Paisagens Invisíveis: Suspensões do Som e do Tempo

PAISAGENS INVISÍVEIS Suspensões do som e do tempo

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO PUC-Rio 2020.1

ARQ1110 Thaisa Pires Fredo Orientadora: Prof. Flaviana Raynaud

Thaisa fredo

AG RA DEC I M ENTOS Ninguém faz nada sozinho. Tenho a sorte de ser rodeada por muitas pessoas incríveis que me ajudam a crescer diariamente como pessoa e como profissional.

Esse trabalho, em especial, não existiria sem as tantas contribuições externas que eu recebi. Agradeço por estar inserida em um contexto onde esse tipo de trabalho faz sentido e que me deu a oportunidade de explorar e engrandecer os assuntos trabalhados aqui.

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Agradeço aos meus pais, que além de me apoiarem em tudo o que eu faço desde sempre e terem me dado a oportunidade de estudar nessa universidade, tiveram paciência com o meu processo e acreditaram no potencial deste trabalho desde o início, me dando força e estímulo para continuar.

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Flaviana, que aceitou mergulhar nesse desafio junto comigo e, com muita compreensão, respeitou meu tempo e meus processos me oferecendo todo suporte e incentivo. À professora Mariana Vieira, pelas ótimas contribuições e referências incríveis que me apresentou ao longo do processo. À minha prima Priscila, que compartilhou comigo seu conhecimento acadêmico e não mediu esforços para colaborar com a construção desse trabalho.

A todxs que cederam suas vozes e concordaram em compartilhar suas experiências e memórias sonoras comigo com tanto carinho e dedicação, mesmo nesse momento tão conturbado e confuso pelo qual passamos agora, que exige muito de todos nós.

Também aos amigxs da Sinfônica Ambulante, projeto que transformou minha vida há quase dez anos e segue me trazendo muito aprendizado, orgulho e alegria. É um privilégio dividir essa parte boa da vida com vocês.

Não posso deixar de agradecer aos membros da banca, Michel Masson, Verônica Natividade e Vivian Caccuri, que enriqueceram muito o meu processo com seus comentários pertinentes e críticas construtivas. Às minhas companheiras do grupo de orientação, Chris, Bel e Ju, que acompanharam e engrandeceram meu processo ao longo deste ano compartilhando ideias, referências e diferentes pontos de vista.

E, por fim, a todos os professores do DAU-PUC-Rio que colaboraram ao longo desses cinco anos com meu crescimento e amadurecimento como futura pensadora da cidade.

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Sumário parte 1 13

INTRODUÇÃO

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A ESCUTA E A ANCESTRALIDADE A origem e essência da paisagem Narartivas ancestrais

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DOS SINOS À ESQUIZOFONIA

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O DOMÍNIO DA VISÃO E A DESCORPORIFICAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

parte 2 75

PANDEMIA O silêncio e a presença Ruído e subversão

113

APROXIMAÇÕES ARTíSTICAS Instalações e os mapas sonoros As caminhadas sonoras e a busca por uma escuta ativa

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EXPERIÊNCIA PERCEPTIVA: OS SONS

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CONSIDERAÇÕES

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DA QUARENTENA

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“pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade.”

“Não me iludo

Tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo

Deleuze

Transformando Tempo e espaço navegando todos os sentidos” Tempo Rei - Gilberto Gil

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Legenda da Foto

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“pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia.”

Deleuze

PARTE 1

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introd u ç Ã O

introduçÃO

Esta pesquisa nasceu, primeiramente, através de uma inquietação pessoal acerca do comportamento automatizado nos centros urbanos e da constatação de um aparente declínio da capacidade perceptiva das pessoas com relação à cidade. Em paralelo a isso, minha aproximação afetiva com a música, como flautista há mais de dez anos, me trouxe a vontade de entender as relações que a escuta é capaz de criar com o espaço no contexto contemporâneo e, inicialmente de maneira muito intuitiva, relacionar os sons e a cultura da escuta como uma alternativa de resgate de uma relação mais afetiva e consciente com os espaços que nos cercam.

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Sendo a audição o sentido que mais me sensibiliza, ainda que eu compreenda a importância de todos os sentidos como fontes de conteúdo para o enriquecimento da nossa experiência cotidiana das cidades, me concentro no estudo dos sons e no campo da escuta. Muito da minha experiência com a música se deu nas ruas, ocupando o espaço público e levando arte livre e democrática para as pessoas com meu grupo - Sinfônica Ambulante - nos mais diversos lugares da cidade. Com isso, vivi múltiplas experiências no que diz respeito à ativação de espaços, às variedades de reações do público em relação ao som musical e diferentes formas de experimentar a cidade. Essa, dentre várias outras razões, faz com que a música represente para mim um resgate ao sensível e ao afetivo, que considero tão negligenciados na vivência urbana.

Com o tempo, a partir da minha experiência pessoal e ao longo do desenvolvimento da pesquisa, fui entendendo que a apreensão das paisagens e dos espaços se dá para além de sua dimensão visual e, por assim dizer, para além dos limites impostos pela a visão. Sendo assim, a maneira predominantemente imagética na qual vivenciamos nossos espaços minimiza consideravelmente as possibilidades de nossa conexão afetiva com a cidade.

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Devido à essa longa vivência com música itinerante e arte de rua somada à minha prática como usuária da cidade e estudante de arquitetura e urbanismo, compreendo a influência dos sons e da escuta não só no processo de reconhecimento do espaço urbano, mas também de resgate da experiência subjetiva e ruptura do comportamento automatizado contemporâneo. Esse misto de intuição, experiência e curiosidade me fizeram questionar por que os sons, no contexto atual, são interpretados com uma conotação tão negativa e como as múltiplas sonoridades presentes na cidade podem

introd u ç Ã O

nos auxiliar no processo de subjetivação da cidade e produção de identidade no espaço.

Ao me lançar nesse desafio de encarar um tema incomum e pouco discutido - não só ao longo da minha experiência acadêmica, mas em todo o campo da arquitetura - me deparei com a dificuldade de encontrar estudos sobre o som como elemento constituinte da prática urbana, e identifiquei a tendência em tratá-lo como um problema, causador da poluição sonora e como fator prejudicial à saúde. Ao que parece, as sonoridades urbanas ainda estão no imaginário comum como ruídos a serem combatidos, e não como forma de conhecimento de um lugar ou meios de apropriação dos espaços. Nesse sentido, me questiono por que os sons da cidade são tão pouco explorados nos estudos urbanos, uma vez que também constituem o entendimento dos espaços, a experiência humana e a própria cidade.

Em razão dessa carência de referências no campo da arquitetura e do urbanismo, me dediquei na procura de estudos e autores em outras áreas do conhecimento.

Esse processo de tentativa e erro - árduo, lento, porém valioso - de descobertas das bibliografias mais adequadas me fez perceber o quanto o estudo dos sons aplicado à cidade e à sociedade - bem como a disseminação desse conhecimento - são restritos.

Como primeira referência para as questões sonoras, me deparei com o conceito de paisagens sonoras, neologismo criado pelo compositor e escritor Murray Schafer no final dos anos 60. Seu principal projeto, World Soundscape Project1, busca o resgate da valorização dos ouvidos e 1 O projeto iniciou o estudo moderno da ecologia acústica . Seu objetivo final é “encontrar soluções para uma paisagem sonora equilibrada onde a relação entre a comunidade humana e seu ambiente sonoro está em harmonia.”

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da escuta como recurso de configurar o mundo. Através de seus livros e algumas de suas composições, Schafer propõe a construção de um ambiente sonoro como faria com uma composição musical, na tentativa de se criar uma paisagem sonora mais agradável aos ouvidos. Essa visão compositiva dos sons, no entanto, cria alguns critérios muito seletivos e separa os sons de forma muito categórica, o que acaba deixando de lado questões importantes e subjetivas, como questões políticas e sociais que, principalmente dentro desse contexto que nos cerca, precisam ser levadas em consideração no que diz respeito aos significados e interpretações atribuídos aos sons. Apesar disso, a pertinência de Schafer se justifica principalmente em razão de, como pioneiro nos estudos das paisagens sonoras, criar conceitos e termos que nos permite nomear, descrever e questionar alguns fenômenos sonoros importantes no processo de transformação da cultura da escuta. Alguns desses conceitos permeiam o texto e trazem discussões acerca da relação dos sons e dos efeitos sonoros na sociedade.

Para suprir essa carência política e social dos sons na abordagem que Schafer apresenta, exploro algumas ideias de Jacques Attali (1977) e Jean-Francois Augoyard (1995), que tratam os fenômenos sonoros de uma maneira mais contextualizada, subjetiva e transformadora.

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No primeiro capítulo, apresento alguns conceitos históricos de paisagem que evidenciam essa ideia como algo primordialmente sonoro - e não visual, como pressupõe o senso comum - e apresento algumas narrativas que revelam a ancestralidade da relação humana com a escuta. Na sequência, no capítulo dois, apresento referências históricas e conceitos que elucidam como as transformações da sociedade e da tecnologia alteraram nossos ritmos de vida e moldaram a nossa

introd u ç Ã O

maneira de ouvir e experimentar os espaços. Então, me baseio nos conceitos do geógrafo humanista Yi-Fu Tuan (1977), que trata a experiência no espaço como algo intrinsecamente sinestésico e ligado à cultura. Em sua obra, Tuan destaca que são as ligações afetivas evocadas pelo ambiente que transformam um espaço em lugar - este sendo, então, uma construção puramente humana, derivada da experiência.

No decorrer da pesquisa, face a minha constante inquietação com o automatismo comportamental e com a relação pouco saudável que a sociedade atual desenvolveu com o tempo acelerado, nos deparamos, como humanidade, com uma grande desaceleração forçada nos nossos ritmos de vida e, portanto, no modo como nos relacionamos com a cidade. A pandemia do COVID-19 (2020) e o consequente isolamento social me fizeram refletir sobre o rumo que eu daria a este trabalho e, depois de muitos questionamentos, decidi que não faria sentido levá-lo para um caminho que não fosse de encontro com o contexto inédito no qual estamos vivendo. A pandemia e todas as suas consequências nos fazem, como sociedade, parar e questionar o caminho que estamos traçando para o futuro do planeta. Sendo assim, ao meu ver, não faria sentido continuar este trabalho considerando uma conjuntura pré COVID-19.

A necessidade do isolamento social e o consequente esvaziamento das cidades modificaram drasticamente a paisagem urbana, inclusive a paisagem sonora.

Com a limitação de não poder caminhar pelas ruas e a mudança expressiva no meu trajeto de estudo, encaro a pandemia não só como o marco de uma mudança definitiva no modo de compreender, criar e reconhecer os espaços, como detalhado no terceiro capítulo, mas também como oportunidade de reavaliar todas essas relações, afinal, segundo Yi-Fu Tuan (1983), são

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justamente os acontecimentos adversos que nos obrigam a refletir sobre as experiências. Assim, a pandemia, que inicialmente se apresentou como uma adversidade para a conclusão dessa pesquisa, foi transformada no principal condicionador para que ela exista hoje como ela é.

Falar da pandemia estando nela não é das tarefas mais fáceis. Contudo, mesmo correndo o risco de simplificar ou negligenciar aspectos importantes que poderão ser melhor observados posteriormente com um olhar externo, me lanço ao desafio de compreender como se dão as relações com o som e o espaço nesse novo contexto onde nosso alcance físico é tão limitado.

Procuro, ainda, entender como a pandemia se projeta de maneiras distintas em lugares com contextos sociais e culturais diferentes, através das mudanças percebidas na paisagem sonora de cada lugar e como os sons, os ruídos e os silêncios foram ressignificados pelas pessoas em consequência dessa circunstância. Para estabelecer as discussões acerca de ruído e silêncio, exploro as ideias dos músicos e pesquisadores José Miguel Wisnik (1999) e John Cage (1985). Como musicista e grande apreciadora da música, decidi não me limitar a trazer para esta pesquisa apenas referências tradicionais. Muitos artistas e músicos possuem uma visão interessante sobre o som e seus nexos. Por isso, ao longo dos capítulos, apresento trechos, frases e falas de músicos brasileiros que ilustram as discussões e conceitos apresentados no decorrer da leitura.

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Nesse contexto, onde tudo parece - e deve - ser reavaliado, proponho um resgate às percepções auditivas e memórias sonoras a partir do convite para uma escuta consciente e estímulo para se relacionar de alguma forma com o espaço externo - a cidade - partindo primordialmente de percepções sonoras.

introd u ç Ã O

Desde o início da pesquisa, sempre esteve presente em mim a vontade tratar esse tema de uma forma subjetiva e baseada em experiências, pois entendo que abordar o espaço, a cidade e a percepção no âmbito sonoro é, de certa forma, descortinar um horizonte poético através da associação com um campo que é fértil em explorar relações espaço-afetivas.

Diante disso, inicialmente escolhi um recorte geográfico no centro do Rio de Janeiro como objeto de estudo de forma que eu pudesse me inserir no lugar, vivenciar minhas próprias experiências no espaço e coletar experiências e memórias daqueles que vivem e transitam por ali.

A princípio, minha forma de aproximação seria por meio das caminhadas sonoras, prática difundida pela artista e pesquisadora Hildegard Westerkamp, que consiste numa experiência itinerante e investigativa do ambiente sonoro levando a um contato mais sensível e afetivo com o espaço, como abordado mais profundamente no capítulo cinco.

No entanto, a limitação de não poder caminhar pelas ruas e explorar presencialmente os espaços, as pessoas e sons da cidade me obrigaram a repensar a metodologia planejada para a parte prática desta pesquisa. Me questionei muito sobre como se daria a experiência nesse novo contexto, onde qualquer prática precisaria ser necessariamente remota. Decidi, por fim, tomar como ponto de partida para a elaboração da prática o guia da experiência que Westerkamp utiliza em uma de suas caminhadas, com o intuito de direcionar o pensamento e a percepção para que a experiência dos participantes seja mais assertiva e profunda. Depois de alguns testes, entendi a necessidade de adaptação para uma realidade remota e encontrei um novo formato, como apresento

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detalhadamente no último capítulo.

Como estudante de arquitetura, ao longo de toda minha vivência acadêmica fui acostumada a estudar e me aprofundar em um recorte espacial específico da cidade com o fim de elaborar um projeto. Diante disso, um dos maiores desafios nesse processo foi me sentir confortável com o fato de abrir mão de estudar uma localidade específica e ampliar geograficamente a pesquisa, de forma que ela se adequasse com o contexto no qual estamos inseridos agora e permitisse um compartilhamento de experiências remoto. Contudo, apesar do desconforto, julguei mais importante enfatizar e me aprofundar no contexto - a pandemia - e a multiplicidade de experiências sonoras e espaciais que ela provoca do que o apego a um só lugar.

Diante desse contexto onde muitos de nós nos encontramos fisicamente distantes, decidi então adotar como método não a investigação de dados concretos, mas uma investigação qualitativa e colaborativa acerca da experiência sonora, que me revelou, através dos relatos recebidos, uma multiplicidade de informações e pontos de vista interessantes que contribuíram para a construção desse trabalho, a elaboração e questionamentos de certos conceitos.

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Ao longo dos capítulos, apresento trechos desses relatos e imagens enviadas pelos participantes que ilustram as discussões propostas acerca dos conceitos relacionados ao som, mostrando diferentes versões e interpretações a respeito dos fatos, das situações e dos contextos. Segundo Augoyard (1995), esse tipo de abordagem pode “facilitar a compreensão e estimular a experiência individual do leitor, evocando outras memórias ou citações que farão ainda mais sentido pra ele”. As imagens recebidas e apresentadas ao longo do

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trabalho não tem como objetivo tornar visível o que é essencialmente audível, mas acredito que elas são capazes de complementar a experiência de quem lê como forma de ilustrar o que foi relatado e permitir que o leitor imagine o som daquele lugar, já que, segundo o mesmo autor, elas “lembram a relação íntima e muitas vezes intrusiva que as imagens mantêm com os sons em nossa civilização”. No entanto, reforço que, como ele mesmo defende, as ilustrações devem sempre ser vistas como convites para olhar o som, e não como substitutos da falta de audição.

Assim, essa pesquisa se configura não como uma análise convencional sobre o tema, mas como uma investigação mais humana e afetiva, afinal, o que o mundo e todos nós precisamos nesse momento conturbado é um pouco mais de humanidade.

Reconheço, por fim, o caráter político deste trabalho tendo em vista o cenário político e social conturbado do nosso país, evidenciado pelo contexto pandêmico que subitamente modificou a nossa relação com o cotidiano, gerando um cenário de incertezas e novas configurações em nossa relação com o espaço e com o tempo. Além disso, assumo minha posição de privilégio enquanto mulher branca, estudante de arquitetura, moradora de um bairro de classe média alta onde grande parte das pessoas tem a oportunidade e a responsabilidade social de cumprir a quarentena decretada pelas autoridades na segurança de seus lares.

Que esta pesquisa aqui, então, se direcione para uma interpretação poética da escuta, com o desejo de oferecer uma diferente percepção sobre os lugares e a lírica sonora do cotidiano. Dito isso, reforço minha intenção nesse percurso: explorar relações espaçoafetivas no contexto da pandemia, colocando a escuta

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como agente transformador da experiência espacial, da construção de memórias sonoras e “desautomatização” da percepção em suas formas de apresentar, imaginar ou questionar a nova realidade que nos cerca.

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introd u รง ร O

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A E S C U TA E A A N C E S T R A L I D A D E

A E SCUTA E A A N CES TRALIDA DE

A ORIGEM E A ESSÊNCIA DA PAISAGEM

Não existe uma abordagem universal para ouvir. Todo indivíduo, todo grupo, toda cultura ouve à sua maneira.

Inicio esta pesquisa apresentando a ancestralidade da nossa relação espacial com nossos ouvidos através das noções de paisagem e de como diferentes grupos, em diferentes tempos interpretam os sons e as múltiplas formas de paisagem como meios de expressão, localização e sobrevivência.

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Essa noção é importante, antes de tudo, para mostrar como a cultura da escuta se modifica não só entre povos e culturas, mas também com o passar do tempo e com as evoluções e revoluções da sociedade, para que assim consigamos compreender as nossas formas de ouvir na atualidade e suas razões.

Principalmente no ocidente, o ouvido cedeu lugar aos olhos desde o Renascimento, quando a visão passou a ser considerada a mais importante fonte de informação graças ao desenvolvimento da imprensa e da pintura em perspectiva. Quando pensamos no significado da palavra “paisagem”, por exemplo, é comum que ele seja resumido à uma condição puramente imagética, surgida no modo de expressão artística renascentista onde o quadro em pintura era como o mundo representado através de uma janela, “seja essa janela apenas parte do quadro, ou confundida com o próprio quadro como um todo”. Ultrapassando essa noção predominante que reduz a paisagem a uma unidade visual e a um plano de fundo criado por representações imagéticas, a paisagem se transforma num sistema que relaciona questões de caráter social, cultural e político, com dimensão temporal e capaz de produzir memória. Podemos considerar, assim, a paisagem como um fenômeno vivido e que transcende essa unidade meramente visual que se distancia das experiências da vida.

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O termo “paisagem” sequer nasceu no campo visual.

