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PRESENTE E FUTURO

brasileira, com destaque para a Europa como maior produtora e consumidora. Para cárneos fermentados, a matéria-prima é submetida à ação de microrganismos ou enzimas, principalmente amilases, proteases e lipases responsáveis pela hidrólise de polissacarídeos, proteínas e lipídios, em produtos diversos do metabolismo. São alimentos microbiologicamente seguros para o consumo, especialmente devido ao efeito conservante decorrente do acúmulo de ácido láctico, que reduz o pH, e também pelo teor de sal utilizado, que reduz a atividade de água. Apresentam, ainda, características como sabores peculiares (forte e picante), palatabilidade, cor, aromas e textura (elástica), bastante atraentes para o consumidor. A fermentação também aumenta a qualidade nutricional em termos de peptídeos, aminoácidos essenciais, ácidos graxos essenciais e vitaminas.

Os produtos cárneos fermentados mais conhecidos são o salame, o presunto cru, o charque, a copa, certos tipos de linguiças e outros embutidos. Estes tipos de produtos apresentam variações na matéria-prima, formulação e processo de fabricação, de acordo com os costumes e hábitos de diferentes países e regiões. Neste capítulo, serão discutidos os aspectos mais relevantes acerca da microbiologia da fermentação da carne, os processos bioquímicos decorrentes da fermentação microbiana, e as características de qualidade, sensoriais, nutricionais e de segurança conferidas pela fermentação. Embora esse seja o foco do presente capítulo, começaremos abordando os principais aspectos relacionados à tecnologia do processamento de cárneos fermentados, importantes para o completo entendimento acerca do papel dos microrganismos na qualidade desse grupo de alimentos.

12.2 PROCESSAMENTO DE PRODUTOS CÁRNEOS FERMENTADOS

12.2.1 EMBUTIDOS FERMENTADOS SECOS E SEMISSECOS

Os embutidos fermentados podem ser genericamente classificados como secos ou semissecos, entre os quais se inserem os fermentados cozidos. São caracterizados pelo baixo teor de umidade e pela presença de ácido lático, que confere ao produto sabor agradável (ácido e picante) e textura elástica. O fluxograma da Figura 12.1 apresenta as etapas da elaboração de embutidos fermentados secos e semissecos.

As matérias-primas cárneas comumente utilizadas na elaboração desses embutidos são suínas e/ou bovinas, além de gordura suína. As matérias-primas podem ser mantidas a temperaturas abaixo de –2 °C, porém não superiores a 4 °C, uma vez que as partículas de gordura podem envolver a carne, dificultando a retirada de água, impedindo a solubilização das proteínas e facilitando o crescimento de bactérias indesejáveis.

CAPÍTULO 13

Produtos fermentados de pescado

Luciana Kimie Savay-da-Silva,1 Geodriane Zatta Cassol,1 José Guilherme Prado Martin2

13.1 INTRODUÇÃO

A produção mundial de pescado atingiu, em 2018, um pico histórico de 178,5 milhões de toneladas, dos quais 87,6% foram utilizados diretamente para consumo humano, de acordo com o documento The state of world fisheries and aquaculture (SOFIA) 2020, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2020). A relativa estabilidade da produção de captura, a redução do desperdício e o crescimento contínuo da aquicultura foram fatores que contribuíram para esse crescimento. Com a maior disponibilidade da matéria-prima, notou-se também, no mesmo período, um aumento do seu consumo per capita, que atingiu valores de 20,5 kg/hab. ao ano. Desde 1961, a taxa de crescimento global anual do consumo de pescado tem sido duas vezes maior que a taxa de crescimento da população, além de superior à taxa de crescimento anual do consumo de outras proteínas animais, demonstrando que o setor pesqueiro é crucial para atender à meta da FAO por um mundo livre da fome e da desnutrição.

1 Laboratório de Tecnologia de Carnes, Pescado e Derivados (LabCarPesc), Departamento de

Alimentos e Nutrição, Faculdade de Nutrição, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),

Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. 2 Laboratório de Microbiologia de Produtos Fermentados (FERMICRO), Departamento de Microbiologia, Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, Minas Gerais, Brasil.

