Cinema paranaense
Edição especial com críticas e ensaios sobre a produção cinematográfica produzida no estado.

MULHER NÃO FAZ PARTE

DEGRADAÇÃO
DA INFÂNCIA
MEDOS INFANTIS
Edição especial com críticas e ensaios sobre a produção cinematográfica produzida no estado.
MULHER NÃO FAZ PARTE
DA INFÂNCIA
MEDOS INFANTIS
As luzes se apagam e a projeção começa. A sessão de cinema é sempre uma experiência de emoção, em que desligamos de tudo para mergulhar num universo de sons e imagens. Se o filme é bom, a vontade de discuti-lo começa antes mesmo dos créditos começarem a subir. Nos corredores da sala de cinema e do lado de fora da porta, as pessoas comentam e processam aquilo que viram.
Esta primeira reação da crítica é a experiência que buscamos emular com o lançamento da Valêncio, a revista de Cinema e Audiovisual da PUCPR. O projeto é inteiramente realizado por estudantes do curso, que a desenvolveram durante a disciplina de Teoria e Crítica de Cinema.
É simbólico que o tema deste primeiro volume seja o cinema paranaense, uma escolha que reflete nossa profunda admiração e comprometimento com as obras e artistas locais. Este é apenas o começo de uma jornada que esperamos que seja longa e frutífera, na qual vamos debater diferentes movimentos, estilos e projetos cinematográficos.
Batizamos nossa revista com o nome “Valêncio”, em homenagem ao escritor e cineasta Valêncio Xavier, uma figura fundamental na cultura paranaense. Valêncio foi um prolífico autor, cujo trabalho tanto na literatura quanto no cinema deixou uma marca indelével em nossa história cultural. Sua capacidade de mesclar realidade e fantasia, sua habilidade em explorar temas profundos e sua paixão pela expressão artística são fontes de inspiração para todos nós. É uma honra homenagear seu legado com esta revista.
Neste primeiro volume, os leitores encontrarão uma variedade de artigos e ensaios que abordam diferentes aspectos do cinema paranaense. Há espaço para longas-metragens, curtas-metragens e até episódios de séries de televisão.
Esperamos que os leitores desfrutem da jornada através do cinema paranaense que preparamos com tanto carinho. Que esta revista seja um tributo ao passado, um reflexo do presente e uma inspiração para o futuro do cinema em nosso estado.
Boa leitura!
Atenciosamente,
Rodolfo Stancki
Editor da revista Valêncio
Revista do curso de Cinema e Audiovisual, da Escola de Belas Artes, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
REITOR
Ir. Rogério Renato Mateucci
DECANA DA ESCOLA DE BELAS ARTES Ângela Leitão
COORDENADORA DO CURSO DE CINEMA E AUDIOVISUAL
Suyanne Tolentino de Souza
COORDENADORA EDITORIAL
Suyanne Tolentino de Souza
COORDENADOR DE REDAÇÃO JORNALISTA RESPONSÁVEL
Rodolfo Stancki (DRT-PR 8007)
COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO
Rafael Andrade
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MURITIBA, Aly. Deserto Particular. [Filme]. Produção de Mayra Faour Auad e Guilherme Machado. Brasil: Grafo Audiovisual, 2021.
Após ser afastado da Polícia Militar por um surto de raiva que resultou em agressão, Daniel (Antonio Saboia) se vê sem rumo e com a necessidade de entender sua vida e dar um novo sentido a ela. A única luz que enxerga em meio ao caos é Sara (Pedro Fasanaro), por quem está apaixonado, mas nunca a viu pessoalmente. Isso porque ela mora na Bahia e ele no Paraná. Assim começa “Deserto Particular”, estreado em 2021 pelo diretor Aly Muritiba.
O filme retrata a jornada de desconstrução de preconceitos de Daniel, tendo como faísca inicial o momento em que sua irmã, por quem ele tem extremo carinho, assume um relacionamento com uma garota. Outro fator significativo se dá quando descobre que Sara, seu interesse romântico, é trans e não lida bem com isso.
Inicialmente, somos apresentados às problemáticas da família do protagonista, em conjunto com seus problemas profissionais. Ademais, Sara para de respondê-lo após ver um vídeo seu durante o surto de raiva. Então, desesperado para retomar o contato, ele atravessa o país para encontrar a amada. Ao chegar em Sobradinho, cidade onde Sara mora, espalha cartazes e questiona moradores, tentando descobrir onde ela está, e estranha que ninguém a conheça.
Quando finalmente se encontram pessoalmente, Daniel descobre que Sara é uma pessoa trans
gênero-fluido e reage como se ela o tivesse enganado; na cabeça de Daniel, Sara “fingiu ser mulher”. Apesar da raiva, ele se vê confuso, pois continua perdidamente apaixonado por ela. Ainda que seja notável a falta de um arco de redenção para Daniel, ele se arrepende da forma que tratou Sara e confessa seus sentimentos. Eles têm um último momento juntos antes de Sara pegar o ônibus para o Rio de Janeiro, já que, devido aos cartazes de Daniel, sua família descobriu sua identidade e a pressionou para começar um tratamento de “cura”, do qual ela está tentando fugir.
Com um roteiro baseado em dois pontos de vista, o filme conta sua história através de uma fotografia exemplar, com enquadramentos esmerados, movimentos de câmera fluidos que contribuem significativamente para a narrativa e imersão do espectador, e uma arte impecável que trabalha em conjunto com uma atuação extraordinária. Apesar da obra ser tecnicamente primorosa, nos faz questionar as escolhas feitas em relação à trama que, embora intrigante, tem alguns problemas notáveis. “Deserto Particular” mostra as raízes do preconceito e da agressão através de Daniel. Entretanto, ao fazer isso, acaba deixando de lado o protagonismo que deveria estar em Sara, já que é a história do ponto de vista da vítima que retrataria as consequências do preconceito.
É necessário ver todos os lados para entender um problema social, mas a forma como a obra decidiu fazer isso inviabilizou partes da luta trans e tratou certas situações de forma irreal, como a rapidez com que Daniel se desconstruiu ou como o amor está acima de tudo, até de
agressões e preconceitos. É uma ilusão achar que é tão fácil e rápido acabar com os preconceitos de alguém que foi criado dessa forma e acreditou neles por anos. A desconstrução que Daniel teve é possível, mas demanda muito mais tempo e esforço. Na questão da invisibilização, ressaltamos que a substituição de protagonismo também retira parte da voz da comunidade trans, pois é contado de um ponto de vista que mostra os problemas do agressor antes dos problemas da vítima, que deveriam ser a pauta em foco.
Outra problemática está na já muito batida narrativa do “catfish”, que ocorre quando indivíduos se conhecem primeiramente pelo meio virtual, em seguida se encontrando pessoalmente, situação na qual a pessoa cisgênero da relação descobre a identidade do outro indivíduo e age como se tivesse sido enganada. Essa problemática já foi usada diversas vezes para representar histórias trans, sendo também muito criticada por pessoas da comunidade desde muito tempo. Um exemplo visto por volta de 2010 é a série televisiva “Glee”, que retratou a história de Unique, uma mulher trans, de maneira semelhante à de Sara, se envolvendo virtualmente com um homem, mas sem querer encontrá-lo pessoalmente pois temia que sua relação acabasse quando ele descobrisse que ela é trans, e da mesma forma que Daniel, o personagem de “Glee” reagiu de forma preconceituosa e se sentiu enganado. Já
nessa época, o enredo era criticado por ativistas da comunidade queer. Além de existirem várias outras vivências trans para serem mostradas, a tática da história de catfish traz visões pejorativas para a comunidade. Mesmo que o filme mostre que a reação de Daniel está errada, retomar essa trama só reforça pontos negativos, como o de que pessoas trans só podem se relacionar virtualmente, pois isso ajudaria a “esconder a identidade real”.
Para entendermos melhor sobre a má representatividade trans no cinema, o documentário “Revelação”, que contém comentários e observações de atores, atrizes e produtores cinematográficos transgêneros, denuncia a forma como a mídia retratou pessoas trans com o passar dos anos. A obra é esclarecedora. Como dito por Giovana Silvestri na matéria “Representatividade mal executada e estereotipação na narrativa trans”, o documentário “denuncia toda a história do cinema que, como um espelho quebrado, tentou construir a imagem da comunidade trans através de recortes e rachaduras, resultando em um reflexo distorcido e irreal”.
Por fim, “Deserto Particular”, de Aly Muritiba, excede expectativas em todos os aspectos técnicos e, apesar de apresentar problemas na história, possui um enredo notável e é visto como um romance em tempos de ódio e rancor.
MURITIBA, Aly. Para Minha Amada Morta. [Filme]. Produção de Aly Muritiba, Marisa Merlo e Antonio Junior. Brasil: Grafo Audiovisual, 2015.
Para Minha Amada Morta, roteirizado e dirigido por Aly Muritiba, retrata uma diferente forma de suspense, tratando de temas como luto, traição e vingança. Com duração de 2 horas e 20 minutos, é um filme de suspense e drama. Sua edição foi concebida por João Menna Barreto e a produção é de Aly Muritiba, Marisa Merlo e Antonio Junior. A cinematografia foi concebida por Pablo Giannini Baião. Importante ressaltar que as edições feitas são simples, mas eficazes, sem deixar a desejar. A montagem do filme segue uma linha contínua de ações, sem flashbacks ou algo do gênero.
A obra demonstra o cotidiano de Fernando, interpretado por Fernando Alves Pinto, um homem de meia-idade que acaba de perder a esposa. Os diálogos, ações e, especialmente, a direção de arte, liderada por Mônica Palazzo, evidenciam a forte ausência da mulher logo no começo do filme. O primeiro plano inicia com Fernando deitado na cama e várias roupas da mulher ao lado. Tanto o diálogo com seu filho quanto a
própria monotonia da cena destacam a melancolia e a solidão. Seu roteiro, quando se trata do texto falado, segue certa subjetividade, ou seja, não se tem a preocupação em evidenciar, absolutamente, tudo para o telespectador, deixando-o livre para seguir sua linha de raciocínio dentro das possibilidades propostas. Mas, ao mesmo tempo, as informações cruciais são dadas com clareza, como, por exemplo, a traição.