Jean-Marc Besse defende que ela nem mesmo nasceu em si, mas sim na “relação com um sujeito individual ou coletivo que a faz existir como uma dimensão da apropriação cultural do mundo” (BESSE, 2009). Em outras palavras, a paisagem pode ser considerada uma maneira de perceber. Ela é, antes de mais nada, “sensível, uma abertura às qualidades sensíveis do mundo”, ou seja, ela não diz respeito a um sentido

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sensorial específico, ela é justamente o conjunto deles.

Na prática perceptual, esses sentidos cooperam com tanta proximidade e sobreposição que é praticamente impossível separá-los. Sendo assim, pode-se afirmar que a paisagem é subjetiva e sua interpretação pode estar relacionada à uma percepção coletiva – por um grupo de determinado lugar - ou individual. Nesse sentido, visto que a paisagem é produto e produtora de cultura e possui formas, cores, cheiros, sons e movimentos, fica claro que seu entendimento não deve considerar apenas o aspecto visual, pois a visão não é suficiente para captar e desvendar todos os elementos tanto físicos quanto simbólicos presentes nela.

No mundo grego, por exemplo, a paisagem se divide em três dimensões que contemplam a relação do homem com o espaço construído nas comunidades gregas: natural, habitada e mítica, que são interdependentes e entrelaçadas (SILVA, 2016)1. A primeira delas está associada às características físicas do território, como as montanhas, planícies e o mar. Como tem relação direta com os fenômenos da natureza, possui forte caráter simbólico e subjetivo remetendo às suas figuras sagradas. A paisagem habitada era elaborada pela organização política e necessidade de agricultura, uma paisagem produtiva. E por fim, a mítica, a mais característica delas, que “tem como suporte e conteúdo o imaginário, as imagens mentais, a memória coletiva, mitos, ritos, percepções e experiências que conformam os distintos modos de ver o mundo e suas construções simbólicas” (SILVA, 2016).

Essa paisagem grega mítica, simbólica em sua mais pura essência, se manifesta justamente na palavra, na audição. É a paisagem narrada através da oralidade e,

1

Revista Paranoá, nº 16

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consequentemente, ouvida. Os principais ritos gregos surgem da poesia lírica, que, no contexto grego, significa a poesia cantada ao som da lira. Apesar dos registros escritos - alguns sobrevivem até hoje -, a poesia grega - e a paisagem mítica - é inseparável da música e do canto. Safo, considerada a maior poeta da grécia antiga, recitava a paisagem através de suas poesias cantadas, que consistiam justamente na sua percepção em relação ao espaço vivido.

Se pararmos para analisar, as fontes orais sempre foram um meio de perpetuação de memórias. Aliás, mais do que isso: elas foram o primeiro meio de perpetuação de memórias. As histórias passadas de geração para geração, os conhecimentos ancestrais, a palavra de Deus, a história das tribos , a própria noção de paisagem segundo os gregos. Todas essas e muitas outras informações importantes eram ouvidas e não vistas. Apesar de sempre relacionarmos o espaço à questões físicas palpáveis e visíveis, o som é, histórico e cientificamente, o elemento mais básico e ancestral de qualquer manifestação espacial. O som é, assim, tornar presente, fazer aparecer em conjunto a totalidade.

Grandes contribuições para a história foram faladas.

Um bom exemplo disso vem da própria grécia clássica, que possuía uma cultura oral muito forte: Sócrates não deixou nada escrito justamente por acreditar que ideias escritas se degeneravam e caíam no esquecimento. Assim, suas ideias e seu método de filosofar eram expostos a partir de diálogos onde interrogava seu interlocutor, conduzindo de forma tal que o próprio interlocutor era capaz, sozinho, de descobrir o que desejava saber. Isso só era possível através do diálogo e assim, passados de geração em geração.

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“Dizem que antes de tudo veio o

verbo. Não! Antes de tudo veio a

música. O verbo só veio com o homem.

Antes do mundo ser criado, tudo isso era uma grande sinfonia: a terra, os mares, os rios, os ventos, o crepitar das chamas. Uma sinfonia, minha

filha. Antes de tudo houve a música.

O vento soprando, isso é música. Só depois apareceu o homem, viu essa

beleza toda e teve a necessidade de dizer pro outro como ele estava se sentindo. Aí é que veio o verbo”

Mateus Aleluia 29

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De acordo com Sérgio Basbaum2 (2012), foi justamente com o início do Renascimento e da invenção da imprensa de Gutemberg que começou a haver uma transição da cultura oral para a cultura escrita configurando um grande marco histórico, na medida em que a escrita gera uma nova forma de pensamento: linear, racional e organizador, com uma compreensão do tempo e do espaço metrizada e racionalizada segundo padrões de medidas. Uma verdadeira revolução na forma de entendimento da realidade e, consequentemente, nas relações entre os sentidos visual e auditivo e na forma como a cultura ocidental vai passar a viver a experiência do som no espaço. Nas palavras do autor:

“A cultura sinestésica medieval será desmontada por um conjunto de forças que culminam no chamado Renascimento.

Mas, à medida que a modernidade se instala – e com ela a primazia da razão sobre a fé, a gênese da ciência clássica, a crescente autonomia da obra de arte e, sobretudo, a constituição do sujeito – a unidade dos sentidos será preservada ainda ao longo de radicais transformações na cultura. Para Marshall McLuhan, a gênese destas transformações estará na invenção, por Guttemberg, da prensa de tipos móveis que possibilita a reprodução em escala até então inimaginável do pensamento linearizado na linguagem verbal impressa. O resultado será a primazia da visão sobre os demais sentidos e o fim do equilíbrio perceptivo do mundo oral” (BASBAUM, 2012, p. 254).

A partir dessa significativa transformação nos modos de expressão, a audição começou a perder protagonismo

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2

Músico, professor e pesquisador sobre sinestesia, arte e tecnologia

na PUC-SP.

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nos processos de comunicar e representar, e na própria relação das pessoas com os lugares. Como antecipou Basbaum, a visão passa a ter mais notoriedade e relevância não só na arte, mas na forma como aquela sociedade passou a vivenciar seus espaços, ocasionando o início de uma hierarquização no sistema sensorial, agravado posteriormente com o desenvolvimento tecnológico, modificando substancialmente nossa relação com a paisagem e com a cidade, como será acentuado no segundo capítulo.

NARRATIVAS ANCESTRAIS

Além das questões históricas e múltiplas definições da paisagem, é indispensável entender como o ouvido humano sempre foi capaz de interpretar e compreender espaços tanto de maneira prática, auxiliando em termos de proteção e sobrevivência, quanto de maneira abstrata, possibilitando a produção de significados e sínteses que localizam o homem no seu espaço-tempo. A definição de espaços por significados acústicos pode ser considerada muito mais antiga do que a fixação de cercas e limites de propriedade, e isso pode ser observado tanto no mundo animal quanto na cultura humana ancestral.

Em tribos nômades ou em sociedades rurais, as pessoas estão ativamente em contato com a natureza diariamente e seu estilo de vida é profundamente integrado ao ambiente natural. Para eles, é uma questão de sobrevivência ser capaz de entender e até imitar os sons da natureza.

Qualquer som encontrado durante uma caçada, como um simples estalo, levaria significados acústicos muito específicos a um caçador indígena e daria pistas sobre

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os animais e seu paradeiro. Até as árvores de diferentes espécies têm seus sons e vozes característicos quando expostas ao vento e expressam sinais específicos para quem vive ali. As fortes relações com o som, porém, estão diretamente ligadas à cultura e localização de cada povo, resultando em diferentes formas de ouvir.

Um experimento sonoro1 feito em duas aldeias com costumes diversos mostra como cada povo interpreta os sons de forma diferente e como isso interfere em seus respectivos cotidianos. Na primeira aldeia (Wauja), num experimento feito através de desenhos e da emissão vocal de sons graves e agudos, os indivíduos mostraram que entendem o som grave como estando perto e o agudo como estando longe, de forma horizontal. Na segunda (Kamayurá), os indígenas entendem o grave como baixo e o agudo como alto, sendo assim um eixo vertical.

“A conexão entre freqüência sonora e horizontalidade pode ter relação com uma percepção do caráter plano do ambiente local. Isto poderia sugerir uma determinação ecológica para a percepção sonora. [...] Notamos também que os Wauja percebiam sons que não conseguíamos ouvir: por exemplo, um trator distante que estava a caminho da aldeia, e nos informavam com exatidão quanto tempo ele levaria para chegar. Este fato nos sugeriu que o desenvolvimento da horizontalidade na percepção sonora Wauja está relacionado a um monitoramento espacial da natureza, algo que é imprescindível não apenas no aferimento de distâncias temporais de objetos sonoros em movimento, como também em atividades como caminhadas no mato e durante a caça. Além disso, notamos que os Wauja são capazes de ouvir a fala de uma pessoa distante. Nossas observações levaram à idéia de que há um monitoramento sonoro da sociedade como

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1

PIEDADE, A. T. C; MELLO, 2005. p.84-90

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um todo, no sentido da impressionante capacidade de saber onde estão e o que falam as pessoas em diferentes localidades da aldeia” (PIEDADE, A. 2005, p. 86)

Esse trecho deixa claro como os Wauja possuem uma audição de mundo que explora o espaço, mostrando que essa conexão entre a audibilidade e a espacialidade têm muito a ver com o fato de que ouvir é um fenômeno que se dá na espacialidade, de que há um “ vínculo ontológico entre o som e o espaço que lhe é originário” (PIEDADE, A. 2005) Ou seja, a relação que estabelecemos primitivamente com o som, antes de qualquer imposição cultural contemporânea, é essencialmente ligada ao espaço, como mostra o trecho abaixo:

“Os seres humanos estabelecem uma relação originária com o som que é fundamentalmente espacial, mesmo quando se trata da escuta dos sons da música ou de uma língua, e esta relação originária nunca é perdida, embora seus termos sejam construídos e sistematizados culturalmente. Assim, a percepção da espacialidade é considerada primordialmente sonora, pois o espaço aberto pelo som não é experimentável em termos visuais, ou seja, uma característica do espaço é que ele é essencialmente audível: não se pode ver o espaço.” (PIEDADE, A. 2005, p.

87)

Em outras palavras, o espaço em si não é visível e o que vemos são, na verdade, elementos que estão no espaço, tornando-o substancialmente audível. Assim, o som apresenta relações indissociáveis com o espaço e a cultura, ou seja, a espacialidade do som não se

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perde, independente de qualquer filtragem cultural.

Além das questões de sobrevivência, grande parte dos rituais indígenas são cantados e todo seu conhecimento ancestral é passado de geração em geração através da oralidade e da escuta, assim como acontecia com os gregos. Isso nos mostra que, não importa onde vivemos, todos deveríamos manter um contato sinestésico com o ambiente, visto que, para além dos elementos visuais, todo som carrega significados muito específicos. Mesmo que, como seres urbanos, não possamos mais integrar totalmente nosso estilo de vida aos ciclos da natureza, é vital que mantenhamos contato consciente com o meio ambiente. Nossas cidades estão cheias de pistas acústicas que, em diferentes níveis e diferentes culturas, são importantes para nossa sobrevivência, compreensão e bem estar. Precisamos ouvir nossas cidades assim como os povos indígenas ouvem suas florestas.

Em um de seus textos relacionados às caminhadas sonoras, Westerkamp apresenta três ótimos exemplos da relação espacial que estabelecemos com o som. O primeiro aponta como os marinheiros e capitães de navios usavam a escuta para determinar sua posição em relação à costa:

“Eles costumavam obter sua posição com um assobio de eco.

Eles davam um pequeno apito e estimavam a distância da costa pelo eco de retorno. Se o eco voltasse de ambos os lados ao mesmo tempo, saberiam que estavam dentro no meio do canal. [...] Também poderiam reconhecer diferentes linhas costeiras por ecos diferentes - um penhasco rochoso, por exemplo, daria um eco claro e distinto, enquanto uma praia daria um eco mais prolongado. Eles poderiam até captar um eco dos troncos”.

(Gordon Odlum, reminiscence, Vancouver, 1973)

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O outro exemplo nos diz como os esquimós costumavam se orientar em seus ambiente nórdicos, onde visualmente tudo é muito uniforme por causa da neve:

“Lembro-me de viajar no nevoeiro ao longo de uma costa perigosa. A visibilidade era zero, mas não demoramos nem nos desviamos. Meus companheiros ouviram o surf e os gritos de pássaros nidificando em promontórios; eles sentiram o cheiro do litoral e do surf; sentiram o vento e o borrifo” em seus rostos e ‘leram’, através de suas nádegas, os padrões de ondas criados pela interação entre vento e ondulação. A perda da visão não era uma desvantagem séria. Quando eles usavam os olhos, era freqüentemente com uma acuidade que me surpreendia. . Mas eles não estavam ‘perdidos’ sem eles.” (Edmund Carpenter, “Eskimo Realities”, Nova York, 1973, p. 36)

Esses dois relatos expressam muito bem como certas paisagens ou condições ambientais podem provocar acústicas específicas e como cada povo, de acordo com sua respectiva cultura e necessidade, interpreta e se conecta com ela.

O último exemplo dado por Westerkamp mostra como os habitantes de uma paisagem em particular adaptaram seu sistema de comunicação considerando com muita sensibilidade as características acústicas específicas dos seus respectivos ambientes. Os pastores dos Alpes austríacos e suíços, por exemplo, costumavam se comunicar através de um “canto muito melodioso”.

Explorando a qualidade acústica que favorece o eco na região dos alpes, esse canto antes usado unicamente

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para comunicação transformou-se na arte do yodelling2, aproveitando as características morfológicas do espaço e unindo as dimensões física e cultural dos sons. Nas planícies da Prússia Oriental, no entanto, os homens que cuidavam de suas jangadas costumavam chamar uns aos outros com um tom bem agudo, que, considerando as vastas planícies do país, alcançavam longas distâncias.

Por fim, um exemplo mais recente e mais próximo é a importância da interpretação dos sons nas favelas.

A disposição espacial das favelas é conturbada, congestionada por construções e pequenos espaços de circulação, como os becos e vielas. Com tantas paredes na paisagem, os olhares não são capazes de alcançar muita distância, assim, os sons permitem uma melhor leitura do cotidiano. A rotina agitada das favelas traz uma dinâmica sonora muito alta e amontoada. A violência e as frequentes invasões policiais fazem com que os moradores estejam sempre atentos às mudanças na paisagem sonora. Uma pesquisa publicada na revista Ensaios3 destaca como os sons colaboram para a vivência desses moradores, destacando a temerosa ocorrência do silêncio:

“Ele anuncia tensão, ou seja, que os grupos criminosos rivais estão se enfrentando, ou que estão enfrentando a polícia. O silêncio é a pista de que o ‘clima’ na favela não está bom e que algo de errado aconteceu ou está acontecendo. O silêncio é a possibilidade de poder dizer o que não se pode dizer abertamente. E ele só é apreendido a quem possui os hábitos do lugar. Acreditamos que o uso do som por estes sujeitos foi uma

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Forma de canto que utiliza sílabas fonéticas, criando um som que

muda rapidamente e repetidamente.

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Revista Ensaios, vol.8, janeiro-junho, 2015

A E S C U TA E A A N C E S T R A L I D A D E

das formas mais fantásticas e inteligentes de dizer que não está tudo bem, que algo mudou o cotidiano. Onde não precisa dizer abertamente o que de fato está acontecendo, basta regular o som ou mudar a partitura”. (ROSENDO, 2015, p.53)

Todos esses relatos de diferentes lugares e culturas mostram que quanto mais somos capazes de observar nossas formações e condições ambientais, mais possibilidades acústicas podemos descobrir nelas.

O ponto é que nós, enquanto sociedade capitalista ocidental, possuímos uma competência sonológica 4 muito debilitada, visto que vivemos em um ambiente com uma densa massa sonora e estímulos excessivos diariamente. De acordo com Schafer (1977), somos, simultaneamente, o público, os executantes e compositores das paisagens sonoras que nos cercam, ou seja, estamos intrinscecamente associados à multiplicidade sonora presente em nossas cidades e somos parte responsáveis pelos sons que nos cercam.

Dito isso, me pergunto que tipo de transformações seriam possíveis se nossa capacidade de diálogo e compreensão desses sons fosse aprimorada.

Além disso, entender essa relação é essencial para se pensar como nosso vínculo com nossos ouvidos é, ao mesmo tempo, ancestral e cultural, e como a cultura ocidental menospreza os ouvidos como elemento fundamental e potente no que diz respeito à criação, interpretação e concepção de espaços.

No capítulo a seguir, apresento fatos históricos que nos ajudam a entender como se deram as transformações 4

Capacidade de audição atenta e de conhecimento das propriedades

sonoras, e a capacidade de projetá-las. (SCHAFER, 1977, p.217)

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na cultura da escuta e como chegamos Ă essa realidade sonora, muitas vezes conturbada, presente hoje nas cidades ocidentais.

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A E S C U TA E A A N C E S T R A L I D A D E

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D os sinos à es q u i z o f onia

Dos sinos à es quiz ofonia

A agitação frenética do tráfego rodoviário, ferroviário e aéreo, os sinais de trânsito, apitos elétricos, transmissões radiofônicas, anúncios publicitários e institucionais, vozes interrompidas por murmúrios eletrônicos vindos de dispositivos de comunicação e tantos outros ruídos reverberam no concreto armado dos edifícios e viadutos e ressoam nas superfícies envidraçadas das construções.

Toda essa densidade de sons gerados e multiplicados pela tecnologia constituem boa parte da nossa experiência urbana no século XXI. Esse século do desempenho, do tempo acelerado e de informações multidirecionais é resultado de um veloz e incessante processo de

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Thaisa fredo

transformação e desenvolvimento tecnológico ao longo da história.

Acredito que o ambiente acústico geral de uma sociedade pode ser lido como um indicador das condições sociais que o produzem, além de nos contar muita coisa a respeito das tendências e evoluções dessa sociedade. Ao longo da história, alguns episódios específicos podem ser considerados como marcos que determinaram alterações significativas na estrutura da sociedade e nos sons que as compõem, acarretando mudanças na nossa maneira de ouvir os espaços, nos ritmos de vida e nossa relação com o tempo.

Como já elucidado no capítulo anterior, a cultura da escuta é ancestral e, desde as sociedades mais antigas, o ser humano usa seus ouvidos não só para produzir significado para os espaços, mas para proteção e sobrevivência. Muito do que diz respeito não só à evolução das sociedades, mas também às suas prioridades e relações de poder pode ser percebido pelos sons que ela produz.