Além disso, o maior interesse pela aquisição de pescado tem sido consequência da relação do seu consumo com a promoção da saúde humana e qualidade de vida (SOCCOL; OETTERER, 2003; PIENIAK; VERBEKE; SCHOLDERER, 2010; MACIEL et al., 2016). Diversos estudos têm indicado uma associação do consumo regular de pescado, em especial aqueles que possuem elevados teores de ácidos graxos poli-insaturados do tipo EPA (ácido eicosapentaenoico) e DHA (ácido docosaexaenoico), com a prevenção e redução de mortes por doenças cardiovasculares (RUXTON, 2011; TACON; METIAN, 2013; FAO, 2018). Além disso, há indícios de que seu consumo, quando realizado de forma regular e permanente, contribui para a diminuição dos índices de depressão pós-parto (HIBBELN, 2002) e para a melhoria do desenvolvimento neurológico de fetos e bebês (FAO, 2018; HAMAZAKI et al., 2020), beneficia a função imunológica e a cognitiva, a saúde mental e a metabólica (RUXTON, 2011), evitando problemas de depressão, ansiedade e doenças inflamatórias (TACON; METIAN, 2013). O consumo regular de pescado ajuda, ainda, a retardar o declínio da massa e da função muscular em idosos, podendo ser considerado em abordagens terapêuticas para prevenção da sarcopenia e manutenção da independência física em indivíduos dessa faixa etária (SMITH et al., 2015).

Contudo, embora o consumo de pescado resulte em inúmeros benefícios, esse tipo de alimento é considerado um dos mais perecíveis, justamente por apresentar quantidades elevadas de nutrientes, em especial proteínas musculares com grande quantidade de substâncias extrativas livres e óxido de trimetilamina, além de ter um pH próximo à neutralidade e alto teor de umidade, o que favorece o desenvolvimento de microrganismos (GAVA; SILVA; FRIAS, 2008; OETTERER; LIMA, 2010). Por isso, o pescado é uma matéria-prima que requer cuidados. A cadeia do frio é, nesse sentido, imprescindível, devendo ser aplicada desde o momento pós-captura até a comercialização, de forma a garantir sua qualidade microbiológica, físico-química e sensorial (CASSOL et al., 2019a).

Uma alternativa a essa problemática consiste na industrialização do pescado, que resulta em produtos de maior conveniência, praticidade e, principalmente, vida útil estendida e inocuidade. Diversos processos tecnológicos podem ser aplicados, desde aqueles mais simples, como salga e secagem, defumação e fermentação; até os mais sofisticados, como irradiação, uso de embalagens ativas ou atmosfera modificada, elaboração de hidrolisados e concentrados proteicos, embutidos ou empanados, dentre outros. A escolha do melhor método de processamento dependerá do volume e da qualidade da matéria-prima, recursos financeiros disponíveis para o investimento requerido por cada tecnologia, bem como do tipo de mercado consumidor que se pretende atingir.

No Brasil e no mundo, grande parte do pescado comercializado para consumo humano ainda é ofertado na forma de peixe vivo, fresco (in natura inteiro ou inteiro e eviscerado) ou refrigerado. Essa forma de comercialização representou

CAPÍTULO 14

Produtos fermentados à base de mandioca

Camila Delinski Bet,1 Vivian Cristina Ito,2 Alessandro Nogueira,1 Luiz Gustavo Lacerda,1 Ivo Mottin Demiate1

14.1 O LEGADO HISTÓRICO DA MANDIOCA

Originária da região tropical da Amazônia, a mandioca (Manihot esculenta), raiz da família Euphorbiacea, possui um incontestável valor histórico e cultural no Brasil, associada a uma variedade de produtos de grande importância social, econômica e regional. De acordo com a região onde é cultivada, possui diferentes denominações: na faixa leste, é comum ser chamada de aipim; já em Minas Gerais, São Paulo e região Sul, é denominada mandioca, enquanto nas regiões Norte e Nordeste, é conhecida tanto por mandioca quanto por macaxeira. Pode ser considerada como um produto hortícola devido às suas características de cultivo e por ser negociada com outras hortaliças. A mandioca é uma planta tropical e altamente adaptável a solos com fertilidade deficiente, sendo propagada por intermédio de estacas, denominadas manivas (SILVA et al., 2018).

Diversos relatos e lendas brasileiras citam a origem da mandioca no país. A lenda mais conhecida tem origem indígena, no berço da tribo tupi-guarani, e retrata a

1 Programa de Pós-graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos, Departamento de Engenharia de Alimentos, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Paraná, Brasil. 2 Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ), Universidade de São Paulo (USP), Piracicaba, São Paulo, Brasil.

história de Mani, uma indiazinha de pele branca cuja mãe, filha do cacique, não sabia como havia concebido a filha sem conhecer homem algum. Certo dia, repentinamente, a jovem índia faleceu, trazendo muita dor e sofrimento ao seu povo. Como era de costume, foi sepultada na própria oca em que vivia, e as lágrimas de sua mãe e do povo da tribo umedeceram a terra que a encobria. Misteriosamente, uma planta desconhecida brotou no local do sepultamento, marrom na superfície externa e branca no interior. Os índios entenderam que aquela raiz era um presente do deus Tupã; passaram, então, a utilizá-la para saciar a fome e aliviar o sofrimento da perda, produzindo a farinha e a bebida cauim. A raiz passou, portanto, a ser denominada manioca, uma alusão ao nome da falecida índia (Mani) e ao local de seu sepultamento (oca) (CALDAS TIBIRIÇÁ, 1989).

