Olhares Políticos - Volume 4

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ORGANIZADORES

Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo

Profª. Drª. Suyanne Tolentino de Souza

VOLUME 4

ORGANIZADORES

Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo

Profª. Drª. Suyanne Tolentino de Souza

UMA ANTOLOGIA

VOLUME 4

©2025, Paulo Roberto Ferreira de Camargo, Suyanne Tolentino de Souza 2025, Pulp Edições.

Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora.

Projeto Interdisciplinar dos Cursos de Jornalismo, Design Gráfico e Letras das Escolas de Belas Artes e de Educação e Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR

Reitor: Ir. Rogério Renato Mateucci

Vice-Reitor: Vidal Martins

Pró-Reitor de Desenvolvimento Educacional: Ericson Savio Falabretti

Decana da Escola de Belas Artes: Angela Leitão

Decano da Escola de Educação e Humanidades: Cesar Candiotto

Conselho Editorial - Graduação em Jornalismo

Prof. Dr. Daniel Pala Abeche

Prof.ª Ms. Fernanda Brandalise Bogoni

Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo

Prof. Ms. Rafael de Oliveira Andrade

Prof. Dr. Renan Colombo

Prof. Dr. Rodolfo Stancki Silva

Prof.ª Dr.ª Suyanne Tolentino de Souza

Coordenação de preparação de texto e revisão

Prof.ª Dr.ª Rosane de Mello Santo Nicola

Equipe de revisores

Carlos Eduardo da Silva Melo

Katleen Hack da Silva

Larissa da Silva Duarte

Leonardo Kominek Barrentin

Maria Eduarda Boruszewski

Maria Eduarda Corral Santana

Mateus Henrique Bini

Mylena Bortolan Daldin

Nicole Nascimento Gomes Santos

Pulp Edições

Edição: Prof.ª Dr.ª Rosane de Mello Santo Nicola

Edição de arte: Maria Laura de Paula Stolle

Capa: Maria Laura de Paula Stolle

Coordenação de projeto gráfico: Paulo D’Assumpção Zaniol

Projeto gráfico: Maria Laura de Paula Stolle

Coordenação de diagramação: Rafael de Oliveira Andrade

Diagramação: Maria Laura de Paula Stolle

DADOS DA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ SISTEMA INTEGRADO DE BIBLIOTECAS – SIBI/PUCPR - BIBLIOTECA CENTRAL

LUCI EDUARDA WIELGANCZUK – CRB 9/1118

O45 2025

Olhares políticos : uma antologia / organizadores: Suyanne Tolentino de Souza, Paulo Camargo. – 2025.

184 p. : il. ; 23 cm. – Coleção Uma antologia

ISBN: 978-85-63144-65-2

1. Jornalismo. 2. Literatura. 3. Jornalismo e literatura. 4. Jornalismo - Aspectos

políticos. I. Souza, Suyanne Tolentino de. II. Camargo, Paulo.

CDD 20. Ed. – 070.4

ORGANIZADORES

Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo

Profª. Drª. Suyanne Tolentino de Souza

UMA ANTOLOGIA

VOLUME 4

APRESENTAÇÃO

... 12

PREFÁCIO ... 14

1. CAMPANHA NAS RUAS

A batalha da Rua XV ou pequenas violências na guerra fria do povo brasileiro ... 19

Ivan Cintra

A duas quadras: entre o racional e o irracional ... 25

Ana Rossini

Nem todo verde é amarelo ... 29

João Américo

Agora é só um carro vermelho ... 33

Júlia Vitória Sobkowiac

Com a palavra ... 37

Juliana Boff

Passado presente ... 41

Lívia Berbel de Sousa Santana

Política, ideologia e religião ... 45

Luís Gustavo Schuh Bo- catios

Amigos, amigos, política à parte ... 49

Mariana Gomes

Xô, propaganda política ... 53

Tayná Luyse Cordeiro da Silva

2. PERFIS

Até a última instância ...63

Ana Rossini

Renato Freitas precisa de um descanso ...69

Ivan Cintra

Os girassóis também florescem na primavera ...77

Julia Almeida Moreira

Uma folha qualquer ...83

Lívia Berbel de Sousa Santana

Ser Imparável ...89

Lorena Motter

A presidente do clubinho do bairro ...95

Maria Fernanda Vieira Dalitz

Do protesto à câmara ...101

Mariana Trevisol Bridi

A jornada que mudou tudo e o ...107

presente que não muda nada

Tayná Luyse Cordeiro da Silva

Em meio à fé ...113

Thaynara Goes

Tempestade de areias e ideias ...117

3. GONZO

Basta um clique ... 123

Annelise Mariano

Água verde (e amarela) ... 127

Isabela Lobianco

A cama ... 133

Ivan Cintra

A minha e a sua bandeira vermelha ... 139

Julia Almeida Moreira

O match da verdade ... 145

Lorena Motter

Corra para as colinas! ... 155

Luís Gustavo Schuh Bocatios

Prendam o leão ... 163

Maria Fernanda Vieira Dalitz

Sob pressão ... 171

Tayná Luyse Cordeiro da Silva

Arroz com Lula ... 177

Thaynara Goes

Um dia vermelho durante a primavera cinzenta ... 183

Valentina Nunes

Apresentação

Olhares Políticos: uma antologia dá continuidade a uma jornada

didática intensa e desafiadora, que teve início em 2019, dentro da disciplina de Jornalismo Literário, lecionada para os alunos do quarto período do curso de Jornalismo da PUCPR. Este novo volume marca o começo de um ciclo temático, com um foco mais especializado, em diálogo com diferentes áreas do jornalismo. A presente obra reúne as melhores reportagens criadas pelos estudantes durante o segundo semestre de 2022, em um momento crucial para o país, às vésperas das eleições gerais de 2022.

O principal desafio imposto aos alunos foi mais que o desenvolvimento de novas competências jornalísticas, como a observação apurada, a escuta ativa, a construção detalhada de personagens e a capacidade de elaborar pautas que transcendessem o factual. No contexto de uma intensa polarização política, os estudantes foram incentivados a mergulhar profundamente no processo eleitoral e em sua complexidade, retratando os diferentes aspectos desse período único.

Três ciclos de reportagens foram produzidos: “O mundo invisível”, “Perfil” e “Gonzo”. No primeiro, os alunos exercitaram a escuta e a observação ao cobrir a campanha eleitoral nas ruas. A tarefa era documentar, de maneira humana e atenta, momentos que capturassem as tensões e contradições do período eleitoral, criando um mosaico rico e diversificado sobre o clima que precedeu as eleições. A seção tem o título de “A campanha nas ruas”.

O segundo ciclo, intitulado “Perfil”, exigiu que os alunos mergulhassem no desenvolvimento de personagens, uma habilidade essencial do jornalismo literário. Por meio de entrevistas profundas com os perfilados e suas redes de convivência, os estudantes criaram retratos detalhados de figuras impactadas direta ou indiretamente pelas eleições, fossem eles e elas políticos ou cidadãos comuns.

Já no ciclo “Gonzo”, os estudantes se envolveram em experiências de imersão, tomando o papel de narradores-repórteres que vivem intensamente os eventos que cobrem. Esse estilo permitiu que os discentes se tornassem protagonistas de suas próprias histórias, oferecendo aos leitores uma perspectiva única e subjetiva, sempre mergulhados na atmosfera eleitoral, política em sua essência.

As reportagens passaram por uma rigorosa curadoria: um conselho editorial formado por professores do curso de Jornalismo da PUCPR selecionou as dez melhores em cada ciclo, após uma pré-seleção realizada por nós durante o processo de correção. O resultado é uma obra composta por 30 reportagens de grande fôlego, que atestam a criatividade, o talento e a dedicação de nossos alunos. Eles se lançaram ao campo com coragem e resiliência para capturar um dos momentos mais decisivos e significativos da história recente do Brasil.

Este livro é uma verdadeira celebração da aprendizagem interdisciplinar e da cooperação acadêmica. Este livro é um exemplo concreto da importância da aprendizagem colaborativa. A integração entre diferentes áreas do saber não só enriquece a obra, mas também prepara os estudantes para os desafios do mundo profissional, onde a capacidade de trabalhar em equipe e de dialogar com diversas perspectivas é fundamental.

Esperamos que esta obra inspire outros projetos colaborativos e que os leitores apreciem tanto quanto nós apreciamos a sua criação.

Boa leitura!

Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo

Profª Drª Suyanne Tolentino de Souza

Organizadores

Prefácio

O jornalismo do futuro não está inscrito no que passou nem no que é praticado atualmente. O jornalismo do futuro está nas universidades, no presente. É a experimentação, as tentativas e os resultados obtidos nas atividades em cursos de jornalismo de hoje que produzirão os jornalistas de amanhã. O livro Olhares Políticos é um exemplo de como o ensino profissional tem potencial para moldar a forma de se reportar e (re)contar histórias do cotidiano ao público geral.

Trinta anos atrás, nos cursos de jornalismo, o ensino de gonzo, new journalism, ou mesmo o campo específico do jornalismo literário eram periféricos. O foco estava na produção de jornais e revistas impressas e produtos audiovisuais que seguissem as regras fundamentais do então chamado “bom jornalismo”. Pirâmide invertida: a meta a ser alcançada. As passagens de reportagens em vídeo tinham que ser exaustivamente bem lapidadas. Reportagens em rádio, com textos ‘manchetados’ para dois apresentadores, eram o que importava. Estudante com mais chance de ser bom jornalista era o que se adequava às regras das redações que já existiam. Pois bem, aquele modelo se exauriu. Não por causa de seus próprios defeitos e limitações, mas em função das mudanças estruturais na forma de se comunicar da sociedade do século XXI. Muitas daquelas regras e normas deixaram de fazer sentido. É preciso encontrar um novo jornalismo e, em consequência, uma nova forma de ensinar o fazer jornalístico.

Este livro com reportagens dos estudantes de Jornalismo da PUCPR mostra que é possível praticar, em laboratório universitário, um jornalismo moderno. A atividade, coordenada pelos professores Suyanne Tolentino e Paulo Camargo, não é apenas um exemplo de ensino de jornalismo. Não está compartimentalizada. Tem a participação de estudantes e professores do curso de Letras, para a etapa de revisão, além de estudantes e professores do curso de Design, na etapa de diagramação gráfica. O resultado? O leitor poderá confirmar.

Nas reportagens e textos, os alunos exercitaram dois bens preciosos do bom jornalismo. O primeiro, em relação ao conteúdo: as histórias são sobre pessoas comuns e fatos cotidianos. É neles que o jornalismo se justifica de fato. O resto

OLHARES POLÍTICOS

é publicidade. As histórias e os personagens locais dão sobrevida ao jornalismo. Retratar o que há de inusitado no bairro ou na rua é o que transforma o jornalismo em universal, pois todos nós vivemos em um bairro e em uma rua. Nos interessamos por essas histórias.

Além disso, os textos também mostram a prática de outro bem fundamental do jornalismo moderno: a forma. Praticar gonzo jornalismo, com imersão nas pautas, tornar-se parte da história é uma ótima experiência para estudantes. Nem sempre os resultados são os esperados, pois a fronteira entre o que importa noticiar, a história, e quem a conta, o narrador, fica muito estreita. Mas, sem riscos não é possível avançar. O importante é que se o resultado for uma maneira mais livre para contar uma história, ainda que vivenciada pelo repórter, e isso atingir de forma mais profunda o leitor, o jornalismo terá cumprido sua função.

No caso deste livro, o ensino de jornalismo conseguiu alcançar seu objetivo, que é, de forma mais ou menos objetiva, com maior ou menor imersão do ‘contador da história’, a história contada predominou.

A batalha da Rua XV ou pequenas violências na guerra fria do povo brasileiro

Ivan Cintra Em Curitiba, é na Rua XV de Novembro que atrações de todas as eras lutam pela atenção do indivíduo contemporâneo. A estátua viva, tradição datada da Grécia Antiga, congela-se em busca de exaustivos trocados. A harpista, que remonta ao Antigo Egito, dedilha as cordas musicais e tenta vender o seu, muito mais moderno, CD independente. Bienalmente, uma nova entidade chega ao centro da cidade. Oriunda da Antiguidade Clássica, perpassou a Revolução Francesa e o iluminismo moderno, refinou-se no movimento sufragista e tornou-se o que hoje é denominada democracia. Nos meses de agosto e setembro, da Boca Maldita até a UFPR, barracas de diversos partidos se instalam no calçadão pleno de gente, propondo diálogo político e propaganda eleitoral. Na Rua XV de Novembro, as campanhas eleitorais de 2022 seguem a todo vapor.

Rasgou a cara de Lula

– Bolsonaro! Bolsonaro! – grita, soberba, a idosa.

Trajada com a bandeira brasileira, a senhora aparenta 65 anos. Seus cabelos, já grisalhos e ralos, estão amassados pelo chapéu verde-louro. No dourado do sol, sua camiseta amarela brilha enquanto a jaqueta verde-musgo abafa seu corpo esguio na manhã mais quente do inverno curitibano.

É um sábado ensolarado de agosto, dia 27, e a rua está abarrotada. Aproveitando a lotação, os candidatos a deputado federal e estadual, respectivamente, Lucas Siqueira e David Antunes (ambos do PSB), distribuem seus panfletos junto a voluntários e amigos da causa LGBTI.

– Demônios! – brada a idosa, enquanto toma da mão de um dos voluntários um panfleto com o rosto de Lula e Alckmin.

Faz de forma violenta, balbuciando ofensas. Seu semblante evidencia o ódio por aquelas figuras. Seus olhos miram o rosto estampado de Lula como se mirassem o mais sórdido dos demônios. Em um átimo furioso, despedaça-o, jogando os restos espicaçados de papel no rosto do panfleteiro.

– É maluca – diz Rodrigo Souza, pegando os papéis do chão jogando de volta na cara dela - É uma doida!

22. OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas

O demônio feminino da Babilônia

– Fora Bolsonaro! Fora Bolsonaro! – urra a moça exaltada, em frente de um mar de oposição.

Ela tomava um café em uma das padarias do Centro quando seus ouvidos notaram um rumor peculiar. O bruto som de motores e o cheiro de combustível queimado cresciam na região. Ela não fazia ideia, mas seu maior inimigo chegava à Rua XV em comboio extravagante. Na tarde do dia 31 de agosto, a estrondosa motociata de Bolsonaro já vira a esquina com a Alameda Dr. Muricy, rumo ao Palácio Avenida. Sozinha, ela larga seu café e corre em direção ao comício.

Centenas de apoiadores aguardam o presidente proferir seu discurso político para a Boca Maldita curitibana. O público, em maioria, traja o verde-amarelo da bandeira brasileira. Outros erguem a bandeira de Israel como se fosse a pátria-mãe. Todos saúdam Bolsonaro, que desce da moto para subir no palanque.

– Lula Presidente! Lula Presidente! – grita a mulher.

Lilith é seu nome, assim como era chamada a Demônio da Noite na antiga

Babilônia. Ela não só consegue arrancar olhares tortos e risadas da multidão, mas também arranca do calçadão algumas almas inconformistas. De pouco em pouco, um pequeno aglomerado se forma em seu entorno, alguns juntam-se a ela no coro, outros opõem-se e bradam ofensas. A movimentação chama a atenção da polícia, que corre para separar os grupos.

– Você é uma demônia! – bradeja uma senhora trajada com a camiseta da seleção brasileira – É isso que ela é, uma demônia!

O policial as separa, o embate continua apenas no campo das palavras.

Pequenas violências

Cenas assim se repetem pelo calçadão da XV. “Pequenas violências”, como nomeia Walter Maier, um senhor que vende bottons e toalhas junto à barraca do PT. “De vez em quando passa um cara xingando, outro gritando... Mas passam e vão embora, não é nada físico”, explicou. Walter segue vendendo seus produtos por diversos pontos da cidade e afirma não ter medo.

– Um senhor de terno, bem-vestido, veio me ameaçar. Disse que ia me tirar daqui, conta Gustavo Pontes, do comitê do PSOL.

– É claro que eu tenho medo, depois do que aconteceu em Foz do Iguaçu, não tem como não ter receio. Gustavo relembra o assassinato de Marcelo de Arruda, tesoureiro do PT, morto em sua própria festa de aniversário por um apoiador de Bolsonaro.

Na barraca do partido Republicanos não há de que reclamar. Segundo o afiliado Armando Marcolino, tudo segue de forma pacífica. O mesmo pode ser dito para o comitê do partido Democrata Cristã.

– Tá tudo tranquilo, diz um dos voluntários – sem dar mais detalhes.