Um dos primeiros marcos históricos que determinou nossa maneira de ouvir e vivenciar os espaços desde a Idade Média, muito presente até hoje na sociedade ocidental, foi a ascensão da Igreja Católica. O cristianismo alterou significativamente a forma como a sociedade se relaciona não só com os sons, mas com os espaços, com o mundo. A relação criada pela Igreja com os sons e os espaços foi pensada com a finalidade de valorizar a autoridade divina, criando um monopólio de sons poderosos que busca confrontar o poder de Deus à insignificância humana. Sobre a relação primária entre som e poder, Jacques Attali afirma que:

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“Toda música, qualquer organização de sons é, então, uma

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ferramenta para a criação ou consolidação de uma comunidade, de uma totalidade. É o que liga um centro de poder a seus súditos e, portanto, mais geralmente, é um atributo do poder em todas as suas formas. (ATTALI, J. 1977, p.6, tradução minha)

As antigas catedrais apresentam uma espacialidade favorável à propagação dos sons, com uma arquitetura imponente que provoca, além de um impacto visual, uma experiência acústica extraordinária àqueles que as visitam. Somados à arquitetura monumental, o poder divino também é manifestado nos sons dos sinos, dos órgãos que ressoam de forma grandiosa e alastradora e na organização do espaço dessas igrejas. 1 Além disso, a música era - e ainda é - usada para reforçar essa hierarquia de poderes entre os humanos e Deus.

Nos ritos católicos, a palavra divina e as passagens bíblicas eram cantadas por seus representantes, enquanto a grandiosidade da catedral, tanto em termos arquitetônicos quanto acústicos, evocava o silêncio dos fiéis. A música sacra, de caráter melódico - como o canto gregoriano - apenas acompanhado por instrumentos harmônicos, como o órgão, era composta com a finalidade de transmitir, além da mensagem divina, a sensação de suspensão das questões mundanas e a presença de Deus. Assim, o silêncio coletivo se faz fundamental nas cerimônias da Igreja no sentido de respeito e reflexão.

Catedral Notre-Dame de Paris

O altar ao fundo, todos os assentos dispostos lado a lado virados para uma única direção também apontam que ali apenas uma voz deve ser ouvida: a voz de Deus.

Essa hierarquia espacial e sonora criou uma espécie de

1 paris/

foto: https://www.culturagenial.com/catedral-notre-dame-

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paradigma organizacional e da própria escuta, que pode ser observado até hoje nos teatros, nas salas de cinema e na forma como ouvimos e consumimos a arte. Além disso, essa ideia permanece forte em muitas sociedades ocidentais no que diz respeito ao espaço urbano, não à toa muitas cidades que conhecemos começaram a ser construídas em torno das igrejas, centralizadas no espaço como manifestação da autoridade divina.

Essa disposição espacial permitia que o som dos sinos tivessem um maior raio de alcance. O badalo do sino, que ainda hoje é um marco sonoro de valor simbólico em muitas cidades ocidentais, representava não só um chamado para as orações e marcações de tempo, mas também anunciava diferentes mensagens para a comunidade, dependendo da intensidade e do ritmo de suas badaladas.

Hoje, apesar de ainda muito presente nas cidades, os sons dos sinos das igrejas perderam alcance em razão dos ruídos do tráfego e muitos outros que se sobrepõem na paisagem sonora urbana e abafam o seu som, além das barreiras físicas estabelecidas pela grande quantidade de construções. Ainda assim, as igrejas e catedrais localizadas em grandes centros urbanos cultivam a qualidade acústica interna e, por isso, podem ser consideradas uma espécie de refúgio sonoro na cidade, já que preservam o silêncio e a atmosfera contemplativa, que rompem com a lógica acelerada do ambiente externo.

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Posteriormente, no século XVIII, a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, trouxe um novo modelo de produção em série e a mecanização do trabalho.

Com as novas tecnologias, como as máquinas a vapor, que permitiram o início da produção em larga escala, estabeleceu-se a ideia de “tempo é dinheiro” e foi dado início à uma incessante busca por desempenho. Com

D os sinos à es q u i z o f onia

esses novos maquinários e processos de manufatura, a população começou a experimentar um crescimento produtivo sem precedentes e, consequentemente, um significativo aumento da massa sonora na experiência cotidiana.

O surgimento abundante de novos sons – mecânicos, frequentes e intensos – trouxe consequências significativas para muitos dos sons naturais e humanos e implicou alterações na percepção dos indivíduos e na cultura da escuta. Ainda assim, a sociedade adquiriu um certo entusiasmo pelo ruído tecnológico, já que esses sons mecânicos da cidade passaram a ser símbolo de progresso e produtividade, sendo cada vez mais estimados por aqueles que desejavam o aumento da produção e o lucro.

A partir de então, a relação dessas sociedades mecanizadas com o silêncio passou a mudar uma vez que esse, de certa forma, começou a ser desprezado por representar falta de produtividade, pausa e atraso, afinal, à medida em que a indústria cresce, seus sons tendem a crescer com ela.

Esse novo fenômeno sonoro foi extensamente ampliado posteriormente pela Revolução Elétrica, quando foram inventados o telefone, o fonógrafo e o rádio. A partir daí, os sons ganharam vida amplificada e independente.

Schafer (1977) nomeia esse fenômeno de “esquizofonia” - claramente evocando a mesma dramaticidade da palavra esquizofrenia, se referindo à separação entre o som original e sua reprodução eletroacústica, atribuindo uma conotação negativa. Ele explica que “os sons originais são ligados aos mecanismos que os produzem.

Os sons reproduzidos por meios eletroacústicos são cópias e podem ser representados em outros tempos e lugares” (SCHAFER, 1977, p.364). Antes, os

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sons eram individuais e únicos, e eram apagados pelo tempo. A voz humana, por exemplo, só chegava tão longe quanto fosse possível gritar. A partir de então, os sons passaram a ser cada vez mais independentes, podendo ser “estocados” e reproduzidos uma infinidade de vezes, sendo capazes de viajar no espaço e no tempo. Em outras palavras, a tecnologia deu ao som a possibilidade de fazer duas coisas: separá-lo de sua fonte e torná-lo permanente. Schafer critica esse fenômeno como sendo resultado dessa cultura de desempenho e aceleração e representar um desejo de transcender o tempo presente, gerando consequências negativas para as paisagens sonora que agora precisam suportar, além de seus sons originais, sons vindos de outros tempos e lugares, congestionando o espaço acústico de um lugar e prejudicando não só a audição, mas a capacidade de percepção das pessoas e a qualidade sonora do lugar.

Além disso, com a invenção do gravador no período da Segunda Guerra Mundial, passou a ser possível uma completa transposição do espaço acústico, já que se conseguia simular qualquer som ambiente em diferentes espaços e tempos. De fato, essas invenções trazem consequências negativas não só em termos sonoros, mas também sociais e políticos. Esses novos sons pósindustriais começaram a ser utilizados como forma de dominação, complementando “as ambições imperialistas das nações do Ocidente”, como pontua Schafer (1977).

Primeiro os alto-falantes, depois o rádio, foram criados como resposta a um desejo de dominar outras pessoas pelo próprio som, ampliando o espaço sonoro de quem os possui.

“Por exemplo, um homem com um alto-falante é mais

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imperialista que outro que não o possui, porque pode dominar

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o espaço acústico. Um homem com uma pá não é imperialista, mas um homem com uma serra elétrica é, porque tem poder para interromper e dominar outras atividades acústicas da vizinhança” (SCHAFFER, M. 1997, p.115)

Muito mais do que o simples alto falante, a gravação sempre foi um meio de controle social. Segundo Jacques Attali (1995), possuir os meios de gravação permite monitorar ruídos, mantê-los e controlar sua repetição dentro de um código determinado. Assim, permite impor o prório ruído e silenciar os outros. 2 O rádio, por exemplo, que funciona como um multiplicador sonoro que faz com que uma voz possa ser ouvida por milhares de outras pessoas, foi essencial para a dominação de Hitler na Alemanha, que usava esse espaço acústico ampliado para manipular massas e reafirmar seu poder. Essa monopolização na transmissão de mensagens, o controle do ruído e a institucionalização do silêncio de outros, segundo Augoyard (1995), são estratégias cruciais para assegurar a durabilidade do poder.

Falando em imperialismo e a relação entre som e poder, não à toa as máquinas da indústria e as armas de guerra são tão barulhentas. Os sons estridentes e repetitivos da Revolução Industrial, como mostrado anteriormente, expressavam prosperidade e o domínio do espaço sonoro pertencia aos proprietários das fábricas. O aumento da intensidade da potência do som é a característica mais marcante da paisagem sonora industrializada.

Além disso, a invasão das grandes guerras não foi só física. Dominar o adversário pelo poder do som era uma maneira eficiente e intimidadora de ataque.

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foto:

bolsonaro.html

https://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2019/09/heil-

“Não teríamos conseguido a Alemanha sem o alto-falante”

HITLER, A. Manual of the German Radio, 1938

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Apesar da carga histórica imperialista que o fenômeno da esquizofonia apresenta, hoje, no século XXI, não se pode deixar de destacar o quanto ela é essencial para que mais vozes sejam ouvidas, contrariando a ideia inicial de monopolização do espaço sonoro. É fato que o fenômeno da esquizofonia gerou um congestionamento sonoro sem precedentes, o que dificulta a distinção e percepção sonora e suprime muitos dos sons naturais. Contudo, é injusto afirmar que as consequências foram inteiramente negativas.

O termo “esquizofonia” foi criado por Schafer em meados dos anos 60, numa era pré internet, onde, de fato, o espaço sonoro era pouco democrático e dominado por poucos, que usavam o poder do som para seus próprios interesses e muitas vezes para silenciar outras vozes. Se por um lado a esquizofonia gerou uma massa sonora excessiva nas cidades, por outro a consciência da dominação pelo som começou a ser usada também como forma de resistência e demarcação de território por aqueles cujas vozes não eram ouvidas, além de criar a possibilidade de que os sons se eternizem e as culturas sejam perpetuadas e disseminadas através do som. Como dito anteriormente, os sons produzidos por uma sociedade dizem muito a respeito não só de sua organização e prioridades, mas também de suas inconsistências e tensões. 3 Ao longo do século XX, muitos movimentos culturais e sociais usaram o poder do som para amplificar suas vozes e reivindicar seus espaços. Na década de 70 por exemplo, nos Estados Unidos, surge o movimento Hip Hop, movimento negro que, dentre outras manifestações,

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foto:

http://pullupparty.com/por-que-muchos-sound-systems-

pinchan-con-un-solo-plato/

D os sinos à es q u i z o f onia

usa a música para reivindicar seus direitos, lutar pela inclusão social e direito à cidadania, além de aumentar a potência de sua voz num contexto onde o sistema político era extremamente racista e ainda possuía resquícios da época da escravidão. Assim, a cultura negra, sufocada pela supremacia branca, encontrou no Hip Hop uma maneira de encorajar o orgulho negro e amplificar sua voz através da arte e da música. Um dos princípios básicos do Hip Hop, por exemplo, consiste em transformar a briga e a disputa de jovens negros por espaço e território, muito comum e violenta nos guetos, em uma competição saudável através da produção musical, da cultura e da arte. 4

“[...] o break e o rap são meio de dizer ‘ouçam minha história, sobre mim, a vida e o romance’. O Rap fornece uma voz pública para jovens negros que geralmente são silenciados e ignorados. Ele surge nas ruas - fora do confinamento de uma domesticidade moldada e influenciada pela pobreza, fora dos espaços enclausurados onde os corpos dos jovens homens negros precisam ser contidos e controlados” (HOOKS, B. 2019)

O RAP (rhythm and poetry), uma das quatro formas de expressão do movimento Hip Hop, teve suas origens nos Sound Systems da Jamaica, uma espécie de carro de som onde o chamado “toaster”5 discursava sobre os problemas socioculturais e políticos de seu povo, muito utilizados na década de 60. Além da reivindicações políticas, surgiu também uma cultura de confrontos sonoros entre 4

foto:

https://thechanelmuse.tumblr.com/post/41075611365/

rootsnrooftops-all-day-till-the-end-of-days 5

Podemos compará-lo com o que hoje é o “mc”.

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os artistas dos soundsystems, que consistia em eventos de rua onde o objetivo era abafar o concorrente com o volume de sua música e seu equipamento, onde o público escolhia o campeão. Posteriormente migrado para os Estados Unidos, os sound systems contribuíram para a cultura do Hip Hop e o movimento ganhou cada vez mais força dentro das periferias norte-americanas como uma ação política e social legítima, posteriormente se espalhando para várias partes do mundo.

Mais tarde, na década de 90, surge no Brasil o Funk carioca, outro movimento que utiliza a potência e a amplificação do som para fortalecer vozes silenciadas pela sociedade. Inspirado nos principais gêneros musicais do movimento negro dos Estados Unidos, o funk surge nas favelas cariocas também como um movimento cultural, que tem como base a identificação de sujeitos sociais, a apropriação do espaço público e a valorização social, política e cultural de um grupo6 marginalizado pelo sistema.

Além do funk, muitos outros gêneros da música brasileira surgiram como forma de resistência ao estado opressor em busca de reivindicação de seus direitos e seus espaços.

O samba, por exemplo, surge antes da era esquizofônica, no século XIX, como manifestação cultural dos escravos como forma de manifestação, pertencimento, demarcação de seu território e conservação de sua cultura, sofrendo grande repressão no início do século XX. O movimento Tropicália se destacou nos anos 60 ao usar a música como instrumento de resistência contra a repressão e o silenciamento impostos pela ditadura. A música e a arte - e seu caráter subversivo - são formas de expressão que tem o poder de perpetuar a história do lugar e amplificar

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BORGES, A. http://obviousmag.org/my_cup_of_tea/2018/02/

funk---cultura-democracia-e-diversidade.html

“Ele (o funk) vem salvando vidas, ele está enriquecendo pessoas. E quais são as pessoas que ele está enriquecendo?

O preto, o pobre, o favelado, a mulher. O funk incomoda, ele não agrada. O maior crime que o funk comete é deixar pretos ricos”

Mc Carol

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vozes silenciadas pelo sistema. 7 Hoje, na era da internet, a esquizofonia ganhou ainda mais força como maneira de amplificar vozes suprimidas e passar uma mensagem. Antes, as autoridades monopolizavam muito mais o som e o mainstream da comunicação. Agora, com a internet e as redes sociais escutamos as vozes de quem quer falar e podemos escolher o que queremos ouvir. Dessa forma, a virtualidade interfere substancialmente na nossa experiência sonora, visto que a maneira passiva na qual recebíamos as informações, já que éramos reféns das programações de TV e rádio, se transformou completamente com a chegada dos dispositivos de streaming - de filmes, música, podcasts - que permitiram a liberdade de escolha de quando e onde vamos consumir esse conteúdo, ouvir esses sons e compor a paisagem sonora que nos cerca.

Assim, a internet proporciona uma maior democratização do espaço sonoro, possibilitando um maior alcance de muitas vozes antes silenciadas. É claro que, se tratando de uma sociedade capitalista e desigual, a maior parte dos sons que ouvimos - não só na cidade, mas também em nossos aparelhos eletrônicos - pertencem a alguém ou são utilizados retoricamente para atrair nossa atenção ou nos vender alguma coisa, e muitas pessoas sequer tem acesso a esse tipo de ferramenta, assunto que gera uma discussão profunda que não cabe trazer aqui. Porém, é fato que a internet e as novas plataformas digitais dão ferramentas para que mais pessoas possam se expressar e facilita, inclusive, a divulgação de artistas independentes e movimentos sociais reprimidos pelo estado.Um bom exemplo recente é o movimento Black lives matter, que surgiu em 2013 nos Estados Unidos

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foto: https://www.crfashionbook.com/culture/a32759452/bail-

relief-resources-black-lives-matter-protests/

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para protestar contra a morte de afro-americanos por ações policiais. O movimento recentemente ganhou evidência novamente pelo assassinato de um homem negro por um policial branco nos Estados Unidos em junho de 2020 e, graças à internet, muitas vozes pretas puderam ter suas formas de protesto e reivindicação ouvidas e, assim, o movimento conseguiu alcançar e mobilizar grande parte do mundo.

Qualquer forma de ocupar ou reivindicar espaços é um ato político. Seja um espaço físico, espaço social ou qualquer outro. Sendo o espaço algo que vai além do mensurável e do visível, vivenciado com todos os sentidos, o ato da escuta também é. A consciência do poder do som como subversão revela que nossos ouvidos, além de musicais, são políticos. Todas essas formas de manifestação através do som vem como resposta a um passado imperialista, que ainda hoje, apesar da maior democratização do espaço sonoro por causa da internet, se faz presente de forma mais sutil nas manipulações do capitalismo.

Principalmente hoje, onde temos muito mais liberdade de escolher o que queremos ouvir e como queremos construir a paisagem sonora imediata que nos cerca, nossas escolhas a respeito do que ouvimos - o que e quem queremos ouvir - refletem, mesmo que inconscientemente, nosso posicionamento político, nossas crenças e valores. *

*

*

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“Falar e cantar são duas maneiras de se fazer ouvir. A fala cura. Falar estilhaça a máscara do silêncio. Compreender que a minha voz é a voz de tantos, de tantas.

Entender que a voz é uma arma. Entender que não é preciso portar armas. É preciso portar a voz”

Elza Soares

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Falamos de reivindicação de espaços e demarcação de território através dos sons e de como a esquizofonia, apesar de benéfica para a expansão de vozes suprimidas, gerou uma relação de certa forma conturbada entre o espaço físico e o espaço acústico ao possibilitar a amplificação dos sons. Mas qual é, afinal, a relação entre som e espaço?

Se pensarmos sob a ótica da física, a relação é simples: não há som sem espaço. Segundo Augoyard (1995) por ser constituído por ondas mecânicas, o som é uma propagação, e, portanto, está diretamente conectado às circunstâncias, às características do ambiente construído e às condições físicas de ouvir e escutar. Além disso, o autor reforça que “medidas, projetos e construções no espaço físico inevitavelmente produzem características quantificáveis”1 (AUGOYARD, 1995, p.9) no que diz respeito ao comportamento sonoro, o que revela que espaço e som estão integralmente ligados. O espaço sonoro, porém, não é delimitado por barreiras físicas, como explica Schafer:

O espaço auditivo não tem um foco preferido. É uma esfera sem limites fixos, espaço feito pelas próprias coisas, e não espaço contendo coisas. Não é espaço pictórico, encapsulado, mas dinâmico, sempre em fluxo, criando suas próprias dimensões de momento em momento. Não tem limites físicos. É indiferente ao fundo. O olho focaliza, aponta, abstrai, localiza cada objeto no espaço físico contra um fundo; o ouvido, todavia, favorece o som proveniente de qualquer direção. (SCHAFER, M. 1997, p. 222)

1

Tradução minha. “measurements, projects, and constructions in

built space inevitably produce quantifiable characteristics”.

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As fontes sonoras no meio urbano são múltiplas e multidirecionais, e os limites físicos que separam o público do privado não são barreiras para os sons da mesma forma como são para a visão. Aqui, não existe o paradigma da frontalidade. Assim, os sons ampliam e enriquecem o espaço visual, aumentando nossa consciência ao incluir áreas que estão atrás da nossa cabeça e não podem ser vistas. Quando pensamos no espaço analisado pelo ouvido, a falta de clareza sonora perturba, além do nosso entendimento espacial, nossa capacidade de distinção, percepção e concentração.