De acordo com Oliveira (2019), foram os portugueses os responsáveis pelos primeiros registros da mandioca no Brasil, inicialmente chamada de inhame, devido à similaridade. Foi também reconhecida por colonizadores como “pão da terra”, a partir da constatação de sua importância para a alimentação dos povos nativos. Assim, a mandioca se configurava como um alimento imprescindível tanto para os que no Brasil chegavam como para o povo nativo. Inicialmente, foram os índios os grandes responsáveis por técnicas de cultivo e também do seu uso, inclusive da chamada yuca (ou mandioca-brava) para o consumo humano e animal. Porém, os colonizadores aprimoraram as técnicas de plantio e produção, visando à exportação. A partir da década de 1920, nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, com a ampliação da pecuária e a consequente derrubada de áreas florestais, seringueiros iniciaram a produção de farinha de mandioca, motivados especialmente pela facilidade de cultivo, a partir de técnicas que auxiliavam na garantia da qualidade do produto (VELTHEM; KATZ, 2012).

Desde os anos 1990, a agricultura brasileira vive um notável avanço tanto no mercado interno como no de exportação, impulsionado especialmente pela produção de grãos. Isso contribuiu para a posição privilegiada do Brasil nesse setor em nível mundial. Nesse sentido, a balança comercial nacional tem seu equilíbrio decorrente do progresso do agronegócio. No caso da mandioca, no entanto, o setor produtivo está bastante voltado ao mercado interno. Desde a década de 1970, o país perdeu o posto de maior produtor mundial para a Nigéria e atualmente ocupa a terceira posição, figurando, portanto, entre os principais produtores mundiais (SEAB, 2021).

A estimativa de produção brasileira de mandioca para o ano de 2021 compreende uma área plantada de 1,22 a 1,24 milhão de hectares, alcançando uma produção de 18,7 milhões de toneladas. Comparada à produção do ano anterior (18,96 milhões de toneladas), a projeção aponta uma redução de aproximadamente 1,29% (CONAB, 2021). A região Norte compreende 38% da produção nacional, seguida pela região Nordeste (17,9%), onde a produção pode ocorrer nas casas de farinha (unidades familiares) com capacidade de processamento de até 150 kg por dia, praticamente direcionada ao consumo próprio, ou em unidades comunitárias, com parcial mecanização e processamento de até 2 mil a 3 mil quilos por dia, direcionada à comercialização (FOLEGATTI; MATSUURA; FILHO, 2005). Nas demais

CAPÍTULO 15

Bebidas alcoólicas fermentadas

Eduardo Luís Menezes de Almeida,1 Mayara Salgado Silva,1 Monique Renon Eller1

15.1 BREVE HISTÓRICO

A produção de bebidas alcóolicas por fermentação está historicamente relacionada a diferentes culturas, tradições religiosas e localidades ao redor do mundo, com papel marcante na expressão da identidade e das relações interpessoais. O relacionamento de hominídeos com o consumo de etanol é anterior à própria produção de bebidas. Há evidências da produção de enzimas capazes de catabolizar o etanol no último ancestral comum a gorilas, chipanzés, bonobos e humanos, que viveu há cerca de 10 milhões de anos. O consumo de frutas naturalmente fermentadas por diferentes animais é recorrente e teria sido vantajoso para hominídeos devido ao elevado valor calórico do etanol (7,1 kcal/g), além do sabor agradável. Reconhecer o aroma de etanol no alimento seria um indicativo de uma fonte rica em açúcares e proteínas, decorrente da atividade de leveduras responsáveis pela fermentação (CARRIGAN et al., 2015; DOMINY, 2015).

