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II. Da universidade para cidade
A arquiteta e professora Gabriela Leandro (2021) propõe pensar o projeto na arquitetura como “isca”, tratando-o enquanto um dispositivo, uma plataforma inserida no mundo com o qual constrói interlocuções para a sua existência. A arquitetura, enquanto campo disciplinar, dentro do aparato da modernidade ocidental, reproduz uma clara separação entre intelecto e corpo. Para Leandro, o projeto representa uma intenção que informa sobre um desejo de ação e intervenção no mundo. Ao mesmo tempo que nasce do um empenho de uma ação intelectual (mais valorizada, pois realizada por especialistas que dominam uma certa técnica), sua materialização remete a um fazer manual (subvalorizada, realizada por sujeitos supostamente “menos intelectualizados”). Tendo consciência dessa distinção hierárquica, a autora discute a natureza indissocialvemente política desse dispositivo: A quem, ao quê, e como o projeto interage com o mundo? Que ordem de mundo é essa a qual o projeto responde, constrói, intenciona, transforma? (LEANDRO, 2021)1
1 Fala transcrita da publicação online “Deslocar o projeto e Imaginar outros mundos” acessado em Tirante.Org no contexto da Ação Bate-Papo+Hipótese, exposição virtual no Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), 2021. 1. Arquitetura e Urbanismo como prática política | 31
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No meu percurso acadêmico, sempre senti certo desconforto ao detalhar, em inúmeras pranchas técnicas e memoriais descritivos, edificações situadas em terrenos fictícios para clientes imaginários, baseadas em parâmetros criados a partir de um contexto burguês2, refletindo a realidade de vida de uma minoria das cidades brasileiras. Esse ensino de projeto, presente principalmente em alguns programas da disciplina Ateliê, pressupõe um papel centralizado da arquiteta/o, enquadrando-a/o enquanto profissional que dita como um espaço deveria ser, incluindo tanto sua materialidade como seus usos. Adicionalmente, esta lógica termina muitas vezes por desconsiderar diversas/ os outras/os autoras/es e agentes do fazer cidade que deveriam ser ouvidos e partícipes desse processo.
Nesse sentido, o modelo de ensino descrito acima segue a base de transmissão do conhecimento ocidental-colonial, e atende a um mercado profissional sujeito à lógica predatória do setor imobiliário, da especulação financeira, e dos interesses privados. Em um país onde 85% das construções ou reformas são realizadas sem a contratação de um profissional da área (DATAFOLHA, 2015), reforça-se o lugar de arquitetos e urbanistas como objetos de luxo, que associam uma carreira bem sucedida ao reconhecimento pela fama de grandes escritórios que carregam seus nomes. Nesse sentido, Zaida Muxí e Josep Maria Montaner, no livro “Arquitetura e Política: ensaios para mundos alternativos” (2015: pág. 38) argumentam que:
2 Anteriormente, havia construído a frase em questão usando o termo “elitizado” ao invés de “burguês” para caracterizar o contexto das classes médias-altas da sociedade. Optei por substituir o termo “elite” e seus derivados após ter contato com uma crítica feita pelo músico Emicida, na qual ele alega que “elite é o que uma categoria tem de melhor, e se referir a pessoas que tem dinheiro como a elite da categoria humana parece que a pirâmide da humanidade é definida pelo acúmulo”. Dessa forma, Emicida sugere a substituição pelo termo “burguês”, cuja definição está diretamente relacionada a grupos sociais que gozam de certos privilégios.
“Os perfis profissionais que se formam continuam a se basear na falsa pertença a um grupo de excelência, que trabalha para um dos setores mais favorecidos, educando-se, portanto, servidores do poder, cuja atuação perante os “outros” sempre é assistencial e feita a partir de instâncias superiores. O grande desafio atual é formar universitários que fortaleçam as sociedades democráticas e mais justas do século XXI.”
No entanto, não seria correto afirmar que o modelo de ensino e aprendizado em Arquitetura e Urbanismo é único, normativo, hegemônico, monológico. É preciso reconhecer que dentro dessa formação convencional há campos distintos, com diferentes abordagens de projeto e estudos urbanos, que convivem, mesmo que assimetricamente. Linhas de pesquisa, professoras/ es e diferentes coletividades disputam formas de produzir conhecimento diariamente. Esse ambiente plural da Universidade possibilita e possibilitou desvios dentro da minha trajetória acadêmica, que me conduziram a um outro percurso formativo e ético, o qual irei me aprofundar mais adiante.
Da universidade para a cidade, a lógica descrita e criticada anteriormente se mantém quando das intervenções urbanas. Salvador, assim como outras cidades brasileiras, têm sido palco de processos de planejamento e gestão que ocorrem de forma autoritária, nos quais a participação popular acaba por não ser efetivada devido à burocratização estratégica dos mecanismos que são acionados nos momentos da tomada de decisões públicas. Essas práticas, validadas por profissionais da área, mantêm e reforçam desigualdades sociais, raciais e espaciais na formulação das políticas relativas ao espaço. As intervenções, de modo geral, ao mesmo tempo em que não dialogam com os contextos onde buscam intervir, são acompanhadas de enunciados discursivos e argumentos, predominantemente com uma linguagem tecnicista inacessível e, mesmo propagandista, que desrespeitam memórias e histórias locais. Caberia ressaltar ainda a falta de transparência nas ações institucionais realizadas em
territórios historicamente expostos a processos de vulnerabilização (SILVA et al., 2022).
A atuação do(a)s arquiteto(a)s e urbanistas nas decisões projetuais expressa, portanto, defasagens do ensino nas universidades. A priorização de funcionalismos e tecnicismos evidencia como o tecido urbano continua a ser encarado como tábula rasa ou território da abstração (VELLOSO, 2018), destituído de memórias e relações sociais. O Urbanismo, que emerge como enquanto disciplina teórica e prática no século XIX, é tido como um campo de intervenção sobre o território para “ordená-lo e controlá-lo” (MUXI, MONTANER, 2015), através de lógicas higienistas que reproduzem a segregação espacial, sendo agenciado enquanto estratégia de poder para salvaguardar os interesses das classes dominantes (MIRAFTAB, 2016).
Frente aos modos autoritários de produção neoliberal da cidade, do contexto político atual de perdas de direitos e criminalização de mobilizações sociais, reconhecer a prática do(a) arquiteto(a) e urbanista como prática política na disputa de outros Urbanismos possíveis é urgente. É necessário repensar o fazer urbanístico que está inscrito na conjuntura atual de crise contemporânea generalizada (crise do capitalismo que se mistura com crises econômicas, éticas, políticas, ambientais, em escalas globais), e imaginar práticas de descolonização que tornem possível um urbanismo humano (MIRAFTAB, 2016).
Nesse sentido, é importante que cada vez sejam estimulados espaços em que estudantes possam se relacionar com instâncias da sociedade a partir de outras premissas, que superem o lugar de cliente ou objeto de estudo, experienciando um repertório de aproximações que encarem o fazer da cidade enquanto uma construção coletiva. Acredito que a atuação profissional se torna mais justa e mais humana, quando são incorporados outros campos e fluxos do conhecimento, para além de uma suposta linearidade de transmissão de saber ou de execução de serviços técnicos.
Lambe do Simpósio Outros Fazeres da Cidade na Rua Chile. Acervo da autora, 2019
Lambe do Simpósio Outros Fazeres da Cidade no Acervo da Laje. Acervo da autora, 2019
