado, mas sim, que se abre para novos questionamentos. Mais do que isso, são proposições que reforçam um compromisso ético e uma diversidade epistêmica, uma vez que buscam produzir ciência no cotidiano (CORDEIRO et al., 2021), testando novos arranjos e alargamentos na construção de conhecimentos.

Imagens do TFG de Matheus Tanajura (superior esquerdo), Marina Muniz (superio direito), Zara Rodrigues (inferior esquerdo) e Mariana Pardo e Ana Clara Araújo (inferior direito)

Acredito que as novas possibilidades de formatos e proposições que mencionei estão ligadas a mudanças no campo disciplinar da Arquitetura e Urbanismo (que argumentarei mais adiante em “Campo ampliado, campo implicado”), mas também, podem ser conectadas à transformação do quadro discente e docente. Ao entrar na FAUFBA, testemunhei a chegada de um novo quadro de professoras/es, mais jovens e de perfis plurais, aportando renovações nas dinâmicas de aula e nas metodologias aplicadas. Mais importante ainda, talvez, seja olhar a transformação desse ambiente a partir dos estudantes. Após uma importante luta travada por movimentos sociais, especialmente movimentos negros, a consolidação da política de cotas com a lei nº 12.711, em agosto de 2012, vem “mudando a cara” da Faculdade, desembranquecendo as salas de aula. Muitos destas/es universitárias/os, negros e indígenas, configuram a primeira geração em suas famílias a acessarem o ensino superior, e terem contato com a pesquisa científica.

De distintas realidades e territórios, essas/esses jovens, além de partilharem suas experiências urbanas, trazendo perspectivas de vida de muitas cidades dentro de uma mesma Salvador, reivindicam também sentiremse representadas/os pelas bibliografias estudadas, temáticas trabalhadas, e formas de aprender. No entanto, ainda que ocorram mudanças nos aspectos mencionados, os mecanismos de dominação, hierarquizações e dispositivos da racialidade seguem se reinventando e permanecendo incrustados na raiz das práticas, sendo extremamente difíceis de serem superados, visto que são estruturantes da sociedade. Desse modo, ao mesmo tempo em que é válido reconhecer o avanço histórico — simbólico e material — que a presença desses sujeitos e suas demandas aportam, é necessário também ter criticidade a respeito das armadilhas de uma certa política da representação.

Lambe do Simpósio Outros Fazeres da Cidade em São João do Cabrito. Acervo da autora, 2020.

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