Aparentemente, a produção de bebidas alcóolicas surgiu a partir do advento dos estilos de vida semissedentários e sedentários (HAYDEN; CANUEL; SHANSE, 2013). Especula-se que a domesticação de cereais teria sido motivada pela apreciação por

1 Laboratório de Processos Bioquímicos e Fermentativos, Departamento de Tecnologia de Alimentos (DTA), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, Minas Gerais, Brasil.

cervejas há cerca de 13 mil anos. Essa hipótese é corroborada pela presença de marcadores químicos e grânulos de amido na caverna de Raqefet, localizada na região norte de Israel, indícios de um processo cervejeiro pré-histórico (LIU et al., 2018). A evidência mais antiga da existência de uma bebida alcoólica (e não apenas do processo) é de um fermentado similar ao que chamamos de hidromel, obtido a partir da mistura de mel, arroz e frutas silvestres, datado de 9 mil anos em Jiahu, China (MCGOVERN; ZHANG; TANG, 2004). A origem da vinicultura (produção de vinhos) data provavelmente de cerca de 8 mil anos atrás, na região do Cáucaso (Georgia e Armênia) (MCGOVERN; JALABADZE; BATIUK, 2017).

Posteriormente, tecnologias de produção de bebidas alcóolicas se difundiram pela Eurásia a partir da Mesopotâmia – onde os Sumérios chegaram a utilizar a cerveja como uma forma de moeda, além de um importante produto para o comércio e fins ritualísticos. A produção de bebidas alcançou, então, a Grécia (2000 a.C.), a França (1000-500 a.C.), a Itália (1000 a.C.) e o norte da Europa (100 a.C.) (LEGRAS et al., 2007; MCGOVERN et al., 2013). Na Mesoamérica, a primeira aplicação do cacau é frequentemente atribuída à produção de uma bebida alcóolica, elaborada a partir da polpa. O subproduto deste processo, proveniente das sementes, teria dado origem ao chocolate (HENDERSON et al., 2007). As bebidas produzidas começaram a ser também utilizadas como medicamentos ou para solubilizar compostos com propriedades medicinais, o que ocorreu no Egito Antigo, nos Impérios Romano e Bizantino, durante a Idade Média, na Mesoamérica, e até mesmo na atual Grécia, onde resina de pinheiro é adicionada ao vinho branco para produzir a retsina, um vinho com denominação de origem (MCGOVERN; MIRZOIAN; HALL, 2009). Essa adição aumenta a quantidade de compostos antioxidantes e fenólicos no vinho (PROESTOS et al., 2005; GOUGOULIAS, 2009).

Na era científica, a produção de bebidas alcóolicas influenciou significativamente a história da bioquímica e da microbiologia, fato representado de maneira icônica pelas contribuições de Louis Pasteur. Em 1876, ao realizar estudos com cerveja e vinho, Pasteur descobriu que as leveduras eram os agentes responsáveis pela conversão do açúcar em etanol e que as bactérias convertiam o etanol a ácido acético. O trabalho de Emil Christian Hansen também marcou a relação das bebidas com a ciência: em 1880, ele obteve sucesso ao obter uma cultura pura de leveduras e utilizá-la como starter para a fermentação (MARSIT; DEQUIN, 2015).

Desde então, tanto o consumo quanto a produção de bebidas alcóolicas continuaram se expandindo. Diferentes bebidas, específicas de determinados países, foram criadas a partir das mais diversas matérias-primas disponíveis, por meio de processos artesanais ou industrialmente consolidados. Os mais diferentes maltes de cereais (por exemplo, malte de cevada) constituem a matéria-prima base da cerveja e do uísque. As uvas podem ser utilizadas para a produção do vinho; o arroz, do saquê; o mel, do hidromel; a maçã, da sidra; o agave, da tequila. Essas matérias-primas podem ser misturadas a outras frutas e especiarias, dando origem a novas bebidas ou modificando as já tradicionais. Além da consolidada Saccharomyces cerevisiae, outras leveduras

CAPÍTULO 16

Bebidas não alcoólicas fermentadas

José Guilherme Prado Martin,1 André Ricardo Ferreira da Silva Rocha,1 Bárbara Côgo Venturim,1 Angie Dahiana Duque-Rodríguez2

16.1 INTRODUÇÃO

O grupo das bebidas não alcoólicas fermentadas certamente é tão vasto quanto o das alcoólicas. A grande diversidade de produtos – alguns elaborados e consumidos no mundo todo, outros restritos a determinadas culturas – é uma demonstração de sua importância sociocultural e econômica. Produzidas à base de frutas, chás, cereais, especiarias, açúcares e outros tipos de matérias-primas básicas, as bebidas fermentadas têm ganhado cada vez mais destaque, em decorrência de suas propriedades sensoriais e funcionais.