No entanto, cenas de violência política não são fatos raros durante este ano eleitoral. A cada cinco dias ocorre um homicídio ou atentado à vida com motivação política. Houve um aumento de 400% nos casos reportados em 2022 se comparados a 2018, ano em que Jair Bolsonaro foi eleito. É de fato uma batalha, o sentimento fica entre apreensão e medo. Mas quanto ao calçadão curitibano –na batalha da Rua XV, a guerra continua fria.

OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas

A duas quadras: entre o racional e o irracional

“Em Santa Catarina isso vende que nem água.”

A programação do desfile de Sete de Setembro, na Avenida Cândido de Abreu, em Curitiba, iniciou às 8 horas; mas, considerando a rotina dos comerciantes de bandeirinhas do Brasil, começou muito mais cedo.

Para o pipoqueiro, que também vende bandeiras médias e pequenas do Brasil, trajado de dólmã branca, jaqueta de couro sintético surrado e chapéu listrado preto, a rotina iniciou no dia anterior em casa. Fábio Luciano foi dormir às 2h30 e acordou 4h50 para se organizar e conseguir uma vaga perto do desfile, já que algumas ruas estavam bloqueadas no Centro Cívico.

Giovana Nunes está se protegendo da garoa fina sob o ponto de ônibus em frente ao Passeio Público, a 210 metros da origem do desfile. A vendedora não teve tanta sorte como na Marcha para Jesus deste ano, quando arrecadou mais de R$ 400 na venda de bandeiras do Brasil e produtos estampando o atual presidente, Jair Bolsonaro. A bandeira de tamanho médio é vendida por R$ 30 e as de tamanho pequeno por R$ 10, ambas fornecidas por um colega do marido dela. O pipoqueiro de dólmã branca manifesta-se sobre a diferença de preços:

– Tem gente que não coloca preço justo, né? Fica desleal trabalhar assim.

Ele se refere a mesmos produtos, e até de tamanhos iguais, vendidos a R$ 20 e R$ 5.

O Rei Momo de festas pré-carnavalescas por cinco anos consecutivos também estava no evento, não para aparecer e desfilar nas vias, e sim para vender catavento amarelo e verde com bandeirinha no cabo por R$ 5. Em frente à Praça do Homem Nu (que nessa comemoração pela Independência, tem a bandeira verde e amarela amarrada no corpo gigante), está João Pereira de Mattos, 66, desde as 22 horas do dia anterior a uma quadra do desfile. “Conhecido em toda a imprensa de Curitiba como João Bola”, conforme ele mesmo se apresenta, provavelmente pelos 202 kg que tinha há 20 anos. Hoje, um pouco mais magro, porém com problemas nas pernas, não conseguiu levar a mercadoria a pé, por morar no bairro Santa Cândida. Então, dormiu no carro Kwid branco adesivado com rostos de políticos e estacionado ao lado da praça. O veículo também é um instrumento de trabalho, tanto de João Bola quanto do filho, que estava dormindo no carro depois de madrugar dirigindo como motorista de aplicativo.

As primas Rosa e Aline Karpin o ajudam a montar os cataventos com as bandeirinhas de 14 cm x 10 cm, impressas a R$2,50 pela gráfica da família, que leva o nome fantasia Mattos & Mattos Eventos.

Para vender os produtos em apenas um único dia do ano, foram precisos três meses para preparar tudo, sendo que ali, na hora do desfile, ainda tinha de fincar os cataventos temáticos em isopores encaixados em cabos de vassoura. Mas, faltando dezenas de cataventos para finalizar o trabalho e iniciar as vendas, o fiscal de comercialização, um homem alto e grisalho, usando protetor de orelhas para o frio úmido de 12°C, chega proferindo um bondoso e macio “Bom dia, pessoas!”. O vendedor é solicitado a se retirar daquele ponto, pois não é permitido comercializar a uma quadra do evento, apenas a, no mínimo, duas quadras. Em seguida, o comerciante explica que estavam montando os isopores e que logo iriam se retirar, mas é questionado pelo fiscal:

– Se passar alguém e pedir um negócio ali, o senhor não vai vender?

– Não – devolveu João Bola.

OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas

O fiscal responde com uma estrondosa gargalhada sarcástica, seguida de:

– Está bom, meu querido, só vou dizer: não dá pra fazer ponto aqui!

– Não faço aqui, nunca faço ponto aqui – diz João Bola.

– Só tô pedindo, não tô brigando – profere o fiscal já de costas exibindo o sério e duro marchar em direção à praça do Homem (quase) Nu.

O vendedor e as primas lutam contra o tempo de a fina chuva engrossar e a multa que está por vir, a qual nem se venderem todos os cataventos amarelo e verde com bandeirinhas do Brasil no cabo, para todas as crianças no desfile, cobririam o valor. Além da pressão do fiscal, o cachorro peludo preto quase urinou no poste ao lado da pilha de bandeirinhas do senhor João Bola. Seria um ato nada patriótico do animal irracional urinar na bandeira do Brasil, em plena comemoração dos 200 anos de Independência, na Avenida Cândido de Abreu. Infelizmente, não faltam exemplos de pretensos atos patrióticos que descambam para a irracionalidade, para o vandalismo e para a violência. Tais pessoas, que se dizem tão racionais, agiram na contramão da racionalidade.

A duas quadras 29.

Nem todo verde é amarelo

João Américo

– A gente se assusta um pouco, né? Ainda mais quando estamos saindo à noite ou de madrugada! – conta, em tom de brincadeira, Angelo Antonello, amigo de um morador próximo da igreja. No endereço 2053 da Rua Henrique Martins Torres, no bairro Boqueirão, entre ruas esburacadas e terrenos baldios, está localizado.

O terreno é como qualquer outro. Tem um jardim coloridíssimo, com flores roxas, laranjas e amarelas, tem dois patos de porcelana na entrada e uma grama extremamente bem cuidada. O prédio é retangular, verde, com quatro grandes janelas de vidro e, em cima, está escrito: Igreja do Evangelho Quadrangular Soldados de Cristo.

Por dentro, havia um único cômodo grande com um salão dividido em duas partes. Assentos e púlpito. Os bancos eram comuns, enfileirados um atrás do outro voltados para o púlpito. Nas paredes, havia grandes colunas brancas, como se fosse um templo grego. Na esquerda, enormes janelas transparentes abriam-se para um terreno baldio com árvores gigantescas. Os integrantes da igreja até brincam dizendo que são pinturas. No púlpito, do lado esquerdo, havia um piano elétrico, um contrabaixo, uma guitarra e um violão. Já no direito, uma bateria coberta com uma manta de estampa que imita o padrão militar.

No meio, estava o altar e, atrás dele, uma pintura quase bucólica, com um lago, árvores e uma grande cachoeira. A igreja é um tanto comum, como muitas outras, porém o diferencial, é que em cima do prédio e nas laterais externas, há manequins vestidos com uniformes do Exército. Muitos que passam ali ficam surpresos com a cena. É realmente muito curioso mesmo.

Saindo do local, conversei com Gisele Michaque e Joarez Correia, moradores da região que passavam em frente da igreja, e eles comentaram:

– Achei estranho... achei que fosse quartel, os soldados de Cristo estão ali para proteger, né”.

Diva Lima da Silva, moradora da rua Henrique Martins Torres, comenta que a partir de 2018 começou a olhar com certo preconceito para a igreja e seus soldados. Referindo-se às eleições de 2018, ela diz:

– Na época do Bolsonaro a igreja – e seus soldados – me derrubaram.

Diva Lima da Silva complementa, ainda, que não gosta de Bolsonaro e de como ele se apropria das Forças Armadas e dos símbolos nacionais.

O cientista político Tiago Valenciano comenta que Bolsonaro utiliza esses símbolos nacionais para se identificar com seus seguidores. Como exemplo: o patriotismo e conservadorismo que vêm do período militar, o qual remete à origem de Bolsonaro, além do discurso de Bolsonaro que ameaça a democracia.

– E as pessoas passam pela igreja e veem três ativos importantes que Bolsonaro utilizou ao longo de suas campanhas eleitorais: a questão do militarismo, o patriotismo, e a igreja evangélica, que na maioria dos casos, o eleitor de Bolsonaro é majoritariamente evangélico. – acrescenta ele.

Dona Diva observa que se arrepende de ter olhado com certo preconceito.

– Um dia eu fui lá e percebi que estava completamente errada! O pessoal de lá é maravilhoso! A gente tem certo preconceito, mas não podemos ter – diz ela.

A igreja está lá desde 2012 e nunca houve qualquer problema político. O voluntário e marido da pastora, Laércio Voltolini, relatou que Deus deu uma visão para sua esposa de que deveriam montar uma igreja nesses moldes. Para eles, a

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função da igreja é ser uma base de cura espiritual. Um lugar onde uma pessoa ferida vai para se curar.

– Essa bandeira que foi levantada de um tempo pra cá, ela realmente tem confundido e, chegando aqui à igreja, a gente sempre explica pra eles a nossa visão, que é visão de reino e não é focada em política nenhuma.

E Laércio ainda complementa que, se algum dia a questão política afetar a igreja, eles irão orar e pedir para Deus lhes dar uma nova direção. O plano atual da igreja é comprar uma van, pintá-la com um verde camuflado e sair pelas ruas do Boqueirão, distribuindo comida e ajuda para a população local.

E mesmo que pareça, nem todo verde é amarelo. Às vezes pode ser apenas verde, ou então tem alguns tons de azul, vermelho ou branco. Aprendi que para o Laércio e sua igreja, o verde representa a esperança de um Brasil melhor. Uma Curitiba melhor. Um Boqueirão melhor.

Agora é só um carro vermelho

Júlia Vitória Sobkowiac

O adesivo foi colocado em meados de 2018, é retangular, possui cerca de 30 centímetros e traz os dizeres “Ore pelo Brasil, intercessão pela nação”, em letras garrafais junto a uma bandeira verde e amarela, a do Brasil, o símbolo da Igreja Evangélica Quadrangular e a bandeira multicolorida da instituição religiosa. O adesivo fica colado no vidro traseiro de um Ford KA vermelho, ano 2012.

Ele faz parte de um conjunto de três adesivos localizados na traseira do veículo. Um é oval, também vermelho, da Quadrangular, e o outro amarelo e cinza de uma academia. Ambos ocupam a mesma posição em lados opostos do carro e estão próximos às luzes.

O carro vermelho está estacionado na vaga 41, no extremo de um estacionamento de pavers, em um condomínio no Fazendinha, e poucas vezes é visto fora dele. O automóvel, estacionado sempre da mesma maneira, com a traseira à vista, fica um pouco abaixo da plataforma de ferro que serve de passagem da portaria para os blocos 2 e 3. Pode ser visto do portão de entrada, mas chama pouca atenção dos moradores que passam todos os dias por ele.

O veículo pertence a dona Maria, uma senhora impaciente de cabelos brancos e curtos, com seus 76 anos de idade. A aposentada de fala apressada não precisa mais votar:

– Eu sou uma pessoa neutra, sabe? Tenho 76 anos de idade, não preciso votar e nem sei se vou votar ou não.

Dona Maria representa uma parcela da nação que ganhou destaque nas últimas eleições, os evangélicos. Segundo o censo do IBGE de 2010, no Brasil cerca de 1,8 milhões de pessoas são membros da Quadrangular; no Paraná, são cerca de 195 mil fiéis. Segundo a prefeitura de Curitiba, há uma média de 156 templos espalhados pela capital.

Em pesquisas feitas pelo Datafolha, evangélicos representam cerca de ¼ dos eleitores. Por isso os candidatos à presidência buscaram durante boa parte de suas campanhas apoio na religião. Nessa corrida pelo voto evangélico, Bolsonaro saiu na frente. O foco mudou poucas semanas antes do primeiro turno, quando o chamado voto útil passou a ser perseguido. Pesquisas mostravam uma ampla diferença de votos entre Lula e Bolsonaro, mas só não contavam com a existência do bolsonarismo escondido, que diminuiu a distância entre os candidatos e os levou à disputa do 2º turno.

– Eu sou uma pessoa neutra, sabe? Tenho 76 anos de idade, não preciso votar nem sei se vou votar ou não.

O adesivo foi pego em uma distribuição feita na saída de uma igreja. A senhora não se recorda exatamente onde. Só se lembra que à época lhe pareceu uma boa ideia. Não porque a aposentada apoie o candidato x ou y, mas sim porque acha que é seu dever colocar o Brasil em suas orações.

– Faz muito anos que eu oro pelo Brasil, eu acho que é o que temos que fazer, é o país onde moramos.

O carro ainda está estacionado do mesmo jeito e no mesmo lugar. O decalque, no entanto, já não existe mais. Dona Maria o arrancou e o recolocou tantas vezes que não se lembra o número. Mas desta vez, em agosto de 2022, a decisão parece definitiva. A moradora não gosta da ideia de que seu adesivo seja associado a um político em particular e não a seu patriotismo.

– Agora eu tirei e não quero mais colocar. Ele já estava feio, velho. Decidi tirar de vez. Tem gente que pensa que colocamos o adesivo para torcer por um partido e não é isso. Eu amo a bandeira do Brasil, porque eu sou brasileira.

OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas

O carro antes tinha sua própria identidade, um diferencial. Voltou a ser só um carro vermelho estacionado em um condomínio no Fazendinha. Sem adesivo, sem bandeira e sem partido. Nos primeiros dias ainda era visível a marca do lugar que ele ocupava e um resto de cola ainda era aparente, mas com as chuvas intensas de agosto e setembro, até mesmo essas marcas sumiram. Os adesivos da igreja e da academia ainda estão lá e estes não estão feios nem velhos para a aposentada.

Agora é só um carro vermelho 37.

Com a palavra

Juliana Boff

Era o aniversário de 95 anos da União da Juventude Comunista (UJC), no dia 28 de agosto de 2022, às 14 horas, na Vila Nossa Senhora da Luz, localizada no bairro Cidade Industrial de Curitiba, mais conhecido como CIC ou CIC LOKO. A praça Enoch Araújo Ramos sediava um evento do pequeno partido político, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), pequeno por sua representatividade eleitoral e não por sua história.

O evento, realizado na praça pública, não contou com um grande número de pessoas. Diria eu que no máximo 80 pessoas se juntavam ali, entre militantes do partido e outros moradores do bairro, que passavam curiosos para ver o que estava acontecendo. Mas não é para a quantidade de pessoas que eu quero chamar a atenção aqui, e sim para o brilho nos olhos de cada um que, mesmo embaixo de uma fina chuva, estava comungando da pequeníssima chance de viver em um futuro melhor.

Militantes vendiam livros e bebidas para a comunidade a preços acessíveis, extremamente baratos para que todos ali pudessem aproveitar o espaço. O Zine Molotov, que já está na sua 4.a edição, foi publicado e distribuído durante o evento. A edição especial aos 95 anos da UJC, feita pelo núcleo de base Maria Olímpia Carneiro, conta com entrevistas e histórias sobre a UJC e o PCB no Estado do Paraná, além de trazer algumas propostas do partido de maneira mais didática

Em determinada parte do evento, as pessoas são chamadas para se reunir em volta de uma tenda azul, daquelas grandes que geralmente as famílias com muitas crianças usam para se proteger do sol na praia. Lá, foi anunciado que aconteceriam as falas das candidatas ao poder executivo federal e estadual, respectivamente, Sofia Manzano e Vivi Motta, que discursaram sobre redução da jornada de trabalho, pleno emprego e permanência estudantil de jovens pobres, discursos esses que, por mais utópicos que me pareçam, ainda fazem brilhar os olhos.

– O mic aberto, que é algo tão simples, tocou meu coração. Acendeu em minha alma uma chama de luta que já não lembrava existir.

Em meio a tantos olhos vidrados naquelas palavras, um homem alto de óculos escuros no alto da cabeça e usando camiseta vermelha, abria seu coração para quem estava perto.

Esta parte do evento consistia em deixar o microfone embaixo da tenda para quem quisesse cantar, recitar uma poesia, fazer um discurso ou, até mesmo, reclamar do evento, afinal, como o próprio nome já diz, o microfone era aberto para todos aqueles interessados em expressar seus sentimentos através de palavras.

Os primeiros corajosos que deixaram sua voz amplificar-se naquela praça, foram pessoas ligadas ao partido, que vinham com seus discursos revolucionários. No entanto, lá pela quinta pessoa, alguém de fora resolveu pegar o microfone. O nome não saberei dizer, mas todos o chamavam de “lobisomem”. Chinelos, bermuda e um moletom, em um dia frio curitibano, Lobisomem cantou uma música autoral, um rap que denunciava a violência policial, e era como um soco no cérebro. Ali, era possível ver o ódio genuíno de alguém para quem o sistema só oferecia dor. A partir dele, vários outros artistas da comunidade local tomaram coragem para se expressar. Foi um ecletismo de cultura que esbanjava riqueza em um lugar tão miserável de incentivo público.

OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas e divertida. A festa contou com diversas presenças de artistas locais da cena, como MC Chagas, Câncer de Gaia, DJ Fiel e a etapa final de 2022 do Slam Poder Popular, que classificou duas poetas, Danielle Lima e Poeta Gabriela, para o Slam Paraná, em setembro de 2022.

Todos os presentes sentiram um pouco da política cotidiana, construída nas ruas pelo povo e para ele. Um banho de cultura, diálogo e, principalmente, de espaço. Um microfone ABERTO para que qualquer pessoa pudesse falar é a expressão mais genuína do poder popular. Cabe, no dia a dia, construir cada vez mais uma política inclusiva e realmente democrática nos espaços que ocupamos.

Passado presente

Lívia Berbel de Sousa Santana

A música eletrônica abafa o som ambiente com as batidas ritmadas e as luzes coloridas piscam no mesmo ritmo da música. É similar a uma festa, mas não é bem isso. As cadeiras, que estão enfileiradas, são preenchidas por homens brancos entre 40 e 50 anos, alguns mais velhos. Mulheres e crianças também estão presentes, mas em menor quantidade. Depois de um tempo, a música para, mas não há silêncio. As batidas ritmadas são substituídas por palmas e assovios. É. Para os presentes ali, talvez o evento fosse mesmo uma festa.

Esta parcela dos brasileiros está presente em uma sala do Mabu Curitiba Business, um dos hotéis mais bem avaliados da capital. Eles se reúnem em uma noite fria de quarta-feira para o lançamento da candidatura de Deltan Dallagnol, ex-procurador da operação Lava Jato e, até então, candidato a deputado federal pelo Podemos do Paraná. Quando a música para, é ele, ao lado de Álvaro Dias, atual senador do Paraná, que entra na sala. Ambos são aplaudidos e cumprimentados. Folhetos com o slogan “Vamos levar a Lava Jato para o Congresso” são distribuídos. O evento começa.

Depois de uma oração, um Pai Nosso e alguns discursos de outros apoiadores, quem discursa é Álvaro Dias. O senador começa dizendo que se orgulha da trajetória de Dallagnol. Nas palavras dele, um verdadeiro ícone contra a corrupção. Ao longo do discurso, com tom de crítica, ele ainda comenta das

absolvições que o Supremo Tribunal Federal (STF) efetuou ao longo da Lava Jato. O que o senador não comenta é que seu próprio nome já foi citado e arquivado na operação.

No começo de 2022, a revista Veja noticiou que o atual senador foi citado como destinatário de propina em inquérito aberto pela operação. Segundo a reportagem, o pagamento era para amenizar a atuação de Dias na CPMI do Cachoeira, que teve início em 2012. A investigação começou na 6ª Vara Federal de São Paulo, mas foi enviada em 2018 para a 13ª Vara Federal de Curitiba, na época, comandada pelo juiz Sérgio Moro. A força-tarefa, por outro lado, era comandada por Dallagnol. A partir daí a investigação correu em sigilo. Agora, três anos depois, a investigação volta para São Paulo com a justificativa de que não se constatou relação com a Lava Jato. Não há informações sobre o que foi feito com os indícios que apontavam para Álvaro Dias.

Finalizado o discurso do senador, outros apoiadores somam palavras sobre Dallagnol. Em meio à cacofonia de discursos, um senhor de cabelos grisalhos e pele sulcada afirma, suspirando:

– Eu não quero mais discursos, quero o Dallagnol.

Aquela parcela de curitibanos não estava ali pelos personagens secundários. Eles queriam o principal. Os minutos passavam, as pessoas iam pegando o celular em sinal de desinteresse, até que então o tão ansiado ex-procurador volta à cena. O então candidato sai de seu lugar e direciona-se ao palanque. A festa do início volta, mas agora com todos em pé e gritando em uníssono.

– Deltan! Deltan! Deltan!

Após o coro e os aplausos pararem, Deltan Dallagnol inicia seu discurso. Agradece os amigos, parentes e apoiadores ali. Ele também comenta e agradece àqueles que o ajudaram no caminho da política, que o apadrinharam. No discurso, são citados Álvaro Dias e Sérgio Moro, esse último, naquele dia, não pôde estar presente, porque estava fazendo campanha em outra cidade do Paraná.

Para finalizar a noite, o candidato pede para que todos se levantem para gravar um vídeo. Quando todos ficam de pé, o slide que antes tinha foto de campanha, transforma-se em um slide com o nome de Deltan no centro e outras pala-

44. OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas

vras circuladas que possuem setas apontando para seu nome. O slide faz alusão àquele usado por Dallagnol para acusar o ex-presidente Lula durante a Lava Jato. Ao ver a alusão, os apoiadores vibram, e o candidato faz um comentário frio como aquela noite.

– Se tiver alguém da imprensa aqui hoje, é a foto desse slide que vai sair nas reportagens…

O único outro jornalista presente naquela noite não foi atendido por Deltan Dallagnol. Não houve interesse em falar com a imprensa – apenas com a sua própria assessoria.

Dallagnol segue condenado a pagar uma indenização a Lula por um dos slides no qual informa a prisão do ex-presidente em Curitiba no ano de 2018. O Tribunal de Contas da União (TCU) ainda o condena a pagar as diárias de hotel que foram usadas durante a Operação Lava Jato, o montante resulta em R$ 2,8 milhões.

Álvaro Dias e Sérgio Moro, que antes concorriam a cargos diferentes pelo Podemos, foram rivais na eleição seguinte porque Moro optou por se aliar ao União Brasil. Tanto Dallagnol quanto Moro negam os erros de método na Lava Jato, assim como qualquer outra acusação. Álvaro Dias também nega que tenha recebido propina. Para os três, as acusações são políticas, perseguições.

Não há provas de uma perseguição. Dallagnol foi eleito como Deputado Federal pelo Paraná com 340 mil votos, foi o mais votado para o cargo no estado.

Sérgio Moro também venceu as eleições como Senador pelo Paraná com 1,9 milhões de votos, o equivalente a 33% do total, e desbancou o seu antigo padrinho e colega, Álvaro Dias.

Os personagens da noite fria de quarta são frutos de uma política que não mudou, frutos de um país que ainda espera heróis, mitos. O slide que voltou, alianças que continuam, personagens que já existiam, investigações que permanecem. O cenário político de 2022 não é surpresa, é anunciado. Tragédia anunciada. Para alguns, no entanto, o cenário é quase uma festa. O passado continua presente.

Passado presente 45.

Política, ideologia e religião

Em um terreiro na rua Francisco Zardo, no bairro curitibano de Santa Felicidade, a gira é realizada às sextas-feiras à noite. O ritual começa com o hino de umbanda, e segue com a defumação com ervas de todos os presentes. Em torno de meia-hora após o começo da gira, acontece o chamado bate-cabeça, um dos momentos-chave da primeira parte do ritual. Em uma manifestação de devoção às entidades e ao pai de santo, os médiuns se ajoelham e encostam a cabeça no chão ante o sacerdote.

Quando todos se levantam, o ritual é pausado para que o pai de santo dê seus recados aos médiuns e visitantes. Para apresentar a religião aos transeuntes, comenta sobre a origem da Umbanda, ligada à resistência aos mais poderosos. Afirma que seu discurso, apesar de político, não é partidário.

Pai Cesar conta que não gostava de misturar política e religião, mas isso mudou nas eleições de 2018.

– Os dois temas ficaram muito ligados, principalmente porque lideranças religiosas se manifestaram publicamente sobre candidatos, – reflete o pai de santo.

As circunstâncias, no entanto, lhe deram a certeza de que deveria adotar o discurso político, ainda que sem partidarismo.

– Tenho certeza de que devemos nos manifestar em função das extremidades ideológicas que a política nos apresenta. A religião não pode e não deve aceitar que o ser humano seja manipulado por ideologias que possam gerar violência, racismo e intolerância a qualquer crença praticada em território brasileiro – conta.

No último Censo, divulgado pelo IBGE em 2010, a Umbanda apareceu como a quinta maior religião do Brasil, com mais de 500 mil fiéis. Em pesquisa divulgada pelo Datafolha, em janeiro de 2020, a religião – junto ao Candomblé e suas vertentes – foi a quarta mais citada no país.

Apesar de ter sua origem ligada a escravos que vieram da África e ser uma religião essencialmente negra, a Umbanda foi ganhando adeptos de diferentes raças e classes sociais ao longo dos anos. Segundo estado com maior percentual de brancos no Brasil, o Rio Grande do Sul é, também, o estado com mais terreiros de Umbanda, com mais de sessenta e cinco mil em seu território.

O Paraná, por sua vez, é o terceiro estado com mais brancos do país, e sua capital é a terceira com mais terreiros de Umbanda. Um desses é o SEDUCA –Sociedade Espiritualista de Umbanda, Caridade e Amor –, localizado no bairro Santa Felicidade e comandado pelo Pai Cesar de Xangô.

Um dos médiuns que frequenta o terreiro é o editor de vídeos Felipe Gusinski, que considera a Umbanda uma religião intrinsecamente política por conta de suas origens.

– Eu acho que não faz sentido ser a favor de dizimar terras e povos indígenas para o agronegócio crescer, sendo que você recebe uma energia indígena por meio dos caboclos – reflete.

Felipe ressalta que, apesar dos ideais da Umbanda se aproximarem da ideologia de esquerda, não acha que os umbandistas sejam obrigados a pertencer a esse lado político.

– Não é uma questão impositiva, mas, quando você começa a pensar e relacionar as coisas, percebe que a nossa doutrina se aproxima mais do pensamento de esquerda – afirma.

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Rodeado por estátuas e patuás, o empresário João Mugnaini, dono de uma loja de artigos de Umbanda no Centro, em Curitiba, diz que a maioria de seus clientes é de esquerda, e acha que as declarações políticas dos pais de santo podem influenciar os médiuns.

– O médium se espelha muito no pai de santo dele. Por estar confiando nele pra cuidar da sua espiritualidade, tem muita gente que diz amém pra tudo o que ele fala – declara.

O advogado Reinaldo Cerezini é umbandista desde que nasceu. Passou a frequentar o SEDUCA em 2015, e, desde então, está em preparação para ser cruzado pai de santo. Com cruzamento marcado para outubro, já tem até nome e endereço para o terreiro que comandará. Nele, não permitirá que os filhos conversem sobre política em momentos pré ou pós-gira.

– No momento pelo qual o país passa, a discussão política só divide, e nós estamos lá para acolher, e não para gerar conflitos – justifica.

Na eleição atual, Reinaldo considera que nenhuma das opções representa os ideais da Umbanda.

– O Bolsonaro está relacionado com as igrejas evangélicas, o que eu acho extremamente negativo. Por outro lado, é complicado apoiar uma pessoa como o Lula, que claramente cometeu crimes, e defende pautas diferentes da Umbanda – como a liberação das drogas e do aborto. Ou seja, nenhum dos lados protege, realmente, os interesses da Umbanda – declarou.

Reinaldo e Cesar concordam que não seria um problema se um pai de santo apoiasse publicamente um candidato que defende, de fato, os princípios da Umbanda. Quais são esses princípios? Por enquanto, permanece um debate entre os seguidores da religião.

Amigos, amigos, política à parte

Mariana Gomes

Na noite de 7 de setembro, Dia do Bicentenário da Independência do Brasil, dois colegas de trabalho, no estado do Mato Grosso, brigam por política e um acaba ceifando a vida do outro com 15 facadas devido a suas discordâncias. Cinco dias depois do ocorrido, na cidade de Curitiba, dois amigos de infância, já na casa dos 50 anos, discutem política de maneira que ambos descrevem como amigável, porém em uma prosa repleta de palavras de baixo calão, ofensas pessoais e gargalhadas escandalosas.

William Pinheiro e André Portes se conhecem desde a infância, quando frequentavam a Igreja Batista do Parolin, bairro da capital paranaense. Iam para acampamentos dos Embaixadores do Rei juntos e discutiam sobre qual time tricolor era superior: o carioca, Fluminense, ou o paulista, São Paulo Futebol Clube. Hoje, os dois amigos saem juntos para beber às sextas-feiras, organizam acampamentos com seus filhos e debatem arduamente sobre temas relacionados à política.

Ao me sentar com eles na sala da casa de André, numa segunda-feira à noite e explicar meu intuito com aquela conversa, o anfitrião abre a discussão com a seguinte frase:

– Eu quero que todo petista morra, menos o meu amigo.

Uma frase tão grosseira e absurda seria recebida em qualquer ambiente com repúdio e, até mesmo, desespero. Contudo, os dois homens riem e se entreolham, como cúmplices. William, que se diz abertamente um eleitor de Luís Inácio Lula da Silva, candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT), não demonstra nenhum tipo de desconforto ao ouvir a piada do colega de olhos esverdeados. Ao contrário, ele brinda sua taça cheia de chopp extra claro, de marca alemã, com o amigo e juntos posam para uma foto.

Ambos se sentam, lado a lado na mesa, despropositadamente ironizando o distanciamento de suas ideologias políticas. Os homens, ambos cristãos batistas, economistas e pais de famílias tradicionais por definição, destoam um do outro ao descrever seus posicionamentos.

– Quando era jovem, era de esquerda – conta William, passando a mão por seu cabelo escasso pela idade – mas hoje que sou velho, sou da extrema esquerda.

– Um petista de araque – acrescenta André, sobre o amigo.

Por mais que ambos riam da aparente piada do mais velho, André demonstra ser o mais apegado à sua moral cristã com seu parecer:

– Eu me descrevo como um cara de bons princípios e temente a Deus, tendeu?

– Nazista! – e então, com essa interjeição, William começa o debate entre os dois.

O primeiro assunto levado à mesa de jantar já é, talvez, o mais polêmico da noite: o aborto.

– Ninguém está defendendo o aborto – a voz do petista é calma e contida, sem ainda ter tido tempo para se estressar com a conversa – as pessoas querem dar liberdade para quem quer fazer um aborto sem que sejam criminalizadas por isso.

André, enquanto mastiga a carne de porco preparada por sua esposa, que assiste à cena do sofá ao lado, quieta, apenas como espectadora, não tarda a se exaltar, afirmando que aborto é assassinato:

– Matar uma pessoa, isso eu não admito!

– Não é uma pessoa – argumenta Pinheiro.

– Pela Constituição é, sim!

Por mais que o Código Penal Brasileiro confira punição ao aborto a partir do momento da concepção, esta lei não é trazida à discussão; afinal, nenhum dos dois denota ter conhecimento aprofundado, tanto sobre a Carta Maior, quanto a respeito da política, que tanto discutem. Aliás, ambos afirmam com todas as letras discutirem apenas suas ideias pessoais. Tal falta de expertise é demonstrada ao conversarem sobre a prisão de Lula.

– Eu li todo o processo de condenação do Lula – um sorriso orgulhoso estampa o rosto de André de orelha a orelha.

– Todas as duzentas páginas. Você se deu ao trabalho?

– Claro que não!

– Tão rapidamente quanto a resposta de William, o sorriso de Portes se alarga, transmitindo aos presentes seu sentimento claro de vitória.

Quanto mais os dois conversam, mais uma coisa fica clara. Talvez pelos anos de convivência, ambos tenham a mesma reação ao ficarem sem réplica: riem, tratando o argumento do companheiro como piada, e mandam que o outro pesquise no Google a informação que está afirmando como verdade.

No decorrer da conversa, porém, os amigos demonstram concordar em apenas um ponto: independentemente de suas ideologias, jamais deixariam que algo trivial assim afetasse sua amizade.

– Eu nunca vou me indispor com meu amigo por causa de política – Portes afirma, me encarando com seus olhos verdes arregalados, como se a minha crença em sua resposta fosse questão de vida ou morte.

– Ele é meu irmão, e nada vai mudar isso.

– Lá fora, os caras tão se matando – acrescenta William.

Em um clima político tão tenso no país, ver dois amigos que, em meio a ofensas e insultos, conseguem se amar e levar sua amizade em conta, mostra o limite da política nas relações pessoais dos cidadãos. Como William melhor disse:

– Não vejo a hora de chegar a eleição e acabar essa história.

Amigos, amigos, política a parte 53.

Xô, propaganda política

Tayná Luyse Cordeiro da Silva

– Tem morador que queria jogar muito mais que tinta naquele tempo, só não jogou coisa pior porque tem câmera apontando para toda direção.

Maria de Lurdes da Silva é professora, de 43 anos (aparentando ter alguns a menos) e conta que, em junho de 2021, quando estava voltando para a sua casa, ligou a seta sinalizadora do seu Gol para a direita na rodovia BR-376, sentido litoral, para pegar a estrada PR-281. Logo enxergou, como de rotina, o paredão de propagandas eleitorais fixado no trevo de entrada da cidade onde mora.