Fernando, vivendo o luto da esposa, reproduz algumas fitas em VHS e as mostra para seu filho. Podemos interpretar que tal ação é para maior conforto do próprio personagem principal do que para a criança. Essa percepção se concretiza quando, nitidamente, fica obcecado pelas fitas, maratonando todas encontradas. A monotonia das cenas coloca em evidência o drama ali pautado. Já sozinho, encontra uma VHS específica que, por acaso, acaba por estragar quando colocada para reproduzir. Porém, consegue consertá-la com fita adesiva e assiste. Podemos interpretar tal situação como uma grande coincidência ou, até mesmo, uma ironia do destino, visto que essa fita continha as cenas de traição de sua mulher Ana, interpretada por Michelle Pucci, e Salvador, interpretado por Lourinelson Vladmir. A direção de fotografia, comandada por Pablo Baião, nesse momento, é muito enfá-
tica. É possível ver o vídeo através da retina de Fernando, que se apresenta extremamente atordoado com a descoberta. Inclusive, é admirável como o ator consegue demonstrar os sentimentos com micro expressões faciais. A partir desse momento, o personagem e, consequentemente, o filme caminha para outro lugar. Com a traição de Ana revelada, levanta-se a reflexão da mulher como alguém tão possível de trair o parceiro amoroso como o homem. Normalmente, espera-se o contrário. Isso é evidenciado num diálogo do protagonista e antagonista. “Acho que para a mulher é sempre mais fácil entender”, diz Salva-
dor. Após essa grande descoberta, o dia amanhece e vemos Fernando jogado no sofá com uma arma em cima da mesa. Seu filho pega a arma, vira para si mesmo e a coloca na estante. Esse é o primeiro de muitos momentos de tensão e expectativa, visto que é agoniante cogitar a morte do menino logo no início do longa.
A mudança da melancolia para o suspense pode ser vista com nitidez quando o protagonista começa a perseguir Salvador. A monotonia que antes era assimilada à melancolia, agora é uma forte ferramenta para as tensões criadas, deixando
muitas situações em suspense e, por vezes, imprevisíveis. O personagem principal possui certa facilidade em localizar o antagonista (o qual possui passagem pela polícia), visto que trabalha como fotógrafo policial. Após certo tempo, o mesmo aluga a casa disponível no quintal de seu alvo, não por acaso. Após pequenos atritos, os dois conversam sobre mulheres, casamento e traição. Numa cena específica, Fernando pega uma pá e escava a terra, enquanto faz perguntas ao “inimigo” sobre uma traição revelada. Como já é sabido, o homem discorre sobre Ana. Grande momento de suspense é criado, pois ambos estão falando da mesma mulher, sendo um quem traiu e o outro que foi traído. O contraste entre um personagem cavando a terra com agressividade cada vez maior e a calmaria de Salvador é marcante. Há muita tensão, não só pelo diálogo, mas pelo possível perigo iminente de ataque.
O protagonista, aos poucos, vai se apossando da família de seu inimigo, construindo relações com suas duas filhas e sua mulher Raquel. Ao mesmo passo em que o próprio filho do protagonista é deixado de lado. O mesmo diz à Raquel que gosta dela, mas o roteiro cria duas possíveis interpretações: ele realmente sente o que diz ou fala isso como uma forma de persuadi-la, e se vingar de Salvador. Em quase todo o longa, é impossível saber ao certo o que o personagem principal quer com diversas falas e atitudes, deixando sempre margem a diversas interpretações e dúvidas, algo que acaba por reter mais o espectador.
Novamente, outro momento em que é possível imaginar a morte de Salvador é a cena do rio. Lá, muitas coisas subjetivas e sugestionáveis são ditas e acabam por afetar o antagonista. Novamente, os diálogos com grandes pausas e, consequentemente, sua monotonia, nos fazem imaginar diversas possibilidades e tensões.
No clímax do filme, Salvador pega a arma de Fernando e o ameaça, indagando sobre sua vida e a motivação de estar lá. Nessa cena, é possível ver a posição de um em relação ao outro, visto que o protagonista dá as costas ao outro homem
que possui uma arma apontada para ele. É possível identificarmos quem está no domínio da situação. Enquanto Salvador aponta uma arma para ele, Fernando pega uma faca e descasca uma laranja. Novamente há possibilidade de confronto, que acaba por não acontecer fisicamente. Isso também se mantém quando, durante a discussão, a filha menor da família aparece e o protagonista a pega no colo, algo que demonstra, novamente, quem está no poder. Esse momento é muito interessante, pois fazendo um paralelo com a cena em que estão conversando sobre traições, podemos ver naquela situação que quem estava calmo era Salvador, mas agora, neste momento, houve uma reviravolta e quem está em serenidade é o Fernando.
Assim sendo, o personagem principal se vinga de formas diferentes, se apossando, de certa forma, da família do outro e o deixando vulnerável. Finalmente, o protagonista volta para casa e queima as roupas da falecida mulher, como um fim de ciclo. Entrega, ainda, uma foto sua e dela do casamento, com a frase “ela tá morta” para o amante. A última cena do filme é Fernando chegando na praia e encontrando seu filho.
Ponto final no seu luto duplo. A iluminação e, especialmente, as cores são outras, transmitindo felicidade e calmaria. Os tons de azul do céu e do mar realçam isso.
As temáticas abordadas são muito fortes e identificáveis facilmente. O longa propõe algumas profundas reflexões. Quando tratamos do luto, acompanhamos algumas fases desse processo, passando pela melancolia, saudades e, ainda, revolta. As imagens perfeitas que criamos das pessoas também são um tema, visto que o personagem principal possuía uma imagem quase perfeita da esposa que acabou sendo totalmente pervertida. A traição de Ana, como já comentado, quebra a ideia de que apenas os homens traem. Por fim, a vingança também faz parte do enredo, apesar de ser colocada de uma forma que foge aos clichês, um ponto positivo para o roteiro.
OLIVEIRA, William de. Aquele Casal. [Filme]. Brasil: Produção independente, 2019.
Ofilme Aquele Casal, dirigido por William de Oliveira, conta a história de Luciano (Vinícius Sant) e Marco (Luiz Bertazzo), um casal que acaba de ser vítima de um ataque homofóbico. A narrativa se desenvolve na tentativa deles de superarem o trauma e seguirem suas vidas adiante, mesmo que isso não seja fácil. Ao longo do curta, o espectador percebe o quanto ambos estão abalados, pois não se reconhecem mais, possuindo medos, dúvidas sobre o amor e inseguranças.
No contexto de produção, o diretor e sua equipe técnica fizeram um trabalho coeso. O roteiro poderia efetuar idas e vindas entre o idílio do casal amoroso e os traumas pós-ataque. No entanto, o diretor William de Oliveira prefere se ater a um eterno presente, focando na dificuldade de superar o trauma e na permanência das cicatrizes físicas e emocionais. Os atores principais estão muito bem em cena, trabalhando de maneira realista os diálogos, em ritmo e estilo despojados, além de expressarem sentimentos com corpos retraídos. Talvez Aquele Casal pudesse ser criticado por não desenvolver um discurso mais explicitamente contestador. Trata-se de uma óbvia escolha do cineasta, que privilegia a melancolia em detrimento do didatismo nas falas ou em outros recursos de pós-produção
(como letreiros trazendo dados informativos sobre a violência no Brasil).
Eli Firmeza, diretor de fotografia, traz uma visão muito marcante, utilizando cores frias como ferramenta para expor a angústia do casal. Além disso, por se tratar de um curta-metragem, ele utiliza planos mais fechados para focar nas expressões dos personagens, trazendo mais riqueza e detalhes para a narrativa, que precisa ser contada em poucos minutos. Nesse contexto, ele traz uma sensação de aproximação da realidade para o espectador.
Conectando com o pensamento realista de Siegfried Kracauer: “O mundo é visível e deve mergulhar na imagem do real, que explora os aspectos da realidade”. Essa perspectiva se reflete na produção de Oliveira, que explora profundamente o mundo visível e mergulha na realidade da sociedade brasileira atual. Pelo olhar de André Bazin, outro crítico do realismo, vemos o cinema como vemos o real. Não é uma questão de similaridade, mas de registro mecânico. A sétima arte e a política são muito interligadas no pensamento de Bazin, assim como é retratado no filme de William de Oliveira. Em paralelo ao tema central do filme, a homofobia está inserida em nosso cotidiano, porém, não pode passar despercebida. Além de ser crime, também é algo totalmente desumano e cruel.
Na primeira cena, o casal está na cama, e um deles não se sente mais à vontade com o próprio corpo e com o parceiro, recusando praticar atos sexuais. O pós-ataque é tão ou mais doloroso do
que o ataque em si, chegando a ter vergonha do seu parceiro e de si mesmo.
Na cena seguinte, Marco está na janela, pensativo e melancólico, pois seu parceiro está distante. O relacionamento nunca mais será o mesmo. Agora, precisarão superar juntos para conseguirem se reerguer como casal e indivíduos. A lente mostra a solidão da vítima, um sentimento de isolamento, vergonha e incapacidade. Em seguida, Luciano aparece na cena logo atrás de seu parceiro, como uma forma de reaproximação.
Quando o casal está na cozinha tomando café da manhã, Luciano abre o computador para ver o que as pessoas estão comentando em sua publicação no Facebook sobre o ataque homofóbico que sofreram. Além de ser vítima de homofobia, ele também é vítima de racismo. Os comentários transmitem o olhar de revolta e angústia dos personagens, trazendo uma sensação de imersão para o público.