A relação de determinadas bebidas fermentadas com a história e a cultura dos respectivos locais de origem é um fator que merece destaque. Muitas delas são ditas “tradicionais”, uma vez que se diferenciam de outras bebidas similares, principalmente em relação ao método de fabricação e aos ingredientes básicos utilizados. Sua produção depende, ainda, da perpetuação de saberes tradicionais que são transmitidos de

1 Laboratório de Microbiologia de Produtos Fermentados (FERMICRO), Departamento de Microbiologia, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, Minas Gerais. 2 Laboratório de Higiene e Microbiologia de Alimentos (LHMA) Departamento de Tecnologia de Alimentos, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, Minas Gerais.

geração a geração, contribuindo para a manutenção de suas propriedades originais, ainda que passíveis de modificações ao longo do tempo.

Além dos aspectos culturais, as características sensoriais complexas, bem como propriedades funcionais atribuídas ao consumo de bebidas fermentadas, contribuem para sua longevidade. É de admirar, por exemplo, que a kombucha – cuja produção depende de um complexo inóculo simbiótico – tenha resistido a milhares de anos. Outrora esquecida e/ou restrita a determinadas regiões, a bebida ganhou o mundo nas últimas décadas, a partir de um boom raramente visto para produtos à base de chá e que popularizou sua produção tanto em escala artesanal quanto industrial. Certamente, as propriedades funcionais atribuídas a seus compostos bioativos favoreceram este processo. Fenômeno similar, embora em menor escala, foi observado para o kefir de água, que acabou se tornando muito comum no Brasil anos atrás.

A maior parte das bebidas fermentadas não alcoólicas é produzida de maneira artesanal. Assim, os protocolos podem variar consideravelmente, o que impacta as características físico-químicas, sensoriais e microbiológicas do produto final. Tal fato dificulta a padronização, bem como traz desafios aos estudos acerca do seu processo fermentativo. De qualquer forma, tem crescido o número de pesquisas científicas sobre a fermentação de uma grande variedade de bebidas. Neste capítulo, algumas dessas bebidas serão abordadas com mais profundidade, tendo em vista o volume maior de informações na literatura especializada; outras, de caráter mais regional, terão apresentadas suas principais características.

Para efeitos didáticos, as bebidas não alcoólicas serão aqui classificadas de acordo com o tipo de matéria-prima utilizada. Assim, no tópico sobre bebidas fermentadas à base de chás, serão apresentados os principais aspectos relacionados à microbiologia da fermentação da kombucha, que hoje é, certamente, uma das mais difundidas e em franca expansão no mundo todo. Entre as bebidas à base de frutas, destaca-se o kefir de água (tibicos), além do aluá, bebida brasileira de ascendência africana que tem sido resgatada nos últimos anos. Na seção sobre bebidas à base de cascas, raízes e tubérculos, destacam-se as brasileiras de origem indígena, especialmente cauim e tarubá. A seguir, serão abordados os principais aspectos relacionados à microbiologia envolvida na fermentação de bebidas; informações pontuais sobre histórico de uso e processo produtivo serão também apresentadas.

16.2 CLASSIFICAÇÃO DAS BEBIDAS FERMENTADAS

Diferentes fatores estão relacionados à grande variedade de bebidas fermentadas, como matérias-primas básicas, ingredientes adicionais, tipo de fermentação envolvida no processo produtivo, microbiota fermentadora, componentes culturais intrínsecos, dentre outros. De uma maneira geral, as bebidas fermentadas podem ser classificadas, com base no teor alcoólico, em três categorias principais (KAUR; GHOSHAL; BANERJEE, 2019):

CAPÍTULO 17

Microbiologia da fermentação de vinagre

Mário Antônio Alves da Cunha,1 Luciane Sene,2 Fernanda Aparecida Brocco Bertan,3 José Guilherme Prado Martin4

17.1 INTRODUÇÃO

O vinagre é um produto milenar e versátil, cuja arte da produção é conhecida pelo homem há pelo menos 5 mil anos. Pouco se sabe em relação à sua real origem, que provavelmente está associada à produção dos primeiros fermentados alcoólicos, estando, portanto, intimamente ligada à descoberta do vinho. Desde tempos remotos, povos da Índia, Babilônia, Grécia, Egito e Pérsia já utilizavam o vinagre como tempero e conservante em carnes, peixes e vegetais. Há relatos de que os antigos romanos faziam uso de água com vinagre para saciar a sede e o utilizavam com finalidades médicas e cosméticas (GARCIA-PARRILLA et al., 2017; PAZUCH et al., 2015).