Desta vez, havia manchas cor de sangue escorrendo sobre a imagem presidencial, em direção ao gramado bem aparado e verde do terreno sem construções. Isso mesmo: as “sortudas” escolhidas entre as seis placas (outdoors) que compõem a entrada de Tijucas do Sul, cidade da Região Metropolitana de Curitiba, foram as duas que apresentavam a imagem de Jair Messias Bolsonaro, atual presidente da República do Brasil.

Uma delas mostrava o chefe de Estado sorrindo com as mãos para o alto, com a frase “Um grande homem”. Já a outra trazia o presidente sorrindo, formando um coração com as mãos. Na composição desta última, duas frases: “Venha 2021… Que os empresários gerem mais empregos” e “Fora… Comunismo!!”

A associação das cores que simbolizam o comunismo com a cor da tinta jogada pode ter sido estratégica ou pura coincidência. Quem sabe? Quem transita por ali já não vê mais o colorido que o vermelho trouxe, vê o verde e amarelo que se destaca em todos os seis cartazes. Os outdoors foram limpos.

Começando por um único painel com a bandeira do Brasil em abril de 2020, o paredão de propaganda eleitoral se perpetua agora com seis outdoors, ou se perpetuava, pelo menos até agosto de 2022. Mas afinal, quem colocou aquelas placas?

A administração e o planejamento da prefeitura de Tijucas do Sul percebem o incômodo trazido pelas placas/outdoors para uma parte da população, mas, sobre essa situação, nega a culpa, explicando que não há o que ser feito, pois “o terreno é de um particular, bem como os outdoors ”. Isso explica o fato de as placas estarem naquele ponto fixo há mais de dois anos, sem interferências da prefeitura.

Uma característica peculiar, não informada na descrição do paredão no momento inicial desse texto, é a marca d’água “ONI Junior”, presente em cinco das seis placas. Leonides Bogo Junior foi o prefeito da cidade, de 2005 a 2008, pelo Partido Social Cristão (PSC). Ele não faz mais parte da política de Tijucas do Sul, mas um dos outdoors mostra a sua foto, com frase de efeito e com o verde e amarelo padrão do paredão.

Talvez o intuito da presença de Bogo, no trevo, seja marcá-lo como o “anfi trião” do município, mesmo que o ex-prefeito já tenha seu nome marcado pelo desempenho negativo dos quatro anos do seu mandato. Ele é um dos responsá veis pela recepção atrativa da cidade.

Três. Foi essa a quantidade de vezes que Bogo foi procurado para dar sua versão sobre os outdoors. Músicas clássicas dos filmes de Faroeste como “Per un pugno di dollari”, de Ennio Morricone, surgem na memória. Talvez o ex-prefeito não queira falar sobre o assunto e por isso não respondeu, ou apenas queira aproveitar ao máximo sua viagem a Dallas, no Texas, enquanto assiste à disputa de beisebol Rangers X Yankees, com seu belo chapéu de cowboy.

As imagens das placas vinculadas à política acabaram, assim como o mês de agosto. DETERMINAÇÃO DE REMOÇÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL

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é o documento que chegou ao prefeito da cidade tijucana, José Altair Moreira, exprimindo a determinação de retirada de todo o material de propaganda política do local, no prazo de 48 horas, a contar do recebimento do documento. É prevista pela lei a proibição da propaganda eleitoral em outdoors. Essa decisão também vale para atos pré-campanha e de divulgação parlamentar, mesmo que não haja pedido explícito de voto.

Verde, amarelo e cinza. Dias nublados e chuvosos de setembro. O paredão não tem frases. Não há um pingo de tom vermelho. O presidente do Brasil e candidato à presidência este ano não está mais lá. Agora, a professora Maria volta para casa só, pois, no trevo da cidade, “o grande irmão (NÃO) está te observando”, frase de George Orwell.

Lonas listradas em verde e amarelo se destacam no terreno à beira de asfalto. No topo, bandeirinhas do Brasil remexem conforme a batida dos ventos. Para se ajustar à lei, tudo foi coberto. Tudo o que foi considerado “propaganda política” foi coberto. Ironia do destino Bolsonaro mencionar, em sua campanha eleitoral de 2022, que “Nós sabemos a cor do bem, verde e amarelo, e a cor do mal, vermelha”.

Mural de notícias

Thaynara Goes

Nos dias de semana, a Avenida Marechal Deodoro, onde a banca de jornais Staub está localizada, é sempre movimentada. Uma estudante usando mochila nas costas e moletom bordô do curso de Psicologia aguarda, com uma expressão blasé, o sinal verde do semáforo para poder atravessar. Um grupo de mulheres passa em ritmo apressado com os crachás balançando, conversando sobre o fim do horário de almoço e como logo elas devem voltar ao expediente. A rua emana um cheiro composto de todo tipo de história que passa diariamente por lá: o doce dos morangos dos insistentes vendedores ambulantes, o tabaco de quem vai tomar um cafezinho e dar uma tragada em seguida, e a gasolina dos carros que acabaram de ser abastecidos. Cheiro de rua.

Apesar do vai e vem contínuo, algumas poucas pessoas param para ler as notícias coladas com fita crepe na parede ao lado da banca de jornais. Um senhor, usando um chapéu e segurando uma mala de mão, para em frente ao mural e aponta para uma página com as mãos calejadas, desabafando:

– A maior tristeza que a gente tem é isso aqui, ó: se acabando tudo em fogo, porque os caras querem vender boi às custas de desmatamento.

Santiago Castro, gerente da banca de jornais Staub, diz que esse tipo de manifestação acerca das reportagens expostas sempre foi comum. Ele lê, recorta

Intercaladas com respostas às perguntas dos fregueses, abafadas por conta do uso de uma máscara de tecido (“Tem aquele chiclete azul que eu gosto?”, indaga uma mulher encasacada em tom animado), o gerente conta que aumentou o número de pessoas que passam por lá e desacreditam das notícias coladas em período eleitoral. Alguns até se exaltam e falam que os jornais vão contra o presidente, contra o governo.

Com comentários concisos e semblante sério, Santiago conta que irá remover as páginas dos jornais das paredes durante a comemoração do dia Sete de Setembro, para evitar represálias e vandalismo de grupos mais radicais. Em meio a uma risada, diz que em 9 de setembro retornará a colar as notícias:

– Normal, a vida continua.

Os jornais são recolhidos todos os dias nas distribuidoras antes de a banca ser aberta, às 6 horas. As duas distribuidoras ficam na Rua Lourenço Pinto, no centro de Curitiba. Durante os dias úteis, são entregues cerca de 25 jornais para a banca Staub, sendo duas cópias do Estadão, dois do Valor Econômico, 15 da Tribuna do Paraná e 6 do jornal mais popular da banca, Folha de São Paulo.

A ida à loja todos os dias faz parte da rotina de Ruy Staub, dono da loja de doces “Mercado Popular” e da banca de jornais Staub, que faz questão de continuar vendendo jornais até hoje, mesmo sem ter o lucro de antes. Apoiado em um freezer de sorvetes do lado externo da loja e trajando uma jaqueta dupla face Internacional-Brasil, ele comenta sobre o aumento dos ataques recebidos por conta do mural de notícias em época de eleições:

– Então, às vezes, a gente passa maus bocados lá. Então, você põe lá uma manchete que os caras acham que não condiz e eles reclamam.

Ruy encontrou nos recortes uma forma de se manifestar acerca de como a imprensa difunde as informações para o povo, além de manter a memória do jornal impresso vivo. Jornalista aposentado, ele acredita que é de extrema importância que sejam divulgadas notícias de interesse público:

60. OLHARES POLÍTICOS | Campanha nas ruas e cola as notícias todos os dias, há 32 anos. Pupilo de Ruy Staub, dono da banca, Santiago conta que o propósito de eles terem iniciado a criação do mural foi para combater a desinformação.

– Tem bastante sobre política, principalmente nesta época. Mas a gente pode botar até falecimentos, esportes. Os fatos mais importantes do dia.

Staub enxerga a movimentação na frente da banquinha como um bar: um lugar onde diferentes histórias se cruzam e interagem entre si. Com um posicionamento político bem estabelecido, afirma que não gosta de puxar brigas:

– Quando vem um cara e me vê com essa jaqueta vermelha me chamando de comunista, eu falo: “sou do Internacional, pô!”. Mas quando estou usando o lado verde-amarelo e vêm me chamar de bolsonarista, eu aponto pro símbolo:

– É do Brasil! – diz, entre risadas.

Até a última instância

Ana Rossini

O telefone dela é igual ao do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), toca em todos os horários e, por ela ser um canal importante para muitas mulheres, sempre o atende. Leonete Ribas, mais conhecida como Léo, tem 50 anos, é articuladora nacional e fundadora da Liga Brasileira de Lésbicas do Paraná (LBL) desde 2005 – entidade que acolhe e encaminha juridicamente mulheres vítimas de violência no estado, além de promover políticas públicas para lésbicas e mulheres bissexuais – militando para além de pautas LGBTQIA+. A saúde das profissionais do sexo, travestis e transsexuais, mulheres negras periféricas, bem como as com privação de liberdade; o anticapacitismo e o anticapitalismo também são tópicos de luta.

– A Liga traz todos esses atravessamentos para dentro do mesmo espaço, então me senti contemplada naquilo – diz Léo.

Por volta das 15h30 de algum dia de agosto de 2020, durante a pandemia do coronavírus, ela recebeu a ligação de uma jovem de 16 anos, gritando e falando com outra pessoa. Era o pai evangélico, que entrou no quarto para bater nela após ouvi-la conversando com a namorada ao telefone. A mãe entrou em seguida, mordeu as costas da menina e arrancou três camadas de pele.

– Preferia a filha morta do que uma filha sapatão! – conta Léo, ironizando o discurso da agressora.

Ao mesmo tempo em que ouvia as dicas do endereço que a jovem anunciava, ela e a esposa Dayana Brunetto entravam em contato com o Conselho Tutelar, Defensoria Pública e Ministério Público. Conseguiram chegar à casa da vítima, resgatram-na e, hoje, ela vive acolhida com a tia. A LBL tem um canal aberto com o Ministério Público. Se Léo ligar para o promotor às 3 horas da manhã, será atendida!

Outro relato, entre tantos, principalmente no período pandêmico, é de uma jovem de 18 anos que foi estuprada pelo pai e pelo irmão para que ela entendesse o que é ser mulher, o que na visão deles não passa de um objeto sanável do prazer masculino. O estupro corretivo é cometido pelo pai ou irmãos da mulher sapatão com a intenção, injustificável, de reverter a orientação sexual da vítima à heterossexualidade. De março de 2020 até dezembro de 2021, 184 casos de violência foram atendidos pela entidade, sendo 43 estupros corretivos, 81 violências com lesbofobia e 60 casos de violência em geral (abrangendo lésbicas, transsexuais, mulheres periféricas, mulheres bissexuais).

– Fazemos o encaminhamento jurídico [das vítimas], mas o primeiro relato e acolhimento somos nós que fazemos. Então, eu fui para a psicóloga para ter que lidar com isso, entende? Porque chegou um momento em que eu não dormia. Meu telefone passa 24 horas ligado. A violência não acontece no horário de expediente, acontece de madrugada e em finais de semana.

Léo é o Samu personificado. Durante a entrevista, ela foi interrompida por uma mulher que fazia a entrega dos remédios de esquizofrenia, paranoia e epilepsia do cunhado de Léo, e três vezes por pessoas em situação de rua. Uma delas era mulher de estatura média, cabelos longos castanhos, magra, com uma pequena mochila nas costas e uma caixinha de Balas Gomets na mão. Chegou já agradecendo a Léo e, como retribuição por algo que eu ainda não entendia, deu a ela dois pacotes das balas de goma. A ativista retribui com sinceras palavras: – Obrigada por você estar aqui falando com a gente, pela sua força.

Nisso ela se levanta da cadeira de madeira, a mulher corre para apertá-la em um forte abraço e chora a ponto de tremer o corpo e fica com o rosto completamente vermelho. Ela a reconheceu das vezes que recebeu marmitas, cafés e cesta básica entregues pelas meninas da LBL. No período da pandemia,

Léo não estava com frequência no front das entregas por ser uma paciente de câncer na cavidade nasal. Ao sobreviver da cirurgia do tumor, ela fez uma promessa para si mesma: não iria descansar enquanto não fizesse um trabalho social efetivo pelas mulheres, para que todas fossem livres. Ela vai até a última instância para defender os direitos de alguém que nem conhece.

– Nós somos pessoas políticas, todas nós! Nosso corpo é político, nosso beijar é político, nossas relações e espaços onde estamos são políticos. Sempre! E para chegar a essa compreensão, temos que dialogar com essas gurias. E o melhor lugar de diálogo é na escola. Que elas entendam que há grupos que as defendem, que têm direitos. São microrrevoluções, sabe? Nada acontece no macro para nós. Sempre microrrevoluções.

Quando as 22 pessoas se reuniram na casa da Léo para a contagem dos votos no primeiro turno das eleições de 2022, as paredes estavam decoradas com decalques do candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), desenhos em folhas sulfite A4 – de números “13”, corações e estrelas vermelhas – feitos pelas três crianças e, ainda, uma extensa bandeira LGBTQIA+ amarrada logo na entrada do sobrado verde. Por volta das 21 horas, o espaço começou a esvaziar e deixar de ser vermelho e colorido. O que restou no quintal foram dois suportes pretos com plantas suculentas, uma placa da Rua Mariele Franco e a frase ‘dias mulheres virão’ escrita num quadrinho rosa; a geladeira branca com ímãs de uma indígena encostando o facão na bochecha do homem branco e de um abridor de garrafa com slogan “Beba como uma garota”. Até a geladeira da Léo é política.

Seu maior anseio é conseguir uma casa de acolhida para lésbicas e mulheres bissexuais, cis ou transgênero, no Paraná. Espaço onde seja possível fazer formação, acolhimento, encaminhamento jurídico, acompanhamento psicológico, assistência social e projetos para a empregabilidade dessa população. Léo é formada em marketing, mas como ela mesma diz:

- A minha formação de vida é a luta por direitos, é ver essas realidades de perto. Acho que a vida nos ensina mais!

Na primeira quinzena de março de 2023, Léo e Dayana, a coordenadora da área de Gênero e Diversidade Sexual da Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade – SIPAD da UFPR – e esposa de Léo, mudaram-se

para Brasília (DF) para assumirem cargos no terceiro governo Lula. Léo é a nova assessora política da Secretaria Nacional LGBT do Partido dos Trabalhadores (PT) e Daya é coordenadora geral de promoção das políticas públicas para população LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Como elas dizem: “Sapatão não é bagunça!”.

Por mero destino, na fotografia, a articuladora posa à frente da bandeira oficial da Secretaria Nacional LGBT do PT durante a contagem de votos do primeiro turno das eleições de 2022, quando ainda não sabia que ocuparia um espaço tão importante para a vida e sobrevivência de lésbicas e mulheres bissexuais.

Renato Freitas precisa de um descanso

Ivan Cintra

Curitiba, 17 de outubro de 2022. O então vereador Renato Freitas (PT) vai à Câmara dos Vereadores de Curitiba para uma sessão ordinária do plenário. Era um dos três parlamentares pretos ainda atuantes na capital, uma minoria no total de trinta e oito. Ele entra no palácio às 9 horas. Sai minutos depois, irritado. Atrás dele vêm Dalton Borba, vereador pelo PDT.

– Acabei de chegar e o cara já tá me acusando, não suporto isso! – falou Renato, parando bem na entrada do palácio, onde se pode tomar um pouco de sol.

– Eles estão tentando te diminuir – disse Dalton – Tente pôr na cabeça que, sozinho, você tem mais votos do que todos eles somados. Você é maior que todos ali.

– Ele tá mentindo, Dalton, é isso que me incomoda. Eu tô cansadode tanta mentira.

Renato está cansado, exausto, saturado. Diz sofrer perseguição política desde fevereiro de 2022, ou desde muito antes. As últimas semanas do vereador foram especialmente turbulentas. De parlamentar cassado a deputado eleito, pode-se dizer que Renato deu a volta por cima. Mas a que custo? Renato Freitas precisa de um descanso.

Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 2022. Moïse Kabagambe vai ao trabalho cobrar a falta de pagamento. Preto, 24 anos, congolês e refugiado político, Moïse mudou-se para o Rio em busca de uma vida mais digna. Era criança quando fugiu da guerra e da fome junto de sua mãe e irmãos. Ele trabalha por diárias num quiosque de nome Tropicália, na Praia da Barra da Tijuca. Seu empregador não o paga há dois dias. O patrão se irrita com a cobrança e o ameaça com um pedaço de madeira. Moïse usa uma cadeira de escudo, mas continua na defensiva. Alguns homens chegam e se juntam ao gerente. Eles arremessam Moïse no chão, passam uma corda em suas mãos, pés e pescoço, chutam, socam, espancam. Ele morre ali mesmo e seu laudo cadavérico aponta traumatismo do tórax como causa da morte. Moïse ficou no chão por horas, se afogando no próprio sangue, enquanto seu patrão atendia mais clientes.