Afinal, como se delimita um lugar sonoro? Qual espaço acústico cada indivíduo ocupa? Schafer (1977) explica que o espaço acústico habitado pelo homem vai até onde sua voz pode ser ouvida. Isso vale também para a dimensão não-física de espaços concretos: “estou no lugar até não poder mais ouvi-lo. Quando já não se podem mais escutar os sinos, já não se está na paróquia” (SCHAFER, 1977, p.29). Com essa afirmação entendemos que, naturalmente, o espaço acústico que cada um de nós ocupa transcende o físico. Com o surgimento da esquizofonia, a tecnologia começa a fornecer ferramentas para a ampliação do espaço acústico de cada indivíduo. Considerando o incessante aumento da população nas grandes cidades e, consequentemente, a redução do espaço físico disponível para cada indivíduo, esses dois espaços - físico e acústico - entram em uma preocupante rota de colisão. Com o espaço auditivo cada vez mais sobreposto, a escuta ativa e a distinção se tornam um desafio, justamente pelo fato de a audição ser um sentido multidirecional e incontrolável, diferente da visão.

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O olhar trabalha com a frontalidade. Assim, é mais fácil controlar o que queremos enquadrar na nossa visão. Além disso, nossas pálpebras nos auxiliam na

D O S S I N O S à es q u i z o f onia

escolha de ver ou não alguma coisa. A audição não pode ser interrompida voluntariamente. Schafer (1977) salienta que a única proteção para os ouvidos é um mecanismo psicológico que filtra sons indesejáveis, pois não existem “pálpebras auditivas”. Em razão disso, a escuta é um sentido receptor de uma grande densidade de estímulos, aos quais muitas vezes as pessoas mostram-se indiferentes diante dos excessos. Uma clássica ferramenta contemporânea de autopreservação e tentativa de bloqueio do espaço sonoro são os fones de ouvido. Como não há possibilidade de bloquear sons indesejáveis com pálpebras, bloqueia-se através da sobreposição voluntária de outro som.

Essa cultura dos fones de ouvido na sociedade contemporânea, como tentativa de autopreservação da grande massa sonora das cidades, colabora com o comportamento automatizado no que diz respeito à vivência do espaço público. Ao usar os fones, o espaço sonoro do indivíduo é desassociado do espaço físico que ele ocupa, criando assim uma fragmentação na atenção e, consequentemente, enfraquecendo sua experiência de cidade. Além disso, apesar de os ouvidos sempre receberem estímulos involuntários, escolher ignorar esses sons excessivos com um mecanismo psicológico e até mesmo manter a concentração apenas nos sons que lhe são agradáveis também é uma forma de tentativa de autopreservação. Aqui é pertinente diferenciar os conceitos de ouvir e escutar: ouvir é referente ao sentido da audição em sua forma mecânica, fisiológica. Escutar requer vontade e atenção, ou seja, implica algum tipo de ação. Dessa maneira, podemos dizer que há um certo nível de intencionalidade na audição que, apesar de estar ligada a um fenômeno que em um primeiro nível não é intencional, já que se ouve tudo o que é apresentado ao ouvido, escuta-se somente aquilo que se quer captar o sentido, ou seja, o que se quer entender.

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“apesar de eu ter falado que são paulo é bem barulhento, eu tenho a característica

de que eu não escuto. eu não presto atenção nisso de

jeito nenhum. geralmente

o som não me incomoda. eu

posso estar num lugar onde o mundo está acabando

que eu filtro isso e não

percebo. não é que eu não me incomode, mas eu escolho não perceber”

Matheus, 32, Alto Pinheiros, SP 58

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dos sinos à es q u i z o f onia

O DOMÍNIO DA VIS ÃO E A DE SCORPOrIFI CAÇÃO DA E X PERIÊNCIA

Apesar da obviedade de que o homem se relaciona com o mundo por meio dos seus cinco sentidos simultaneamente, é dominante a priorização dos recursos visuais e da visão como forma de se perceber e se relacionar com o ambiente. Uma das deficiências dessa abordagem é

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“DAQUI EU NÃO VEJO MUITA

COISA, MAS EM COMPENSAÇÃO EU

CONSIGO OUVIR E IMAGINAR BEM O COTIDIANO DOS VIZINHOS AQUI DO ENTORNO”

Clarissa, 29, Ingá, Niterói, RJ

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justamente considerar a audição um sentido secundário na organização e interpretação do espaço e, talvez por isso, esse diálogo entre o indivíduo e o ambiente no qual está inserido permanece na superfície. Mesmo na era do Photoshop, é facilmente perceptível a crença comum de que algo assume a qualidade de real quando pode ser fixado em um suporte imagético. Talvez uma das razões da existência desse senso comum - além de toda a questão história já mencionada - seja a vocação natural do som para a efemeridade e transitoriedade, de forma que sua qualidade e percepção pode ser modificada com o menor dos movimentos. Por outro lado, é exatamente nessa característica que pode estar sua maior potência: por ser tão mutável e cheio de pequenas nuances, a escuta é capaz de estimular nossa capacidade perceptiva e imaginativa, e gerar uma relação muito mais íntima e afetiva com o espaço do que a objetividade e praticidade da visão. O olho vê o que está diante de si, mas é através dos ruídos e outros indicadores sensoriais que temos a consciência das partes não visíveis do ambiente.

Justamente por ser um sentido mais externo e objetivo, a visão é o único sentido capaz de acompanhar a rapidez do mundo contemporâneo. Por isso, começou a ser altamente estimulada a favor da mídia e do capitalismo, debilitando a prática do nossos sistema sensorial completo. A poluição visual criada pela indústria do consumo faz parte de uma estratégia para confundir nossos sentidos e fragmentar nossa atenção, que acaba se tornando superficial e automática. Nesse contexto, Juhani Pallasmaa (1996), em seu livro “Os olhos da pele”, critica a supremacia da visão nos nossos processos cognitivos e da concepção de espaços, da arte e da arquitetura contemporânea. Augoyard (1995) reforça essa ideia ao defender que muito da falta de conscientização por parte dos arquitetos com relação a noção sonora se dá justamente por causa do bloqueio

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mental causado pela cultura e educação visual.

Vivemos hoje no que Pallasmaa (1996) chama de “era das imagens visuais onipresentes” que, segundo o autor, gera uma substituição dos vínculos na cidade por algo impessoal, prático e universal. De fato, essa realidade acelerada e com estímulos excessivos inibem o uso consciente dos nossos sentidos mais internos e subjetivos, como é o caso da audição. O maior problema, de acordo com Pallasmaa, é a hierarquização e falta de equilíbrio do aparelho sensorial imposta pelo sistema no qual estamos inseridos. É claro que, ao nos deslocarmos pela cidade, estamos o tempo todo sentindo cheiros e ouvindo variados sons. A questão principal é como experienciamos cada um deles no contexto contemporâneo e, de fato, a poluição visual nos grandes centros urbanos, fabricada principalmente pela indústria do consumo no capitalismo ocidental, confunde nossos sentidos e fragmenta nossa atenção, tornando-a superficial e automática. Nesse sentido, Jonathan Crary2 defende que essa hierarquização do sistema sensorial enfraquece nosso potencial de troca mútua com o ambiente e participação na cidade ao romper com a noção de corpo como um conjunto.

“Ao privilegiar a categoria da visualidade, incorre-se no risco de ignorar as forças da especialização e separação que deram forma a essa categoria, tornando-a o conceito intelectualmente disponível que é hoje. Assim, muito do que parece constituir um domínio visual é um efeito de outros tipos de forças e de relações de poder. Ao mesmo tempo, a ‘visualidade’ pode facilmente desviar-se para um modelo de percepção e de

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Crítico de arte e ensaísta, professor de Teoria e Arte Moderna de

Meyer Schapiro na Universidade de Columbia, em Nova York

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subjetividade que se afasta da ideia de ‘corporeidade’, mais rica e mais historicamente determinada, na qual um sujeito ‘corporificado’ é ao mesmo tempo o local de operações de poder e o potencial de resistência a elas. No momento presente, assegurar a centralidade ou a ‘hegemonia’ da visão na modernidade do século XX não tem mais nenhum valor ou significado” (CRARY, 2013, p.27)

A ideia de corporeidade, citada pelo autor, diz respeito à maneira como reconhecemos e utilizamos nosso corpo como instrumento para nossa relação com o mundo, ou seja, o corpo como um conjunto, uma noção de totalidade. Em vista disso, a consciência que integra nossa percepção de estar no mundo implica no modo como nossos sentidos se voltam às determinações sócioculturais que nos localizam no espaço e no tempo. Por isso, na contemporaneidade, a compressão desse espaçotempo e a determinação de um sentido em detrimento do outro, seguindo a lógica da aceleração e do desempenho, empobrece essa capacidade integradora.

Essa ideia do sujeito corporificado como “operação de poder e potencial de resistências” vai ao encontro da definição de corpo segundo Espinosa. De acordo com o autor, o que define um corpo em sua individualidade é sua capacidade de afetar e ser afetado (DELEUZE, 1970). Assim, um corpo “pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade.” (DELEUZE, 1970, p. 132). Em outras palavras, um corpo não se define por uma forma ou suas funções, e sim por “relações de movimento e de repouso, de lentidão e de velocidade entre partículas” (DELEUZE, 1970, p.128). Considero esse conceito relevante porque ele

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amplia a consciência de corpo como algo apenas físico e visível, ao passo que admite que suas influências não dependem de sua forma.

Schafer (1977) costuma chamar de “objeto sonoro” a menor unidade independente de uma paisagem sonora, como algo mais facilmente analisável do que todo o conjunto. Entretanto, essa palavra - objeto - dá a ideia de algo inanimado, estático. O som, porém, por menor que seja sua unidade de análise, não é estático.

Pelo contrário: é dinâmico, de natureza efêmera. Ele interpenetra os espaços e tem a propriedade de afetar e modificar a paisagem. Nós o afetamos na medida em que produzimos qualquer tipo de som e esse é lançado no espaço - o que nos torna produtores, e não só espectadores da paisagem sonora - ; eles nos afetam na medida em que nos provocam diversas sensações, evocam memórias e nos passam uma mensagem. Dito isso, o conceito de corpo de Espinosa me parece se adequar melhor quando me refiro aos elementos que compõem a multiplicidade sonora dos espaços urbanos, com suas diversas características, particularidades, significados e interpretações. A paisagem sonora é, então, o resultado de vários corpos sonoros constantemente em co-relação no espaço.

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Seguindo essa lógica de rompimento com a ideia de corporeidade na experiência urbana em razão da hierarquização do sistema sensorial, Pallasmaa considera que “o olho hegemônico busca o domínio sobre todos os campos da produção cultural, e parece enfraquecer nossa capacidade de empatia, compaixão e participação no mundo” (PALLASMAA, 1996, p.21). Em vista disso, a vida acelerada se vincula à falta de experiência, à procura pelo ter, ao predomínio da imagem e ao fluxo permanente. Levando em conta que a experiência na cidade é uma construção coletiva

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e requer participação ativa, nossas cidades se tornam cada vez mais objetivas e carentes de significado.

Essa rapidez imposta pela cultura do desempenho e a consequente falta de abertura para os afetos contribui com a manutenção do paradigma da experiência contemporânea, que, por sua vez, ocasiona a automatização comportamental e perceptiva do usuário ao relacionar-se com a cidade. Nesse cenário, a cidade contemporânea, por ser cada vez mais a cidade dos olhos, negligencia o movimento dos nossos corpos e os sentidos pelo movimento motorizado rápido (PALLASMAA, 1997), o que causa um intenso desequilíbrio no nosso sistema sensorial e, como consequência, na nossa capacidade de contemplar uma experiência completa.

*

*

*

O geógrafo humanista Yi-Fu Tuan (1997) compreende a experiência como um processo em três estágios: sensação, percepção e concepção. A sensação consiste no primeiro contato com o externo, é empírica, imediata e mediada pela emoção, ainda não racionalizada. A percepção requer uma relação ativa e atenta com o espaço, uma vez que consiste na interpretação, seleção e organização das informações obtidas através da sensação, ou seja, através dos sentidos. A concepção, por sua vez, é um processo mais complexo e exige atenção e tempo. Está ligada diretamente à criatividade, entendimento e atribuição de significado. Sendo assim, a sensação está mais repleta de emoção, enquanto na concepção predomina o pensamento, já que diz respeito ao aprendizado. Assim, a experiência implica

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a capacidade de aprender a partir da própria vivência: experienciar é aprender, significa atuar sobre o dado e criar a partir dele (TUAN, 1977), ou seja, a experiência é, então, constituída de sentimento e pensamento.

No contexto urbano hoje, como recebemos uma enorme quantidade de informações e estímulos, considerando a lógica da aceleração e do desempenho, a percepção e o pensamento são dificultados e, de acordo com o que já foi dito, para que haja uma experiência legítima a relação entre o ambiente e o indivíduo deve ser necessariamente dinâmica e recíproca. O processo precisa ser participativo.

Tuan explica, ainda, que a experiência “abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade” (TUAN, 1977, p.10), que podem variar desde os sentidos diretos à maneira indireta de simbolização. Gosto dessa perspectiva porque ela oferece uma alternativa para explorar a ideia de que os lugares se renovam constantemente e de forma paralela ao mundo das relações interpessoais, das transformações sociais e do próprio espaço. Assim, segundo o autor, se o indivíduo transcende, o lugar não é mais o mesmo.

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Lugar, nesse entendimento, diz respeito a um espaço dotado de valor (TUAN, 1977). O conceito de lugar é, portanto, indissociável da dimensão da percepção, dos comportamentos e valores humanos que se manifestam através da experiências. Assim, um espaço se transforma em lugar à medida que são atribuídos significados a ele, e isso se dá através da vivência cotidiana. Nessa definição de lugar enquanto espaço vivido, podemos considerá-lo como uma construção. Seja individual ou coletiva, ela leva tempo e depende de continuidade ou intensidade.

Em outras palavras, é preciso tempo para se sentir apreço por um espaço, mas a qualidade e a intensidade da experiência interferem mais do que a simples

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duração. Porém, ainda assim, acontecimentos simples e cotidianos podem, com o tempo, se transformar em um sentimento profundo de lugar. Por esse motivo, Tuan (1977) conclui que o conceito de lugar é uma pausa no tempo enquanto fluxo ou movimento, ao passo que o que lhe dá identidade é a experiência, e experiência requer tempo e atenção.

Falando no aspecto sonoro, os sons transitam ao longo da nossa experiência e eles podem ganhar diferentes significados e contextos em função de como nós estamos abertos para eles ou não. Portanto, há sim uma relação com o espaço, com o tempo, com nossa condição interna e com os efeitos externos sobre nós, afinal, os sons são, também, sensações corporais no espaço à medida em que os afetamos e nos deixamos afetar por eles.

Essa troca de afetos com o espaço, através da escuta, enriquece o sentimento humano em relação ao espaço e, assim, contribui para a criação de um lugar. Dito isso, reforço a gravidade da condição debilitada na qual nossos ouvidos - e os outros sentidos salvo a visão - estão submetidos nessa cultura imagética e acelerada: a percepção, significação e conexão com a pluralidade sonora que nos cerca acaba enfraquecida e dificulta a atenção e atribuição de significados, isso porque a permanência - e de certa forma a pausa - é um elemento importante na ideia de lugar. Além do mais, todos os sentidos trabalham juntos para fortalecer a experiência, o lugar, a memória. A evocação de um lugar, mesmo considerado apenas em sua dimensão sonora, será também necessariamente sinestésico (AUGOYARD, 2009). O paradigma da experiência urbana é justamente, na minha concepção, o padrão contemporâneo que não permite que o desenvolvimento da experiência ultrapasse a primeira etapa.

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Mas, como os lugares podem ser definidos através do som?

Se o que dá identidade a um lugar é a experiência, uma das maneira é identificar o que Schafer (1977) chama de “marcas sonoras”. Esse termo deriva de “landmark”3 e o autor utiliza-o para se referir ao som de determinada comunidade, que possui qualidades especiais que fazem com que o ambiente sonoro do lugar se torne único para quem vive ali. Ela é capaz de despertar nos membros da comunidade emoções relacionadas ao lugar, sensação de pertencimento, identificação. As marcas sonoras são, portanto, fruto de uma experiência coletiva de uma comunidade. Um bom exemplo é o badalo dos sinos das igrejas, marca sonora que, apesar de muito comum, é única para cada lugar tanto no que diz respeito aos sons que ele produz quanto em relação ao significado atribuído a ele em cada comunidade.

3

“Marco dividório”; “ponto de referência”; um edifício ou outro

local de grande importância histórica, estética ou cultural, frequentemente

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declarado como tal e com um status especial (designação de ponto de referência), ordenando sua preservação por alguma organização autorizadora.

O DOMÍNIO DA VISÃO E A DESCORPOrIFI- CAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

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O DOMÍNIO DA VISÃO E A DESCORPOrIFI- CAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

PARTE 2

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A p andemia

A pandemia

As modificações na cultura e na maneira de entender e se relacionar com os espaços é histórica e processual, como já elucidado até aqui. Diante disso, hoje nos deparamos com mais um marco decisivo na história da humanidade que tem modificado - mais uma vez - nossos ritmos de vida e nossa maneira de perceber. A pandemia do COVID-19 provocou, dentre muitos outros efeitos, uma significativa desaceleração forçada no mundo, afetando novamente a maneira como nos relacionamos com a cidade e seus espaços. Hoje, essa calamidade global tornou a escassez a condição necessária para a sobrevivência da humanidade, colocando em xeque toda a lógica da cultura dos excessos na qual estávamos ajustados.

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Escrever essa pesquisa abordando a pandemia estando inserida nela torna quase impossível manter uma abordagem totalmente impessoal. Embora seja difícil analisá-la propriamente enquanto ainda acontece, já que não há como saber ao certo seus efeitos e consequências a longo prazo, no meu ponto de vista de quem vivencia esse momento agora, com a possibilidade - logo a responsabilidade - de cumprir o isolamento social, a pandemia soa como uma espécie de suspensão da realidade, um parêntesis na história, um outro lugar.

Talvez parêntesis não seja a melhor definição, já que passa a ideia de que, quando ele acaba, tudo volta a ser como era antes e, como mencionado acima, não há como saber o que vai acontecer com nossas cidades, com nossas relações com o espaço e com as sonoridades urbanas depois que esse momento passar. No entanto, muitas transformações no que diz respeito aos espaços e à percepção estão acontecendo agora.

A pandemia é, sim, um recorte temporal da história, um cenário efêmero que - esperamos que - em breve só existirá através dos livros, mas tudo indica que muitos dos seus impactos nas nossas condições de vida, modos de produção, relacionamentos e até na produção de arte e da própria arquitetura serão permanentes.

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As atuais circunstâncias nos fizeram renunciar, de forma voluntária ou proposta pelo estado, muito do que nos era familiar. O próprio caminhar nas ruas, as confraternizações e rituais culturais e até atividades mais simples que envolvem a aproximação humana. As medidas necessárias acarretam também a interrupção da produção, venda e distribuição de diversas mercadorias e paralisação das escolas e universidades. Agora que somos todos - os que podemos - solicitados a permanecer em nossas casas, não podemos mais nos aproximar uns dos outros como antes e paramos de circular

A p andemia

livremente pelo espaço público. O isolamento social esvaziou as ruas das cidades de boa parte do mundo e, além de mudar a forma como nos relacionamos com ela, podemos perceber também mudanças significativas nas paisagens urbanas, inclusive, de maneira muito expressiva na paisagem sonora.

