
6 minute read
Suor e lágrimas para o bem
by eba_pucpr
Gabriel Snak
Voluntários de várias faixas etárias dedicam tempo e afeto na realização de churrascos beneficentes em prol dos moradores do Pequeno Cotolengo
por Gabriel Snak fotos: Jonatan Lavor

Acebola é figura recorrente em muitos pratos. Ela deixa a sua marca por onde passa. Também é notório que, ao ser cortada ou descascada para compor diversas receitas, produz uma ardência nos olhos, provocando lágrimas que inundam os canais lacrimais. Dizem que faz bem ao coração, possui propriedades anti-inflamatórias... Bem, até aí não há novidade. Tudo isso acontece no Pequeno Cotolengo, instituição que acolhe pessoas em situação de deficiência múltipla e paralisia cerebral. Quando o voluntariado se agita a cada primeiro fim de semana do mês, é o tradicional churrasco que move a casa para arrecadar verbas. Lá é o lugar onde um gesto tão simples, como o manuseio das cebolas, é capaz de abastecer a alma de forma que nenhum outro alimento o faria, caso não fosse por ação em prol dos outros. Nenhum centavo move as mais de 400 pessoas que tornam possível a oferta do almoço aos domingos.
Por trás das refeições servidas na casa dos milhares, trata-se de um número que seguramente supera três mil unidades, surgem as faces responsáveis pela façanha. Seu Antônio que o diga. Parece que cada centímetro quadrado da área de preparo das carnes corresponde a uma

Dona Glause, voluntária há 42 anos no Pequeno Cotolengo. Cebolete de corpo e alma.
parte de seu próprio corpo. “Eu não sei quantos mil bois eu tirei desse tanque pra assar na grelha. Já perdi a conta”, diz esse senhor, que carrega 88 anos de existência, dos quais já se vão boas décadas de trabalho voluntário. Ele é da época em que os churrascos eram vendidos antecipadamente, cerca de 70 reforçavam as receitas do Pequeno Cotolengo. “Nós comprávamos no açougue de cinco a dez quilos. A gente ia no meio do mato buscar”, lembra. Para a edição de setembro, a expectativa é de 2.620 quilos de alcatra e filé sendo despejados no tempero.
Ceboletes
Mesmo distante das cebolas, o seu olhar já compartilhava da vermelhidão e marejar característicos de quem atua no time dos “ceboletes”. Sobretudo a partir do instante no qual revelava o porquê de estar ali. “Você vê aquelas pessoas sofrendo noite e dia, abandonadas, mas ninguém é tão pobre que não possa ajudar ou fazer alguma coisa”, afirma.
Para o bom prosador, as cebolas. Dalí é o setor de onde brotou toda a prosa. “Ceboletes”, afinal, são os encarregados delas, a protagonista da salada que acompanha a maionese, risoto, frango, feijão cavalo, e o bem conhecido churrasco vindo lá do time do seu Antônio. O termo tem dona: Glause Mayer. Voluntária há 42 anos no Cotolengo – diga-se de passagem que o trabalho voluntário na instituição tem por volta de 48 anos de idade. Em março deste ano, o próprio Pequeno Cotolengo completou meio século de atividades. “Eu vim a uma festa de inauguração da capela, visitei as crianças lá dentro e decidi ajudar”, explica. Os “ceboletes” dividem o espaço com as “batatetes”, cuja nomenclatura sugere ser de sua autoria mesmo: grupo na grande maioria formado por senhoras responsáveis pelo encaminhamento das batatas. Desde então, ela coordenou o churrasco em meia dúzia de oportunidades. De risada mais constante que o suor das pálpebras, dona Glause disse que às sextas-feiras os voluntários lavam os talheres, o salão e os demais itens da louça. No sábado, os legumes e verduras são lavados, cortados e postos na câmara fria. Resta ao domingo o atendimento realizado pelos garçons – voluntários também – para servir os pratos já temperados, à disposição da fome de muitas famílias. “A gente faz aqui o que não faz na casa da gente. Quando termina, voltamos muito cansados, toma um banho e acorda no dia seguinte como se nada tivesse acontecido”, conta.
Logo ao lado de dona Glause, os “ceboletes” demostram sinais de renovação entre os seus quadros. Daiane Santos de Oliveira tem 26 anos. Em sua estreia no manejo das cebolas, as lágrimas do rosto desciam com a mesma velocidade que ela dispensava as cascas para o corte. “Fazia mais ou menos uns sete meses que pensava em fazer trabalho voluntário aqui”, destaca. A guinada definitiva veio na mudança de um emprego para outro. Bastou uma semana de folga para a assistente administrativa emendar a inscrição e a acolhida na instituição. “Sempre ouvi dizer que ser voluntário é algo muito gratificante. É realmente uma emoção tanto física quanto espiritual”, ressalta.
A poucos metros de distância, Rafael Cortese é mais um “cebolete” disposto a herdar a motivação dos veteranos. Na vitalidade dos seus 32 anos, esse técnico eletromecânico há pelo menos cinco corre de um ponto ao outro, ora na limpeza, ora quebrando qualquer galho
É esperada a venda de mais de 3 mil filés na edição de setembro.