São Gonçalo, 2 de fevereiro de 2022. Durval Teófilo Filho – preto, 38 anos, esposo de Luziane e pai de Letícia – volta para casa do trabalho. É tarde, cerca de 23 horas, e ele caminha pelas ruas de seu condomínio. Segundo o amigo e compadre Carlos Souza, um dos motivos de Durval ter se mudado para a região era a segurança. A família vinha da comunidade do Capote, um bairro violento e marcado por disputas entre a polícia e o tráfico. Ali, num condomínio privado, a vida parecia mais pacata. Três disparos partem de dentro de um carro, atingem Durval na barriga. Ele morre em decorrência dos ferimentos. O homem branco que deu os tiros é o ex-militar Aurélio Bezerra. Ele diz que confundiu Durval com um bandido. A esposa, Luziane, diz que o marido morreu por ser preto.

Curitiba, 5 de fevereiro de 2022. Na praça Garibaldi, Largo da Ordem, Renato e outros militantes protestam em repúdio aos assassinatos de Moïse e Durval. Para o vereador, não é uma questão política, é pessoal. Vidas pretas clamam por justiça.

Nesta praça está localizada uma igreja. Nela, a missa das 17 horas é celebrada pelo Padre Luiz Haas. O tom bucólico de oração vespertina é engolido pelas palavras de ordem. O sacerdote não sabe que é uma manifestação antirracista e teme a agitação. Ele interrompe a oração algumas vezes, questionando o público sobre o barulho que vem de fora. Alguns fiéis saem no meio da celebração e pedem para que os manifestantes parem com o alvoroço, mas não são atendidos.

– Racistas! Racistas! Racistas! – grita um dos militantes. O diálogo do Padre não funciona.

O grupo de manifestantes adentra o templo católico, Renato está entre eles e brada por justiça e pelo sofrimento de Moïse e Durval. Para desgosto de muitos – fiéis ou não – o protesto continua dentro da igreja. O local foi escolhido a dedo, trata-se da Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito e tem suma importância na história e memória dos negros do Paraná. Foi construída em 1737 por e para escravizados. É um local de contradições: durante a escravatura o santuário era o espaço em que os pretos expressavam a fé; a praça, por outro lado, era o espaço em que eram açoitados por seus senhores. A construção atual, contudo, não é a mesma. A igreja de hoje foi construída em 1946 sobre as ruínas do santuário original e do cemitério, onde muitos escravizados estão enterrados. A manifestação de Renato é pelos mortos, os gritos por Moïse e Durval ressoam por todos os pretos ali sepultados.

Embora alvoroçados, os manifestantes não destruíram, sujaram ou danificaram qualquer estrutura do templo, salienta o Padre Luiz. A Arquidiocese de Curitiba repudiou o caso, chamou de “desrespeito pelo lugar sagrado”, mas definiu a causa como nobre e sugeriu punição branda.

Curitiba, 22 de junho de 2022. O vereador Renato Freitas tem mandato cassado. Com 25 votos favoráveis e 5 contrários, o projeto de resolução determina a perda de mandato por “quebra de decoro”. Todos os parlamentares autodeclarados pretos se opõem à cassação. São eles: Carol Dartora (PT), Herivelto Oliveira (CID) e o vereador suplente Mestre Pop (PSD). Por conta de uma manifestação antirracista na igreja dos pretos, o vereador preto é expulso da câmara.

Angústia. É o que sentiu Dona Raimunda, mãe de Renato. O sentimento de impotência tomou seu coração quando viu o sonho do filho desmoronar diante dela. Esse anseio pela política vem desde muito cedo, conta.

Renato Freitas precisa de um descanso 73. Por conta do tumulto, a missa encerra antes do usual. Padre Luiz, então, vai à rua dialogar com os manifestantes.

– Ele sempre questionava tudo. Queria entender por que uns tinham muito e outros muito pouco. Me falaram que ele era superdotado, mas na época eu não levei muito a sério ... Hoje eu admiro muito o homem que ele se tornou.

– Minha mãe foi muito discriminada. Nordestina, paraibana, pobre e sem alfabetização. Uma pessoa invisível na selva de concreto.

Renato fala de sua família e relembra as origens, áridas e contusas. Sua mãe e avô foram retirantes, deixaram a Paraíba por conta da seca, da miséria e da violência. Dona Raimunda tinha 16 anos quando migrou para o estado de São Paulo, trabalhou como faxineira, doméstica e caixa de supermercado. A família assentou-se em Sorocaba (SP).

O pai de Renato compartilhava com ele o mesmo nome. Trabalhava como caminhoneiro e rodava o país. Também era dependente químico. A polícia o prendeu numa boca de fumo, em Curitiba, com drogas na mochila. Era o ano de 1983 e Renato já estava no ventre de sua mãe. O vereador nasceu em Sorocaba, mas o cárcere de seu pai no Paraná levou a família para Almirante Tamandaré (PR), quando estava com doze dias de vida. Renato de Almeida Freitas Júnior foi registrado no cartório do Barreirinha, em Curitiba, e o genitor compareceu escoltado pela polícia.

A família logo mudou-se para a Vila Macedo, em Piraquara (PR), novamente motivada pela transferência de presídio do genitor. De acordo com o Atlas da Violência, Piraquara é a cidade mais violenta do Paraná e a oitava mais violenta do Brasil. Renato morou lá até os 15 anos. A Vila Macedo é um bairro isolado, construído em torno do Complexo Penitenciário de Piraquara. O local também abriga um leprosário e um cemitério, sendo permeado pela morte.

– A rua me educou, a mim e ao meu irmão. Eu tive muito contato com a violência, com o crime e com a morte, diz o parlamentar, sem esconder o sentimento amargo que as memórias trazem.

Renato tinha 15 anos quando seu pai foi morto, pouco tempo após sair da prisão – era foragido da colônia penal. Antes de morrer, foi visitar a família, parou de bicicleta na frente da casa e saudou a todos através do portão. A causa de sua morte ainda é desconhecida, a família não sabe se foi um acidente ou

um assassinato. Em autobiografia, apresentada como dissertação de mestrado, o vereador cita o pai em duas sucintas linhas de texto – refere-se a ele apenas como “genitor”.

Renato também perdeu o irmão mais velho para a violência, João Paulo morreu com 24 anos, morto a sangue frio durante um assalto no estabelecimento em que trabalhava.

Naquela tarde de 5 fevereiro de 2022, Renato protestava pela mesma dor que agonizou durante toda a sua vida. Era pela morte daqueles que, como seus familiares, migravam pelo mundo em busca de paz, mas que encontraram a violência e, por fim, a morte. Os gritos de ordem que fizeram estardalhaço na Igreja do Rosário emanaram da rua, de um sentimento revolto, do luto inquieto e tórrido.

Durante o período de cassação, o vereador também fica impedido de disputar cargos públicos. Renato recorre ao Supremo Tribunal Federal (STF) e solicita a anulação do processo que o destitui do parlamento. Não desiste, mesmo inelegível e – inicialmente – sem recursos, faz campanha para Deputado Estadual no Paraná.

Brasília, 23 de setembro de 2022. O ministro Luís Roberto Barroso (STF) reverte a decisão da Câmara dos Vereadores de Curitiba. O processo que tirou Renato Freitas do cargo é considerado ilegal. À imprensa, Barroso conclui que a cassação de Freitas “ultrapassa a discussão quanto aos limites éticos de sua conduta”, envolvendo a liberdade de expressão de um parlamentar negro em defesa da igualdade racial. A uma semana das eleições, Renato está elegível a cargos públicos. A vitória vem no dia 2 de outubro, 58 mil votos o consagram com o cargo de Deputado Estadual no Paraná.

Da periferia à universidade. De parlamentar cassado a deputado eleito. Aos 38 anos, ele conquista uma posição cobiçada por muitos. É recebido de volta à Câmara como um campeão, mesmo aqueles que votaram por sua destituição o congratulam.

– Hipócritas – afirma.

Um sucesso. Pode-se dizer que Renato Freitas é um ícone.

Renato Freitas precisa de um descanso 75.

– O pessoal olha e fala ‘o cara é deputado estadual, mano’, ‘o cara é um sucesso’. Mas deixa eu te falar, as marcas do espírito jamais serão apagadas. As cicatrizes que eu carrego, nem uma eleição presidencial, nem se eu fosse presidente do mundo inteiro, seriam apagadas. Tem dia que eu acordo correndo da depressão. Tem noite que eu vou dormir cheio de revolta, cheio de tristeza, com saudades do que poderia ter sido se eu não tivesse encontrado a morte tantas vezes no meu caminho. Se eu sou um ícone, não sei. É contraditório, tá ligado?

A vitória vem com muito pesar. Demandou dele forças sobre-humanas e incontáveis dias sem descanso. Naquele 17 de outubro de 2022, o vereador concede entrevista em meio a uma agenda lotada de compromissos. Já pela manhã, seu corpo dá sinais de exaustão. Renato respira ofegante, tenta manter o sorriso e o bom humor, mas seus olhos revelam o completo oposto. Depois de narrar sobre sua vida, algo parece atordoar, um enjoo ou agonia. Ele pede um copo d’água a seu assistente, que prontamente corre para ajudar. Renato permanece ali na entrada do palácio; no sol, do qual diz tanto gostar. Ele toma um pouco d’água. Respira. Sorri. E torna ao trabalho, mais uma vez.

Os girassóis também florescem na primavera

Ana Júlia Ribeiro (PT) não é uma pessoa de muitos ídolos. As grandes referências dela são as pessoas que trabalharam na sua campanha, os amigos e familiares. Durante boa parte de sua vida, a família foi seu círculo social. Filha de pais chateaubriandenses, Ana têm nove tios, por parte de pai, e cinco, por parte de mãe.

Com o passar do tempo, aprendi que não há maior referência do que aqueles que convivem com você. As pessoas que me inspiram são quem tá junto comigo, quem se constrange comigo e quem oportuniza que, de alguma maneira, a gente consiga fazer algo pra mudar as coisas.

Ana lembra vividamente de um dia ensolarado, emoldurado pela música Girassol, da banda Ira, que a deixou apaixonada pelo sol na janela aos 7 anos. A grande viagem, aos olhos da criança, era uma visita ao seu tio, que mora em São José dos Pinhais. Destoante dos extensos quilômetros até a cidade do interior e da antiga casa da avó, onde Ana costumava passar as férias de verão da escola, é a primeira memória que vem à sua cabeça.

Hoje, se permanecer em silêncio pelas ruas do bairro Santo Inácio, na região oeste de Curitiba, qualquer um poderá escutar baixinho uma música do Pedro

Sampaio em uma das casas. O único indício de que ali mora a mais jovem deputada eleita para a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP) é um banner de campanha no portão.

Nos recentes dias de sol, entre entrevistas, recebimentos e envios de convites para compromissos de campanha e reuniões, Ana Júlia penteia os cabelos cacheados na sala de estar, de calça jeans e chinelos. Ali, a sua preocupação é arrumar o quarto, que ficou uma bagunça durante o primeiro turno. Sendo a bagunça a maior inimiga de Ana, ela prefere, às vezes, trocar a cama do quarto por um colchão no chão da sala até ter tempo de pôr tudo em ordem.

Além dos compromissos formais, Ana tenta recuperar um semestre de atraso de sua turma, para que possa levantar o canudo no próximo ano e se formar em Direito pela PUCPR. Pesarosa, mas pelo desejo de seguir um projeto maior, decidiu que deixaria a segunda faculdade, Filosofia na UFPR, em um ritmo não tão intenso. Atualmente, Ana escolhe uma matéria ou outra para manter vivo o que um dia foi um de seus sonhos: ser professora e estudante de Federal.

Estrategicamente, anos atrás, Ana optou pelo curso de Filosofia na Federal pela facilidade de ingresso. Apesar da facilidade, ela não passou. Pelo menos não na primeira chamada. Contudo, a vontade de entrar em Direito, que nasceu das conversas sobre política com o pai, não foi deixada de lado. Ana passou em todos os vestibulares que fez, mas foi seu pai quem a inscreveu em segredo.

Em um timing de fazer todo jovem feliz se questionar o quanto consegue aguentar, Ana começou as duas faculdades ao mesmo tempo e ainda, um estágio, que a ajudaria a pagar a faculdade. No meio da cidade, próximo a um dos bairros com maior poder aquisitivo de Curitiba, o Batel, um prédio com aspecto velho e cercado de coworkings e escritórios abriga um instituto discreto, mas com ideias revolucionárias, que funciona como um braço do escritório de advocacia para trabalhadores.

No silêncio dos corredores que fazem eco e reverberam o canto dos pássaros, pode-se sentir o cheiro dos restaurantes italianos nas proximidades e dos cafés recém-passados. É lá, no Instituto da Classe Trabalhadora (DECLARATA), que Ana Júlia construiu seus contatos e recebeu incentivo para ingressar na vida po-

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Quando as faculdades e horas remuneradas começaram a pesar, Ana negociou que cumpriria um mês de aviso antes de sair do trabalho para se dedicar exclusivamente aos estudos. Mas ninguém, nem ela mesma, lembrou que os trinta dias de aviso tinham vencido.

A convivência parece, quase que por osmose, agregar elementos e páginas que Ana pode consultar. Assim foi com os amigos que fez durante suas duas campanhas: em 2020, como vereadora e, em 2022, como deputada. Com brilho nos olhos, Ana Júlia revela uma inspiração secreta publicamente estampada no seu material de campanha: Luís Inácio Lula da Silva.

– O Lula só se tornou o Lula pra mim quando, no meio de um caos, a maior preocupação dele comigo era se eu tinha me inscrito no vestibular.

A jovem coleciona telefonemas do presidente na aba de ligações recebidas no celular. Os assuntos mais relevantes da conversa são os beijos que Lula mandou ao avô de Ana, grande fã do presidente; quando perguntou se ela se divertiu nas ocupações; como estava o ensino médio e, um tempo depois, foi ela quem ligou para informar que tinha ingressado na universidade e recebeu os parabéns de Lula.

Como um pobre diabo que não consegue esquecer, assim como na melodia de Nasi, Ana não esquece de ter recusado uma das primeiras ligações dele no meio de uma entrevista para o site UOL. Depois de três chamadas recusadas, o pai de Ana recebeu um aviso da figura que queria conversar com a garota.

Os compromissos de campanha e objetivos políticos da jovem parecem ter coincidido. Eleita no primeiro turno para ocupar uma das cadeiras da ALEP com 51.845 votos, Ana Júlia poderia começar a planejar seus primeiros dias de mandato. Contudo, com o chamado do dever, muitos dos planos foram colocados em pausa com a justificativa “após o segundo turno”. O período de preparação deu lugar a novos compromissos, como intervenções sociais, campanha nas ruas e conversas para virar votos. Até na casa do namorado, em um almoço de domingo entre compromissos eleitorais, o assunto se volta a uma dúvida pessoal:

Os girassóis também florescem na primavera 81. lítica. Por aqueles corredores, a estagiária acompanhou de perto a candidatura ao senado de Mirian Gonçalves e conheceu o namorado, Welliton Gerolane.

Devo comprar minha passagem pra Brasília? – Quase que como uma invocação, Lula decide ligar para a jovem enquanto aproveitam a comida de Marli Granowski, mãe de Welliton, que não conseguiu conter as lágrimas ao presenciar a cena:

– Achei que nunca ia votar no Lula… achei que o tempo já tinha passado. E agora eu já votei! E vou votar de novo. É viver a história de novo e eu tô muito ansiosa por isso. Eu vou [para a posse] nem que seja andando!

Mesmo diante de tanto entusiasmo, a incerteza ainda é uma hipótese a ser vivida. Ao se deparar com a pergunta “E se não for ele na posse em Brasília?”, Ana Júlia esmorece. Como se visse o vulto de um fantasma, a expressão animada e entusiasmada dela se transformam num olhar apreensivo e, quase em tom de conformidade de derrota e de cansaço pelo trabalho que terá, diz:

– Isso não é uma possibilidade… [Minha postura] não vai ser diferente daquilo que tem sido até agora. Vou continuar lutando em um movimento social, mas institucionalmente. Não vou abrir mão do projeto de esperança em que eu acredito. Mas tenho fé que vou pô-lo em prática e não defendê-lo.