O planeta, de fato, ficou mais silencioso. Muitos dos estudos que estão sendo feitos sobre o assunto revelam uma queda significativa na massa sonora dos centros urbanos. A Associação Brasileira de Qualidade Acústica, por exemplo, tem registrado uma média de 10 dB a menos nas principais vias de São Paulo o que, segundo os moradores, dá a sensação de que o barulho caiu pela metade1. Além disso, com bilhões de pessoas permanecendo em casa ao redor do mundo, sismólogos observaram uma queda de um terço nos ruídos sísmicos, gerados pelo homem através das máquinas, automóveis e outras movimentações humanas.

No entanto, vale ressaltar que a pandemia não se projeta pelos espaços de um jeito uniforme. Pelo contrário: ela reflete uma série de marcadores sociais, como renda, classe social, raça e acesso à infraestrutura. Embora as autoridades tenham requisitado a implementação do isolamento social, ainda assim muitas pessoas seguem circulando pelas ruas das cidades, alguns por necessidade, outros por ignorância ou negacionismo.

Além disso, apesar da realidade trágica e de uma perspectiva pessimista levando em conta o crescente número de casos e óbitos no Brasil, enfrentamos uma posição homicida de quem diz que o país não pode parar, somado à quarentena elitizada que não leva em consideração a ausência de proteção frente ao vírus de

1

Poluição sonora e isolamento social, disponível em: ttp://

portalacustica.info/poluicao-sonora-e-isolamento-social/

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“Fiquei uma parte em quarentena e depois tive que voltar ao trabalho. Isso aconteceu com boa parte da vizinhança. A movimentação abaixou um pouco, mas não tanto, e a paisagem sonora não mudou muito por isso.”

Severino, 25, Brasília, DF

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quem é obrigado a sair de casa.

Procurando entender, através dos sons, como o coronavírus afeta de forma diferente cada região da cidade de São Paulo, uma pesquisa na USP reuniu gravações de diferentes bairros da capital. Segundo a criadora da pesquisa, Giselle Beiguelman, quando a paisagem se torna mais parecida em todo lugar, na ausência dos carros e das pessoas, os fatores que causam essas diferenças podem ser bem mais perceptíveis pelo som. “Ele (o som) passa a ser uma pele mais evidente da cidade, daquilo que os jornais estão tendo dificuldade de cobrir” (BEIGUELMAN, 2020)2. Efetivamente, ao analisar as gravações já feitas, Beiguelman conta que é clara a diminuição radical do barulho em partes mais ricas da cidade, enquanto nas periferias não houve grandes mudanças. Esse dado indica, por exemplo, como a vida cotidiana nas periferias tem mais dificuldade de se limitar ao espaço doméstico, seja pela condição das habitações, pelo número de moradores em cada casa ou até pela cultura comunitária desses bairros ou favelas.

Além disso, esses lugares são os que abrigam, em sua maioria, uma população que não pode se dar o luxo de cumprir a quarentena já que ainda precisa sair para trabalhar e encarar o transporte público para garantir seu sustento.

Em bairros onde se predomina uma classe social mais elevada e o isolamento social pode ser respeitado, ao passo que a rua se esvazia, parece que os prédios vão ganhando vida. Com a maioria dos moradores em seus

2

Matéria disponível em: https://www1.folha.

uol.com.br/ilustrada/2020/04/artistas-gravam-sons-dascidades-que-ficaram-desertas-por-causa-do-coronavirus. shtml?fbclid=IwAR3ZFZZWU2XISkXzI3b3ei0Jy2PkrRcT9wum6hn_ G5kZHijth4mgw58xP_c

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“tem a minha vizinha de porta, uma

senhora muito misteriosa que mora sozinha. a gente não se fala, mal se

vê. nunca trocamos uma ideia, mas a interação sonora que a gente tem é

engraçada. ela escuta todos os dias radio mec, que toca só mpb e a gente gosta muito também. e ai eu nem ligo a minha música, e eu fico sempre escutando junto com ela”

Clarissa, 29, Ingá, Niterói, RJ

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apartamentos durante todo o dia, os sons externos de carros, motos e pessoas nas ruas vão dando lugar a sons mais íntimos e cotidianos tanto dos vizinhos quanto da própria casa e que passam a protagonizar a paisagem sonora dos que vivem ali. Apesar de não haver interação física, os moradores compartilham desse espaço sonoro expandido em razão do esvaziamento da cidade.

Assim, é importante considerar como temos o poder de modificar e criar uma paisagem e uma dinâmica própria para o espaço. Em “Walkscapes: o caminhar como prática estética”, Francesco Careri (2002) apresenta a ideia de que, ao caminhar pelo espaço da cidade, temos o poder de modificá-lo sob diversos aspectos, revelando possibilidades construtivas do espaço a partir do olhar estético sobre o próprio ato de caminhar .

“O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma transformação do lugar e de seus significados. A presença física do homem num espaço não mapeado - e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo, é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si, transformando-o em lugar.”

(CARERI, F. 2002)

Segundo Yi-Fu-Tuan, como já mencionado, o conceito de lugar é indissociável da dimensão da percepção, dos comportamentos e dos valores humanos, que se manifestam através da experiências. Assim, a criação de um lugar implica necessariamente na vivência do espaço, ou seja, esse transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado.

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Com o confinamento, fica em evidência a importância e a necessidade da interação humana, tanto no sentido de atribuição de significado dos espaços quanto com outros humanos. Esse novo contexto que, ao mesmo tempo que nos aproxima de uma causa comum nos separa fisicamente, nos faz questionar toda a realidade na qual estávamos inseridos até aqui. A partir do momento em que somos forçados a abandonar momentaneamente a ideia arrogante de que podemos dominar a natureza, enxergamos a fragilidade da vida humana e repensamos o modo como nos relacionamos com o mundo. Apesar de eventuais exceções, nos deparamos com um planeta desacelerado e com o desafio de lidar com essa mudança drástica de ritmo em nossas vidas.

Quando a humanidade - em geral - sai das ruas, toda a dinâmica do espaço e da paisagem saem com ela, dando lugar a outros tipos de relações. Sem carros, sem agitação, sem uma multiplicidade de vozes humanas e eletrônicas vindas dos dispositivos de comunicação, sem espontaneidade, sem vida. É como se houvesse, literalmente, uma mudança de humor nessa paisagem agora bem mais vazia e calada. À medida em que esses corpos físicos - humanos ou mecânicos - se retiram dos espaços públicos e das ruas, os chamados corpos sonoros - pequenas partes que formam a totalidade da paisagem - passam a ocupar esses espaços fazendo com que o seu alcance seja potencialmente maior, tanto pela diminuição de barreiras físicas quanto pela diminuição dos próprios corpos sonoros que saíram com elas. Esse espaço sonoro ampliado nos permite ouvir além do que estávamos acostumados com a cidade em intenso movimento, além de possibilitar uma melhor distinção e identificação desses corpos sonoros que permeiam os espaços.

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Como nossa vivência física com a cidade foi restringida,

“Com o silêncio da rua a gente conseguiu ouvir o sino da igreja, que fica a umas cinco quadras daqui. pela primeira vez a gente conseguiu ouvir”

Manoela, 35, Icaraí, Niterói

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hoje nossa visão só enxerga até onde nossas janelas nos permitem ver. Basta alguns segundos de atenção para perceber que nossos ouvidos podem ir muito mais além.

Dito isso, me surge uma questão: levando em conta essa diminuição geral no ritmo do mundo, há como extrair dessa pausa forçada e dramática uma maneira de resgatar a conexão com nossos espaços e suas subjetividades?

Afinal, a incessante busca por desempenho e o desejo se fazer mais coisas em menos tempo não parece mais fazer tanto sentido.

Considero, assim, que nesse cenário de pandemia podemos encontrar pelo caminho da escuta um lugar que está além da fundamental proteção do nosso corpo e da nossa saúde. A experiência de viver em quarentena permite vivenciar e imaginar pequenos acontecimentos que se encontram nesse lugar todos dias, por meio dos nossos ouvidos, entre a angústia e a esperança de que isso tudo logo vai cessar. *

*

*

Considerando a definição de lugar escolhida para a abordagem desta pesquisa, - lugar como pausa, espaço que se atribui valor - me surge o questionamento: podemos considerar a pandemia como um lugar na história? Trago essa questão porque identifico nela uma série de peculiaridades e relações subjetivas que podem ser atribuídos a um lugar. Uma delas é a própria experiência diária e contínua que vivenciamos nessa nova realidade, que encaro como uma espécie de intervalo no tempo. Pela necessidade de adaptação, criamos novos hábitos e novas maneiras de afeto. Além disso, o próprio contexto implica sentimentos, emoções e comoções diversas, que intensificam a experiência cotidiana.

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Diante disso, entre o isolamento social e o risco de quem precisa estar nas ruas, novas sonoridades nascem da necessidade humana de interagir e se expressar, enquanto outras já existentes mas muitas vezes pouco perceptíveis ganham destaque graças ao descongestionamento do espaço acústico. Com isso, podemos dizer que a pandemia, como um recorte temporal e um lugar na história, possui suas próprias marcas sonoras que - apesar da definição de Schafer (1977) se limitar a lugares físicos - evidenciam esses novos hábitos e maneiras de comunicar nesse período e despertam diferentes emoções. É claro que, se tratando de uma pandemia em escala mundial, não há como declarar que todas as regiões terão as mesmas marcas sonoras, visto que essas marcas ainda assim são diretamente relacionadas às questões culturais. Entretanto, entendo que nesse caso, o contexto comum se sobrepõe ao lugar, no sentido de que, por mais que essas marcas mudem de acordo com o espaço, elas sempre serão restritas a esse intervalo de tempo. Um bom exemplo são os aplausos nas janelas em homenagem aos profissionais de saúde, que aconteceram diversas vezes a nível mundial.

No Brasil, o som dos panelaços através das janelas maneira encontrada para repudiar as ações irresponsáveis do governo, já que não se pode manifestar nas ruas - é uma sonoridade que carrega muitos significados políticos e sociais e que caracteriza o atual contexto. Em termos espaciais, é interessante a dicotomia gerada entre os espaços físico e sonoro com a ocorrência dos panelaços.

Ao mesmo tempo que ao olhar através das janelas as ruas se encontram vazias, elas estão completamente tomadas pelo barulho e pelos gritos de uma multidão.

Outras tantas ações acontecem nas janelas dos prédios e configuram possíveis marcas sonoras da pandemia. Essas ações produzem sons que eu intitulo de sons solidários:

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“durante os dias de

isolamento a gente coloca os microfones na varanda e fica cantando. a gente canta muito pra cabeça ficar boa”

Manoela, 35, Icaraí, Niterói

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a pandemia | o si l êncio e a presença

apresentações musicais, orações, comemorações de aniversários e tantos outros sons que expressam a necessidade humana de interagir e se expressar.

Uma outra marca sonora da pandemia que pode ser identificada em muitos lugares do mundo é o próprio silêncio. Esse momento de carência da liberdade de circular nas ruas e de interação humana evidenciou a presença do silêncio e fez com que surgissem novas relações.

O SILÊNCIO E A PRESENÇA

Silêncio. Trata-se de uma palavra ao mesmo tempo atrativa e aterrorizante, capaz de sugerir, por um lado, paz e recolhimento, e por outro, medo e solidão.

Essas duas formas de se ouvir o silêncio na sociedade contemporânea criam uma espécie de um paradoxo, que varia entre espaços, culturas e contextos. Considerando a pandemia do COVID-19 e as mudanças, sentimentos e percepções que ela evoca em nós tanto enquanto sociedade quanto como indivíduos, ele passa a ser muitas vezes reinterpretado e ressignificado.

O contexto pandêmico já aterroriza em si. A nossa interpretação do espaço sonoro tem muito a ver com o contexto no qual estamos inseridos. Dessa maneira, as memórias que haviam do silêncio como um intervalo bem vindo no cotidiano, paz e descanso, dá lugar à uma sensação de interrupção indesejada na liberdade e espontaneidade de viver. Independente do privilégio ou não de cumprir a quarentena, a liberdade dos cidadãos foi afetada de uma forma geral, em diferentes níveis, já que

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o espaço público não é mais um espaço de permanência e lazer, e sim meramente de passagem para aqueles que precisam por algum motivo se deslocar por ali.

Aqui o silêncio simboliza uma pausa melancólica, improdutividade e escassez. Naturalmente, num mundo onde a cultura do desempenho e o cotidiano acelerado e barulhento tornaram-se o habitual, o silêncio emerge como um incômodo. Pelo menos no mundo ocidental, desenvolvemos uma cultura em que parece que o barulho confirma o bom funcionamento das coisas. O silêncio e a quietude trazem a aterrorizante sensação de ausência num mundo onde todos os pequenos espaços parecem ter de ser preenchidos.

“O homem gosta de produzir sons para se lembrar que não está só. Desse ponto de vista, o silêncio total é a rejeição da personalidade humana. O homem teme a ausência do som do mesmo modo que teme a ausência de vida. Como o derradeiro silêncio é a morte, ele adquire sua dignidade maior no serviço funerário.” (SCHAFER, 1997, p. 354)

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A ausência de ruído hoje é interpretada como um vácuo, equivalente à uma temida interrupção na comunicação.

O contexto pandêmico evidencia essa interpretação contemporânea sobre o silêncio, principalmente por trazer um silêncio imposto. Essa antipatia ocidental ao silêncio e à pausa, segundo Schafer, tem relação com o desejo do homem de “nutrir sua fantasia de vida eterna”(SCHAFER, 1977, p. ). É como se sua presença negasse a vida. Essa interpretação cria o desejo de preencher a paisagem sonora produzindo sons constantemente, porque parece que, ainda que alguns

“é um silêncio ensurdecedor. totalmente perturbador, é

um negócio muito esquisito. minha paisagem sonora mudou muito depois da

quarentena, porque ficou

muito mais silêncioso, mais quieto, a paisagem ficou

muito mais inabitada. Por

incrivel que pareça, antes

da quarentena isso era uma coisa que eu gostava muito.

Esses momentos eram raros,

de ficar sozinho, em silêncio”

Fabiano, 32, Vila da Penha, RJ 89

“no inicio da quarentena o silêncio me assustou, e assustou bastante. são caetano é pequena mas é rota de passagem de carro, de avião, tinha muito volume de gente andando nas ruas, e toda essa movimentação, todo esse barulho pra mim é manifestação de vida. Aquele silêncio todo imposto, me faltava vida. é como se a gente estivesse vivendo uma meia vida”

Izabelle, 36, São Caetano do Sul, SP 90

A pandemia | O S I Lêncio e a presença

considerem atrativa a ideia do silêncio, principalmente agora, num momento onde as cidades de esvaziaram de repente por motivos trágicos, a maioria de nós que vive no contexto capitalista ocidental não se dá muito bem com a ideia de um recolhimento absoluto.

Essa aversão ao silêncio tem uma relação direta com a perda do direito - e da prática - a contemplação.

Segundo o dicionário , contemplar significa “admirar com o pensamento; entregar-se a profundas reflexões; observar, ver, cismar, pensar, refletir”. É como um estado de “estar suspenso, um olhar ou escutar tão elevado que se esquiva das condições habituais, que se torna uma temporalidade suspensa” (CRARY, 2013, p.32). Tudo isso exige tempo e está diretamente ligado à experiência. Apesar do termo “contemplar” se associar mais facilmente com a visão, vale ressaltar que o contemplar auditivo é igualmente importante no contexto urbano. Com o mundo acelerado no qual estávamos imersos até aqui, o agir produtivo e o caráter de urgência tornaram-se dominantes prejudicando a nossa habilidade de reflexão, já que esta requer, dentre outras coisas, disponibilidade e atenção, e é a escuta ativa, junto com o olhar atento, que nos fornece a sinestesia necessária para uma experiência mais completa.

Nessa cultura dos excessos, é como se o silêncio negasse não só os sons, mas o movimento e bom funcionamento do mundo, trazendo à tona a mesma lógica da Revolução Industrial, onde os sons da produtividade passaram a valer mais que a pausa e o silêncio. Seguindo essa lógica acelerada, por mais que tudo pareça ter perdido a velocidade com a chegada da pandemia, a nossa tendência natural acaba sendo abafar o silêncio com constante produção sonora, seja através da música, da TV ou qualquer outro meio de produzir som, para

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Thaisa fredo

alimentar a falsa sensação de que tudo está como era antes. Porém, apesar da sensação de falta que o silêncio traz, o excesso se torna mais vazio que o silêncio a partir do momento em que não se distingue mais nada.

Penso que essa atribuição negativa que a contemporaneidade designou ao silêncio, evidenciada no contexto da pandemia, tem uma relação direta com a forma como o senso comum o define: a ausência de som. Essa definição simplista traz a ideia de que o silêncio seria apenas um plano de fundo, um vácuo, escassez. Definido dessa forma, o silêncio remete à falta, à inexistência, logo é associado à ausência de vida, à morte. É compreensível que o silêncio nesse sentido apavore. Com as ruas mais quietas e o país batendo recordes diários de número de óbitos, a sensação de vazio que a carência dos sons cotidianos de movimentação de pessoas, risadas, eventos, carros provoca o medo da incerteza do que está por vir.

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Contudo, contrariando essa simples definição, John Cage (1985), compositor e teórico musical americano, traz uma visão mais otimista e transformadora do silêncio. Segundo o compositor, o silêncio não nega os sons. Ele é, na verdade, a condição de sua existência, da possibilidade da escuta, da música e de todos os sons.

Em outras palavras, para Cage, o silêncio desempenha a função de um princípio de estruturação, onde todos os sons são possíveis. De fato, só conseguimos ouvir e distinguir os sons porque eles são intercalados com o silêncio. Em outros termos, podemos dizer que o silêncio pontua e harmoniza o som. É seguindo essa lógica que, como abordado anteriormente, a escuta nas cidades contemporâneas se faz tão prejudicada. Com a quantidade excessiva de sobreposição sonora, esses intervalos são suprimidos e, assim, forma-se uma paisagem sonora confusa e desagradável.

A pandemia | o si l êncio e a presença

Afinal, como se ouve o silêncio? No final dos anos 40, Cage entrou em uma câmara anecóica3 na Universidade de Harvard com esperança de ouvi-lo, mas em vez disso ouviu um som contínuo muito agudo e outro muito grave.

Segundo ele, o primeiro provinha de seu sistema nervoso em funcionamento e o segundo era o sangue circulando em seu corpo (CAGE, 1985). O ponto é que, na verdade, o silêncio total não existe enquanto experiência possível: quanto mais se procura ouvi-lo, mais os sons ambientes ganham relevância. Não há como haver silêncio, já que onde há um ouvido que procura o silêncio há vida, e a vida necessariamente produz som. Seguindo essa lógica, o silêncio não nega os sons: ele amplifica. Ao se fazer silêncio, outros corpos sonoros ganham mais alcance no espaço, podendo ser ouvidos à distâncias mais longas e de maneira mais nítida. Por esse motivo, na pandemia, onde as cidades estão mais vazias e caladas, o espaço sonoro de cada um é potencialmente expandido.4

John Cage na câmara anecóica

Em sua principal obra, 4’33’’, Cage explora o silêncio como um mundo de possibilidades já que é ele que permite o acontecimento de todos os sons. Por ser composta apenas por silêncio, cada vez que é executada a obra soa diferente. Isso porque, na poética Cageana, o silêncio não significa a ausência de som - já que ele mesmo mostrou que é impossível -, e sim a ausência de sons intencionais. Ou seja, o silêncio se transforma nos sons do ambiente. Ou ainda, o silêncio é, com toda sua imprevisibilidade, ruído e movimento. É o movimento do mundo enquanto nós pausamos para ouvi-lo. Assim, com essa obra, Cage propõe uma “abertura total à

3

É uma sala projetada para conter reflexões, tanto de ondas sonoras

quanto eletromagnéticas. Elas também são isoladas de fontes externas de ruído. Consideradas o “lugar mais silencioso do mundo”.