Nas próprias palavras de seu parceiro, “eles já são notícia velha”. Por outro lado, Marco não está tão preocupado, tentando seguir adiante e voltando a trabalhar. Enquanto isso, Luciano parece estar preso nessa sensação de solidão e isolamento, recusando ter outra companhia a não ser a de Marco.
Em uma tentativa de reconectar-se com sua mãe, Luciano não consegue obter muito resultado. Ele tem medo e receio de sua mãe, ligando para ela
sem conseguir falar nada, apenas ouvindo-a. Isso mostra que sua relação com ela é conturbada.
Marco, ao chegar na escola onde trabalha como professor, é recebido com olhares curiosos dos alunos. Ele chega cabisbaixo, com vergonha e medo. Alguns colegas demonstram apoio e compaixão, mas seu superior se mostra frio, dizendo que a situação do ataque já passou e que ele deve seguir em frente. Ali, fica claro o olhar de desamparo do protagonista.
Percebem-se alunos intolerantes e homofóbicos no colégio onde Marco trabalha. Um aluno faz uma “piada” sobre sua aparência após o ataque, refletindo a intolerância e a crueldade presentes na sociedade.
Após encontrar a mãe, Luciano percebe que precisa espairecer, colocar seus pensamentos no devido lugar e priorizar Marco, a única pessoa em quem pode confiar, amar e cuidar. O casal marca de se encontrar. Luciano, coberto de roupas, usa moletom e calças compridas para não ser reconhecido e para que as pessoas não reparem em suas marcas e cicatrizes do ataque.
Eles se encontram no mesmo ônibus, sentando lado a lado, mas Luciano ainda possui receio de ter qualquer tipo de toque físico com Marco em lugares públicos. No final do filme, a barreira entre os dois se quebra, mostrando que, apesar de tudo, o amor e a conexão entre eles permanecem fortes.
NIN, Joana. Cativas - Presas pelo coração. Direção de Joana Nin. Produção de Joana Nin e Ade Muri. Fotografia de Eloi Pires Ferreira. Montagem de Joana Nin e Fernanda Krumel. Música de Chico Saraiva. Brasil: Vitrine Filmes, 2013. 1 DVD (77 min), son., color.
Ofilme Cativas - Presas pelo coração, dirigido por Joana Nin, traz à tona histórias reais de mulheres que se envolveram com homens presos no Paraná. Através de diferentes personagens e perspectivas, a narrativa se desenrola de forma próxima e intensa. A diretora mergulha em cada um dos contextos, gerando uma expectativa contínua com as cenas que são recortes das vidas cotidianas dessas mulheres.
Joana Nin, jornalista e cineasta, já havia abordado o tema em seu curta de estreia, Visita Íntima (2005), um documentário sobre mulheres que dedicavam suas vidas a relacionamentos com homens encarcerados. Em Cativas, nota-se um tratamento horizontal das fontes, onde a entrevistadora e as entrevistadas parecem estar sentadas, conversando e desabafando. Isso traz um ar de naturalidade e fluidez, permitindo que as personagens exponham suas vulnerabilidades, e que a câmera penetre profundamente em seus sentimentos e dores.
O documentário retrata de forma fidedigna diversos momentos, como se o equipamento de filmagem estivesse inerente às situações. No entanto, em cenas como a de Kamila, de 21 anos,
andando pelo corredor da cadeia pela primeira vez para visitar seu esposo, há uma perceptível romantização da história, evidenciada pela música de fundo e pelos ângulos e enquadramentos. Tais escolhas criam uma narrativa que por vezes se perde, deixando os espectadores confusos, como se estivessem assistindo a uma novela.
A produção de Joana Nin se distancia da perspectiva formalista de Arnheim, que vê o cinema como uma reprodução do real. Em vez disso, Cativas se alinha mais ao pensamento de Eisenstein, que acredita que a justaposição de imagens gera significados na mente do espectador. O filme usa a realidade como pano de fundo para estimular críticas e reflexões, criando significados que transpõem o aparente e produzindo uma espécie de eufemismo.
O filme exige que o espectador descarte seus preconceitos, evitando o confronto direto com a falência do sistema prisional brasileiro. O roteiro aborda elementos secundários para compor um quadro principal que mostra como pessoas emocionalmente ligadas a esse universo são afetadas. A diretora escolhe não revelar os crimes dos condenados, focando no emocional em vez do criminal.
Há momentos em que a intimidade entre a cineasta e as mulheres entrevistadas cria um efeito teatral, com algumas personagens parecendo ter discursos preparados, conscientes de estarem em um filme. Isso é perceptível na cena em que uma jovem olha diretamente para a câmera antes de prosseguir com sua frase. Es-
ses momentos quebram a realidade construída pelo filme e dissociam a imaginação do espectador do universo criado.
Apesar de retratar histórias reais, Cativas permite um adicional de romance “novelesco” na vida das personagens, o que pode confundir a percepção do espectador. Isso reforça a ideia do cinema como construção, utilizando ferramentas da realidade e da ficção para gerar uma narrativa envolvente.
Joana Nin capta o real, aplica um filtro de romance e devolve o material ao mundo dos espectadores, criando uma realidade própria em Cativas - Presas pelo coração. A diretora mis-
tura o que há de real nas personagens com um enredo de romance, criando uma construção interessante, mas que apresenta lacunas. Algumas deficiências do sistema prisional brasileiro não são completamente expostas, e há falta de pluralidade de fontes, com poucas opiniões oficiais ou da justiça sobre o assunto.
Por fim, Cativas é uma produção importante no cenário nacional, trazendo aspectos de uma realidade distante para muitas pessoas de forma próxima e envolvente. Contudo, o eufemismo constante torna a obra romantizada em muitos momentos, confundindo o espectador entre a vida real e a ficção.
MURITIBA, Aly; SANTIN, Jandir. Nóis por Nóis. Curitiba: Platô Filmes, 2020.
As raízes da violência não estão mais na escuridão. Há como nomear os senhores fortes cujo poder continua a permitir a existência de certas guerras, conflitos estes que, resultando em morte, submetem uma pessoa à condição de herói ou de mártir. Na vida que passa, é possível enxergar um Café em notícias sobre o que acontece longe das casas seguras, e é possível que os espectadores tenham visto o protagonista de “Nóis por Nóis” (2020) na aglomeração humana ou em outras telas de cinema, nas quais ocorrem vandalismos da vida, especialmente da vida jovem. O longa do cineasta Aly Muritiba com Jandir Santin foi produzido na Vila Sabará, na Cidade Industrial (CIC) de Curitiba. A juventude na periferia funciona em alta tensão, onde o futuro desaparece dependendo da esquina escolhida e a vontade de ser livre deve ser mais forte do que o medo de morrer. O filme começa com o desaparecimento do adolescente Café após sair de um evento de batalha de rap e ser encontrado morto pelos amigos. Cada personagem e cada desdobramento da história reflete uma questão política e social específica. Ainda que seja desenvolvido sob o contexto da periferia curitibana, os apontamentos centrais levantados repercutem também em outras periferias e favelas do país. Entre os personagens do filme, além de Café, estão os adolescentes Japa, Gui, Jana e Mary.
Inconformado com a violência do instrumento de coerção (e não de segurança pública como deveria ser) do Estado, Café fiscalizava frequentemente a ação da PM na vila. As circunstâncias de seu desaparecimento são controversas e os adolescentes partem em busca de informações sobre o assassinato do jovem. Japa acaba encontrando um vídeo no celular do amigo, no qual o adolescente leva um tiro da PM enquanto estava filmando uma ação da mesma. A produção desenvolve o silêncio e a cegueira seletiva do branco, através da omissão das personagens envolvidas no momento do assassinato, assim como reflete o racismo e a opressão do Estado através das ações da polícia no filme.
Christian Metz, teórico de cinema francês, explica que ao estar no cinema, assistimos à projeção do filme como seres-testemunhas e seres ajudantes: olhamos e ajudamos o filme a existir. Da mesma forma, ao apresentar essa realidade, na obra de Muritiba, a violência da juventude periférica estende a mão aos espectadores, gritando: “Ainda estamos aqui. Somos reais”. O argumento conversa com a teorização de Susan Sontag, escritora e ensaísta norte-americana, que defendia que as fotografias — assim como as apresentações visuais no cinema ou na televisão — são meios de tornar “real” (ou mais “real”) assuntos que pessoas em situações de privilégio ou simplesmente em segurança talvez preferissem ignorar. Afinal, a violência incomoda. O silêncio ou o desviar do olhar tornam-se cúmplices
para esconder certos relatos cruéis da realidade e para concretizar o apagamento de histórias. O longa, assim, é um convite ao olhar e nos desafia a refletir sobre as diversas formas de ser e estar no mundo, principalmente sobre a existência nas periferias.
A sobrevivência de muitos jovens nas favelas está condicionada, além da opressão racial, ao tráfico, um mecanismo de poder que não permite a livre expressão da condição cidadã dos seus subalternos. Sem muitas alternativas, Japa vive junto com o traficante da quebrada para quem trabalha. Ainda que o personagem tenha um breve desenvolvimento, ele é capaz de consolidar um problema sólido do país, a criminalidade preenchendo os espaços deixados pelo Estado. O esquecimento é deliberado. O lapso educacional não compromete apenas o distanciamento dos jovens e o crime, mas também é a origem de outros problemas que acometem o Brasil contemporâneo.
