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Os donos da rua

Todos os dias centenas de animais são abandonados nas ruas do Brasil. Fomos até Pinhais - PR, conhecer a cidade que tem um número de cachorros igual à metade da sua população

Texto: Caroline Stédile e Melvin Quaresma Edição: Getulio Xavier e Thiana Perusso Fotos: Melvin Quaresma

Você consegue se imaginar uma cidade onde o número de cães pelas ruas ameaça ultrapassar o de pessoas? Apesar de parecer distante, a realidade toma conta de diversas cidades brasileiras. O munícipio de Pinhais, por exemplo, conta com nada menos do que um cão para cada dois habitantes – muito além do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de um cachorro para cada sete residentes.

A sala era extremamente pequena e o ambiente muito mais simples do que imaginei. Chegar à Secretaria do Meio Ambiente de Pinhais foi uma leve surpresa - tanto pela simplicidade do local, quanto pela recepção informal e descontraída com que fomos recebidos. Isabela Scalco e Solange Marconcin, veterinárias responsáveis pelo setor, nos aguardavam às 13h30 de uma sexta-feira no pequeno escritório em que tentam tomar conta dos diversos casos diários de abandono de animais em Pinhais. Bastava observar os detalhes para entender que o amor pela causa predominava no ambiente. Fomos recebidos pela Gordinha, uma cadela mansa, que parecia nos dar boas vindas. Pelas paredes, estavam distribuídas fotos de vários cães atendidos pelas veterinárias. Pastas, caixas, estantes e computadores eram tomados por adesivos dos amigos caninos. Para onde se olhava, lá estavam. Por cerca de uma hora, nos explicaram sobre os casos que recebiam diariamente e as medidas que podiam tomar legalmente. De punições a usuários a apreensões de animais em condições de extremo desamparo, o dia a dia era corrido e incompatível com as dimensões da “equipe”.

Esforço

Cachorros sem lar próximo à movimentada rua Jacob Macanhan, em Pinhais - PR

Poucos recursos

A Secretaria do Meio Ambiente surgiu no munícipio recentemente. Antes inexistente, encontrou a necessidade de criar uma área mais específica para tratar exclusivamente dos casos de abandono e maus tratos a animais. Porém, a medida não surtiu grandes efeitos. A falta de recursos e as finanças sempre apertadas dificultam muito a ação para melhorar a situação. Segundo Isabela, a verba mensal que é repassada é insuficiente para todas as medidas que a secretaria considera necessárias para, pelo menos, chegar próximo de uma solução.

Soluções

Entre diversas pausas na conversa para atender telefonemas de denúncia, Solange apresentou o plano que considera eficiente. “O mais importante é a conscientização dos proprietários de animais. As pessoas acreditam que recolher os animais e tentar cuidar é uma boa solução[...]. Cuidar de 30 ou 50 cães em casa não ajuda a eliminar o problema e é até perigoso para a saúde dos cães, que não têm espaço e boas condições. [...] Não teríamos espaço para recolher e cuidar de todos os cães abandonados. Fazemos cartilhas para conscientizar as crianças também, porque muitos adultos ignoram o que tentamos passar. Então, tentamos fazer com que as crianças levem o aprendizado para o lar”, contou Solange. Outro ponto importante levantado foi a desmitificação da ideia de que o problema são os animais abandonados. Segundo as veterinárias, os cães abandonados correspondem a apenas 3% dos animais que circulam pelas ruas de Pinhais. O maior problema são os casos de cachorros “semi-domiciliados”, que, além de corresponderem ao maior porcentual, também são os que mais

se reproduzem, uma vez que cães abandonados dificilmente entram no cio devido à má nutrição. Os “semi-domiciliados” são aqueles cães que têm um lar, mas contam com livre acesso às ruas – e acabam por se reproduzir e se misturar com os animais que de fato não contam com um lugar para morar. Esse é um dos problemas em que a castração pode ser uma boa solução. A secretaria conseguiu firmar uma parceria com a Universidade Federal do Paraná e 50 operações mensais de castração são realizadas – um número ainda muito baixo em relação à imensa quantidade de cães que necessitam do procedimento. Outras ajudas

Dona Ivete Wachtel é costureira e apaixonada por seus animais de estimação. Cuida de nove gatos, um deles já foi adotado cego. Além de dois cachorros que vivem com ela e o marido, Claudinei Francisco, o casal cuida também dos animais que ficam na rua na frente da sua casa. “O que me da dó são os bichos ficarem na rua. Já tentei ligar para a prefeitura, mas tem fila de espera de um ano pra castrar e, além disso, não podem fazer nada. Imagina quantas crias elas vão ter nesse período”, conta ela. Ela explica que a ação nem sempre é vista com bons olhos por aqueles que circulam pela rua. Mas que se tivesse o espaço adequado, abrigaria

Claudinei e Ivete cuidam de sete cães e dão lar a nove gatos que resgataram das ruas

“A pior doença é o egoísmo do ser humano.”