que apareça na cozinha, geralmente formada por pessoas de idade bem mais avançada. Ele sempre responde ao chamado para fazer aquela forcinha a mais. “Estou aqui para fazer o bem sem olhar a quem. Vejo nessas crianças uma intenção para melhorar todos nós que estamos ao redor delas”, complementa.
O Pequeno Cotolengo e o voluntariado compartilham de uma relação simbiótica. Eles se fortalecem mutuamente. Marly Tokarski, coordenadora de voluntários da casa, comenta que os churrascos concentram o maior número de voluntários. Só no sábado, cerca de 180 realizam a mágica de tornar realidade almoços que alimentam de duas a três pessoas. O mês movimenta, em média, a dedicação de 700 deles. No entanto, é possível auxiliar voluntariamente em outros ramos da casa: produção de fraldas, costura, artesanato, bazar ou lavanderia. Ela chama atenção para o alto número de inscritos ajudando, pois se trabalha, acima de tudo, para as crianças e moradores acolhidos pela instituição, independentemente de credo, etnia, posição política
ou orientação sexual. “Tanta gente fazendo o bem em um local só, trazendo benefícios para os moradores, pois as ações voluntárias atingem indiretamente todos eles”, assinala Marly Tokarski. “Isso aqui é uma extensão da minha família. Já estou aqui há 35 anos”, completa.
No apostolado de São Luís Orione, beatificado pelo Papa João Paulo II em 2004, nasce a vocação de atender crianças órfãs e abandonadas. A especialidade da instituição reside no tratamento a casos de comprometimento neurológico grave. Em torno de 210 pacientes são moradores fixos. A infraestrutura do Pequeno Cotolengo se espalha em 15 mil metros quadrados de área útil. Anualmente, estima-se a realização de mais de 40 mil atendimentos distribuídos em 13 especialidades. A casa conta ainda com um setor de desenvolvimento institucional que desempenha ações de captação de recursos junto a governos, emendas parlamentares, doação de pessoas físicas e parcerias via projetos com empresas privadas.
O padre mantenedor da casa, Renaldo Amauri Lopes, também reforçou a empreitada dos voluntários nos tempos de seminarista. “É fácil ajudar o Pequeno Cotolengo. Você se inscreve, há em seguida uma conversa com a assistente social, que culmina na acolhida que a casa promove, explicando como tudo funciona”, frisa. Ainda há a chance de se atuar pela aptidão que mais convém aos interessados. Agora a novidade fica por conta do setor de marcenaria e, inclusive, dos lares dos moradores. Existem vagas para anjos da guarda no plantel, mas aliado a um processo de seleção exigente, nem por isso mais ou menos especial que os demais.