Gui e Jana representam duas questões de um mesmo universo. Enquanto o casal de adolescentes se vê numa situação desajustada para a etapa de vida em que se encontram, Gui espelha a negação da paternidade e o abandono do filho. A questão do abandono paterno também está presente nas entrelinhas do filme a partir dos contextos familiares dos adolescentes, onde é possível ver apenas a mãe e os filhos, e a figura paterna é nula. Apesar de o adolescente ter mudado sua postura no desfecho da história, a gravidez e a maternidade na adolescência são problemas reais no país, sobretudo nas periferias. O lapso educacional - que acomete a relação juventude e criminalidade - somado ao sistema público de saúde defasado e políticas de Estado cerceadas através de uma concepção branca cisheteronormativa de uma elite cristã, afetam de forma densa a existência da mulher no contexto brasileiro. Um Estado inerte que não qualifica tecnicamente e nem desenvolve intelectualmente os cidadãos, tampouco os orienta cientificamente quanto às condições intrínsecas do ser humano. Privadas do conhecimento, meninas dos onze aos dezoito, assim como mulheres adultas, têm as já limitadas possibilidades de articular suas vidas ainda mais dificultadas. Não
que a maternidade seja um problema em si, contudo ela não deve ser compulsória assim como se observa em nosso contexto.
A rapper Mari reverbera não apenas a questão da violência como também a desigualdade de gênero nos espaços práticos de mobilização das habilidades. Apesar do peso político do movimento hip hop, homens ainda incorporam comportamentos misóginos para com as mulheres da cena. Contudo, o aspecto mais problemático que circunda Mari é o ex-namorado Shat. O jovem não aceita o término do relacionamento e passa a persegui-la. Como reflexo de um Estado impune e omisso quanto às causas de gênero, o “conformismo” coagido de Mari a freia para buscar amparo jurídico. O desconforto e o medo da personagem no filme são coletivos, contemplando simbolicamente o contexto da mulher.
O conteúdo da obra é simulado, mas ultrapassa o campo da ficção. É um denso retrato do Brasil contemporâneo. Afinal, o cinema é análogo a como entendemos o mundo, como afirma o teórico e crítico Jean Mitry — co-fundador da primeira sociedade de cinema francesa —, assim, o cineasta não pode se livrar do real, a realidade não pode ser ignorada. Em níveis de significação e percepção, a imagem cinematográfica simplesmente se mostra a nós, um análogo imediato do mundo. Então, o espaço, o tempo e a causalidade da narrativa permitem aos espectadores entendê-lo, em vez de apenas percebê-lo.
PASSOS, Heloisa; AGNIEZ, Catherine. Do Tempo Que Eu Comia Pipoca. Curitiba: Produção independente, 2001.
Dirigido por Heloisa Passos e Catherine Agniez, “Do Tempo Que Eu Comia Pipoca” (2001) é um curta-metragem curitibano sobre a saudade e a nostalgia de tempos passados. Clara, a protagonista interpretada por Guta Stresser, tira um fim de semana para se afastar de seus compromissos e obrigações e voltar para a cidade onde cresceu, Curitiba. Em meio às caminhadas e voltas por lugares significativos, Clara vai à lanchonete, onde é abordada por um rapaz que lhe chama a atenção por seu jeito inusitado e um tanto quanto esquisito de querer ser notado (Rodrigo Ferrarini).
A protagonista, em meio a uma crise existencial, busca em estabelecimentos e edifícios aquilo que perdeu com a vida adulta, ao tentar reviver momentos passados. Clara está buscando o tempo em que comia pipoca, em lugares que já não estão mais como eram: estão demolidos ou habitados por outras pessoas, por exemplo. Suas perguntas diretas e relativamente superficiais demonstram a sua insatisfação em sua busca. Mas tudo muda quando o homem de verde a acompanha ao parque. Lá o seu sem-
blante muda e encontra a primeira coisa que não mudou depois de todo esse tempo: a pipoca. Lá, a personagem interpretada por Guta Stresser começa a remeter seus pensamentos a sentimentos, e não lugares, tendo suas lembranças bem contrastantes em relação ao homem que lhe acompanha, uma vez que ela só pensa no passado e ele no presente.
Ao entrarem em uma biblioteca, o homem de verde lê Pequeno Príncipe, e é acompanhado por Clara, que recita do fundo de sua memória, ao lembrar de sua mãe lendo para ela. A citação remete a tudo aquilo que anda vivendo, “o que eu vejo não é mais que uma casca, o mais importante é invisível”. Ao se deparar com a realidade do homem, reflete, e percebe que encontrou aquilo que mais buscava a sua viagem inteira, mas onde menos esperava, bem ali, no café que frequentava todos os dias.
Com direção de arte e fotografia que completam a melancolia do roteiro, Heloísa e Catherine foram capazes de trazer não só uma estética bonita, mas também criar durante os 18 minutos do curta, um espaço sentimental e nostálgico. Os detalhes minimamente pensados, como as cores que representam simbolicamente cada personagem, o verde que acalma o vermelho; a profundidade e dimensão causadas pela forma
de enquadramento e escolha de lentes; a diferenciação entre dia e noite pela presença de tapete no hall do hotel ou não, são todos fatores que contribuem para o detalhismo que nomeia tal impecabilidade. As cores predominantes e presentes em cada um dos frames (azul, vermelho e verde) demonstram o cuidado e intencionalidade com cada item presente no enquadramento. É capaz de nos fazer reparar em cada uma das coisas ali presentes e admirar cada segundo do curta, mesmo com não muito diálogo. Na fotografia, ângulos e enquadramentos levemente parecidos com os filmes de Wong Kar Wai, “Do Tempo Que Eu Comia Pipoca” ainda não chega ao mesmo nível de experimentações visuais dos filmes do diretor chinês.
Não por coincidência, o curta ganhou diversos prêmios pelo mundo, principalmente no que diz respeito à cinematografia e direção de arte. Vale ressaltar também o prêmio recebido nos Estados Unidos pela trilha sonora original de Jaime Zenamonn, que envolve toda a trama. Assistimos ao filme algumas vezes para realmente reparar
em cada coisa que foi premiada, pois tudo é tão bem trabalhado que é necessário muita atenção para não perder nenhum detalhe.
À primeira vista, o roteiro não é o que mais chama a atenção, e inclusive parece que a construção de diálogos está incompleta. Mas os personagens são muito bem desenvolvidos pelos atores e com a intenção da voz em apenas uma palavra, conseguimos entender algo muito maior. De primeira parece ser apenas mais um filme bonito, entretanto traz consigo profundidade e reflexão, justamente pela aparente falta de falas e “excesso” de expressões.
O grande número de mulheres na produção e direção do curta paranaense parece dar sentido à falta de superficialidade na construção dos personagens, principalmente a de Guta Stresser. Não precisamos ouvir toda a circunstância e história de vida de Clara, mas já entendemos rapidamente pelas suas respostas frias e diretas. O contato com o sensível e com os sentimentos não se dá nas falas e diálogos.
BISCAIA FILHO, Paulo. Morgue Story: Sangue, Baiacu e Quadrinhos. Produção independente, 2009.
Escrito e dirigido por Paulo Biscaia Filho, “Morgue Story: Sangue, Baiacu e Quadrinhos” narra a história de Dr. Daniel Torres, um médico legista fanático religioso, interpretado por Leandro Daniel Colombo. Ele droga mulheres com uma poção aprendida no Haiti, que simula a morte temporária. Torres, um maníaco sexual, droga suas vítimas em um bar e as encontra no necrotério onde trabalha, após serem dadas como mortas.
A quadrinista Ana Argento, interpretada por Mariana Zanette, torna-se sua última vítima. No entanto, a tentativa de estupro é interrompida
quando um cataléptico, Tom (Anderson Faganello), acorda em uma das macas. Torres tenta se livrar de Tom antes que Ana desperte, mas falha. Após um diálogo, o médico convence Tom a sair, prometendo comprar um plano de saúde.
Torres droga Ana novamente, mas antes de cometer o ato, recebe uma ligação urgente e prende Ana em uma gaveta da morgue. Ele vai ao bar e droga Tom com a poção de baiacu. De volta ao necrotério, Torres encontra Tom novamente em um saco preto. Durante a tentativa de estupro de Ana, Tom acidentalmente entrega uma caneta para ela, que a usa para se defender.
Ana faz Torres ingerir a poção, desmaiando-o temporariamente. Temendo por suas vidas, Tom e Ana lutam com o médico, assassinando-o com várias “canetadas” no coração. Após o banho de sangue, eles combinam de assistir “Evil Dead 3”
juntos e eventualmente se apaixonam, vivendo felizes até a morte de Tom.
“Morgue Story” está repleto de referências a filmes de exploitation e cinema gore dos anos 70, além do humor negro mórbido típico de Roger Corman e Jack Hill. A narrativa linear e as técnicas de edição evocam adaptações de HQs dos anos 2000, como “Sin City” (2005). O roteiro, adaptado de uma peça teatral, é marcado por monólogos dramáticos e extensos.
A produção da Vigor Mortis é notoriamente de baixo orçamento, com tratamento de imagem rudimentar e efeitos cenográficos amadores, refletindo uma tentativa de se posicionar em um nicho menos convencional. Esse estilo está em consonância com a história do cinema de horror brasileiro, que muitas vezes opera com recursos limitados.
O principal desafio de Biscaia foi transformar o roteiro teatral em uma obra cinematográfica. Ele conseguiu isso através de uma montagem dinâmica e uma fotografia criativa, utilizando efeitos como transições entre preto e branco e colorido, ângulos variados e tremores de câmera para intensificar a aflição. No entanto, o uso exagerado desses efeitos pode distrair e tirar o peso da história.
Apesar das escolhas duvidosas, “Morgue Story” alcança um lugar único no cinema de terror nacional. Com um estilo próprio e referências inteligentes, o filme demonstra uma grande paixão pela sétima arte e uma ambição em prol do horror. Biscaia, uma figura importante no cenário cultural paranaense, e a Vigor Mortis continuam a deixar sua marca no gênero.
BIAGIOLI, William. O Estacionamento. Produção independente, 2016.
Aexpressão alegoria representa o ato de dizer algo sem ser explícito. O Estacionamento, de 2016, é uma grande alegoria de 16 minutos e 31 segundos sobre um garoto imigrante que é “assombrado” pelos carros do estacionamento onde trabalha e mora, no Centro de Curitiba.