Por ora, enquanto Ana Júlia se prepara para seu futuro como parlamentar, o desejo de ver o florescer de uma nova primavera de esperança e o amadurecer dos frutos dela no verão, como a concretização de um novo tempo de vida boa e feliz, fazem-na olhar em direção ao sol. Porém, para Ana, tudo deve ser feito para a mãe, Maria Silva Ribeiro, ver com bons olhos o trabalho que a filha tem mostrado. No fim do segundo turno, os planos antes do mandato são levar a família a um restaurante sem se preocupar com o valor dos pratos do cardápio, ver o mar, ir ao Beto Carrero e, assim como nos tempos de Primavera Secundarista na escola, participar de uma nova estação na política nacional.

Os girassóis também florescem na primavera

Uma folha qualquer

Lívia Berbel de Sousa Santana

“Eu sou só um indivíduo dentro desta força coletiva, entende? A gente crê no poder do nós.”

Com caneta e uma folha na mão, foi assim que Roberto Baggio começou a falar. Em uma sala do Cefuria (Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo), com um quadro de giz e uma grande mesa vazia - preenchida, apenas, por três letras nela esculpidas: MST. O Cefuria, aliás, é uma organização da sociedade civil que atua por meio da educação política, e que tem a sede no centro de Curitiba. Bem, sentamo-nos em volta da mesa vazia e, no início, foi ele que me entrevistou.

– Faz tempo que frequenta aqui? Sobre o que vamos falar? Por onde você quer começar?

Enquanto eu lhe respondia, ele anotava as palavras-chaves da minha fala naquela folha não mais em branco. Perguntou da minha história e só depois me contou a dele. Naquele dia, Baggio fez jus ao que sua amiga, Adriana Oliveira, me relatou depois.

Ele é o tipo de pessoa que conhece todo mundo. Quando visitamos os assentamentos do MST, ele me conta a história de cada pessoa que vem nos cumprimentar. Ele é um paizão, sabe?

Ao perceber que eu estava sorrindo, ela me disse, entre risos:

– Ele perguntou de você, né? Agora você sabe que tô falando a verdade.

Roberto Baggio – e não o ex-futebolista italiano – é dirigente nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e nessas eleições, assim como nas anteriores, está do lado de Luis Inácio Lula da Silva. Roberto, que nasceu no interior de Santa Catarina, em São Lourenço do Oeste, sempre esteve do lado daqueles que mais precisavam. O ativista veio para Curitiba a fim de terminar os anos no seminário, mas, depois de um ano na cidade, o padre pediu que ele e mais alguns colegas deixassem a missão, pois não via neles um chamado para a religião.

Talvez a religião, de fato, não fosse seu chamado. Mas foi durante o seminário, ajudando na pastoral e fazendo trabalhos no bairro, que uma das estrelas começou a brilhar. Em 1982, quando chegou no Paraná, o país estava passando pela ditadura militar e Baggio conta que se lembra do período.

– Existia muito medo, sabe? Eu lembro que no bairro do seminário as pessoas eram muito pobres. Nós ajudávamos a população a se unir e discutir essa situação. Nessa época, surgia o PT… a gente ajudou na consolidação do partido aqui em Curitiba.

Nessa época, também surgia o Movimento Sem Terra. Baggio trabalhou como organizador de infraestrutura do Primeiro Congresso do MST, em janeiro de 1985, e só depois foi convidado para ser um dos dirigentes. Depois, conversando com seu outro amigo e aprendiz Marcos Antônio, apelidado carinhosamente de Marquinhos, eu soube que a relação entre Baggio e o movimento não pôde ser deixada de lado após o evento.

– Você me pegou de surpresa, não sei se consigo separar o Roberto do MST. Ele respira isso aqui. Não existe ele sem o movimento… mas acho que a gente também não existe sem ele. O MST precisa de gente assim.

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Marquinhos também conta que, durante a pandemia, Baggio o ensinou a fazer tomate seco ali no Cefuria mesmo. Além de ter aprendido a receita, Marquinhos relata, com lágrimas nos olhos, que aprende diariamente com seu colega e amigo. Ele é inspirador.

– Ele é muito utópico, sabe? Às vezes, ele fala uma coisa e você pensa assim: é loucura. Mas eu tive a oportunidade de ver coisas que ele tinha falado há três, quatro anos, acontecerem. Ele cria as condições para que as coisas aconteçam. Vai de alma e coração.

Emoção, aliás, não foi o que faltou ao falar de Roberto. Adriana, sua amiga e parceira de luta, não segurou as lágrimas ao lembrar de momentos em que Baggio esteve a seu lado. Foi o amigo que celebrou o casamento dela, mas foi ele, também, que esteve com ela no momento difícil do divórcio. Ele a apoiou durante a gravidez, nos momentos de emoção, e não a deixou depois que os dois sofreram um acidente de carro juntos. Adriana, que faz aniversário no mesmo dia que Roberto, ainda conta, com um sorriso no rosto, que o amigo tem uma marca registrada: o doce de amendoim.

– O que não dá para deixar de falar é sobre o doce de amendoim. Todo mundo conhece esse doce. Em toda a festa, comemoração, ou ajuntamento nosso, ele faz. É uma especialidade dele.

Roberto também se emocionou ao contar sua história. Em 2018, quando Lula foi preso, o dirigente do MST foi avisado de que o ex-presidente seria enviado para Curitiba e que os militantes deveriam se unir. No dia 7 de abril, milhares de ativistas do PT e do MST estavam na frente da sede da Polícia Federal do Paraná quando Lula chegou. Até que ele fosse solto, em 2019, a base de apoiadores continuou por lá. Roberto coordenava a vigília, que se dividia em seções e setores diferentes, para a soltura do ex-presidente. Os militantes gritavam em uníssono para que Lula os ouvisse e colocavam pressão nas autoridades que o mantinham preso. Até que ele fosse solto, Roberto continuou na luta. Coordenava, ensinava, animava os parceiros e continuava esperançoso. Com lágrimas nos olhos, o dirigente contou que viu sua esperança se tornar realidade.

Na sala em que conversávamos, o espírito era de comoção. Fomos interrompidos, no entanto, pelos gritos de uma pequena menina animada.

Uma folha qualquer 87.

A menininha era Elô. Ao entrar na sala, Roberto a abraçou e disse que logo iria brincar com ela, mas precisava terminar de dar uma aula – na qual, aparentemente, eu era aluna. Elô aceitou a proposta e foi brincar lá fora, mas aquela pequena presença expôs uma outra parte de Roberto: avô. E não da forma convencional.

Elô nasceu durante a vigília para a libertação de Lula. Filha de ativistas do MST, a pequena menina aprendeu a chamar Roberto de avô porque seu pai o chamava, também, de pai. No batizado, Roberto foi escolhido para ser padrinho de Elô. Jane Kogus, a mãe de Elô e afilhada do dirigente, sente orgulho de ter alguém como Baggio tão perto.

– Minha filha já nasceu na luta. Está sendo forjada no MST. O Roberto é o vô dela, nem adianta falar que é só padrinho… ele é um exemplo pra todos nós, sabe? Cuida da gente como família mesmo.

Roberto também teve duas filhas ao longo de sua vida e foi casado durante longos anos. Hoje, suas filhas não moram em Curitiba, mas Baggio relembra que na eleição de 2002, quando Lula venceu pela primeira vez as eleições do país, ele e sua então esposa deixaram um bilhete para as meninas.

– Fomos votar e deixamos um bilhete. “Estamos indo votar no Lula, ele vai ganhar as eleições e vocês vão viver o governo dele!”

O Roberto daquele fatídico ano da prisão continua confiante. No fim da nossa conversa, aquela folha qualquer do início não tinha mais espaço algum em branco. A folha estava cheia de datas importantes de sua história, nomes que passaram pela sua vida. Ele, no entanto, a rasgou e me disse:

– Às vezes eu me emociono… mexe tanto, né? Obrigado.

A folha qualquer que nos acompanhou durante a conversa toda estava cheia de história, mas foi jogada fora. Apesar disso, no instante seguinte, a história continuaria a ser contada. Dias depois, após a vitória de Lula no segundo turno das eleições de 2022, entrei em contato com Roberto e ele, reafirmando seu espí rito interessado nas pessoas, me perguntou:

– Feliz com a vitória? Agora teremos um futuro, né?! Um futuro feliz...

88. OLHARES POLÍTICOS | Perfis

Sim. Um futuro feliz. Um futuro com pessoas como o Roberto: humano e esperançoso. Um Roberto professor, militante, pai, cozinheiro, avô, MST. Que continue a brilhar a esperança.

Uma folha qualquer

Ser imparável

Lorena Motter

– Você precisa assistir à série Borgen! – é o que o coordenador político diz. Aquilo martela em sua cabeça, deve ser algo importante para a campanha. Cansada, depois de um dia inteiro de farda, a Major Letícia se entrega ao sofá. Ao ter de decidir entre descansar e fazer a tarefa de casa, a ansiedade a consome. Será que dá tempo? Assistir a uma série e depois dormir? Parece um bom programa para a noite!

Borgen – o reino, o poder e a glória retrata a trajetória de Birgitte Nyborg e é uma impressão realista da mulher na política. Na trama, ela é recém-nomeada ministra das Relações Exteriores da Dinamarca, quando há a descoberta de petróleo na Groenlândia, fato que marca uma disputa internacional pelo poder no Ártico.

Isso é tão familiar: uma mulher que não para, dedicada quase que cem por cento ao trabalho, entregando sempre o melhor de si, reconhecida, porém por muitos ainda subestimada... É possível assemelhar Birgitte à Major Letícia.

– Quando ela terminou o mestrado, falou que estava cansada. Pouco tempo depois já estava fazendo um doutorado! Terminou e mais uma vez reclamou do cansaço. Logo depois estava fazendo MBA. E assim vai..., é o que conta Peter Pan sobre a ambiciosa irmã.

Letícia Chun Pei Pan, 46 anos, é major da Polícia Militar, dentista, empresária e, desde 2020, figura política. Workaholic e com mania de perfeição é a forma como seu marido Antonio Cruz carinhosamente adjetiva seus “defeitos”. Não menos importante, é fortaleza da família, esposa, parceira e, também, responsável por zelar por uma tartaruga-tigre-d’água chamada Wukuei, herança de seu falecido pai.

De origem chinesa, sendo a primeira geração de brasileiros na linhagem, sempre entendeu que disciplina, organização, estudo contínuo e respeito à hierarquia são valores que vêm de casa. Não é à toa que, posteriormente, tornou-se oficial da polícia.

Hoje, a major é muito respeitada no ramo. Há mais de 20 anos dedica sua vida ao serviço público. Com muita perseverança conquistou seu espaço, mesmo sendo uma mulher inserida numa instituição estruturalmente machista.

Tão essencialmente masculina que revela à Revista Sociedade Militar, em um levantamento de maio de 2022, que o efetivo feminino somado entre Marinha, Exército e Força Aérea equivale a 9.78% do total de oficiais.

Apesar de sua competência legitimada, não foi exceção ao preconceito, à descredibilização e à necessidade de deixar parte de sua vida pessoal de lado para conseguir subir na carreira, desafios enfrentados pelas mulheres.

Com tantas responsabilidades, a major não atingiu o sonho da maternidade.

O Censo do IBGE 2010 indica que as mulheres com mais instrução (mais de sete anos de estudo) estão sendo mães mais tarde, depois dos 30 anos. Fato que se aplica a Letícia, que tentou engravidar apenas aos 35 anos e, por fertilidade fragilizada pela idade, não obteve sucesso. Mas, como ela mesma sempre diz:

– Não existe coincidência, portanto se aconteceu, é porque tinha que ser.

Esse mantra que a major carrega é a razão pela qual nunca deixou se abalar por nada. Quase que irritantemente positiva, sabe como manter a cabeça erguida. Usa a decepção como força para a mudança. Talvez seja esse o motivo que a levou a entrar na política.

Não desejava que sua candidatura fosse vinculada apenas a uma cota de mulher no partido. Não queria ser vista como candidata laranja. Queria se sentir

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Para ela, assistir a Borgen se torna um vício, uma imersão no aprendizado político. Letícia, que em sua última eleição (2022) concorreu como deputada federal, deparou-se pela primeira vez com uma campanha individual e conquistou 3780 votos no Paraná.

Aos olhos estereotipados, imagina-se que uma militar política irá reproduzir alguns preconceitos estruturais da instituição, tais como o policial super-herói/ máquina, sem direito a erros e à humanização, e voltando-se ao machismo.

Para isso, Letícia, que também é bailarina clássica formada pela Escola do Teatro Guaíra, realiza um jeté e passa por cima de qualquer uma dessas expectativas. Vem para a eleição, levantando bandeiras como a assistência à saúde mental dos policiais militares, rede de apoio aos oficiais, combate ao feminicídio e incentivo à participação das mulheres na política.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) confirmou que o suicídio entre policiais civis e militares cresceu impressionantes 55% entre os anos de 2020 e 2021. Dentre as corporações, a Polícia Militar foi a que mais registrou casos no período, um aumento da ordem de 54%. A major, que já presenciou algumas vezes essa fatalidade de muito perto, conta que quando isso ocorre, a instituição cobra os superiores, em especial o oficial da saúde, porque teoricamente são eles que devem cuidar da tropa. Em contrapartida, a corporação também carece de uma assistência psicológica e uma rede de apoio aos policiais. Assim, ela pretende mudar essa realidade.

The future is female (o futuro é feminino) é o nome do primeiro episódio de Borgen, e, também, o que Letícia acredita.

– A mulher é politizada, só não absorveu e se apropriou disso, afirma. Ainda, complementa sua opinião com a ideia de que mesmo com as inúmeras tarefas.

As mulheres representam a maioria das lideranças de comunidades, que normalmente são as lideranças mais proativas. Sobre o âmbito político, afirma que a mulher não se vê com tempo e força necessária, o que é um equívoco.

A duas quadras 93. como protagonista, ser uma Birgitte do Paraná, fazer a diferença para a população, em especial para mulheres, e para a segurança pública.

– A mulher tem que se colocar nesse posicionamento de protagonismo e colocar seu nome à disposição para concorrer a um cargo eletivo. Não é fácil! Há um preconceito, sim!

Tanto que mesmo correspondendo a 52,2% da população brasileira em 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres estão bem distantes de serem maioria na política nacional. Apenas 15% dos integrantes da Câmara Federal são do gênero feminino. No Senado, a porcentagem é ainda menor: 12%. Por isso, a major acredita que, juntas, mulheres se candidatando e votando em mulheres, elas podem transformar esse cenário.

Faltando 53 405 votos, está em situação suplente.

– Por ser sua primeira oportunidade de se apresentar aos paranaenses como alternativa e, com os meios que ela teve, entende que obteve uma ótima votação – é o que conta o marido de Letícia.

Birgitte nunca desistiu fácil, não seria diferente com a paranaense. Ela sabe que é uma jornada, na qual deu apenas o primeiro passo. Portanto, ainda haverá muito mais da Major Letícia na política.

A duas quadras

A presidente do clubinho do bairro

Maria Fernanda Vieira Dalitz

Curitiba, 13 de março de 1993.

Caro Prefeito Greca,

Não sei se o senhor já ouviu falar de mim, mas eu sou a Roberta Cibin, tenho 12 anos, e sou a presidente do clubinho do bairro Capão da Imbuia. O nosso clubinho é bem legal, sabe, a gente faz festa junina, concurso de dança e outras festinhas. Ano passado fizemos uma vaquinha para construir a sede do nosso clube e conseguimos montar até uma biblioteca.

Mas o que eu queria pedir é que o senhor arrumasse as nossas ruas. É que as calçadas daqui do bairro vivem cheias de buracos, dá muito problema e nossos pais estão sempre reclamando. E como o senhor é o prefeito, tenho certeza que pode nos ajudar!

Um abraço, Roberta Cibin

Durante o primeiro mandato de Rafael Greca como prefeito, em 1993, Roberta teve seu primeiro contato com a política. Para alguns, ser presidente do clubinho do bairro não significa nada, mas para a menina, mostrou que todos podem fazer política, até uma criança. Roberta, incrédula com o tanto de buracos no asfalto de sua rua, e com a responsabilidade que tinha com o bairro por causa de seu cargo, decidiu tomar uma atitude. Enviou uma carta ao prefeito exigindo melhorias.

A menina esperou por horas, dias e semanas. Regina Cibin, mãe de Roberta, assistia todos os dias à angústia de sua filha. Quando voltava da aula, a primeira coisa que fazia era olhar no monte de cartas que ficava no balcão da cozinha, esperando ansiosamente a resposta do prefeito. Até que um dia a carta chegou.

– ROBERTA, CORRE AQUI! CHEGOU UMA COISA PARA VOCÊ!

– gritou a mãe da menina enquanto segurava um envelope em sua mão.

