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Cidades de sucata
by eba_pucpr
Para muitos, o lixo pode ser tanto um meio de sobrevivência quanto matéria-prima para obras de arte
Daniela Gusso, Dayanne Wozhiak, Luciana Prieto e Marina Creplive
CDM DIGI TAL
REGIÃO METROPOLITANA
E SPECIAL
Em 2014, Curitiba recolheu cerca de 29,4 mil toneladas de lixo pela coleta seletiva – sem levar em conta as 511 mil toneladas recolhidas pelo sistema convencional. Motivo de descarte para alguns, o lixo é sobrevivência para outros. Em tempos de crise, uma alternativa? Em meio a tanto lixo, uma solução?
Dizem os dicionários que reciclagem é o ato ou efeito de se recuperar a parte útil dos dejetos e de reintroduzi-la no ciclo de produção de que eles provêm. Já recuperar tem outro significado: promover a restauração de algo ou reintegrar alguém na sociedade. O que é preciso para que o processo de reciclagem seja totalmente introduzido no Brasil – e no mundo? Segundo Felipe Mazza, mestre em Meio Ambiente Urbano e Industrial, engenheiro ambiental e ex-professor de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, três aspectos têm de ser levados em consideração: conscientização, tecnologia e mercado.
Conscientização talvez seja o mais difícil de todos. Por que é importante? “Torna o trabalho do catador mais fácil, mais seguro, livre de contaminação, com menos vetores de doença”, ressalta Mazza. Mas, como transformar um hábito de anos? O argumento mais válido é dado todos os dias: a reciclagem ajuda o planeta e as pessoas, melhora a vida, só não se convence quem não quer. A tecnologia é necessária para a evolução em um meio competitivo, já que cada vez mais surgem empresas de reciclagem. É a partir da inovação que os resultados melhoram e, consequentemente os produtos produzidos.
Depois desta etapa, é a hora de vender. Para isso, o mercado precisa estar mais aberto, afinal “de que adianta as pessoas separarem o lixo, a indústria processá-lo, se ninguém comprar o produto reciclável?”, indaga o engenheiro. Os preços mais altos são um fator importante, enquanto um pacote de papel A4 alcalino com 500 folhas custa R$ 15,50, um de papel reciclado com a mesma quantidade e da mesma marca sai, em média, por R$ 19,30. Segundo Mazza, esse aumento é desnecessário. “A questão da reciclagem é passar a aproveitar os descartados para que eles voltem ao mercado
Felipe Mazza, mestre em Meio Ambiente Urbano e Industrial
e ajudem a empresa a lucrar. Mas não lucrar por um preço mais alto, e sim por uma despesa mais baixa. Se materiais reciclados são mais baratos, a empresa já está ganhando”, diz.
Há ainda, no entanto, uma luz no fim do túnel: Curitiba é a única cidade na América Latina incluída em um ranking de cidades eco-friendly – ecologicamente corretas –, divulgado em dezembro de 2014 pela rede britânica BBC.
Parte da conquista desse título deve-se principalmente aos catadores de lixo espalhados pela cidade. Peças fundamentais deste processo, muitos deles encontram diversas dificuldades
para realizar seu trabalho. Na região metropolitana, a Associação dos Catadores Unidos de Fazenda Rio Grande foi criada há cerca de nove anos, com o objetivo de oferecer melhores condições a esses trabalhadores.
Lá, o lixo chega até eles através dos caminhões de coleta seletiva da cidade e de catadores não associados. Os funcionários apenas separam o material recebido, e além de não precisarem percorrer longos trajetos atrás de materiais nas ruas, eles também contam com uma rotina de trabalho, um espaço próprio para separação, salário proporcional e três refeições ao dia.
Já para os profissionais que entregam o material – e não fazem parte da associação –, o programa Troca Verde entrega vales, que podem ser trocados por frutas ou verduras em feiras da cidade. O objetivo é evitar a compra de bebidas ou drogas com o dinheiro da coleta.
Segundo Renato Jorge de Cristo, presidente da Associação dos Catadores Unidos de Fazenda Rio Grande, um dos maiores problemas enfrentados pelos profissionais é a mistura de lixo reciclável e orgânico. “Incomoda quem não separa em casa, por conta do orgânico. Tem gente que joga cocô de cachorro junto. É perigoso porque o catador sai prejudicado, podendo pegar uma doença”, afirma.
“As pessoas melhoraram muito. No começo, vinha muita sujeira e pouco material para reciclar. Aí trabalhávamos 15 dias para receber apenas R$ 50”, afirma Regina de Lima, que está na associação desde que ela foi criada, e também é catadora de rua. Atualmente, a situação é um pouco melhor. Como as pessoas estão separando mais o lixo, e chega mais material no caminhão para ser reciclado e vendido, os mesmos 15 dias dão o equivalente a R$
320. Mas para receber isso, eles trabalham oito horas por dia, de segunda a sexta-feira, e mais quatro horas no sábado.
Sueli Lopes da Silva, que também faz parte da entidade e é catadora de rua, diz que apesar de vir mais materiais, ainda vêm muitos potes de margarina, por exemplo, sujos, o que os faz perder tempo limpando. Mas, apesar do trabalho árduo, não o troca por nenhum outro. Já foi diarista e trabalhou na indústria, mas a reciclagem a faz mais feliz. “Sinto que estou limpando a cidade.”