1 Departamento de Química, Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Pato Branco, Paraná, Brasil. 2 Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas (UNIOESTE), Cascavel, Paraná, Brasil. 3 Programa de Pós-graduação em Biotecnologia. Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Dois Vizinhos, Paraná, Brasil. 4 Laboratório de Microbiologia de Produtos Fermentados (FERMICRO), Departamento de Microbiologia, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, Minas Gerais, Brasil.

O termo “vinagre” é oriundo da palavra francesa vinaigre, ou do latim vinum acre, termos estes que significam “vinho azedo” (vinho agre). O produto corresponde a um líquido que contém quantidades específicas de ácido acético e água (GARCIA-PARRILLA et al., 2017). A Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) definem o vinagre como um líquido comestível produzido exclusivamente a partir de matérias-primas amiláceas e/ou açucaradas por dois processos sequenciais, incluindo fermentação de álcool e ácido acético (ZHANG et al., 2020). Segundo a legislação brasileira, vinagres podem ser obtidos a partir de frutas, vegetais, cereais, mel, álcool ou a partir da mistura de tais matérias-primas. De acordo com a Instrução Normativa n. 6, de 3 de abril de 2012, a qual estabelece o Padrão de Identidade e Qualidade do vinagre, o produto deve conter acidez volátil mínima de 4 g/100 ml expressa em ácido acético, sua graduação alcoólica não pode exceder 1 °GL e deve ser pasteurizado (BRASIL, 2012).

A empresa de pesquisa de mercado IMARC estima que o mercado global de vinagre atingiu o valor de 1,3 bilhão de dólares em 2019, com tendência de fortalecimento do mercado, uma vez que o vinagre é usado como conservante em muitos produtos alimentícios prontos para o consumo e que há um aumento significativo na demanda por tais produtos, em função das mudanças nos padrões alimentares e aumento dos níveis de renda. Além disso, por apresentar propriedades antimicrobianas e antioxidantes, o vinagre também é utilizado em desinfetantes, removedores de manchas, antitranspirantes, tinturas, medicamentos e condicionadores de cabelo. O vinagre de madeira é amplamente utilizado pelos agricultores europeus para melhorar a germinação das sementes, para enriquecer o solo e estimular o crescimento das raízes. Nesse contexto, acredita-se que o mercado global de vinagre deva apresentar um crescimento estável no período de 2020 a 2025 (IMARC, 2020).

De acordo com a Associação Nacional das Indústrias de Vinagre (ANAV), o faturamento anual do setor no Brasil é de 200 milhões de reais. Seu principal polo produtor está localizado na região de Jundiaí, no estado de São Paulo. Ainda é baixo o consumo do produto no país: em média, apenas 0,8 litro por habitante ao ano. Na Europa, esse índice chega a 1,8 litro/habitante/ano (VERZIGNASSE, s.d.). O baixo consumo de vinagre no Brasil está associado principalmente aos hábitos alimentares, já que os brasileiros fazem uso do produto quase exclusivamente para condimentação, enquanto na Europa ele é mais explorado, sendo usado não apenas como tempero e condimento, mas também na limpeza, desinfecção, neutralização de odores, desengordurante, entre outras possibilidades. Ainda segundo informações do portal da ANAV (VERZIGNASSE, s.d.), o vinagre de álcool é o mais consumido no país, representando 80% de um volume total de aproximadamente 170 milhões de litros consumidos anualmente. O vinagre de vinho é o segundo mais consumido, seguido pelo vinagre balsâmico e pelos vinagres de frutas, especialmente o de maçã.

CAPÍTULO 18

Métodos moleculares para avaliação do processo fermentativo

Eduardo Luís Menezes de Almeida,1 Maurício Alexander de Moura Ferreira,1 Érica Mangaravite,2 Rafaela Zandonade Ventorim,1 Wendel Batista da Silveira1

18.1 INTRODUÇÃO

No Capítulo 3, foram apresentados os principais aspectos relacionados à diversidade metabólica microbiana, com destaque para as fermentações de interesse em alimentos. Nos demais capítulos, destacou-se a importância da microbiota para as características de qualidade de diferentes tipos de alimentos fermentados, tanto de origem vegetal como animal.

A diversidade e a atividade microbiana nestes alimentos podem ser avaliadas por métodos tradicionais, seja de forma direta, utilizando-se meios de cultivo, ou indireta, por meio da quantificação do consumo de nutrientes e produção de metabólitos, como ácidos orgânicos e etanol. Nos últimos anos, métodos moleculares têm sido desenvolvidos para compreender melhor a diversidade de microrganismos cultiváveis e não cultiváveis em alimentos, bem como sua diversidade metabólica. Neste capítulo, serão apresentados os principais métodos que podem ser utilizados para se compreender o papel dos microrganismos na produção de alimentos fermentados, com foco nos métodos moleculares. Serão destacadas as vantagens e limitações de cada um.