Em um piscar de olhos, a carta que antes estava nas mãos da mulher, agora era devorada pela jovem. Apesar do ânimo de ter conseguido sua tão esperada resposta, Roberta tinha expectativas maiores. A carta era bem genérica e mais agradecia a mensagem do que prometia melhoras. Deu a impressão à garota de que o representante não deu muita atenção à carta. Ela não sabia se o motivo era ser muito atarefado, se não se importava com seu bairro, ou se a razão era ela ser apenas uma menina. Mas independente disso, a garota não se abalou, já que até hoje a política faz parte da vida de Roberta Cibin.

Agora adulta, a mulher ainda passa por decepções políticas, mas por motivos diferentes. Em 2022, ela não conseguiu votos suficientes para o cargo de deputada estadual, com 4.134 votos. Roberta Cibin, candidata do Partido Democrático Trabalhista (PDT), saiu com o coração apertado da campanha. Mas esse aperto não foi de tristeza. Longe disso. O coração de Roberta saiu apertado de esperança.

– Apesar de eu não ter ganho, saí uma pessoa melhor dessa campanha. A troca que você tem com as pessoas, o quanto você aprende com elas é único. Foi muito louco ir às ruas e perceber que não tô viajando, sabe? Existem outras pessoas lutando pelas mesmas causas que eu. Eu não estou sozinha.

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A ex-candidata é uma feminista convicta, ama ler a ativista norte-americana bell hooks e a escritora canadense Margaret Atwood. A defesa dos direitos LGBTQIA + é crucial para sua militância. E a valorização da primeira infância foi sua principal causa nessa última campanha, muito influenciada por sua filha que está nesta fase. Lina, de Lina Bo Bardi, foi o nome que sua mãe escolheu para a pequena, inspirada na arquiteta que desenhou o prédio do Museu de Arte de São Paulo (MASP), na capital paulista.

Roberta foi uma das responsáveis por trazer o projeto Rock Camp para Curitiba. Desde sua primeira edição na cidade, em 2018, o movimento faz muito sucesso. Já contou com a presença de 180 campistas, sendo que toda edição tem 50% das vagas reservadas a bolsistas e 240 vagas para voluntários. A programação conta com palestras, oficinas e shows o ano inteiro, mas o momento mais esperado é a colônia de férias.

Durante o mês de janeiro, os campistas passam de segunda a sexta-feira aprendendo um instrumento, formando uma banda, criando um visual e nome para seu grupo musical. E no final se apresentam no show de encerramento da colônia. Além da parte musical, o projeto faz questão de apresentar debates sobre direitos humanos, feminismo e questões LGBTQIA +. Assim, o projeto tirou a palavra “Girls” de seu nome para incluir maior pluralidade de gêneros. Hoje, mulheres, não bináries e pessoas trans são aceitas como campistas ou voluntárias.

E foi nesse espaço que o incentivo para Roberta entrar na política surgiu. As participantes, assustadas com o resultado das eleições de 2018, discutiam o alcance social do projeto. Apesar de as ONGs serem uma maneira de suprir as desigualdades que o governo não alcança, elas também têm seus limites. O projeto mudava a vida de diversas pessoas, mas a mudança efetiva é estrutural. E sem representantes parlamentares de suas pautas, a luta fica mais dificil.

Desse modo, Marlisi Rauth, que conheceu Roberta há 20 anos em um show no bar underground Curitibano 92 graus, estava presente na reunião do Rock Camp quando esse debate surgiu. E indagou às colegas o porquê de elas mesmas não se representarem na política.

A presidente do clubinho do bairro 99.

Eu acho que pessoas como nós deveriam entrar para a política também. Chega de homens cis, brancos e héteros decidindo o que é mais importante para a gente. Eles nunca vão nos priorizar.

A Roberta, que até então nunca tinha se imaginado na política de forma partidária, ficou se perguntando: “E por que não eu?” Mesmo que de forma indireta, a política sempre fez parte do seu dia a dia. Seja como presidente do clubinho do bairro até ser coordenadora de projetos sociais, a luta coletiva sempre foi fundamental para sua identidade.

Ela passava a colônia de férias inteira incentivando as meninas a se engajarem, a se defenderem, a se representarem, mas esqueceu que aquilo poderia aplicar-se a si mesma e que ela mesma poderia ser a representante que tanto almejava.

Apesar do avanço do conservadorismo no país, Roberta acredita que há um espaço para as mulheres progressistas ocuparem na Câmara. Em quase 170 anos da Assembleia Legislativa do Paraná, nunca houve um número tão grande de mulheres eleitas ao legislativo como nas eleições de 2022. A partir do próximo ano, além da bancada feminina que irá permitir a deliberação conjunta de votos das mulheres, dez cadeiras serão ocupadas por representantes femininas, o dobro da última legislação.

E assim, a ativista espera ser uma dessas mulheres no futuro. Por enquanto, Roberta Cibin vai aproveitar o convívio da filha e daqueles a quem ama. Com o fim da campanha, ela pretende retomar seus estudos musicais em baixo elétrico e voltar com a banda de Garage Rock que tem com seu companheiro e amigas.

Mas, a política não saiu do jogo. Muito pelo contrário. Além de seus projetos sociais, a aspirante à política vai usar esse tempo para se preparar e se engajar com a comunidade. Em 2024, espera conseguir uma cadeira na Câmara Municipal. E torce para ser eleita por uma prefeitura mais humana. E assim, diferente daquela prefeitura que, em 1993, não deu a devida atenção à carta da presidente do clubinho do bairro. 100. OLHARES POLÍTICOS | Perfis

Do protesto à câmara

Trevisol Bridi Novembro de 2010. As ruas de cinco capitais do Brasil se enchiam de jovens protestando contra as falhas da prova do ENEM daquele ano. Rodrigo, estudante inquieto do terceiro ano do ensino médio no colégio Dom Bosco de Curitiba, incomodado com a situação e com seu senso de liderança desperto desde então, decide tomar a frente de uma manifestação realizada pelo Orkut, rede social mais usada pelos jovens àquela época.

A vontade de fazer a mudança se destacava desde então. Em um timing de fim de escola misturado com um período turbulento pelo qual todo jovem passa, o garoto de 17 anos, que amava Física e Matemática, via-se cheio de questionamentos e dúvidas sobre quais escolhas tomar dali para frente. Em meio a isso tudo, existia a referência do irmão mais velho e, decidido a seguir os mesmos passos, Rodrigo optou e foi aprovado em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) no ano de 2011.

A ânsia por mais e o desassossego com o pouco existem dentro de Rodrigo Marcial até hoje. A faísca da vontade e curiosidade política nunca se apagou dentro dele. Questionando-se o quanto ainda poderia aguentar, ele decidiu começar simultaneamente o curso de Economia na FAE Business School, também situada em Curitiba.

No curso de Direito, o contato com a política foi aumentando cada vez mais. Logo no primeiro ano da faculdade, sua eleição para o conselho deliberativo já mostrava o que seu futuro reservava. O ano seguinte serviu para a formação da sua visão de mundo. O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, foi sua primeira e principal influência de viés libertário. A partir dessa e de várias outras obras da LVM Editora, sua visão mais liberal foi sendo moldada.

Rodrigo lembra com muito carinho dos anos de 2013 e 2014. Eleito para a presidência e vice-presidência do Partido Democrático Universitário, ele consegue, no meio de todo o comprometimento, ter o primeiro contato com a esposa Raíssa, com quem é casado até os dias atuais.

Aos 21 anos, o afastamento da vida política veio repentinamente. Chamado para trabalhar em um cartório na cidade de Tunas do Paraná e com duas graduações a terminar, Rodrigo decide colocar o pé no freio dessas experiências vivenciadas até então. Conta, em meio a risadas, sobre os casamentos que realizou durante o tempo que ficou por lá. De um casal, especialmente, chegou a fazer o casamento e também o divórcio.

Oficialmente advogado e formado nas duas graduações, o ano de 2016 vem como um divisor de águas na vida de Rodrigo. Anos atrás, a decisão de cursar Economia e Direito já o encaminhava para esse lado da política. A escolha de cursar um MBA de finanças e mercados capitais na FAE foi a principal responsável para o início da sua carreira no meio político.

A instalação de um outdoor com uma propaganda do Partido NOVO em frente à faculdade chamou sua atenção. O painel era convidativo e as ideias sobre vida e política ainda precisavam de amadurecimento. A partir dali, as escolhas se tornaram propósito e a vontade por alcançar sempre mais levaram-no até a posição em que se encontra hoje.

Lançou-se nessa experiência com o apoio do seu amigo de faculdade, e hoje, assessor, Victor Machado. Com uma candidatura ao lado de mais 15 pessoas, Victor relembra os 1.111 votos conseguidos pelo amigo, resultado das aventuras noturnas pelos bares curitibanos, compartilhando ideias e garrafas de cerveja com a população. 104. OLHARES POLÍTICOS | Perfis

A ideia de fundar e ser integrante de um grupo de estudos chamado Liberalismo e Democracia, ainda nos anos de faculdade foi uma semente da paixão pela docência e da vontade de compartilhar conhecimentos com os outros. Com o desejo de lecionar ainda vivo dentro dele, terminando o MBA, logo emendou um mestrado e começou a dar aulas nas disciplinas de Direito e Economia na FAE e na ESIC, no ano de 2020.

Um ano atípico na vida de Rodrigo, diga-se de passagem, mas que, com certeza, traria muitos frutos. Na metade de 2020, casou-se no civil com a esposa Raissa Assis, que conta sobre a escolha mútua na época de morarem em um condomínio que fosse localizado perto de uma quadra de tênis, hobby compartilhado pelos dois há bastante tempo. Em meio a risadas, Raissa lembra da adoção do primeiro gato do casal e da dúvida de ambos sobre qual nome dar para o filhotinho. A ideia de Rodrigo de homenagear um de seus economistas favoritos prevaleceu, e assim nomearam o felino de Jean-Baptiste Say, da Lei de Say.

Com uma campanha mais estruturada e com mais apoiadores, Rodrigo foi selecionado como primeiro suplente nas eleições de 2020. Na mesma noite, uma das vereadoras eleitas aproximou-se de seu ouvido e discorreu sobre a tentativa de engravidar e a suposta troca de posições que poderia vir a acontecer entre eles. Desde então, a ansiedade pelo tão sonhado posto na Câmara aumentou.

Dois anos e um casamento depois, Rodrigo, agora com 28 anos de existência, vê-se dentro do próprio gabinete na Câmara Municipal de Curitiba. A vereança chega no mesmo momento da campanha para deputado federal, testando todos os limites que Rodrigo nunca teve. Um espasmo esofágico no coração vem como um alerta da exaustão e da intensidade que se impunha desde novo, e a decisão, com a esposa, de se licenciar das duas faculdades onde trabalhava para se dedicar somente à candidatura, foi vista como uma necessidade.

Assumindo como vereador pouco antes das eleições que concorria para deputado federal, Rodrigo, que sempre gostou da vida mais privada, não sabe dizer se ainda existe a diferença entre o Rodrigo Marcial, pessoa particular, e a pessoa pública. A chave dessa transformação não é fácil de se virar, mas acontece por situações pelas quais cada um se propõe a enfrentar e por cargos que lhe são impostos.

Do protesto à câmara 105.

O garoto nerd, fissurado por Senhor dos Anéis e jogos de videogame, teve de ser deixado de lado, mas ainda hoje, existe dentro do Rodrigo Marcial. O mesmo Rodrigo que não enxerga nada disso como uma escolha, mas sim como um propósito. A quietude nunca lhe pertenceu e sabe que ainda tem muito a ser e a mostrar, mas é necessário diminuir o ritmo intenso e deixar um pouco de lado o suspensório e o terno de todos os dias.

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A jornada que mudou tudo e o presente que não muda nada

Desanimada pela dupla reprovação consecutiva vinda das tentativas de entrar na Universidade Federal do Paraná, Priscilla Drosdek juntou suas economias, pediu as contas na lojinha de impressões de fotos onde trabalhava e embarcou numa aventura de redescobertas, deixando para trás São José dos Pinhais, cidade onde sempre morou. Com a recente maioridade da filha, seu João, que sempre a controlou muito dentro de casa, surpreendentemente concordou com o processo de intercâmbio.

Visto apenas nas fotografias, o monumento mais alto de Paris passou a fazer parte do cotidiano da brasileira. A Torre Eiffel, estrutura em ferro, é muito mais imponente do que nas imagens.

O sustento na Europa começou do trabalho como babá. Buscando as crianças na escola apenas no final da tarde, sobrava-lhe tempo para aprimorar o francês. Foi na biblioteca anexa ao Museu de Arte Moderna (MAM), no centro de Paris, que conheceu o que jamais imaginaria ser uma das razões da sua vida.

– Imagina! Eu estava no berço da Sociologia, estava na França, com todos os autores da Sociologia lá. O primeiro livro que eu li, inclusive, foi do Bourdieu. Para mim, foi tipo “O que esse cara tá falando?”.

“Sociólogo do povo”, o francês Pierre Bourdieu (1930-2002) foi um excepcional intelectual do século XX. Sua defesa da interdisciplinaridade nas ciências humanas e sociais é referência para o mundo, e também para Priscilla.

Folheando as páginas dos livros, o desejo de participar de causas sociais floresceu ainda mais. Conhecidos como “frios”, os franceses se aquecem quando o quesito é luta e resistência. Priscilla vê o histórico de militância muito presente, possivelmente, pelas revoluções e guerras que se travaram no território.

No crepúsculo da noite, conversas surgiam entre um copo e outro. No bar Le Tambour, Priscila é acompanhada por Claudia Kawaijiri, amiga com quem foi para a França. Debatiam sobre a viagem, sobre a vida, sobre quaisquer coisas que preenchessem o tédio. Claudia conta que não se esquece de nenhum momento:

– A gente até chegou a ler um livro inteiro juntas e ao mesmo tempo.

Tão grande quanto as expectativas de viver em um novo país foi o balde de água gelada que caiu sobre a cabeça da brasileira. Quando percebeu, estava sem trabalho. O uso de bares como divertimento se tornou uma forma de sobrevivência para as duas amigas. O período do visto de turismo tinha expirado. Viver de maneira ilegal e passar fome não estava programado.

– Uma vez eu vi uma mulher carregando compras no mercado e me deu vontade de roubar a comida dela.

Uma brasileira, o que já era motivo de discriminação por parte de vários franceses, sem visto e passando fome. Estava estabelecida a fórmula para o desastre. O desespero batia à porta de Priscilla.

Sorte. É como ela denomina o acolhimento por parte de outros imigrantes para com ela e com Claudia na cidade da moda. Após dias passando fome e sentindo a solidão bater à porta, os sentimentos de validação e refúgio nasceram. A ajuda veio de africanos, de um casal de portugueses e, é claro, da “mãe” cubana que lhe deu abrigo por três meses, sem cobrar nada em troca. “Minha mãe” é como Priscilla a chama até hoje.

Os 19 anos chegaram e a saudade de casa também. O sentimento de exclusão era uma sensação diária. Era hora de voltar.

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No aeroporto, o julgamento por parte dos franceses continuou.

– Onde você foi prostituta? ressoou a pergunta do policial... Imediatamente, a negação e a contradição surgem no ambiente. Imigrante, ilegal, mulher, negra e brasileira. A jovem sabia dos preconceitos que enfrentaria no país. Mas ser acusada de ser prostituta? Isso já era demais. Depois de explicar o real motivo da viagem, Priscilla foi liberada para retornar ao Brasil, mas não sem antes colocar mais uma experiência negativa na bagagem emocional.

A jornada na França acabou depois de um ano de saída do Brasil. Claudia não acompanhou a amiga, a partida dela só aconteceria três anos depois.

Ninguém escolhe passar fome. Nunca lhe faltou nada essencial na infância. Comovida com a situação que passou no outro continente, a vontade de ajudar pessoas e colocar-se no lugar do próximo surgiu “a todo o vapor”. Ela não trabalha na ONU, como no sonho de criança, mas se vê uma pessoa passando fome na rua, faz de tudo para alimentá-la.

Filho de peixe, peixinho é. Os dois anos de aposentadoria de dona Mara Drosdek (pede para ser chamada só de Mara), mãe de Priscila, são curtos perto dos 36 anos lecionando como professora de Língua Portuguesa. Uma inspiração para as duas filhas, já que Sheila, irmã de Priscila, é professora de Matemática. O pai também não ficou para trás: por um curto período de tempo, dava aulas como um “bico” na ajuda financeira da família.