Jean, o personagem principal, é um imigrante do Haiti. Suas dificuldades como estrangeiro são mostradas de forma metafórica na tela. Um exemplo é que ele não fala português, e os outros não falam sua língua, demonstrando a principal dificuldade que um imigrante enfrenta ao chegar no Brasil: o problema da comunicação. Para evidenciar isso, o diretor e roteirista William Biagioli usa um artifício que cria uma espécie de imersão temporária no mundo do personagem: a falta de legendas nas cenas em que Jean fala em outra língua. Essa escolha artística tem a função de mostrar o desconforto de quem não entende a língua falada onde está, provocando empatia no espectador em relação ao personagem.
Além disso, o protagonista enfrenta um antagonista, simbolizado por um Fusca vermelho. Esse carro é utilizado como um ícone que representa o preconceito, sempre dando sinais de que quer que Jean vá embora, do começo ao final.
O filme, esteticamente, é muito bonito. A direção de arte elaborou um trabalho cuidadoso,
não só com os figurinos, que combinam com as personalidades de cada personagem, mas também com todo o cenário. O uso de carros antigos e da máquina de Coca-Cola, além de trazer uma estética retrô, faz um ótimo contraste com os carros atuais. Este contraste não é apenas visual, agregando à narrativa ao criar uma espécie de momento “expectativa e realidade” do personagem. Os carros antigos, bem mantidos e quase oníricos, representam a expectativa de Jean em relação ao novo país: uma terra bonita, bem mantida, onde teria mais oportunidades. Já os carros atuais representam a realidade, na qual ele mora num quarto mínimo no estacionamento que cuida, sozinho num país desconhecido e sem acesso à sua família.
A direção de fotografia, conduzida por Renato Ogata, trabalha muito bem com a dramaticidade das cenas. Com a ajuda da iluminação e de planos claustrofóbicos, ela adiciona morbidez e suspense, fazendo o espectador sentir que algo muito ruim pode acontecer. Isso fica claro nas cenas noturnas, em que o ambiente fica tão tenso que a obra parece um filme de terror, mesmo sendo uma fábula.
Uma característica marcante deste curta é sua capacidade de transmitir as sensações dos personagens para os espectadores. Em uma das situações, um cliente, interpretado por Aly Muritiba, quer que Jean quebre as regras de seu chefe. Os sons dos gritos e das batidas na porta ficam cada vez mais altos, provocando desconforto no espectador, assim como deixam Jean alterado.
Outro momento é a cena em que os alarmes dos carros disparam sozinhos, criando uma poluição sonora que se reflete na audiência, assim como no personagem.
Isso tudo pode ser atribuído ao caráter formalista do filme, manipulando imagens e sons conforme o que o personagem sente, e não necessariamente como ocorre na realidade. O curta também apresenta um caráter realista enquanto discurso, retratando os desafios enfrentados pelos imigrantes no dia a dia.
Apesar de bem produzido e tematicamente impactante, há dois pontos negativos. O primeiro
é a ausência de informação explícita sobre a origem haitiana de Jean, o que poderia enriquecer a narrativa. O segundo é que o nome do personagem só é mostrado nos créditos, uma escolha que poderia ter sido feita de forma mais sutil ao longo do filme.
Em resumo, O Estacionamento denuncia os desafios de um imigrante: estar em um lugar novo, não ser compreendido, não compreender, ter medo de ser enganado, de fazer algo errado e ser demitido ou deportado. Esse curta tem uma mensagem social muito forte, mostrando que a arte pode tanto divertir quanto informar.
MURITIBA, Aly. Ferrugem. Grafo Audiovisual, 2018.
Em 2018, o cineasta Aly Muritiba lançou “Ferrugem”, um filme paranaense que acompanha o drama na vida da adolescente Tati (Tiffany Dopke): alguém vazou seu vídeo íntimo com o ex-namorado para a escola inteira. A garota é ridicularizada e humilhada em sala de aula, não tem o amparo necessário de suas amigas, e muito menos de Renet (Giovanni De Lorenzi), garoto com quem estava iniciando um relacionamento. A situação leva Tati a roubar o revólver de seu pai e cometer suicídio em frente a uma câmera de segurança da escola.
O filme é dividido em duas partes que discutem o suicídio e a culpa, respectivamente. Funcionam como dois média-metragens que se interligam, mas tratam de um elemento central: a corrosão da inocência.
A primeira metade de “Ferrugem” trata do processo que levou Tati ao suicídio. É filmada com cores sóbrias e frias, que refletem o estado mental da protagonista após a publicação do vídeo. O diretor também usa planos que a enquadram sozinha, isolada, e planos-detalhe que revelam sua inquietação e tristeza.
Muritiba utiliza elementos visuais para implicar sentido na imagem. O filme é muito sutil com as palavras, mas intenso imageticamente. Uma das cenas que exemplificam o uso de linguagem semiótica para contar a história é a que Tati
confronta seu ex-namorado Nando (Gustavo Piaskoski) sobre o vídeo íntimo. Assim como Martin Scorsese fez em “Os Infiltrados” (2006), Aly Muritiba usa símbolos com a letra X para selar o destino de seus personagens.
Visto através de uma porta de vidro com um X na frente do rosto de cada um dos personagens, o ex-casal lamenta o vazamento. Tati é totalmente humilhada, enquanto Nando lida apenas com piadas sobre seu órgão genital. Em um lapso abusivo, ele tira proveito da situação e tenta forçar um beijo. Tati recua. Nando deixa o ambiente e empurra a porta, deixando o X em frente ao rosto de Tati. A estética ajuda a selar o destino de Tati. A protagonista está sozinha, com a intimidade violada, julgada e humilhada; tem a vida social assassinada antes mesmo de sua morte.
O principal problema da primeira parte do longa é que o desespero de Tati, apesar de absolutamente compreensível, não é mostrado ao ponto de entendermos completamente seu ato. O senso de abandono é plenamente presente, visto que a garota não tem o apoio necessário de suas amigas e nem de Renet, mas o filme resume o estado de total desespero de Tati a uma cena monótona, em que ela fuma um cigarro na varanda de sua casa e vê seu vídeo em um site pornográfico.
Em 2017, a Netflix lançou a série “13 Reasons Why”, baseada no livro homônimo de Jay Asher. A série conta a história de Clay (Dylan Minnette), estudante do ensino médio que se envolveu com sua colega Hannah (Katherine Langford),
que se suicidou e deixou treze fitas explicando os motivos que a levaram a tal. A série foi criticada por negar o protagonismo a Hannah e entregá-lo a Clay, e por uma suposta irresponsabilidade ao tratar do suicídio de uma forma explícita, que chegava a romantizá-lo.
O filme de Muritiba repete o mesmo erro de “13 Reasons Why” ao dar mais importância a um personagem masculino do que à vítima em sitanto que a segunda parte do filme é mais longa do que a primeira.
Ela trata dos acontecimentos que sucedem o suicídio de Tati - desta vez, sob o ponto de vista de Renet. A culpa é a principal força motriz da metade final de “Ferrugem”. Assim como no nome, o filme passa a ter aparência degradante e a deixar um gosto metálico na boca de quem vê.
Aqui, Tati serve apenas de metal de sacrifício para Renet, lingote adicionado ao ferro para enferrujar em seu lugar. Ela é descartada por Muritiba em prol do protagonismo do jovem que vive em intensa culpa por ter publicado o vídeo íntimo de sua amiga.
A história de Renet está permeada pelo embate de seus genitores. Ele é apenas um peão, manipulado pelo pai (Enrique Díaz) a ficar em silêncio sobre a situação que o envolve no suicídio de Tati. Distante de Curitiba, local do suicídio, a família de Renet busca refúgio mental no litoral. O local é degradado pela maresia, os cenários são solitários. Muritiba retrata o litoral de forma sóbria, deixando a imagem lavada de
sépia, um contraste com as primeiras cenas do filme, em tons metálicos límpidos.
A sujeira na imagem é a mesma da consciência do protagonista, que, a desgosto do pai, é levado pela mãe (Clarissa Kiste) para prestar depoimento à polícia. Na segunda metade, o filme é movido pelo sentimento de culpa, mas ele não transborda através de emoções externadas, mas por meio de uma cinematografia precisa. As performances dos atores não transmitem emoção, cabe à linguagem do diretor preencher essa lacuna. É um filme monótono, mas talvez esta tenha sido a intenção de Muritiba, todas as cenas são alongadas em planos contemplativos.
O filme culmina na confissão de Renet à mãe de Tati. O personagem admite ter vazado o vídeo da colega e ser culpado de sua morte. É uma cena que representa o fim da infância de Renet, mas não o consagra como herói, pois até sua coragem de assumir o crime é egoísta.
“Ferrugem” retrata belissimamente a adolescência, a vinda da idade de Renet em contraponto à vida interrompida de Tati. É um filme sóbrio, com performances pouco expressivas, mas que compensa isso com uma cinematografia que usa a semiótica da imagem para contar a história. A beleza de “Ferrugem” está em sua forma, não tanto nos conteúdos vazios de suas cenas contemplativas. A priori, Aly Muritiba representa um novo cinema paranaense, que não tem medo de discutir os problemas escondidos e estancados na vida moderna.
COCO PRODUÇÕES. Além de Tudo, Ela. Produção independente, 2020.
Enedina superou barreiras sociais, econômicas e culturais, sendo protagonista na construção de grandes obras paranaenses. Participou ativamente de projetos e construções de grupos escolares, como o Colégio Estadual do Paraná (CEP) e a Casa do Estudante Universitário (CEU), e esteve à frente da construção da Usina Capivari-Cachoeira, com um túnel escavado no granito maciço da Serra do Mar, considerada seu maior feito de engenharia.
É com o texto em tributo à primeira mulher a se formar em engenharia no estado do Paraná e a primeira engenheira preta do Brasil que o curta-metragem documentário Além de Tudo, Ela se encerra. Lançada em 2020, a obra foi realizada pela Coco Produções, produtora formada por estudantes de cinema da UNESPAR - FAP (Universidade Estadual do Paraná) Campus Curitiba II (Faculdade de Artes do Paraná).