1 Laboratório de Fisiologia de Microrganismos (LabFis), Departamento de Microbiologia, Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, Minas Gerais, Brasil. 2 Colegiado de Biomedicina, Centro Universitário Faminas, Muriaé, Minas Gerais, Brasil.

Os métodos de análise de ácidos nucleicos, proteínas e metabólitos podem ser utilizados para estudar a estrutura e a função de comunidades microbianas em alimentos fermentados, contribuindo, portanto, para a melhoria do processo produtivo e para o desenvolvimento de novos produtos.

18.2 AVALIAÇÃO DO PROCESSO FERMENTATIVO, DA DIVERSIDADE MICROBIANA E DA DINÂMICA POPULACIONAL DE MICRORGANISMOS EM ALIMENTOS FERMENTADOS

Tradicionalmente, os processos fermentativos são acompanhados pela avaliação de microrganismos cultiváveis (contagem de colônias em placas ou células em lâminas especiais, por exemplo), ou a partir da quantificação dos principais metabólitos produzidos e/ou consumidos (métodos tradicionais). Apesar de serem amplamente utilizados durante a produção de alimentos fermentados e apresentarem bons resultados, esses métodos não são suficientes para capturar e caracterizar a grande diversidade microbiana e metabólica presente nesses produtos. A fim de ampliar a compreensão e o controle dos processos, métodos moleculares de determinação de ácidos nucleicos, proteínas e metabólitos têm sido cada vez mais empregados nos estudos envolvendo fermentações. Tais métodos podem ampliar o espectro de microrganismos detectados, incluindo os não cultiváveis, assim como a compreensão dos diferentes aspectos fisiológicos envolvidos no desenvolvimento e produção de alimentos fermentados.

18.2.1 MÉTODOS TRADICIONAIS

O processo fermentativo pode ser acompanhado de acordo com as respostas do crescimento ou do metabolismo microbiano. A atividade microbiana pode ser mensurada de forma indireta, pela redução da concentração de um substrato (açúcar, por exemplo), aumento da concentração de um produto (etanol, ácidos orgânicos, por exemplo), alteração nas propriedades do meio, como pH e temperatura; ou de forma direta, como o crescimento de colônias em meios seletivos e contagem de células viáveis.

Dentre os métodos tradicionais para quantificação do consumo de açúcares, destacam-se a quantificação de açúcares redutores por reação com ácido dinitrosalicílico (DNS); os métodos baseados na densidade de soluções; e as medidas baseadas no índice de refração, como o °Brix. Em fermentações envolvendo consumo ou produção de ácidos, os valores de acidez total, fixa e volátil podem ser mensurados por titulometria, e o pH, com o auxílio de um potenciômetro. Tradicionalmente, o etanol pode ser estimado a partir da diferença da concentração de açúcares no início e no final do processo, e também com base na eficiência teórica de conversão do substrato (glicose, por exemplo) em produto (etanol, por exemplo). A picnometria – baseada na densidade

CAPÍTULO 19

Produção de cogumelos comestíveis e enzimas por fermentação em estado sólido

Marliane de Cássia Soares da Silva,1 Leandro Souza Lopes,1 Jose Maria Rodrigues da Luz,1 Maria Catarina Megumi Kasuya1

19.1 INTRODUÇÃO

Os cogumelos têm sido utilizados pela humanidade na culinária e na medicina alternativa há muito tempo. Alguns fósseis datados de 9000 a.C. encontrados no continente africano evidenciam o uso de cogumelos em rituais humanos. Os romanos e gregos faziam uso de cogumelos na alimentação e no tratamento de enfermidades (TRUTMANN, 2012). Documentos chineses com mais de 2 mil anos consideravam algumas espécies de cogumelos como a “erva da vida eterna” devido às suas propriedades medicinais (KOTLABA, 1984; SAMORINI, 1992). Os cogumelos eram usados, ainda, pelas principais civilizações indígenas das Américas, como as civilizações inca, maia e asteca, tanto para fins alimentares como para fins medicinais e religiosos. Neste último, o uso de cogumelos com propriedades alucinogênicas era muito popular, pois acreditava-se que sua ingestão aproximava o homem dos deuses (TRUTMANN, 2012; CAROD-ARTAL, 2015).