Dayanne Wozhiak Regina de Lima conta que desde que a Associação foi criada, houve muitas mudanças e automatização de processos, como uma prensa para amassar latinhas que antes eram amassados nos pés.
Ferro velho

Ser o rei da sucata não é coisa de novela. Ali, no município de Fazenda Rio Grande, Marcelo Pszybylski encontra no ferro velho a matéria-prima para suas esculturas. Ele conta que sempre se interessou por arte, principalmente a que é feita em metal, com a qual teve contato aos 12 anos, após ver um senhor esculpindo no Largo da Ordem. Quanto à sustentabilidade, o artista confessa que só teve consciência dela, efetivamente, ao começar a fazer suas primeiras obras.
A primeira peça foi uma guitarra, que ele quis dar de presente ao neto. Pszybylski era sócio em uma oficina de lataria e pintura e começou a usar os materiais que eram jogados fora para fazer essa peça. Ele diz que, a cada objeto que poderia ir para o lixo, ele imagina uma escultura diferente – o que faz parte do processo de trabalho dele. Ele idealiza as esculturas, sem desenhá-las. Ao ser muito elogiado pelos amigos, resolveu criar mais obras, participou de algumas exposições, como uma na sede municipal do Senai e outra na prefeitura.
Pouco a pouco, o artista resolveu que era hora de investir somente nisso. Há mais ou menos um ano, começou a vender suas peças e, hoje, tem um espaço na feira do Largo da Ordem. “Lá na feira eu levo as peças menores, que as pessoas têm mais condições de adquirir. As maiores são mais para exposições mesmo, porque para comprar seriam mais caras. Elas levam mais tempo para serem construídas, e têm de ter giro de mercado”. Ele acredita que com a visibilidade que está tendo no Largo, poderá tornar a arte com materiais reaproveitados sua fonte de renda. O ferro que Pszybylski utiliza demoraria mais de cem anos para se decompor e, agora, ganha uma nova vida. “Meu trabalho é só um grão de areia no mar, mas ele faz as pessoas terem consciência de que dá para resgatar o que seria jogado fora e poluiria, ou que dá para doar para alguém que possa reaproveitar. É preciso usar a imaginação e ter força de vontade”, frisa.

Dayanne Wozhiak Dayanne Wozhiak

Todo material recebido ou encontrado por Marcelo Pszybylski (foto acima) em ferros-velhos é transformado em arte.
Não existe lixo onde existe arte
Daniela Gusso e Dayanne Wozhiak
Foi aos 11, talvez 12 anos, que um garoto de Santos encontrou em uma sacola de brinquedos quebrados sua alma de artista. Toda vez que os patrões de sua mãe – empregada doméstica da casa – davam brinquedos novos às crianças da família, os quebrados viravam lixo. Mas, nas mãos de Rodrigo Marques Gouveia, eles viravam possiblidades. O garoto juntava peças, incrementava com outros objetos e, no fim, tinha modelos próprios, até mesmo mais interessantes dos que ele cobiçava nos comercias da marca Estrela.
Marques, como prefere ser chamado, foi crescendo e a brincadeira de garoto foi ficando para trás, dando lugar a atividades mais sérias. Na adolescência, envolveu-se com drogas e somente aos 21 anos é que a sucata virou refúgio, agente transformador da sua história. “Umas das coisas que me tiraram da cocaína foi justamente a minha arte. Ela transforma, une pessoas, abre a mente. Ela vicia e dá tanto ou mais prazer do que qualquer droga”, comenta.
O reciclável, o ferro, os materiais dispensáveis se tornaram instrumento. O que começou com quadros e objetos de decoração para o seu próprio quarto, passou a despertar o interesse de mais gente. “Com o passar dos anos, amigos me disseram que eu deveria levar isso mais a sério, daí fui ver o que era essa tal de arte”, lembra. Na Cidade Industrial, uma garagem recebe a placa com frase “Não existe lixo onde existe arte”, pendurada ao lado do letreiro feito de madeira com letras em negrito escrito “Artemarques”. É ali onde ele expõe e cria seu trabalho. Embora tenha sua obra reconhecida, ainda é pouco para sustentar-se somente com ela. Assim, também trabalha na construção civil.
A arte que Marques achava ser exclusividade de museus, ou uma atividade intelectual, sempre esteve presente em sua vida, desde os brinquedos quebrados até os quadros e esculturas com sucata que hoje são sua forma de, além de contribuir para o meio ambiente, ajudar no seu sustento.
E é essa arte que ele usa para mudar o mundo ao seu redor. Há dois anos, Marques iniciou um projeto para unir artistas autônomos para coleta de material e criação coletiva. Além disso, promovia oficinas com crianças e as ensinava a arte da sucata, com o intuito de tirá-las das drogas, da mesma maneira que um dia ele próprio foi tirado. “Estamos na luta para transformar não só o ‘lixo’, mas as pessoas”, afirma.
O projeto foi interrompido, por ter despertado o ódio dos traficantes da região, porém o seu maior desejo é reintegrar as crianças e dar continuidade ao projeto, contando com incentivos fiscais e o apoio de gente que acredita nessa transformação.


“Atualmente, estou criando e reciclando móveis também, a partir do que jogam em terrenos baldios, becos, e matas próximas ao bairro, e estamos planejando um vídeo que mostre a gente no lixão, retirando, depois levando para casa, limpando, e transformando em arte. Nós o colocaremos no Youtube, afim de promover essa ideia, que já existe, é claro, mas queremos fortalecê-la ainda mais”, conta.

Em seus futuros projetos, o que permanece intacto é a vontade de fazer arte e gerar transformação, seja contribuindo para a preservação do meio ambiente, ou expandindo a ideia de que o lixo não acaba na lixeira, mas pode ganhar vida e ser usado como um contribuinte para um mundo melhor.
Marques Gouvêa transformou sua infância difícil em um caminho para arte.