Em uma linguagem técnica bastante simples, se estruturando em uma montagem linear, Além de Tudo, Ela, conta em seus 10 minutos de duração, um breve resumo sobre quem foi a pioneira preta nos estudos da engenharia civil do Brasil.
Tem como base as pesquisas realizadas por Sandro Luis Fernandes, pesquisador e historiador focado em Enedina e sua trajetória.
O curta-metragem, apesar de contar a magnífica história de Dininha (como era chamada pelos seus queridos), poderia adotar um jeito
mais aprofundado de contar a história de Alves Marques. Afinal, esta é, sem dúvidas, um ícone para a comunidade preta do Brasil e do Paraná. Quando natural no sul, a trajetória da engenheira se torna ainda mais notável levando em consideração o histórico de apagamento da comunidade negra nos estados do sul.
Além de Tudo, Ela começa do começo. Passa brevemente pela infância de Enedina, nascida na atual Rua Brigadeiro Franco e filha de doméstica. A engenheira não chegou a conhecer o pai, pois este veio a falecer nos seus primeiros anos de vida.
A mãe de Alves Marques, chamada na obra de “Dona Duca”, prestava seus serviços para a família Domingues Nascimento. Foi neste ambiente em que Enedina, ainda na infância, teve acesso a escolas de estudos privados por meio do auxílio da família Domingues Nascimento. Após concluir a escola, a menina seguiu o caminho padrão para a maioria das mulheres que chegavam a tal grau de escolaridade na época, tornando-se professora. Com o salário que ganhava lecionando, decidiu ingressar nos estudos superiores de Engenharia Civil, espaço ao qual não era normalmente ocupado por mulheres, muito menos por mulheres pretas.
Em sua trajetória acadêmica, Enedina recebeu ajuda de seu colega de classe Joto Caron, quando a família deste acolheu Alves Marques para que a estudante pudesse ficar mais perto da faculdade. Sua casa ficava a uma longa distância de lá.
O curta, assim como sua estrutura, passa muito brevemente pelos feitos profissionais de Enedi-
na, que aparecem apenas no final, com a citação da homenagem da engenharia no campus Jardim das Américas da UFPR.
Na parte final, o questionamento que também é colocado em pauta por Sandro Luis Fernandes é da morte de Enedina, que foi achada em seu apartamento, e divulgada pela mídia sensacionalista da época. As fotografias registradas do local são bastante perturbadoras em relação à falta de respeito à falecida, e ainda pior quando notamos o racismo que um corpo preto tem de aguentar até após sua morte.
É possível notar também, em sentidos mais aprofundados em uma análise do resumo apresentado na obra Além de Tudo, Ela, o chamado embranquecimento emocional que ocorreu na jornada, aparentemente, bastante solitária da engenheira.
É necessário, porém, entendermos em primeiro lugar o que é o embranquecimento emocional, termo bastante conhecido dentro da comunidade preta, e que soa bastante complexo quando colocado em discussões não racionalizadas.
Embranquecimento emocional é um processo violento, que acontece principalmente em corpos e mentes pretas ao ocuparem lugares majoritariamente brancos, e assim, distanciados de sua comunidade e de outros companheiros que compreendam sua vivência enquanto indivídu-
os racionalizados. Esta pessoa acaba apagando sua negritude para não “incomodar” o ambiente branco.
O processo acontece de maneira quase involuntária e bastante lenta; apesar de começar em um único âmbito da vida, se alastra para outros, como afeto, amizade e rotina.
É possível notar este processo quando a sobrinha de Joto Caron, de família branca, diz que a madrinha Enedina era uma imagem de afeto e muito carinho para ela. Entretanto, a sobrinha de Alves Marques diz não ter tido muito contato com a tia, afirmando que esta ocupava um espaço de exemplo para as gerações seguintes de sua família.
Por fim, é possível concluir que Além de Tudo, Ela, apesar de ser uma produção de notável esforço e dedicação, contempla o recorte de uma obra maior, como se tivesse mais o que dizer além do que é dito no seu produto final.
Assim, Enedina Alves Marques, que escavou granito maciço na Serra do Mar ao viver sua história magnífica, representa a ocupação de espaços de pioneirismo para a negritude. Enedina faleceu sozinha em casa, aos 68 anos, onde seu corpo preto foi violado pela mídia tão acostumada a abusar do sofrimento de uma comunidade subalterna socialmente.
HAUSER, Murilo (dir.). Meu Medo. Animação. Brasil, 2010.
“Meu Medo” é um curta-metragem de animação dirigido pelo roteirista, produtor e diretor curitibano Murilo Hauser. O artista fez parte de produções como o longa-metragem “A Vida Invisível”, filme escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar em 2020. Seus curtas de animação “Silêncio e Sombras” (2008) e “Meu Medo” (2010) receberam juntos mais de 30 prêmios em festivais ao redor do mundo.
O filme é ambientado em uma casa praticamente abandonada no centro de uma grande cidade. Nessa casa, mora somente um garotinho que enfrenta seu maior medo: os barulhos da cidade grande.
Apesar da premissa do filme parecer inofensiva, a produção consegue aprofundar muito bem a temática do medo e criar várias camadas, deixando em aberto diferentes interpretações para o público: o menino pode morar na casa mal assombrada da avó; pode morar em uma invasão, e na verdade está com medo da polícia, ou de desconhecidos; pode estar se mudando de uma velha casa, ou se mudando para uma casa velha, por isso está com medo de sua nova vizinhança...
O que não sabemos é se tudo isso é real ou só está na cabeça da criança. A narrativa resulta em um ciclo de questionamentos preconceituosos
sobre a mentalidade infantil, que inventa coisas, distorce a realidade e é tola; pois se for real, toda a razão irá para um menino de poucos anos de vida. O curta mostra um lado obscuro da mente do menino em relação às coisas simples do cotidiano de uma pessoa mais velha, retratando de uma forma extremamente respeitosa a visão infantil sobre a vida adulta e quebra a constante percepção errônea de que os medos de uma criança são ingênuos e bobos.
Intimista, Hauser soube muito bem mostrar a subjetividade da mente infantil, se inspirando em experiências pessoais, o medo é mostrado de forma como se já fosse conhecido há muito tempo pela criança, mas justamente pela sua condição etária, o menino não enfrenta e nem foge. Sozinho, ele se esconde e tenta esquecer que o motivo de seu pânico existe, e está ao seu lado. Em uma sociedade em que crianças são vistas como seres alegres, e muitas vezes tolas, o curta vem para quebrar com essa forma de pensamento, mostrando o que a maioria não mostra: traumas sendo criados.
Com o tema principal do filme sendo o medo, Murilo Hauser traz muito bem a questão das reações de uma pessoa ao ter esse sentimento, trazendo um nível de identificação muito forte para o espectador. São presentes alguns momentos marcantes relacionados a essas reações, como quando o garoto tenta abafar os barulhos com sons ainda mais altos: ligando a televisão para se distrair, as teclas do piano sendo pres-
sionadas aleatoriamente e o som estridente do trenzinho de brinquedo. Essas reações servem para blindar o sentimento de medo em situações de perigo, mesmo que não sejam eficazes, trazem conforto, algo que todos nós passamos, e que é usado como instrumento de conexão entre o filme e o espectador.
A arte do filme consegue retratar com maestria a questão do abandono, solidão e medo através de tons frios e nada chamativos na paleta de cores. Os objetos envelhecidos largados pela casa, falta de mobílias, e as que estão presentes, se apresentam descascadas, sujas e com rachaduras, conversando bastante com o aspecto das paredes. Com todas essas características, é possível entender nos primeiros segundos do curta a essência da história: fofa (personagem principal com a cabeça redonda e desproporcionalmente maior que o corpo, técnica muito utilizada no mundo da animação), depressiva e sombria.
A direção de arte conversa muito com a direção de fotografia, realizada pelo próprio diretor. Na sala, ambiente de maior presença na animação,
a principal fonte de luz é a solar, que entra pela pequena janela, e tem um segundo ponto diegético de apoio com uso de abajur, o que deixa o ambiente escuro e acaba representando uma narrativa familiar de abandono. Ali, o espectador mergulha tanto na história, que consegue se sentir parte dela. Isso possibilita que a audiência sinta uma empatia enorme por um garoto feito somente por gráficos de computador. Outro ponto relevante na fotografia do filme é o uso de planos que não são estabilizados, mais conhecidos como “câmera na mão”, que proporcionam tensão ao público com a sensação de que aquilo seria o ponto de vista de uma segunda personagem escondida no ambiente.
O uso do silêncio no filme é um de seus pontos fortes. Sem falas, somente com efeitos sonoros, foi possível construir uma história em que tudo o que se passa nas cenas, na mente do menino e no mundo em que é narrado, são completamente entendíveis para o público. Talvez se tivessem falas, o retrato da solidão, medo, ansiedade, vulnerabilidade e infantilidade não seria tão eficaz.
JOHANN, Ana (dir.). A Mesma Parte de um Homem. Drama. Brasil, 2021.
Uma mata densa. É possível ouvir o som de passos, das árvores e de animais. A imagem, então, mostra duas pessoas caçando com seus cachorros. Elas matam um javali e voltam para casa. A mãe, enojada, rejeita a caça. A filha está machucada. E o pai não parece se importar com nenhuma das duas. Assim se inicia o filme “A Mesma Parte de um Homem”, primeiro longa-metragem de Ana Johann, em que, já em seus primeiros minutos, é possível não apenas compreender a dinâmica da casa, de uma família humilde e isolada do interior, mas também, o medo e a forma como essas mulheres foram ensinadas a sobreviver. Bastante inspirado em experiências e memórias da própria diretora, a qual também viveu parte da sua vida em uma comunidade rural, bem como a sua vivência como mulher em uma sociedade machista e patriarcal - algo que será explorado, inclusive, com outras facetas ao longo do filme.