4

foto:https://culturacolectiva.com/tecnologia/el-lugar-que-te-

hara-sentir-la-muerte-y-llegar-a-la-locura

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“ACHO QUE O SILêncio também tem o seu papel. eu sinto falta, não

suporto tv ligada o tempo inteiro. acho que só no silêncio a gente

consegue parar, se concentrar. apesar de que no silêncio tem sempre um cachorro latindo”

Lucas, 32, Ingá, Niterói, RJ

“quanto mais silêncio eu faço,

mais coisas eu consigo ouvir. E

não só sons externos, mas até o

barulho da minha cabeça, o som dos pensamentos”

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Severino, 24, Brasília, DF

A pandemia | o si l êncio e a presença

influência do mundo” (TERRA, 2000, p.99), onde essa indeterminação ocasionada pelo silêncio de abre uma gama de possibilidades de escuta e interpretação do espaço.

Com essa concepção de silêncio como abertura para o mundo, ele emerge como uma experiência, ou melhor, como um possibilitador da experiência. Logo, considero que Cage trata o silêncio não como fim, mas como meio, um meio de ampliar a percepção e a escuta do espaço e de potencializar a experiência nos lugares. É como uma abertura para a casualidade da vida, a pausa necessária para a contemplação e a legitimação da experiência.

A pesquisadora canadense Ursula Franklin (1994) considera, no contexto capitalista, que existem dois tipos de silêncio. O primeiro se assemelha com o silêncio de Cage, o silêncio da contemplação, que é a “condição propícia para a ocorrência de eventos não programáveis e não programados” (FRANKLIN, 1994, p.2), que possui uma condição capacitadora. O outro é justamente o oposto: é aquele que permite que um evento programado e planejado ocorra. Franklin afirma que, para que alguém seja ouvido, todos os outros precisam ficar em silêncio e, em muitos casos, ele não é assumido voluntariamente. Esse é o silêncio imperialista que surge com a Revolução Industrial e o capitalismo, o silêncio imposto, o som suprimido.

“Esta é a forma de silêncio forçado que eu tenho medo. Não é apenas o silêncio da célula acolchoada, o silêncio do confinamento solitário, mas também o silenciamento que ocorre quando há o megafone, o boombox, o sistema de PA e qualquer variação na qual sons e vozes são silenciados para que um evento planejado pode ocorrer.” (FRANKLIN, 1994, p.2)

95

Thaisa fredo

Quando digo que a pandemia não se projeta igualmente por todos os espaços, isso se dá também com relação a como o capitalismo trata o silêncio no que diz respeito à cidade. Como mencionado alguns capítulos atrás, ao se tratar de uma sociedade capitalista, a maioria dos sons que ouvimos pertencem a alguém ou são utilizados de alguma maneira para nos manipular ou vender alguma coisa, e isso também se aplica ao silêncio como mostrado no trecho acima. Nesse sentido, Franklin (1994) afirma que o silêncio - o de caráter positivo - está sendo retirado da disponibilidade do comum. Segundo a pesquisadora, com o uso muitas vezes indevido da tecnologia, as sociedades chegam a uma posição em que algo que era normal se torna “raro e precioso, e algo que era anormal se torna normal” (FRANKLIN, 1994, p.3).

Ela exemplifica esse fenômeno com a questão da água:

“Hoje, as pessoas consideram a poluição da água essencialmente normal, e aqueles que podem pagar bebem água engarrafada. É mais difícil ter um silêncio engarrafado, mas o dinheiro pode comprar distância do som.” (FRANKLIN, 1994, p.3)

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De fato, o silêncio adquiriu um valor econômico e social no capitalismo contemporâneo. Basta observar que, nas áreas muito ruidosas da cidade, o valor dos imóveis é mais baixo. Nas favelas, como mencionado anteriormente, o silêncio é praticamente inexistente e, quando ele ocorre, expressa que há perigo. Com a pandemia essa dualidade fica ainda mais evidente: o silêncio só ganhou destaque onde o isolamento social pode ser obedecido, e isso ocorre nos bairros cujos

“A possibilidade de acalmar o movimento do cotidiano, silenciando um pouco o conjunto sonoro do diaa-dia, me permitiu refletir mais sobre várias áreas da minha vida e escutar sons que eram abafados pela mente sobrecarregada”

Melissa, 46, Champaign, Illinois

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Thaisa fredo

moradores pertencem à uma classe social mais elevada.

Os espaços onde o protagonismo do silêncio não pode ser contemplado durante a pandemia também são os lugares mais marginalizados e silenciados - como as favelas - que possuem maior índice de contágio e óbitos em razão do vírus. Esses lugares, geralmente, vivenciam o segundo silêncio elucidado por Franklin: o silêncio imposto, opressor.

Assim, o silêncio, que deveria ser um bem comum natural, se torna praticamente uma questão de consumo de luxo, definindo mais uma ferramenta para a sustentação do capitalismo e evidenciando como as relações que a sociedade desenvolve com os sons nos apontam as tendências, os costumes e as prioridades dessa sociedade.

Diante dessas definições, podemos considerar que o silêncio é relativo e, também de certa forma interpretativo. O silêncio não é único, existem vários: o voluntário, o imposto, o político, o transformador, dentre muitos outros.

No contexto da pandemia ele surge como algo que remete à morte e causa angústia, considerando que som é manifestação de vida e a vida está, de certa forma, fragilizada. Apesar de já termos superado a ideia de que silêncio é a ausência do som, nesse caso ele emerge com a ausência do som do afeto, das manifestações artísticas, dos encontros, da espontaneidade das ruas.

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No entanto, ao mesmo tempo, o silêncio permanece sendo o possibilitador da existência de todos os sons, ou seja, a vida só se manifesta em virtude do silêncio.

Portanto, se queremos ouvir o som da vida, é essencial que se ouça e contemple o silêncio. Permitir a abertura ao imprevisível - e também ao programado - é, enfim, a sua essência É, também, a essência da nossa sanidade,

“Ouvimos muito dos barulhos do mundo, mas não ouvimos a nós, nosso interior. Assim nos desencontramos de quem somos, ou gostaríamos de ser. [...]EM TODAS AS VEZES EM QUE EU PUDE EXPERIMENTAR A GRANDIOSIDADE DA EXISTência o silÊNCIO SE FEZ PRESENTE.”

Emicida 99

Thaisa fredo

não apenas individualmente, (FRANKLIN, 1994).

mas

coletivamente

RUÍDO E SUBVERSÃO

Por muitas vezes tentei definir e explicar separadamente os conceitos de ruído, som e silêncio. Percebi, por fim, que esses três conceitos não são opostos como aparentam ser inicialmente, tampouco facilmente distinguíveis. Ao tratar das questões relacionadas à interpretação do silêncio no capítulo anterior, por exemplo, por muitas vezes tive que recorrer ao som, já que um implica na existência do outro.

Todo tipo de som é composto por ondas, vibrações, e o que geralmente diferencia o som do ruído, em termos físicos, é a frequência. Frequências regulares e estáveis configuram o som, enquanto aquelas que são irregulares, inconstantes e instáveis dizem respeito ao ruído, geralmente considerado um som desconfortável, irritante e indesejável. Podemos considerar, então, som e ruído conceitos dispostos entre a ordem e o caos, o que, segundo José Wisnik, músico e pesquisador brasileiro, trata-se de um “continuum, uma passagem gradativa que as culturas irão administrar, definindo no interior de cada uma qual a margem de separação entre as duas categorias” (WISNIK, 1999, p.32), onde o som, por sua vez, se encontra no limiar entre o ruído e o silêncio.

Posto isso, a simples definição física não é capaz de dar conta das inúmeras nuances culturais e perceptivas presentes em uma sociedade.

100

Schafer (1977), em sua abordagem composicional dos

a p andemia | r u í do e s u b v ersão

sons, tende a tratar o ruído como algo sempre negativo, se referindo à todo som ou conjunto exagerado de sons incômodos que atrapalham nossos ouvidos. Mas, afinal, incômodo para quem? Quando nos referimos às relações entre as pessoas, os sons e os lugares, é um equívoco tratar o ruído como um simples ruído. Sua definição como som indesejável, por si só, já aponta para um caráter subjetivo e pouco tangível, já que, naturalmente, a interpretação e a atribuição de qualidade aos sons está diretamente ligada à cultura e aos significados que ela confere a eles. Por esse motivo é um conceito tão complexo de definir.

Jacques Attali (1995) define o ruído mais precisamente como um sinal de interrupção na transmissão ou recepção de uma mensagem, uma violência, simulacro de assassinato (ATTALI, 1995). Assim sendo, o ruído não é caracterizado por suas qualidades físicas e acústicas, e sim pelo que ele representa. Sendo ruído qualquer som que interfere, destruidor do que se quer ouvir - ou da mensagem que se quer comunicar ou receber - isso implica perguntar quem está na posição de ouvinte e o que esse sujeito quer ouvir. A maneira como cada comunidade e cada pessoa interpreta o que chega aos seus ouvidos é única, e é o que define o que é agradável ou não de ser ouvido. Isso envolve intenções, gostos, cultura e memória. Desse modo, todos os sons do mundo são ruído assim como são música, e cabe a cada cultura, cada indivíduo, cada comunidade definir o que os separa.

Como elucidado anteriormente, não há som sem silêncio, não há sentido no movimento sem a pausa.

A tão temida interrupção na comunicação, geralmente atribuída à presença do silêncio, na verdade, pode ser muito mais associada ao ruído já que esse se define como uma interferência na transmissão de uma mensagem e

101

Thaisa fredo

o silêncio, afinal, transmite uma mensagem. Podemos dizer então que, de certa forma, o silêncio amplifica os outros sons, enquanto o ruído os suprime. É importante considerar que o ruído, como interrupção na comunicação, muitas vezes pode ser intencional, subversivo. Ele pode ser, em si, a própria mensagem.

Partindo dessa lógica, o ruído se configura como um paradoxo: ao mesmo tempo que ele perturba ou interrompe, ele comunica. Sendo assim, podemos considerar que o ruído sequer existe em si, já que ele se dá apenas em relação ao sistema no qual está inscrito: emissor, transmissor e receptor (ATTALI, 1995).

Nesse período de pandemia e instabilidade política no Brasil surge um bom exemplo para ilustrar essa dicotomia do ruído. Os panelaços - manifestações contra o governo através das janelas - consistem, em termos sonoros, em gritos e barulhos metálicos das panelas sendo batidas pelos manifestantes. O som emitido por esse protesto em termos gerais não agrada, causa desordem no espaço sonoro, incomoda. Por outro lado, apresenta uma forte carga simbólica e um desejo intenso de se passar uma mensagem. Como se define, então, o som do panelaço?

Um ruído? Sons de resistência? O fato de que o protesto consiste em bater panelas expressa que é totalmente intencional que esse som seja desagradável, que a ideia é justamente incomodar. Ou seja, muitas vezes a poluição sonora de uns é a resistência de outros.

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Essa lógica também se aplica aos movimentos culturais citados no segundo capítulo, como o Hip Hop e o funk.

Nesses dois casos, o som é trabalhado tanto como forma de protesto quanto de se retratar uma realidade silenciada pelo sistema supremacista branco. Sendo assim, ao mesmo tempo que simboliza resistência para os emissores, atormenta quem deseja que essas vozes

a p andemia | rU í do e s u b v ersão

permaneçam abafadas. Na mesma pesquisa publicada na revista Ensaios1, citada anteriormente, a autora traz um exemplo da favela como sendo um ruído para a cidade, algo indesejável, que atrapalha.

“A favela se consolidou como o ruído da cidade e alguns partidos ‘ignoraram’ durante anos as favelas como espaços de luta e resistência, como se os seus moradores não fizessem parte das frações da classe trabalhadora. Como se a favela, para as alas progressistas ou conservadoras não produzisse som, mas sim ruídos. As favelas para esses sujeitos representam o ruído dos sons produzidos na cidade, ou seja, a dissonância diante da consonância civilizadora que se almeja historicamente construir. “ (ROSENDO, 2015 p.53)

De acordo com Attali (1995), o ruído sempre foi experimentado como “destruição, desordem, sujeira, poluição, uma agressão contra as mensagens de estruturação de código” (ATTALI, 1995, p. 27).

Trago novamente o exemplo do funk: como uma marca sonora das favelas, o funk emerge como ruído para outras zonas da cidade, uma agressão contra os códigos da sociedade elitizada, tanto por seu volume e suas características musicais quanto pela subversão e tudo o que ele representa.

Essa determinação entre o que é som, o que é ruído e quais seus limites diz muito a respeito das relações criadas dentro de uma sociedade. Nós, brasileiros, por exemplo, em geral possuímos uma ampla tolerância para o ruído. Culturalmente o povo brasileiro é um povo expansivo, tanto em termos espaciais, relacionais quanto sonoros. Nossas cidades, os espaços públicos possuem 1

Revista Ensaios, vol. 8, janeiro-junho 2015

103

“O som da cidade em

movimento é o som da

história de cada uma das pessoas e dos animais que compartilham a

cidade comigo, e cada som representa a história

ou parte da história de

alguém. O que pra mim é uma sirene, pra alguém pode

ser a esperança de viver.

O que pra mim é uma moto acelerando, pra alguém pode ser o dinheiro pra

comprar um presente pro

filho, ou pra dar de comer pra família. O que pra mim são latidos soltos, pra 104

alguém pode ser a alegria

A “CHO QUO E SLêncio I também tem o seu pape eu lsin . to falnão ta, suporto tlv g iada o tempo inteiro acho . que só no silêncio a gentconse e gue parar se concen , trar apesar . de que no silêncio tem sempre um cachorro latindo”

de reencontrar o seu animal de estimação depois de

um dia de trabalho. Enfim, é impossível saber o que

cada som significa pra cada

pessoa, mas é certo que cada som tem significados muito diferentes pra cada um.”

Alexandre, 25, Porto Alegre, RS

105

Thaisa fredo

uma polifonia de vozes que não se encontra em qualquer lugar. O som dos transportes e máquinas urbanas pode ser ouvido em qualquer metrópole do mundo, mas aqui esses barulhos se somam aos sons da cultura expressiva das pessoas. Nos transportes públicos, por exemplo, é comum e aceitável encontrarmos pessoas conversando e rindo alto, ouvindo música num volume elevado e artistas se apresentando com seus instrumentos, muitas vezes com som amplificado. Todos esses corpos somados ao barulho da máquina causam um verdadeiro caos sonoro, mas nossa cultura expansiva normaliza e aceita essa excessiva sobreposição de sons.

As culturas orientais, por sua vez, possuem outro tipo de relação com o espaço sonoro. No Japão, por exemplo, onde as relações no meio urbano tendem a ser muito mais formais, o silêncio predomina nos transportes públicos, apesar da maior quantidade de pessoas em um espaço reduzido. Esse senso de respeito ao espaço acústico do outro revela hábitos e valores de determinada sociedade e caracteriza boa parte da paisagem sonora da cidade e, além disso, de certa forma define o limite do agradável para aquele povo. Aliás, talvez seja justamente por termos no Brasil essa cultura expansiva, da conversa, do contato físico, da música, que o silêncio tenha se tornado algo tão marcante e negativo, já que de certa forma nega nossa essência comunicativa enquanto sociedade.

106

Essa delimitação entre o que é som e o que é ruído acabou sendo, de certa forma, ressignificada com a chegada da pandemia. Muitos dos sons urbanos geralmente considerados ruidosos e desconfortáveis na cidade - como trânsito, aviões, burburinhos - hoje são frequentemente desejados como um resgate do que é considerado normal; um normal que, apesar de conturbado, tranquiliza por representar algo que é familiar. Isso nos revela que, além do espaço, suas

“No primeiro clique dá pra ver que não tem nenhum carro na rua. Essa foto foi tirada cinco e pouca da tarde, e nesse horário a Av, Goiás era pra tá bombando de carro, é bizarro. E aí agora, quando a gente ouve um carro passando que seja, isso dá uma esperança, dá uma energia interna pra gente de poxa, tá voltando, a vida tá voltando.”

Izabelle, 36, São Caetano do Sul, SP 107

Thaisa fredo

características e a bagagem perceptiva individual, o contexto também confere valor aos sons.

“Em primeiro lugar, nenhum evento sonoro, musical ou outro, pode ser isolado das condições espaciais e temporais de sua propagação de sinal físico. Em segundo lugar, o som também é modelado subjetivamente, dependendo da capacidade auditiva, da atitude e da psicologia e cultura do ouvinte.” (AUGOYARD, 2009, p.4)

Esse caráter ambivalente e transitório do som o torna capaz de produzir ordem e desordem, vida ou morte: “o ruído é destruidor, invasivo, terrível, ameaçador, e dele se extraem harmonias balsâmicas, exaltante, extáticas” (WISNIK, 1999, p. 36). Segundo Attali, a música responde ao terror do ruído, recriando as diferenças entre os sons e “reprimindo a dimensão trágica da dissonância duradoura (ATTALI, 1995, p.28) Dessa maneira, se o ruído, com todo seu incômodo, se define por sons inarmônicos com frequências e amplitudes irregulares, a música pode ser considerada seu extremo oposto, já que nela predomina a harmonia, planejamento e organização, além de, intrinsecamente, ter como propósito evocar sentimentos e passar uma mensagem. Entretanto, a definição do que seria esse som organizado também varia de cultura para cultura, o que torna a música também um conceito relativo. Afinal, o que é música para um pode ser ruído para os ouvidos do outro. A música traduz os valores socioculturais de um determinado povo em um recorte de tempo de sua história e, por isso, é uma maneira muito eficaz de perpetuar uma cultura.

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Na pandemia, as manifestações musicais na janela

a p andemia | r u í do e s u b v ersão

ganharam força como atos de solidariedade e uma tentativa de interação com a vizinhança. A música tem um caráter catártico que, de alguma forma, é capaz de aproximar as pessoas. Assim, a música constitui a memória coletiva de um lugar e, especialmente nas atuais circunstâncias em que a aproximação física muitas vezes não é viável, ela comove as pessoas com o que Augoyard (2009) chama de anamnesis, que se define pelo “renascimento da memória causado pela escuta e pelo poder evocativo dos sons” (AUGOYARD, ) O autor defende que, sem dúvida, a música, mais do que outros modos de expressão ou mesmo outros aspectos do domínio do som, possui uma faculdade evocativa que chama ao mesmo tempo um sentimento e uma memória.

Diante disso, o som musical se torna um importante aliado nesse cotidiano carente de encontros.