Nem todos os fungos produzem cogumelos, assim como nem todos os cogumelos são comestíveis. Para um cogumelo servir como alimento, ele deve apresentar aroma e sabor agradáveis e não ser tóxico (WANI; BODHA; WANI, 2010).

1 Laboratório de Associações Micorrízicas (LAMIC), Departamento de Microbiologia, Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, Minas Gerais, Brasil.

Atualmente, são conhecidas mais de 12 mil espécies de cogumelos em todo o mundo, das quais 2 mil espécies são usadas para fins alimentares, sendo 35 espécies cultivadas comercialmente em todo o mundo (GRIMM; WOSTEN, 2018).

Os cogumelos comestíveis mais consumidos pertencem ao filo Basidiomycota, com destaque para Lentinula edodes (shiitake, que perfaz 22% da produção mundial), Pleurotus ostreatus (hiratake, 19%), Auricularia spp. (17%) e Agaricus bisporus (champignon de Paris, 15%). A China é responsável por 87% de toda a produção mundial (ROYSE; BAARS; TAN, 2017; GRIMM; WOSTEN, 2018). No Brasil, os cogumelos mais produzidos e consumidos são o champignon de Paris, o hiratake e o shiitake (ANPC, 2020).

Ainda que os cogumelos comestíveis não correspondam a alimentos fermentados propriamente ditos – a temática principal deste livro –, seu uso na alimentação humana é especialmente importante, tanto do ponto de vista cultural como do econômico. Junto com outros tipos de microrganismos que são utilizados como alimento – por exemplo, as proteínas unicelulares à base de cianobactérias (como Spirulina spp.) e algas (como Chlorella spp.) –, não poderíamos deixar de abordar um grupo de microrganismos tão relevante para a produção de alimentos. Neste capítulo, serão apresentadas as principais características dos cogumelos comestíveis e da produção de enzimas via fermentação em estado sólido (FES), estratégia amplamente utilizada para estas finalidades.

19.2 REINO FUNGI: CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS E CLASSIFICAÇÃO DE COGUMELOS

Fungos são seres microbianos pertencentes ao domínio Eukaria e ao reino Fungi, que possuem células eucarióticas com parede celular de quitina e obtêm nutrientes por absorção pela membrana celular. Neste grupo, o glicogênio corresponde à fonte de armazenamento de energia. Estes microrganismos são heterotróficos, podendo apresentar crescimento unicelular, multicelular ou filamentoso. As leveduras são fungos unicelulares (RAGHUKUMAR, 2017; NARANJO-ORTIZ; GABALDÓN, 2019); já os cogumelos, fungos filamentosos. As células de um fungo filamentoso são denominadas de hifas, as quais podem apresentar ou não divisão por septos (hifas cenocíticas não apresentam septos, ao contrário das apocíticas). O conjunto de hifas é denominado de micélio ou filamentos.

De acordo com a taxonomia atual, o reino Fungi está subdividido em nove filos com habitat e nichos ecológicos extremamente diversificados: Opisthosporidia, Chytridiomycota, Neocallimastigomycota, Blastocladiomycota, Zoopagomycota, Mucoromycota, Glomeromycota, Ascomycota e Basidiomycota (NARANJO-ORTIZ; GABALDÓN, 2019). Os fungos são o segundo grupo de organismos eucarióticos mais abundantes do planeta, ficando atrás apenas dos insetos. Assim, ocupam diferentes nichos no ecossistema e podem estabelecer interações ecológicas com

O livro Microbiologia de alimentos fermentados é composto por capítulos que abordam diferentes tipos de alimentos fermentados, e conta com a participação de professores/pesquisadores de diferentes universidades brasileiras.

O enfoque reside no papel da microbiota na transformação da matéria-prima em produto fermentado. A questão microbiológica é primordial, mas aspectos tecnológicos e seus fundamentos também são contemplados. O livro contempla praticamente todos os grupos de alimentos fermentados, como vegetais, lácteos, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, pães de fermentação natural, kombucha, produtos à base de soja fermentada, bem como conceitos importantes sobre probióticos e métodos para avaliação da fermentação em alimentos. Os capítulos apresentam um background sobre o histórico de uso de cada um desses grupos de alimentos, seus aspectos tecnológicos e, principalmente, microbiológicos. Assim, procura-se evidenciar, por meio de estudos científicos publicados nos últimos 5 anos, as principais descobertas sobre o papel das bactérias, fungos e leveduras na fermentação de alimentos, os problemas decorrentes de fermentações indesejadas e o impacto na qualidade sensorial do produto final.

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