Logo em seguida, o pai falece devido a um acidente, o que, como de se esperar, desola a esposa Renata (Clarissa Kiste). O fato, porém, não afeta negativamente a filha Luana (Laís Cristina), que parece até comemorar a sua morte - quase como se estivesse desejando tal feito. Contudo,
agora sem um homem para ampará-las, o medo já bastante presente, sobretudo, de Renata, fica ainda mais intenso, com ela as trancando dentro de casa sempre que possível, isolando-se ainda mais do mundo, onde tudo é uma ameaça.
A sonoplastia ressalta o som dos pássaros e do latido do cachorro, vinculada a uma fotografia escura e quase claustrofóbica, como se fechasse as personagens no quadro, fortalecendo a sensação de suspense, fazendo com que o espectador também se sinta preso e ameaçado por todo e qualquer barulho. No entanto, tais medos e inseguranças precisam ser enfrentados no momento em que um estranho aparece desorientado em frente à porta, fazendo-as reagir. Todavia, depois de não identificarem um real perigo nele, acolhem-no para dentro de casa, e, ao perceber sua falta de memória, decidem incluí-lo em sua família, como se ele fosse um pai perdido retornando ao lar.
A partir disso, vemos toda a dinâmica da casa se reestruturar. A mãe, anteriormente submissa e dominada, agora toma a posição de poder e comando da casa, controlando as memórias do “marido” Luís (Irandhir Santos) e contendo suas tentativas de escapar daquela realidade criada. A filha, sem mais seu pai opressor, agora possui a liberdade para ser uma adolescente rebelde que escolhe o que vai comer e fazer.
Por mais infeliz que seja a narrativa “um oprimido que se torna um opressor”, do ponto de vista moral e ético, são bastante visíveis os motivos e intenções de Renata e Luana para com Luís. Com um homem na casa, mesmo que como um fantoche, elas estão protegidas e não precisam mais trancar todas as janelas. Com um homem na casa, principalmente, um homem mais sensível e interessado na família, quando comparado ao verdadeiro pai, Renata se sente desejada, amada, como se suas palavras enfim tivessem um real valor. Com um homem na casa, Luana pode se preocupar em apenas crescer e se conhecer, sem precisar se envolver tanto na manutenção do sítio com sua mãe.
Dessa forma, para elas, tudo parece estar equilibrado, como uma família feliz, com suas necessidades sendo atendidas e seus papéis sociais sendo cumpridos. Tais elementos são possíveis de serem localizados também na fotografia, agora com planos mais abertos e em conjunto, bem como cores mais fortes e claras. Porém, com o passar do tempo, essa não parece ser mais algo verdadeiro para Luís.
Como se a narrativa voltasse para a realidade, Luís começa a perceber que não se encaixa tão bem naquele lugar, como se nunca realmente estivesse ali. Sem um passado, um presente confuso e um futuro totalmente incerto. Nesse momento, o filme parece ficar um pouco desalinhado, com cenas que, apesar de fazerem um
certo sentido, pensando no desenvolvimento do personagem e de sua mudança perante a realidade, também causam a impressão de serem meio soltas a fim de representar a desconexão de Luís com aquela realidade. Os comportamentos ficam sem uma origem muito clara com o andamento da história, com os personagens tendo “surtos” sem muitas motivações. Contudo, muitos acontecimentos do filme parecem não possuir grandes princípios ou explicações, algo que pode muito bem ter sido proposital da diretora, manipulando papeis e construções de gênero, produzindo personagens que realmente se tornam indivíduos que contemplam a própria existência, seja ela na dor, no medo, na alegria ou na raiva.
Com as tensões familiares e inseguranças voltando à tona, Renata retorna para um estado instável e inconsistente, agora tendo que lidar com um homem que, na realidade, ela não verdadeiramente conhece, alguém que não a vê mais como igual. Assim, novamente em uma sequência de cenas confusas e com discussões que parecem surgir do nada, Renata restabelece suas forças e se impõe perante Luís, confrontando-o e, aparentemente, enfim, cortando pela raiz e determinando um fim a todo um ciclo de abuso e controle, tanto dela, mas principalmente, do sistema patriarcal em que foram expostas. Libertando-as assim e finalizando com um final feliz um tanto quanto vazio e sem grandes emoções ou desenvolvimentos.
WALTRICK, Rafael (criador); PASKO, Guto e KALÁBOA, Andréia (dir. geral); VERDOIA, Franco (co-dir.). Contracapa. Série. Brasil, 2017.
Contracapa é uma série paranaense criada por Rafael Waltrick que discute sobre o meio jornalístico e seus problemas como corrupção, desvalorização do trabalho do jornalista e parcerias com pessoas de poder, entre outras. É uma produção da GP7 Cinema, com direção geral de Guto Pasko e Andréia Kaláboa e co-direção de Franco Verdoia, filmada em Curitiba com um elenco e equipe de paranaenses por completo. O seriado retrata situações da vida real de um jornalista investigativo, inspirado nas vivências de Waltrick durante o período em que trabalhou na Gazeta do Povo, um jornal notoriamente de direita de origem curitibana.
O episódio piloto é responsável por realizar uma apresentação dos personagens e da dinâmica da redação da conservadora Gazeta Brasileira, um jornal fictício na cidade de Curitiba. A equipe de jornalistas é composta por membros com personalidade forte e de grande paixão pela profissão, mas que muitas vezes precisam se curvar aos interesses financeiros do jornal e beneficiar pessoas de poder, no caso do piloto, o candidato a governador Otaviano. Isso fica mais explícito quando o político é fotografado ao conversar com prostitutas travestis, situação que se torna notícia viral, mas a escolha do editor-chefe da Gazeta tende a ser não publicar sobre o acontecimento. Os conflitos em relação ao candidato se revelam aos poucos, o que empolga o telespectador para descobrir os mistérios junto dos
personagens, e entender seus conflitos internos - evidência de um ótimo trabalho do roteirista. No entanto, o ritmo do episódio se perde, por questões que poderiam ser resolvidas na montagem, como as reações estendidas dos personagens e cenas de mise en scene redundantes.
O piloto é apenas a ponta do iceberg de um assunto que será tratado ao longo da temporada: a crise na credibilidade dos jornalistas. Já em 2017, ano de produção da série, vemos o início de uma característica do jornalismo brasileiro que no contexto atual de 2022 foi algo decisivo na condução das eleições, com o crescimento de matérias tendenciosas que favorecem políticos específicos, assim como jornais que se aliam a um lado - direita ou esquerda. Esse fator chegou a um nível tão extremo que isolou a população em dois grupos, selecionando as informações que serão relatadas e criando uma rede de conhecimento diferente para cada. O episódio é uma introdução a esse problema e explica muito bem como ele se desenvolve em um contexto realista, além de ser uma comprovação de que é um contratempo real e possível, sim, mesmo que alguns duvidem.
A divisão entre jornais de esquerda e direita e o ataque e perseguição aos jornalistas de lados opostos já fazem parte do nosso dia a dia e não são mais disfarçados, como acontece no enredo da série. Isso se tornou um problema grave e transformou o trabalho em perigoso. Temos liberdade de expressão, mas com risco de retaliação a todo momento. Além disso, existe um questionamento por parte da população em relação às notícias, desacreditando os fatos e informações, criando espaço para “fake news” e
nos distanciando de um jornalismo baseado em pesquisa e comprovação, como o próprio personagem Guimarães (Zeca Cenovicz), editor do jornal, defende. Contracapa mostra apenas o começo da dificuldade que se tornaria o trabalho do jornalista.
O seriado retrataria essa problemática perfeitamente se não fosse pelo impasse em relação ao ritmo das cenas. Os atores brilham na tela, inclusive o elenco de apoio, ao entregar performances naturalistas (como o estilo da série pede), uma dificuldade em outras produções diante da tradição teatral curitibana, porém as cenas acabam se estendendo demais e os cortes não acontecem conforme a atuação do elenco pede. Além disso, não são removidas pausas não-orgânicas, o que acaba deixando certos planos redundantes e prejudica-se, mesmo que minimamente, a performance dos atores. A montagem pode ser um parceiro de cena do ator e isso pode ser melhor
trabalhado nos episódios seguintes ou em uma possível segunda temporada, mas ainda não acontece, transformando alguns momentos em bobos e nos distanciando dos personagens.
O episódio piloto da série Contracapa é instigante e tecnicamente de qualidade, além disso abre caminho para muitas temáticas relevantes serem tratadas ao longo da série. Melhorias podem ser feitas como em relação a montagem? É claro, mas nada que prejudique fortemente a experiência do telespectador, sendo uma ótima recomendação de série investigativa. O seriado também se revela um ótimo retrato da realidade do jornalismo atualmente, que se tornou muito controverso nos últimos anos devido a conflitante situação política brasileira. A série está disponível na Amazon Prime e, por enquanto, só tem uma temporadafica aqui nossa recomendação de uma ótima produção audiovisual paranaense.
BARONI, Gil (dir.). Alice Júnior. Drama. Brasil, 2019.
Alice Júnior conta a trajetória da personagem titular Alice (Anne Celestino), uma adolescente trans que faz vídeos para o YouTube, no período de mudança da cidade de Recife para Araucárias do Sul quando seu pai consegue um novo emprego, e seus dilemas adolescentes enquanto enfrenta uma nova escola conservadora. O diretor paranaense Gil Baroni ganhou destaque nacionalmente ao dirigir este longa, e relata que sua missão atual é dar voz a membros da comunidade LGBTQ+ através de suas obras. Nos primeiros segundos do filme, vemos a frase “Existem corpos que você nem imagina, mulheres com pau, homens com vagina”, já estabelecendo o tom transgressor e moderno da história.