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“AQUI é um paredão, meio que tudo reverbera, então é briga, criança gritando e chorando, pai brigando com criança, panelaço. Eu tento não interagir, me isolar aqui, mais dentro do meu som mesmo. Eu fecho minha casa e toco minha música. A música vai te realimentando e você consegue dar prosseguimento com a vida tranquilamente quando você tem esse recurso de fazer música o tempo todo”

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Cayo, 32, Botafogo, RJ

“um som importante é o barulho da máquina de costura da minha tia, que ela tá costurando máscaras pra vizinhança. ela sempre costurou aqui em casa, mas agora o barulho da máquina é bem mais frequente e esse som ganhou um novo significado.”

Manoela, 36, Icaraí, Niterói

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A P R O X I M A Ç õ es ar t ís t icas

A PR OXIM AÇões artísticas

INSTALAÇÕES E MAPAS SONOROS

O conceito de ecologia acústica, criado por Murray Schafer, consiste fundamentalmente no estudo dos sons em relação à vida em sociedade e no relacionamento entre os seres humanos e o ambiente, mediado pela escuta. Sendo assim, só pode ser desenvolvido esse estudo se forem considerados, no próprio local - e não em estúdio ou laboratório -, os efeitos do ambiente acústico sobre os que ali vivem. Muitos artistas e pesquisadores

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Thaisa fredo

se desafiaram a elaborar projetos de ecologia acústica, com o intuito de incentivar uma escuta consciente através da percepção e composição de uma determinada paisagem sonora. Com diferentes metodologias e resultados e alguns de caráter mais artístico e outros mais informativos, esses projetos e instalações trazem pontos de vista interessantes sobre como os sons do ambiente criam diferentes sensações e emoções em nós, além de evidenciar como somos grandes agentes da paisagem sonora que nos cerca. A seguir, apresento alguns projetos que julguei interessantes para balizar a proposta deste trabalho.

LOWLANDS | SUSAN PHILLIPZ

O termo instalação sonora foi criado em meados dos anos 1960 pelo artista estadunidense Max Neuhaus, que desenvolveu uma série de trabalhos em ambientes internos e externos, sempre na tentativa de reinventar os espaços através dos sons. Nas décadas seguintes, inúmeros artistas se apropriaram desse conceito para desenvolver projetos que despertam a consciência dos visitantes para a experiência sensorial dos espaços concretos e ordinários da cidade. 1 A instalação Lowlands, realizada em 2010 pela artista escocesa Susan Philipsz, dialoga com as experimentações e tentativas de inserir o ruído na música e a arte na vida cotidiana, associando diferentes intensidades com construções intencionais para propor um ecossistema

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1

foto: Susan Philipsz, Lowlands (2010), extraído de www.bbc.

com/news/entertainment-arts-11928557

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acústico onde seja possível repensar as camadas de espaço e tempo urbanos através do som. Lowlands consiste em alto-falantes emitindo um canto feminino sem acompanhamento instrumental, colocados debaixo de três pontes na Escócia. As pontes sobre o rio Clyde, em Glasgow, ficam próximas umas das outras, sendo que uma é feita de pedra e as outras duas de metal. A reverberação do som é diferente para cada material e estrutura, dando à voz pluralidades e nuances que parecem multiplicá-la à medida que ela se propaga pelo espaço. Para reforçar esse efeito multiplicador, Philipsz gravou três versões levemente diferentes da canção e as reproduziu com o atraso de alguns segundos entre os alto-falantes, gerando uma sensação de “gagueira e fantasmagoria” na voz. Cage já atentava para a mudança de natureza sofrida pelos sons dependendo de sua localização: “As coisas soam diferentes se vêm de posições diferentes no espaço”(CAGE, 1985, p.42) Em Lowlands, além do canto evidenciar o espaço e suas propriedades, ele acaba revelando o próprio aspecto musical dos ruídos cotidianos, agregando-os e mesclando-os à sua composição.

“Quando a voz de Philipsz vai sumindo num intervalo para tomar fôlego, outro som que surge inesperadamente da cidade ocupa esse espaço deixado vazio, integrando-se organicamente à música. Podemos dizer que os sons do mundo, acontecendo num determinado instante, são os instrumentos musicais que acompanham o canto da artista e o enriquecem, formando com ele uma multiplicidade indissociável. Quando a voz silencia os ruídos ao redor vêm à tona, de maneira que o trabalho acaba chamando a atenção para a orquestração natural e imprevisível da paisagem sonora cotidiana, com seus ritmos e ondulações aleatórias.” (MARTINS, G. Revista Ciclos, Florianópolis, fevereiro de 2015)

Essa intenção se aproxima dos princípios de John

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Thaisa fredo

Cage no que diz respeito tanto à questão do silêncio quanto da obra em si: quando há a ausência do som por parte da obra, os ruídos do ambiente se unem a ela e a recepção dos sons dependem do espaço-tempo em que o ouvinte se encontra, assim como em 4’33’’. Assim, a instalação está em variação contínua, pois apesar do canto permanecer o mesmo, em repetição, os ruídos urbanos que o permeiam nunca se repetirão, permitindo que se ouça a cada instante uma composição diferente.

Ao mesmo tempo, Lowlands se dintingue do conceito de Cage ao passo que, para ele, os ruídos do dia-a-dia deveriam ser levados para as salas de concerto e, aqui, reconheço uma operação inversa: a música vai às ruas para atrair e se compor com outros sons, rumores, barulhos e silêncios, tornando audíveis sons antes imperceptíveis e, também, forças não sonoras, como por exemplo, os sons do rio e sua memória (MARTINS, 2015). Dessa forma, as relações entre a música da obra e os sons da cidade são definidas pelo espectador, que pode escolher apreciá-la à certa distância ou se colocar debaixo das pontes, de maneira mais imersiva com a instalação. O mais interessante dessas relações é que o ouvinte, ao dedicar-se a prestar atenção na obra, se abre também, de forma intuitiva e até inconsciente, para ouvir atentamente a cidade.

CITIES AND MEMORY | STUART FOWKES

Cities and memory é um projeto global de som colaborativo que abrange gravação de campo, arte sonora e mapeamento de som, “remixando o mundo, um som de

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cada vez”2, criado em 2014 pelo artista sonoro Stuart Fowkes, no Reino Unido. O projeto principal consiste num mapa sonoro interativo, onde cada local demarcado apresenta dois diferentes sons: a gravação com os sons originais daquele lugar e outra com a paisagem sonora reimaginada, criando um novo contexto para cada um desses lugares ao redor do mundo. O objetivo é que, além de o ouvinte explorar os lugares através de seus sons reais, possa também explorar versões do que esses lugares poderiam ser, alternando a experiência entre dois mundos sonoros. Isso permite o compartilhamento de uma multiplicidade de narrativas e pontos de vista das experiências individuais cotidianas, constantemente ressignificadas.

O projeto já reúne mais de três mil gravações em 90 países, e as reinterpretações da paisagem variam entre versões musicais, música ambiente recomposta, recortes vocais, faixas eletrônicas rítmicas e composições abstratas. A iniciativa abrange muitos outros projetos o propósito de captar sons por categorias e, assim, apresentar diferentes tipos de informações em escala mundial e composições sonoras diversas. “Future cities”, por exemplo, é considerada a maior pesquisa de todos os tempos sobre espaços urbanos do mundo. Também colaborativo, o objetivo é examinar como as paisagens sonoras urbanas estão se modificando e o que isso significa pra nós enquanto sociedade. A ideia também é criar paisagens sonoras reimaginadas de forma a gerar uma reflexão sobre o papel que o som desempenha - ou deveria desempenhar - nos novos espaços urbanos.

Outro subprojeto mostra um mapa com sons originais e reimaginados de protestos ao redor do mundo, mostrando como milhares pessoas em diferentes países “estão cada

2

“Remixing the world, one sound at a time

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Thaisa fredo

vez mais encontrando sua voz e se expressando através do som”. Como primeiro projeto de mapeamento global de protesto e ativismo político, a ação novamente convida qualquer pessoa que queira reimaginar e trazer suas memórias e experiências sonoras. Segundo o site, “esses sons, mais do que qualquer outro, estão definindo o momento em que vivemos e estão unindo pessoas, comunidades e países inteiros ao redor do mundo”.Além disso, há também projetos voltados para sons sagrados, sons da natureza e muitos outros que nos mostram como nossos ouvidos são capazes de interpretar e (re) imaginar os espaços.

Em virtude da pandemia, foi criado o “Stay home sounds”, projeto que convida pessoas do mundo todo a enviar os sons de seus lugares de confinamento e contar um pouco como está a nova realidade no atual contexto pandêmico. Ao clicar em cada lugar demarcado no mapa, o ouvinte tem acesso à gravação original, um registro fotográfico e um pequeno texto contando a história por trás daquela paisagem sonora. Fowkes, criador do projeto, fala da experiência de receber inúmeras gravações e relatos sobre como as pessoas se sentem nesse contexto pandêmico:

“É como se tivéssemos retrocedido uns cem anos em termos de som [...] Para todas as nossas vidas, este é um momento único, e também o é de uma perspectiva sonora. Antes era fácil ignorá-lo, mas agora, ainda mais do que antes, gostaria que as pessoas continuassem a ouvir o mundo ao seu redor. O som ao redor.”(FOWKES, 2020)

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Ao interagir com o mapa, é interessante observar como,

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de fato, as gravações são em sua maioria menos ruidosas do que a de outros projetos anteriores à pandemia.

Fowkes considera que essas novas sonoridades recebidas pela iniciativa podem ser divididas em três categorias: os sons humanos, como resistência - como “uma canção anti-coronavírus tocada numa rádio no Senegal” ou “os aplausos aos serviços de saúde britânicos nas varandas”; a natureza, como pássaros a cantar onde antes não era possível ouvir e abelhas nas árvores e, por fim, os sons do abandono, em espaços urbanos anteriormente lotados e cheios de vida como a Times Square, onde agora “só se houve uma espécie de ar condicionado vindo dos edifícios”.

Apesar de muitos dos sons serem mais naturais ou mais silenciosos, o único som registrado no Brasil até então é o de um panelaço na Av. Ipiranga, em São Paulo, e é considerado por Fowkes o mais ruidoso e desagradável do projeto. Essa ocorrência evidencia como a paisagem sonora dos lugares reflete os costumes, a cultura e até panoramas político-sociais de cada um, como essa demonstra a conjuntura política conturbada e irresponsável na qual nosso país está inserido nesse momento.

Muitos outros pesquisadores e artistas sonoros têm se dedicado à captação de paisagens sonoras, editandoas e compartilhando-as em várias plataformas. Com as ferramentas interativas que a internet oferece, é possível escutar cidades que nunca visitamos e nunca vimos, além de experimentar paisagens criadas a partir da experiência sonora de outras pessoas.

O que esses dois projetos têm em comum - e o principal motivo pelo qual me interessei por eles - é o trabalho atento às virtualidades e valores estéticos da experiência trivial do cotidiano, que convoca o ouvinte à uma escuta

119

Thaisa fredo

consciente e revela, intensifica e até problematiza as experiências sonoras em uma diversidade de espaços.

AS CAMINHADAS SONORAS E A BUSCA POR UMA ESCUTA ATIVA

Hildegard Westerkamp, artista, compositora e pesquisadora no campo da ecologia acústica, membra do projeto paisagem sonora mundial conduzido por Murray Schafer, é a pioneira no estudo e na prática das caminhadas sonoras. Esse método de estudo dos sons começou entre os anos 60 e 70, e é definido pela própria criadora como “qualquer excursão com o propósito principal de escutar o ambiente, expondo nossos ouvidos a qualquer som ao nosso redor” (WESTERKAMP, 1974). A partir dessa disposição, o espaço se torna espaço acústico, e não apenas visual. É um exercício que visa sensibilizar os participantes para o ambiente sonoro e, consequentemente, para os diferentes tipos de espaço que habitamos. Dessa maneira, escutar e caminhar se tornam atos criativos de investigação, que levam a um contato sensível e afetivo com o ambiente.

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No primeiro artigo que discorre sobre o tema, escrito em 1974, Westerkamp introduz a ideia do soundwalking, no qual chama atenção a seus atributos de “orientação, diálogo e composição” (WESTERKAMP, 1974).

Apresenta, ainda, uma espécie de discurso gráfico composto por texto e imagem - que orienta a escuta, propondo uma experiência auditiva que se concretiza no processo de caminhar, e a cartografia de um ambiente familiar através da escuta. Dessa forma, Westerkamp estabelece um diálogo com o ouvinte através da sugestão

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de situações e reflexões, descrevendo diferentes áreas do parque 1e direcionando a escuta e os demais sentidos com perguntas orientadas. Em indicações como “você pode encontrar qualquer som aqui que seja típico da paisagem sonora de Vancouver?” ou “que tipo de atmosfera os sons da água criam?”, ela convida o ouvinte a vasculhar sua memória sonora e estimula a capacidade imaginativa de cada um. Por essa constante evocação à memória e à escuta ativa, consciente - uma escuta que procura - pelas indicações da obra, essa prática estimula no ouvinte a produção de um efeito que Augoyard (2009) nomeia de anamnesis: “um efeito de reminiscência em que uma situação ou atmosfera passada é trazida de volta à consciência do ouvinte, provocada por um sinal ou contexto sonoro específico”. Ou seja, é uma evocação da memória causada involuntariamente pela escuta, mesclando som, percepção e memória.

Apesar de guiada, essa prática de forma alguma limita a experiência ou inibe a criatividade do participante. Os questionamentos funcionam como estímulos para uma escuta consciente de forma que a maneira de ouvir saia do senso comum. Apesar de seguirem todos o mesmo direcionamento e usarem o mesmo percurso como base da experiência, a interpretação é totalmente individual gerando resultados muito particulares e diversos e, a partir disso, esses soundwalks fazem com que a paisagem sonora se torna um lugar para novas concepções.

Westerkamp defende que quando a escuta atenta se torna uma prática diária, solicitar a boa qualidade do som se torna uma atividade natural. Essa ponto de vista é interessante porque pode refletir em ações cotidianas muito simples que podem contribuir para uma concepção efetiva dos espaços, como não deixar

1

Queen Elisabeth Soundwalk, Vancouver, 1974

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música alta tocando o dia inteiro, optar por máquinas mais silenciosas, solicitar desligar sons perturbadores sempre que possível e, principalmente, ter consciência permanente sobre nossas próprias ações acústicas e da nossa responsabilidade coletiva pelo ambiente sonoro, respeitando o espaço sonoro do outro e tendo a consciência da pluralidade sonora do ambiente que nos cerca.

Os soundwalks de Andra McCartney, grande admiradora de Westerkamp possui dois aspectos que me parecem complementares: um mapeamento de forma mais exploratória e mapeamentos subjetivos do ambiente, com a finalidade de propor manipulações criativas da paisagem explorada. Seu objetivo é tratar a escuta como fonte de informação primária do ambiente cotidiano e, por isso, a repetição de trajetos é uma prática comum nas caminhadas de Mccartney. Enquanto Westerkamp explora a concepção de uma paisagem sonora equilibrada, McCartney, ao propor a atenção ao que já é familiar através da escuta em movimento, traz um questionamento sobre os sons corriqueiros para que sejam singularizados e entendidos, propondo uma ressignificação e, de certa forma, desautomatização do cotidiano.

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Com esse foco nos sons mundanos e repetições do dia a dia, McCartney nomeia dois tipos de escuta aplicáveis no cotidiano: a primeira, a escuta meditativa, remete à aceitação dos sons corriqueiros considerados desagradáveis quando estão presentes em uma escuta de fundo, que pode ser considerada uma ótima ferramenta para conviver com os sons caóticos das metrópoles, mas se afasta do que Schafer chama de clariaudiência, “a audição límpida” (SCHAFER, 1977), p.27). A segunda escuta é despertada pela curiosidade e senso analítico, capaz de estimular uma mudança no modo ordinário e

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automático da escuta podendo, por exemplo, inverter as relações figura e fundo sonoras “Os sons mundanos do dia a dia podem ser vivenciados como estáticos, distração, ruído que interfere no pensamento e na energia; ou inversamente, esses sons que consideramos não musicais e desinteressantes, e portanto não importantes, podem ser a fonte para novas inspirações musicais bem como o conhecimento sobre o ambiente sônico. Soundwalks e outras práticas de escuta do dia a dia proveem acesso a essas fontes de inspiração e significado.” (MCCARTNEY, 2011)

Em busca dessa ressignificação da paisagem sonora cotidiana, a proposta da experiência de McCartney vai além da caminhada em si: inclui palestras que antecedem a prática e esclarecem o método, a experiência de caminhar e gravar os sons em grupo permanecendo em silêncio e, o mais importante, um encontro pós caminhada para que o grupo discuta e compartilhe suas impressões.

Esse compartilhamento de experiências é importante para McCartney pois, segundo ela, é indispensável explorar os modos como o público interage, escuta e produz significados em cada contexto da caminhada.

Esse tipo de experiência auditiva - itinerante, exploratória - me remete ao comportamento ‘lúdicoconstrutivo-crítico’ dos situacionistas na releitura do espaço urbano. O diálogo entre as ações situacionistas e os soundwalks se dá principalmente no papel que é atribuído à caminhada exploratória e reflexiva como meio de captar as singularidades psicogeográficas dos espaços públicos ordinários, possibilitando o rompimento das fronteiras visíveis com representações criativas e renovadas desses espaços. Embora fique claro que McCartney atribua à escuta móvel - através de caminhadas, - o principal incentivo para a composição com sons do ambiente, o ato de escutar e analisar o

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ambiente sonoro em si, estimulado pelo pensamento composicional e analítico se torna um forte incentivo para tornar a experiência auditiva cotidiana mais significativa e prazerosa.

Janet Cardiff, artista também canadense que trabalha com instalações sonoras, singularização da experiência auditiva e percepção de lugares, desenvolveu uma outra proposta para de caminhar com ouvidos atentos.

Em seus audiowalks, desenvolvidos nos anos 90, a artista propõe aos ouvintes passeios sonoros realizados nos mesmos locais e percursos em que já gravou previamente, fornecendo um par de fones de ouvido e um leitor de CD para cada participante. Esse recurso oferece um registro dos sons muitas vezes montados, editados e misturados com a voz da artista ou outras vozes comentando o percurso e, por vezes, inserindo elementos narrativos ficcionais.

Assim, a experiência do caminhante possui camadas esquizofônicas na medida em que é proporcionada, além da escuta dos sons produzidos no local no mesmo espaço-tempo em que o indivíduo está inserido, sons previamente gravados em um diferente espaço de tempo e sons fictícios que transportam o participante para uma narrativa imaginária, criando um deslocamento entre o lugar real e o espaço acústico. Essa transposição proposta através das gravações é, segundo a própria Cardiff, uma maneira de se estar em dois lugares ao mesmo tempo, propondo a sobreposição de duas realidades. Com esse tipo de experiência, ela estimula a criatividade e subversão da narrativa do lugar ao desprender a experiência auditiva da experiência visual do participante, possibilitando uma nova concepção dos lugares.