Ivete Watchel todos os cães em sua própria casa. “Os vizinhos querem que eu pare de dar comida para os cachorros para eles irem embora, mas daí eu pergunto se eles conseguem viver sem comida. E o amor ao próximo? [...] Eu não tenho coragem de comer e deixar o bicho sem comer. As pessoas ficam preocupadas com a calçada e com o jardim, pra mim eles nunca passaram doença nenhuma, só amor! A pior doença que tem é o egoísmo do ser humano.” Patinhas Pinhais é um grupo formado no Facebook que reúne pessoas que se preocupam com a situação dos animais em Pinhais e mais de 2 mil membros já se uniram por essa causa, inclusive Dona Ivete. Mais do que participar ativamente na internet, compartilhando conteúdo, algumas dessas pessoas recolhem animais da rua e lutam por melhorias para os bichinhos na cidade de Pinhais. “Geralmente, nós participamos de audiência pública e é a

chance que temos para falar. Levamos nossas revindicações, como a criação de um conselho para cobrar ações da prefeitura para os animais da cidade de forma oficial. Eles estão resistindo um pouco, mas vamos continuar insistindo”, contou Jaqueline Lourenço Gomes, que é uma das integrantes mais ativas do grupo. Ela abriga em sua própria casa 31 cachorros que recolheu das ruas, o mais recente foi o Pingo. O cãozinho foi atropelado e ficou vagando pela cidade com as patas traseiras quebradas por aproximadamente um mês. Com a ajuda de Jaqueline, ele ganhou rodinhas adaptadas e hoje consegue se locomover. “Esses animais que estão na via pública na verdade são responsabilidade da prefeitura e nós queremos realmente que eles se responsabilizem”, diz ela Tania Ferreira também participa do grupo e acredita que a rede social ajudou a melhorar o trabalho das cuidadoras de animais. “Antigamente, cada um fazia o seu trabalho isoladamente, mas com a rede social, nós juntamos forças. Quem tem um medicamento que não usa pode dar pra outro dono que está precisando no momento, nos ajudamos com doação de ração, transporte e outras coisas.” Suellen Fonseca levou o amor pelos animais um pouco mais a sério, transformando em sua profissão. A veterinária abriga dez cães e dez gatos, muitos deles encontrados na rua. “Infelizmente, não podemos abraçar o mundo inteiro sozinhos e não podemos recolher todos os animais de rua. Mesmo tendo bastante pessoas ligadas à causa animal, tem um constante abandono de animais aqui em Pinhais. Eu mesma já presenciei vários cachorros abandonados dentro de caixas ou até mesmo jogados dentro de portões com cachorros maiores para que eles fossem devorados.” Para evitar que mais animais acabem na rua, o grupo organiza feiras de adoção. Os donos dos cães se inscrevem através das redes sociais e levam seus animais até o local da feira. Algumas exigências são feitas para que seja justo com quem está adotando o bichinho. O animal deve estar castrado, vacinado e em boas condições. Após uma entrevista, o novo dono pode levar o animal para casa e receber visitas regulares do antigo dono para verificação do estado que está o animal.

30 milhões de animais abandonados no Brasil. 250 vezes a população de Pinhais.

Crianças brincam com Onix, bode do hospital veterinário da UFPR

Crianças

Trinta crianças, entre 4 e 12 anos, chegavam em fila indiana no Hospital Veterinário da UFPR para uma visita. A empolgação tinha um quê a mais. E não era à toa. Eram os veterinários mirins, estudantes que participaram de um concurso em suas escolas e venceram os prêmios de melhor redação sobre o abandono de animais. O concurso foi uma das ações promovidas por Isabela e Solange para a conscientização das crianças sobre o tema e a recompensa para quem produzisse as redações vencedoras era a visita ao hospital. “Amei muito o passeio. Meu texto foi sobre como não devemos abandonar os animais, porque eles também têm sentimentos”, contou Eduarda Moragino, que aos 9 anos de idade dizia estar completamente decidida sobre o que fazer no futuro. Assim como praticamente todos os outros estudantes, quer se tornar veterinária. A maior curiosidade dos pequenos era pelos animais de maior porte e os selvagens, e muito impressionou a coragem com que a grande maioria encarou a “cornsnake” – uma pequena cobra de estimação que se recuperava nas dependências do hospital. Lucas Henrique, de 9 anos, contou sobre a sua vontade de ter uma cobra enquanto observava a tudo com muita curiosidade. “Eu não tenho medo e até queria ter uma cobra, mas minha mãe não gosta muito da ideia. Já expliquei que algumas nem têm veneno, mas ela não quer mesmo”.

Cavalo recolhido em Pinhais sofre com a reação alérgica de um ataque de abelhas

Cavalos em perigo

“Tá dizendo que o cavalo não levanta e o dono dá chutes e grita para o bicho levantar”, relatou Isabela depois de ter atendido a uma ligação. Enquanto se preparava para sair e verificar a situação, as ligações se repetiram por mais duas vezes para denunciar o mesmo caso. A absoluta calma para resolver o problema demonstrava que a situação não era nenhuma novidade. Assim, descobrimos que os casos envolvendo cavalos também são muito frequentes. Em bairros como o Weissópolis, é comum que esses animais circulem livremente e atrapalhem as vias. Os casos são inúmeros e tão preocupantes quanto as ocorrências com os cães. Animais de grande porte soltos pela cidade são um perigo eminente para a população e para o trânsito. Uma solução prática que vem sendo aplicada é a utilização de chips eletrônicos nos equinos do município. “A gente diz que a colocação dos chips serve reencontrar o cavalo caso percam e coisas assim, mas, na verdade, é uma maneira de encontrarmos os proprietários em casos de abandono e puní-los.[...] Os carroceiros não gostam da gente porque dizem que somos ‘ladras’ de cavalos. Mas só recolhemos quando as condições de desleixo no cuidado são verificadas por mim, que tenho a autorização para fazer o recolhimento desses animais.”

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