A mudança drástica de cidade e consequentemente de vida abala a protagonista, que se vê em uma realidade completamente diferente quando chega em Araucárias, que tem apenas 50 mil habitantes (comparado aos mais de 1 milhão e meio de sua cidade natal). Logo no início vemos o preconceito da região, quando a moça da imobiliária que está mostrando a nova casa insiste em tratar Alice com pronomes masculinos, mesmo sendo corrigida pelo pai. A transfobia é
um elemento constante ao longo do filme, apresentando-se de forma tanto explícita, com insultos diretos e a negação da identidade da protagonista por outros personagens, quanto velada, como o personagem Bruno (Matheus Moura) dizer que quando viu Alice pela primeira vez, nem imaginou que ela era trans. Mesmo assim, a jovem não se deixa levar pelas adversidades, mantendo-se confiante de quem ela é e rapidamente se reconstruindo depois de cada dificuldade. O filme aborda vários assuntos relevantes da juventude e da experiência queer, e consegue não cair no clichê de concentrar-se apenas na dor, sofrimento e violência da realidade trans, como a grande maioria de filmes com o mesmo tema sempre escolhem focar. Esses elementos estão presentes na trama, mas servem como uma construção do ambiente hostil e circunstâncias prejudiciais que ela vive, e não como componente principal da narrativa. A própria Anne Celestino fala que “O Brasil é o país que mais mata pessoas trans: nossa expectativa de vida é de 35 anos. Isso faz com que os filmes que escancaram a violência sejam necessários. Mas também é importante mostrar que a vida trans não é feita apenas de absurdos, violências e tristezas.” Também podemos ver essa consideração no personagem do pai de Alice, Jean Genet (Emmanuel Rosset), que é muito protetor e está sempre disposto a defender veemente a filha. A escolha de fazer o pai ser mais um problema na vida dela seria fácil, pelo simples motivo de querer fazer
a personagem sofrer, mas seu papel como apoiador incondicional dela em meio à dificuldades é muito importante e proporciona um frescor à narrativa, tratado de forma natural e orgânica.
Um dos pontos fortes do longa é que mesmo sendo um filme adolescente estilo coming of age, que mostra aspectos joviais como amizade, amor e primeiras experiências escritas de forma realista, fluídas e bagunçadas, a obra não foge de abordar assuntos mais significativos de forma sensível.
A linguagem é dinâmica, com o uso abundante de gírias regionais adolescentes e da comunidade. Ainda que às vezes seja evidente que o diálogo foi escrito por alguém mais velho que não usa essa linguagem frequentemente, a entrega das falas pelos atores é natural. O uso de recursos visuais para acentuar o aspecto contemporâneo da história, como efeitos de aplicativos e memes usados pela geração mais nova, poderia ter trazido uma essência espirituosa se não fosse usado em excesso, mais uma vez provando o desentendimento dos autores sobre expressões adolescentes. Mas enquanto o longa ocasionalmente erra em representar a realidade dos jovens, ele acerta em representar a comunidade LGBTQ+ com sua protagonista. Alice é uma personagem feminina forte e decidida, mas que também mostra-se sensível e realista nos momentos onde é necessário, proporcionando ao público uma
representatividade icônica e significativa para jovens LGBTQ+, ainda tão escassa na cultura pop atual.
Acima de tudo, Alice Júnior é um filme sobre amor, em todas as suas formas. Familiar, na relação da personagem principal e seu pai, de amizade, com as inúmeras relações formadas entre os adolescentes ao longo da trama, romântico, com Alice e seus vários crushes (os previsíveis e os inesperados), e também, o mais importante, o amor ao próximo. Ao outro, independente da relação com ele. Já no fim do filme, surge o ingrediente indispensável de um filme estilo Sessão da Tarde com a temática do feminino adolescente: a sororidade. Em uma cena, dois colegas de classe arrancam forçadamente a parte de cima do biquíni de Alice e ela cai na piscina. Em retribuição, todas as meninas presentes tiram seus tops também e se juntam a ela na água. Isso desencadeia uma espécie de revolução no colégio, com as alunas substituindo a placa do banheiro feminino (local que Alice foi previamente reprimida por tentar usar) com uma que dizia “Banheiro Feminista”. Enquanto muitos podem dizer que esse companheirismo abrupto é apenas uma reprodução de uma teoria do feminismo liberal há muito tempo desatualizada, nós preferimos encarar ele como uma representação da esperança, e da crença na possibilidade de um mundo menos preconceituoso e mais compreensivo.
CARMINATTI, Beto; MEREGE, Pedro (dir.). Mysterios. Suspense. Brasil, 2008.
Apalavra mistério é facilmente relacionada a uma perspectiva de suspense, algo que apresenta o novo de forma enigmática, como algo a ser desvendado. O filme “Mysterios”, de Beto Carminatti e Pedro Merege, tem em sua essência esse suspense, mas revela muito mais excentricidade e reflexão.
O filme foi rodado entre os anos de 2006 e 2007 e lançado em 2008. É criado em uma sobreposição de imagens com uma influência bastante expressionista em sua essência, pois parece tentar expressar alguma subjetividade dos seus realizadores na construção de sua narrativa. A obra combina, com muito equilíbrio e ironia, aspectos teatrais, ficção cinematográfica e cinema de gênero. Desde Sylvio Back nos anos 70, o cinema paranaense busca traduzir obras literárias em produções cinematográficas, como em seu longa-metragem “A Guerra dos Pelados”, baseado no romance “Geração do Deserto”. A tradição continua com Rui Vezzaro, Estevan Silveira e chega em Beto Carminatti, considerado um dos maiores adaptadores literários do Estado. Outro aspecto do filme que é bastante pontual é a relação entre a literatura e o cinema, muito bem representados em questão. Beto assim o faz com “Mysterios”, baseando sua obra em quatro contos do escritor radicado em Curitiba Valêncio Xavier.
Xavier faleceu no ano de lançamento desse filme, que foi feito como uma forma de homenagear seu legado na literatura e no cinema curitibano, visto que ele tem vasta contribuição em ambas as
linguagens, e é uma figura intelectual muito importante para a cidade e o estado do Paraná. O personagem principal, que narra e amarra o sentido da história presente em “Mysterios”, não coincidentemente se chama VX, é interpretado por Carlos Cereza. A narração do conto “O Mistério da Porta Aberta” funciona no enredo como um convite para desvendar o que há atrás da porta, que o filme irá mostrar ilustrando esses contos. Esse texto também amarra as outras histórias escritas por Valêncio em algo único, que se estabelecem nesse filme com um clima soturno e misterioso que é ambientado na cidade de Curitiba. Os outros contos da história do filme são “Mistério no Trem Fantasma”, “O Mistério Sapho: O Amor entre as Mulheres” e “O Mistério Números”. O personagem VX narra e está inserido a essas histórias enquanto caminha pela cidade de Curitiba durante a noite e se encontra com figuras sobrenaturais que trazem ao filme uma excentricidade muito próxima da que o escritor Valêncio Xavier expressava em sua obra.
No filme, conhecemos a história de um casal que vai passear em um trem fantasma e a moça acaba sumindo dentro do brinquedo do parque de diversões, e o início da investigação dessa, que mostra que esse casal acabava de se conhecer. Essa parte se passa na década de 60 e o VX aparece na imagem como um vulto que viaja no tempo.
Muito além do esperado, a obra de Carminatti aborda aspectos específicos e cruciais que ultrapassam a simples história de um suspense fantástico sobre o sumiço de uma moça no Passeio Público de Curitiba. Com críticas dentro da narração acerca do próprio jornalismo e da cobertura feita em cima do caso de sumiço, o di-
retor consegue ambientar a problemática juntamente com pontos cruciais acerca da literatura e da representação do real. Beto ambienta a cidade de Curitiba e também levanta pontos acerca das produções cinematográficas como um todo, principalmente quando combinadas com produções literárias.
Assim como esse filme se baseia na literatura, a obra de Valêncio se esbarra com o cinema por diversas vezes. O escritor abusava da imagem, mas não apenas como ilustração literal do que ele escrevia, mas como uma parte fundamental na construção da escrita em um processo experimental da linguagem. Durante o filme, na parte em que ele ilustra o conto “O Mistério Sapho: O Amor entre as Mulheres”, o personagem principal dialoga com a câmera, contando sobre a descoberta de oito latas de filmes de uma produção do início do século 20, que mostra o amor entre mulheres, de uma forma bastante fetichizada. VX fica inquieto quanto a essa produção e sobre as motivações da realização desse registro. Seus devaneios sobre o pintor Crispin Carmoro, que fez esses vestígios de uma película encontrada, são ilustrados por imagens que retratam a própria imaginação do personagem e o pintor, que também é diretor de cinema, é interpretado por um dos diretores de “Mysterios”, Beto Carminatti. Talvez essa seja mais uma influência da experimentação do escritor Valêncio Xavier construindo essa narrativa.
O filme também conta com VX encontrando um mágico misterioso, um homem cego que faz falas proféticas e, apesar do clima de suspense do filme, ele não pertence a esse gênero cinematográfico. O grande mistério que podemos enxergar no filme é o da curiosidade e da experimentação. É enfrentar o desconhecido atrás da porta e não estranhar e rejeitar, mas adentrar e se inquietar com as várias possibilidades que o cinema e a literatura podem oferecer.
As construções de cena combinam aspectos ficcionais fantásticos com fragmentos do real, como a participação do próprio diretor Beto Carminatti. A obra como um todo mescla estilos narrativos, ambienta Curitiba e o cenário cinematográfico local enquanto elucida possíveis epifanias do personagem-narrador, de forma fluída e hipnótica, referenciando com força o escritor Valêncio Xavier.
Como mencionado anteriormente, as relações cinematográficas e literárias estão ligadas e dependem uma da outra até certo ponto. Nesse sentido, a obra de Carminatti combina os dois aspectos, entregando uma obra ficcional que se atenta a questionar e, ao mesmo tempo, representar o real. Como resultado final, “Mysterios” se apresenta como uma obra interessante e única para o cinema paranaense e brasileiro.