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Os exemplos acima revelam que uma experiência estética

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das paisagens sonoras e dos sons do cotidiano é possível, ou seja, para além da relação pragmática da percepção auditiva com os sons do espaço com o objetivo prático de sobrevivência e ação, podemos apreciar, usufruir e sentir as propriedades estéticas dos sons, suas relações entre si e com o espaço onde vivemos e até refletir sobre nossa relação com os sons e com o espaço e tempo em que ocorrem, como nos afetam e como nos ajudam a construir nossa própria memória e realidade.

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experiência perceptiva: os sons da q uarentena

Com o surgimento da pandemia durante este percurso, inicialmente como um contexto adverso, fui levada a redirecionar e repensar a proposta prática da pesquisa de maneira que se adequasse a essa nova realidade, onde o uso do espaço público se encontra restrito.

Diante da minha vontade de explorar a relação cotidiana que estabelecemos entre o espaço e o ato de escutar, opto por uma proposta colaborativa que seja capaz de revelar as diferentes formas de interpretação e interação das pessoas com seus espaços particulares nesse momento

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de isolamento social.

Penso que o caráter colaborativo dessa proposta tem especial relevância dentro do contexto que nos atravessa hoje. Diante de tantas restrições no que diz respeito ao contato humano e ao compartilhamento do espaço físico, acredito que, na presença de tantas mudanças, esse tipo de aproximação é muito mais enriquecedora por compartilhar outras experiências, sensações e pontos de vista acerca do cotidiano no isolamento. Trata-se de uma experimentação de natureza qualitativa, já que o processo tem como propósito coletar experiências sonoras e não meramente captar e analisar os sons dos lugares.

Levando em conta que a percepção e concepção sonoras são altamente individuais, interpretativas e afetivas, pequenas amostras sonoras sem nenhum direcionamento extra - sons apenas indexados à uma localização e um período de tempo - facilmente se tornaria uma experiência monótona e desinteressante para quem ouve e não passou pela mesma vivência de quem gravou, tornando esse registro genérico e sem grandes significados. Me interessa mais, portanto, entender como as pessoas ressignificam os espaços através da escuta mais do que estudar os sons – em si – de cada lugar.

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Me baseando inicialmente no guia da caminhada sonora de Westerkamp (1974), depois de alguns testes compreendi que a eficácia desse método dependia de uma experiência presencial onde os participantes tivessem interesse e conhecimento prévios. Com minha proposta de uma prática remota, cujos participantes são leigos no que diz respeito à prática consciente e ativa da escuta, percebi que a abordagem deveria ser mais objetiva e precisa. Além disso, enquanto Westerkamp

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utiliza do deslocamento como base da experiência, aqui faço uso das janelas como mediadora dessa experiência e da observação cotidiana como elemento perceptivo principal. Contudo, julguei relevante manter a lógica de uma experiência guiada de modo que as perguntas fossem capazes de direcionar a atenção e a memória do participante ao sugerir situações e reflexões mais específicas. Acredito que, assim, a experiência individual do participante ganha mais potencial de ser assertiva e profunda, deixando de lado o senso comum cotidiano da escuta.

Minhas intenções com essa proposta se aproximam, simultaneamente, às intenções de Westerkamp e McCartney: da primeira, através da evocação da memória sonora e capacidade imaginativa de cada um ao incentivar a exploração da paisagem sonora como era - que se aproxima do conceito de anamnesis, no que se transformou e o que pode vir a ser levando em conta o recorte temporal no qual estamos vivendo. Da segunda, ao propor uma atenção aos sons corriqueiros tencionando a ressignificação e concepção efetiva do lugar e, não menos importante, a desautomatização do cotidiano e da percepção ao instigar um olhar renovado para a paisagem sonora através de uma escuta mais ativa, criando uma nova perspectiva e não apenas promovendo um reconhecimento.

Essa escuta ativa, a qual me refiro, diz respeito à uma escuta que implica atenção e abertura para os sons, implica deixar-se afetar. Esse termo - escuta ativa - é originalmente usado para definir um diálogo eficiente entre interlocutor e ouvinte, baseado no interesse e na empatia. Aqui, utilizo esse conceito me referindo à relação do ser humano com seu espaço, sendo esse o interlocutor das experiências.

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Encaro esse experimento como uma proposta de duplo objetivo: além de procurar revelar as diferentes formas de ouvir o espaço e as possíveis ressignificações dos sons cotidianos no contexto pandêmico, busco incentivar a interpretação do som como forma de entendimento sensível dos espaços e da cidade. Acredito que o entendimento da paisagem sonora não só como totalidade, mas como cada corpo sonoro único que a compõe - e como cada um deles nos afeta de formas diferentes - enriquece muito nossa relação com o lugar.

Por isso, encaro esse experimento como um convite para uma pausa, para a apreciação do silêncio no sentido transformador, como meio de se legitimar uma experiência, um estímulo para ouvir e tornar audível.

Para tornar o guia mais eficiente nessa proposta remota, optei por separá-lo em três ações principais: observar, recordar, perceber. Com esse formato, acredito que o direcionamento se torna mais efetivo visto que indica o principal objetivo de cada grupo de perguntas. Com o primeiro, busco estimular a escuta no tempo presente e a distinção entre o alcance visual e auditivo. Considero que, após tomada essa consciência, as outras ações ganham mais força.

Na segunda ação, recordar, procuro estimular a memória sonora dos participantes com o fim de entender as principais mudanças percebidas na paisagem sonora de cada cotidiano com a chegada da pandemia, e como eles passam a se relacionar com ela. Por fim, na ação “perceber”, tenciono extrair de que forma esses sons os afetam e, de acordo com a vivência de cada um, como se imagina que será o espaço sonoro urbano pós pandemia.

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Por fim, após realizada as três ações, solicito um relato ou narrativa referente ao que foi observado, sentido e recordado. Uma experiência sonora pode ser

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relatada ou representada de inúmeras maneiras, que não necessariamente fazem uso do som: graficamente, através de textos, vídeo, performance ou qualquer outro tipo de expressão. Entretanto, opto pelos relatos em áudio, porque considero que a voz, a entonação, as pausas, a respiração, tudo isso constrói uma espécie de paisagem oral que enriquece e confere mais identidade para cada um desses relatos. Digo paisagem oral porque implica vozes humanas que contam uma história, logo, sentimento e afeto. A voz das pessoas traz presença, evoca sentimentos e alega a imaginação. Nesse sentido, segundo Augoyard (1995), no nível perceptivo o som atua como uma chave abrindo portas para nos reunir com o passado; estimula imagens que todos nós “escondemos em várias profundezas da nossa psiqué.”

Dessa maneira, a escuta se torna um meio imersivo para evocar o que não se vê nos espaços em questão, seja isso uma memória, uma associação livre ou uma narrativa .

Além dos relatos falados, como complemento sugiro que sejam feitos registros fotográficos ou pequenos vídeos que representem ou traduzem a paisagem sonora cotidiana. Justifico esta escolha me referindo novamente a Augoyard (1995): essas fotos não têm como objetivo tornar visível o que é essencialmente audível, mas sim serem vistas como “convites para olhar o som, e não como substitutos da falta de audição” (AUGOYARD, 1995, p.18). Os sons são capazes de nos evocar imagens, assim como as imagens são capazes de evocar os sons. Assim, encaro essas imagens recebidas como uma oportunidade de imaginar como soa aquele lugar a partir dessa paisagem relatada de forma oral, cujo enquadramento foi escolhido pelo participante com o propósito de passar uma mensagem específica acerca de como ele enxerga a paisagem sonora daquele lugar.

Dessa maneira, se fortalece o caráter inerentemente

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sinestésico que constitui uma experiência e a concepção de um lugar.

Em resumo, essa estrutura dispõe de três elementos principais: a coisa percebida, a sensação experienciada e a reflexão após a experiência. É importante ressaltar que todas as pessoas que participaram dessa experiência têm, em algum grau, por mínimo que seja, alguma relação pessoal comigo.

Meu objetivo inicial era conseguir coletar relatos dos mais diversos contextos sociais e econômicos, de maneira que fosse possível extrapolar meu círculo social e a realidade da minha bolha. Isso certamente tornaria mais evidente as questões sócio-econômicas relativas ao som, já que, como referido anteriormente, embora a pandemia seja um contexto que atinge a todos em escala mundial, ela possui diferentes nuances e se projeta em diferentes lugares de maneiras distintas. Contudo, entendi que, diante da limitação física e do tempo restrito, essa escolha ultrapassa a fronteira da viabilidade. Diante disso, procurei selecionar pessoas que me seriam de mais fácil acesso para propor a experiência, buscando considerar, dentro dessa limitação, os mais diversos contextos possíveis. É fundamental destacar que a narrativa registrada ao final de cada experiência está sempre condicionada às lembranças e a carga perceptiva do interlocutor, e não apenas ao lugar onde ele se encontra ou do contexto no qual ele vive.

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Assim, essa proposta emerge como um convite para ouvir e interpretar essa paisagem invisível e suas diversas camadas, transformar o que geralmente não passa de uma sensação cotidiana, não racionalizada, para uma

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experiĂŞncia de fato, onde se percebe e interpreta o significado de cada um desses inĂşmeros corpos sonoros que transitam por um determinado lugar.

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“O som tem um poder mediador, hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível“ -José Miguel Wisnik

O isolamento social esvaziou consideravelmente as ruas das cidades e mudou completamente a forma como nos relacionamos com ela, impactando a paisagem sonora e redirecionando o foco da minha pesquisa de conclusão de curso.

Nesse contexto de pandemia, onde nossas rotinas foram compulsoriamente modificadas e nossa vivência com a cidade enfraquecida, a escuta ativa pode se apresentar como um bom recurso não só de descompressão e relaxamento, mas também de percepção e conexão com o lugar. Proponho um exercício que pretende discutir a importância da audição como uma ferramenta de interpretação do espaço lá fora a partir do espaço aqui dentro das nossas casas. A idéia é priorizarmos nossos ouvidos.

Esse experimento é um convite à escuta das nossas cidades e dos nossos espaços e consiste em uma experiência sonora guiada com o objetivo de aprimorar a escuta consciente de forma que se perceba a “trilha sonora” do cotidiano para além do senso comum, entendendo o quanto ela influencia na nossa relação com o espaço e a nossa compreensão sobre os lugares.

A ideia é que, ao longo da leitura, você reflita, resgate memórias sonoras, perceba diferenças e consiga interpretar seu espaço sonoro de forma consciente para, então, produzir um relato em áudio que traduza essas memórias e impressões.

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Está prontx? Vamos começar.

Atenção: Não há resposta certa e errada. Esse é um guia para tornar sua experiência mais rica e profunda e estimular a reflexão e percepção a respeito dos sons que te cercam. Sinta-se à vontade para explorar outras sonoridades, espaços e registrar e expressar o que é mais significativo e marcante para você nesse contexto.

Você vai precisar de: ouvidos atentos e um celular para auxiliar nos registros (fotografia, vídeo e áudio) sugeridos no guia abaixo.

*

*

*

OBSERVAR Vá para a janela ou – se for o caso – sente-se na sua varanda.

Observe atentamente ao redor. Até onde seu olho alcança a rua?

A vista te agrada? E os sons? O que você ouve? Você consegue ver o que você escuta?

Repare na diferença entre o alcance dos seus olhos e dos seus ouvidos.

RECORDAR

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Tente se lembrar de como era a trilha sonora do seu cotidiano pré-pandemia. Pense nas mudanças no seu dia-a-dia. Você teve o privilégio de cumprir a quarentena? De que sons você mais sente falta, dentro

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ou fora de casa?

Você percebeu a ocorrência de algum novo som ou evento sonoro nesse período, mesmo que pontualmente?

Algum som já existente se sobressaiu ou perdeu destaque? Qual é/foi o mais marcante pra você nesse contexto de isolamento social?

Como você se relaciona com o que há para além das suas janelas?

Chamamos de marcas sonoras aqueles sons que são típicos de um determinado lugar, que são significativos e tornam única a vida acústica de uma comunidade. Qual a marca sonora que você identifica hoje na sua casa e vizinhança? O que esses sons representam pra você?

PERCEBER Agora que você experienciou e recordou a pluralidade sonora cotidiana da sua casa e seus arredores, que tipo de atmosfera esse conjunto de sons cria e que efeito esses vários tipos de som tem sobre você? É interessante perceber como nós também somos produtores – e não só espectadores – da paisagem sonora que nos cerca. O que você costuma fazer no seu dia a dia nesse novo contexto para construir uma paisagem sonora mais favorável pra você?

Por qual som ou conjunto de sons você acha que o período da pandemia será lembrado?

Você prefere a paisagem de antes ou a de agora? Por quê?

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E, por fim, você imagina que haverá transformação na experiência sonora das cidades pós-pandemia? Em qual aspecto?

REGISTRAR Faça uma ou mais fotos que mostre sua visão através da janela.

Além da vista através das suas janelas, que outras imagens representam ou traduzem a paisagem sonora do seu lugar de isolamento social? Produza uma ou mais fotos ou uma gravação em vídeo que simbolize essa paisagem.

GRAVAR Agora, para finalizar, após a reflexão proposta nessa prática, me conte suas memórias sonoras, percepções e possíveis questionamentos com um relato ou narrativa falado, através de um áudio gravado pelo seu celular ou qualquer outro dispositivo que esteja acessível.

Muito obrigada pela sua colaboração!

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CONSIDERAÇõES

CO N S IDERAÇõE S

Esse trabalho buscou explorar algumas relações entre som e lugar, reconhecendo o som como forma de entendimento sensível dos espaços. Digo algumas, porque, sendo um tema tão complexo e que se mostra cada vez mais extenso, essa ideia não se esgota aqui.

O contexto pandêmico, embora tenha se apresentado como uma adversidade ao longo do percurso não só pelo desvio no caminho, mas também por ser um contexto delicado que requer força e reflexão, acabou por definir o rumo dessa pesquisa ao passo que transformou as paisagens, os cotidianos e as maneiras de se relacionar e ouvir.

As conexões múltiplas entre o som, o corpo e a escuta

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apresentados aqui, reafirmam a noção de espaço como experiência vivenciada, subjetiva, e o som como um fenômeno essencialmente espacial e intrinsecamente ligado à percepção. Em razão da pandemia e suas consequências no que diz respeito ao uso da cidade e às relações pessoais e aos ritmos de vida, os sons, os ruídos, os silêncios e os espaços foram ressignificados de diferentes maneiras a partir de valores simbólicos ligados às percepções e ações sonoras cotidianas, além da interação entre os sons ouvidos e os produzidos.

A partir da proposta de uma experiência colaborativa, pude encontrar diversas percepções e comportamentos sonoros cotidianos que me mostraram inúmeras interpretações possíveis para as paisagens sonoras e os corpos que as compõem. Os sons são, enfim, os significados e os símbolos que designamos a eles.

Assim, da mesma forma que não há som sem o silêncio, não existe som sem a memória. Muito mais do que a localização ou as características do lugar, é a bagagem perceptiva e a maneira como cada um está aberto para receber as influências desses corpos que define as qualidades, a importância de cada corpo do espaço sonoro e a experiência espacial em sua totalidade.

Acredito que esse caráter subjetivo, apesar de pouco tangível, é o que dá singularidade a esse trabalho.

Ao longo desse momento conturbado pelo qual passamos agora, o processo de receber, escutar e analisar os relatos foi um grande estímulo para prosseguir, não só por entender como as pessoas se relacionam com seus espaços e seus ouvidos, mas por permitir uma troca e despertar uma maior consciência auditiva - mesmo que momentânea - em cada um que cedeu sua experiência e sua voz.

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Arrisco dizer que minha maior e mais enriquecedora

CONSIDERAÇõES

descoberta nessa jornada foi reconhecer o quanto este tema - que envolve som, experiência e lugar - tem potencial para futuras ramificações e aprofundamentos.

No início do percurso, quando tudo o que eu tinha era uma vontade e uma intuição, jamais poderia imaginar quantas possibilidades o som traz para se pensar as cidades e as relações criadas em uma sociedade.

Todo o processo de experimentações - desde à busca por bibliografias até a elaboração e execução da parte prática - e sobretudo o cenário da pandemia fizeram com que se estabelecesse um caminho não linear para a pesquisa, o que me fez entender que o que se aprende no caminho importa muito mais do que a chegada. Não sei se alcanço meu objetivo, agora que cheguei no fim desse percurso.

Talvez se eu tivesse mais tempo, mais experiência. Talvez minhas conclusões seriam mais tangíveis aos olhos de quem lê agora. Mas, talvez, me perderia no caminho das possibilidades mais uma vez. E, então, me recordaria do que escreveu Rebecca Solnit (2005): “aquela coisa cuja natureza é totalmente desconhecida para você é o que você precisa encontrar, e encontrar é questão de se perder”. Ao concluir essa pesquisa - que é apenas a minha primeira - a respeito de um tema que me é tão intrínseco e ao mesmo tempo tão desconhecido, entendo que pesquisar é um eterno “se perder”.

O que fica, é a certeza de que há inúmeros caminhos que se pode seguir com a escuta no que diz respeito à concepção de espaços e à cidade, e o quanto os sons são capazes de transformar e enriquecer as experiências.

Termino esta pesquisa repleta de dúvidas e questionamentos, muito mais do que respostas concretas ou conclusões. Porém, acredito que aqui se abre um caminho para um imenso campo de pesquisa que une as coisas pelas quais eu mais me fascino: os sons e a música, as relações afetivas e a cidade.

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VOZES

Alexandre, 26 - Porto Alegre, RS Alice, 47 - Barra Mansa, RJ Bruna, 13 - Icaraí, Niterói, RJ Carolina, 26 - São Carlos, SP Cayo, 33 - Botafogo, Rio de Janeiro, RJ Clarissa, 29 - Ingá, Niterói, RJ Eliana, 65 - São Caetano do Sul, SP

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Fabiano, 32 - Vila da Penha, RJ

Frederico, 36 - Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ Izabelle, 36 - São Caetano do Sul, SP Jorge, 25 - Joanesburgo, África do Sul Juliana, 27 - Pinheiros, São Paulo, SP Lucas, 33 - Ingá, Niterói, RJ Lívia, 34 - Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ Manoela, 35 - Icaraí, Niterói, RJ Marcelo, 27 - Camboinhas, Niterói, RJ Mariath, 26 - Icaraí, Niterói, RJ Melissa, 46 - Champaign, IL Matheus, 32 - Rio Bonito, RJ | Alto Pinheiros, SP Renata, 26 - Vargem Pequena, Rio de Janeiro, RJ Renata, 24 - Ipiabas, Barra do Pirai, RJ Severino, 24 - Brasilia, DF Tarcísio, 32 - Itaboraí, RJ

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Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma Até quando o corpo pede um pouco mais de alma A vida não para Enquanto o tempo acelera e pede pressa Eu me recuso faço hora vou na valsa A vida tão rara Enquanto todo mundo espera a cura do mal E a loucura finge que isso tudo é normal Eu finjo ter paciência E o mundo vai girando cada vez mais veloz A gente espera do mundo e o mundo espera de nós Um pouco mais de paciência Será que é o tempo que lhe falta pra perceber Será que temos esse tempo pra perder E quem quer saber A vida é tão rara, tão rara

- Paciência, Lenine

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10 DE JULHO DE 2020 O BRASIL CONTABILIZA 70.398 MORTES POR COVID-19

Um minuto de silêncio.

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Re f erências bi bliogr á f icas

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