O plano de estudar na UFPR foi aos poucos se dissolvendo. Já o plano da graduação em Sociologia, não. Após terminar um curso de marketing, Priscila deu início ao sonho impulsionado em Paris e matriculou-se na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Enquanto prepara o creme de cobertura do bolo de chocolate que os netos, filhos de Sheila, tanto queriam, Mara se emociona com as lembranças que reverberam na memória. A falta da filha, no período de partida para a França, foi a motivação para ela e o esposo comprarem uma chácara no bairro da Roça Velha, também em São José dos Pinhais. Mal sabiam que, mais tarde, lá seria fundado o projeto “Vaga-lume”, estruturado por Priscila e ligado à natureza e à sustentabilidade.

– Minha filha sempre está ligada a essas coisas, aos projetos sociais.

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Calada e caseira, essa é Priscila Matos Drosdek, hoje com 35 anos. Na arte de ser professora, a paixão encontrada em outro país está perdendo o sentido em meio à introspecção.

O campo da Sociologia analisa e compreende de forma científica os processos sociais, culturais e políticos. Falar de política sempre foi polêmico, principalmente em sala de aula. É falha a tentativa de lecionar sem ressuscitar fantasmas guardados dentro dos livros , levando a embates com os alunos, com os pais e, até mesmo, com a própria escola. O cuidado com o modo de falar sobre o assunto em frente à turma é intenso. Não deixar resquícios de uma possível opinião particular amedronta e silencia a professora.

– Quando falo de democracia em sala de aula, não expresso meu ponto de vista para os estudantes. Meu intuito é explicar o que se entende por democracia no campo da sociologia. O problema é que, ao entrar no assunto, sempre há a famosa frase:

– Nossa, você é PT! Eu entendo a cabeça dos jovens. Eles ainda precisam ter uma vivência, ter as experiências do mundo. Porém, isso vem de casa.

Na pandemia da COVID-19, em 2021, as aulas foram dadas no formato on-line durante o período de isolamento social, quando os estabelecimentos de educação foram fechados. Um pai acompanhou alguns conteúdos ministrados para o terceiro ano do ensino médio, em suma voltados à política, e ameaçou denunciá-la. A alegação foi de que a professora de Sociologia e o professor de Geografia traziam muitas informações sobre comunismo nas aulas.

– É engraçado porque eu não me lembro de ter falado a palavra “comunismo” nas minhas aulas.

Quando suas mãos não estão impregnadas com o pó de giz branco, ela luta pelas mulheres, pelos indígenas, pelas minorias e, por isso, sempre esteve ligada a protestos e manifestações. Sua roda de amigos, por conta do contexto vivido, é “PT”. Mas ela tem uma linha ideológica um pouco diferente de muitos deles.

– Eu sinto a necessidade e nunca deixei de votar. E os “agitadores” não votam, né?! O meu voto é utilitário. Eu voto e voto racional mesmo.

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Foi na luta pelo transporte público de São José dos Pinhais, em 2014, que conheceu Bardo, apelido carinhoso dado por ela a Ricardo. Ricardo é tímido para falar, mas não poupa fôlego para contar as batalhas que enfrentaram juntos.

– Começamos fundando o Movimento do Passe Livre (MPL). Lutamos por alguns anos, e quase conseguimos aprovar um projeto de lei na câmara. Foi assim, por muito pouco. Uma pena que não conseguimos.

Desde o dia 2 de outubro, a professora não dava as caras na casa dos pais. Por serem “bolsonaristas”, política é sempre um tabu. Como tudo que vai, volta, foi visitá-los e o esperado aconteceu.

– Quebramos o pau.

No final, os amigos também são família. É com eles que Priscila pode dialogar, trocar ideias e falar sobre o que está acontecendo, sem amarras.

Esmorecida pela sensação de repressão, incrédula com as eleições de 2022 que a caixa de Pandora foi destampada e tudo que é de ruim foi propagado no Brasil. Não há esperança alguma caso o candidato opositor a Luiz Inácio da Silva (Lula) ganhe. A professora acredita que a destruição causada nesses últimos qua tro anos não pode ser recuperada totalmente na mesma quantidade de tempo e, mesmo se o candidato Lula ganhar as eleições no 2º turno, nada está garantido.

– As portas do inferno foram abertas e eu acho que não será fácil fechá-las.

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Em meio à fé

Thaynara Goes

Na alvorada das 4 horas da manhã, Caroline levanta da cama e parte para o banho: será um dia especial e cansativo. Realizado a cada dois meses, o culto de consagração faz parte de um conjunto de celebrações religiosas ansiadas por ela.

Na casa cheia de porta-retratos com fotos de família em molduras coloridas e plantas medicinais, Caroline se arruma e veste a roupa de domingo no seu filho, Miguel. Em seguida, ela e sua família partem para a Assembleia de Deus, sediada no bairro Iguaçu, em Fazenda Rio Grande. A celebração bimestral tem como foco rogar por paz para as pessoas próximas. Embalados ao som dos hinos que reverberam por todo o templo, cantados a plenos pulmões pelos fiéis, Caroline se sente acolhida. Mas nem sempre foi assim.

Aos 24 anos, Carol, como é chamada pelos amigos e familiares, foi batizada na igreja evangélica. Influenciada principalmente por Yara, esposa de seu primo, ela começou a frequentar a Assembleia em busca de um lugar que afirmasse sua identidade. Contudo, os convites nem sempre vinham de forma amigável: houve vezes em que os comentários deprimidos de Caroline, derivados de sua história de vida pontilhada por traumas familiares, resultaram em contestações passivo-agressivas por parte de Yara, que tentava a todo custo aproximá-la da religiosidade, nem que fosse na marra.

Ao fazer parte de uma nova religião, alguns hábitos foram se transformando com a ajuda dos fiéis do templo. Pagodeira de carteirinha, Carol encontrou conforto ao descobrir a existência de grupos de pagode gospel, o que fortaleceu sua relação com a espiritualidade. Mas alguns deles foram mais difíceis de serem adquiridos, como o uso regular de saias e vestidos, principalmente durante as constantes ondas de frio do clima subtropical da região metropolitana de Curitiba.

Perto das 7 da manhã, Carol sai no meio do segundo ato da consagração e caminha em direção ao Colégio Estadual Cunha Pereira, localizado na mesma rua que a igreja. Por coincidência, a celebração caiu no mesmo dia do primeiro turno das eleições de 2022, quando foi designada para trabalhar como secretária da seção eleitoral.

Ela se registrou para trabalhar no pleito por conta das horas complementares para se formar. Como quer retomar os estudos em Recursos Humanos, precisará dos certificados das atividades extracurriculares para a conclusão do curso. E, também, pelas folgas: a mãe de Caroline, Marli, diz que a jovem moldou sua vida a partir da responsabilidade, muito por conta de ter cuidado dos três irmãos mais novos durante a adolescência e por ter observado as brigas entre seus pais, instigadas pelo comportamento do pai alcoólatra. As brigas familiares não desgastaram apenas o casamento dos pais, mas também o relacionamento dela com o progenitor, com quem não tem uma conversa de verdade já faz algum tempo.

Carol trabalha de segunda a sábado como repositora em um supermercado há quase três anos. O cansaço parece fazer parte da liga que cimenta os núcleos de sua vida. Por isso, chega na seção 318 e bate o ponto no terminal dos mesários com determinação.

Pela manhã, a zona de votação apresentou um fluxo intenso de eleitores que formavam filas esperando enquanto conversavam sobre os candidatos nos quais iriam votar. Enquanto organizava as filas e verificava os documentos, Caroline observava as pessoas com curiosidade, notando poucos adesivos ou camisetas que representassem algum partido ou candidato. Será que poderia acontecer alguma confusão?

116. OLHARES POLÍTICOS | Perfis

Briga, briga, não teve. No entanto, perto do horário do intervalo, houve uma atribulação: ao tentar digitar o número de um candidato a deputado, uma eleitora reclamou que não conseguia votar no representante que queria. De prontidão, Carol e seus colegas apresentaram uma tabela estilo “colinha”, com o nome e número dos candidatos, que ficava disponível em todas as seções. Depois de minutos de procura, não acharam o número da candidata na tabela.

Bufando, a eleitora saiu do colégio reclamando que a urna estava com problemas; afinal, ela não conseguia votar em quem gostaria. Mais tarde, no horário de descanso, o chefe da zona resolveu procurar o número da candidata a deputada na internet. Resultado: a mulher era, sim, candidata a deputada. Porém, ela concorria pelo estado de Santa Catarina. O estranhamento passou e gerou boas risadas entre os colegas de seção.

Com o mesmo beabá de verificação de documentos e organização das filas, o dia prossegue sem maiores acontecimentos. No fim do dia, Carolina usa os custosos 45 reais que ganhou por ter trabalhado na zona eleitoral para chamar um Uber e ir para casa, que fica a cerca de 40 minutos a pé do colégio. Lá, ela se arruma para ir para o culto noturno, um reencontro ansioso que encerra o dia em meio à fé.

Tempestade de areias e ideias

O dia 8 de outubro de 2022 causou uma reviravolta inesperada em Curitiba. Diferentemente do resto do mês até então, as nuvens escuras abandonaram o céu por algumas horas enquanto o Sol e seus 24 graus brilhavam no asfalto quente e refletiam nas janelas quadriculadas de um café. O ambiente abafado, quase escondido das pessoas, estava cheio de árvores altas e pessoas com roupas leves e coloridas. Apenas destoava Oscar Papke, um garoto de cabelos e bigodes loiros que trajava sua camisa vermelha e uma calça de moletom azul-marinho.

Seu pai, Nutti Papke, formado em educação física, havia recebido um convite para ser o técnico do time “Al-Faisaly”, na cidade de Harmah. E acompanhá-lo era uma proposta irrecusável. Portanto, há um ano, um mês e alguns dias, o garoto de esquerda, que já se autodenominou radical embarcava em um avião da Turkish Airlines em direção a Istambul, na Turquia (um dos poucos países que aceitava brasileiros durante a pandemia do COVID-19). Em seguida, mais uma vez em um avião, ele finalmente pousou na Arábia Saudita.

Ele levava consigo referências de obras como Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e para quem não sabe, são ficções distópicas sobre quedas de regimes totalitários. Essa era a pessoa que estava a horas de desembarcar em um país com governo de monarquia absoluta, em que o atual rei, Salman bin Abdulaziz Al Saud, manda e quem está abaixo obedece.

Tendo a proibição de usar bermudas no país, o costume se infiltrou dentro de sua cabeça. Não é à toa que Oscar Papke, mesmo com uma gota de suor escorrendo por sua testa, não abandonava a vestimenta, que chegava até a ponta de suas meias. Outros trejeitos e comportamentos também o acompanharam na volta ao lado oeste do Oceano Atlântico.

Como escritor de um pequeno jornal independente chamado “Folha Um”, a liberdade de ler e escrever sem restrições é algo pela qual ele ansiava. É o que se torna perceptível quando ele relembra a morte do correspondente do Washington Post, o jornalista saudita Jamal Khashoggi, assassinado em 2018 dentro da embaixada do próprio país, na Turquia. E balançar a cabeça indignado e bufar era tudo que podia fazer para expressar o sentimento dentro de si.

O país em que o dia virou noite, envolto em uma tempestade de areia no dia 17 de maio deste ano, que afetou mais de mil pessoas por problemas respiratórios, na verdade não lembra nem um pouco a mente complexa do Oscar. Pelo menos é o que diz Arthur Matos, amigo e simpatizante de algumas ideias políticas. “A minha cabeça é mais tempestuosa, mas a dele é muito centrada”. Mas mesmo vindo de famílias e realidades completamente diferentes, suas ideias sempre se encaixaram “Ele ajudou a lapidar esses meus pensamentos”, afirma o amigo, que diz ter sido muito influenciado politicamente por Oscar, ressaltando a contri buição dele em sua vida.

De volta ao Brasil, o pensamento político continuou. Trabalhando como cabo eleitoral, ele arrecadou votos para o candidato a deputado federal Professor Euler, mas nas eleições de 2 de outubro daquele ano o segundo mandato dele infelizmente não aconteceu. Os 17.246 votos, totalizando 0,28%, não foram sufi cientes para manter o candidato do MDB na política. Mas o sonho do garoto de 18 anos, que estudava no mesmo colégio em que a pessoa para a qual pediu voto ainda se mantém vivo. Quem uma vez já quis estudar Sociologia na Universida de Federal do Paraná, agora almeja o curso de Economia em uma instituição de outro estado, a Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo. O próprio Oscar afirmou: “Eu tenho aspirações de seguir nessa área política, mas eu sem pre penso: será que eu sou ideal para representar os outros?”.

120. OLHARES POLÍTICOS | Perfis

Oscar foi contratado por Camilla Gonda, de 22 anos, estudante de Direito que já concorreu para vereadora de Curitiba em 2020 pelo PDT. Ela coordenou as pessoas que trabalharam na campanha do Professor Euler. Para ela, era importante ter na equipe pessoas com pensamento político alinhado às propostas de Euler. E como se não fosse o suficiente, Oscar ainda consegue rasgar elogios quanto ao seu eu profissional, sendo descrito como comprometido e muito responsável: “Tínhamos algumas agendas a serem cumpridas, ações voluntárias, e o Oscar sempre ia. Ele participava mesmo não sendo algo que estivesse no contrato dele.”

Mas era claro que o Oriente não ficaria de fora. Na primeira conversa entre Oscar e Camilla, surgiu a viagem do rapaz. E além de ser um chamariz para o garoto, também garantiu sua vaga no grupo de trabalho do candidato. “Mesmo com apenas 18 anos, ele é uma pessoa muito madura, com muita vivência”, disse Camilla, e com essa fala, ela encerra o assunto.

Mas a pergunta que ronda a alma do garoto, que se descreve como uma divisão dos partidos políticos PT e PDT, é: quando ele vai ter a chance de voltar para aquele país lindo e arenoso? A resposta é certeira, em janeiro de 2023 ele retorna para a terra do islamismo mais uma vez, enquanto aguarda o resultado do vestibular da Unicamp.

Basta um clique

Annelise Mariano

Domingo, dia do segundo turno de eleição para a Presidência da República. Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) e Jair Messias Bolsonaro (Partido Liberal) dividem o país na disputa. Na capital paranaense, onde Bolsonaro terminou o dia recebendo 64,7% dos votos – e que, na mesma semana, aconteceram ataques físicos contra eleitores do Lula – expressar um voto contrário ao do candidato conservador na hora de ir às urnas não me pareceu ser uma ideia muito segura. Entretanto, como boa jovem da geração Z, pego meu celular e resolvo postar uma foto (que inicia este texto) sem grandes produções, mas suficiente para gerar um leve caos, desencadeado pelo adesivo do candidato do PT, colado em minha camiseta no lado esquerdo do peito.

Bolsonaro tornou-se símbolo do eleitorado evangélico e dos valores tradicionais. Portanto, em um cenário convencional, postar sua opinião política já é motivo para gerar abalo nos relacionamentos, mas quando se faz parte da comunidade evangélica – a qual nos últimos quatro anos confundiu o presidente com o Messias a quem deve servir – o impacto pode ser um pouco mais chocante. E sendo filha de um casal de pastores titulares, o alvo nas costas é ainda maior.

É comum que os frequentadores de igrejas protestantes, especialmente na atual conjuntura, tenham sido tachados como aqueles que muito julgam, muito se intitulam de pessoas morais em suas decisões, mas pouco agem segundo o

mandamento de Cristo: amando ao próximo como a si mesmo. Quando falamos de um líder da comunidade de fé, seus seguidores muitas vezes não os poupam dos olhares intrusos dentro de suas casas e de distorções sobre suas decisões políticas.

É preciso entender a amplitude da igreja evangélica no Brasil, pois segundo o Censo demográfico, existem 178.511 templos abertos, sendo que são 18 denominações, apenas considerando as mais populares. Elas se diferenciam por costumes, doutrinas e organização. Dentro desses mesmos grupos ainda existe grande diversidade, podendo haver maior liberdade nas comunidades locais do que em outras denominações. Essa liberdade pode ser vista de maneira positiva ou negativa, dependendo do ponto de vista, já que algumas não possuem tantas normas rigorosas, seja nos costumes, na doutrina ou na organização. Esse é o caso da Quadrangular, denominação da igreja da qual meus pais são membros. Localizada na zona norte de Curitiba, tem em média 280 membros, ainda que nem todos sejam frequentadores assíduos, e tenta ao máximo deixar de fora dos púlpitos os discursos políticos, mas a visão dos frequentadores pode ficar conturbada com o exemplo contrário de outras igrejas da própria denominação.

Ainda que meus pais e pastores da congregação não tivessem manifestado favorecimento a nenhum candidato, inclusive em suas redes sociais, a membresia da Igreja como um todo entendeu que ser cristão é obrigatoriamente pender para o lado do candidato que usa do “Deus, Pátria, Família” como lema, mesmo governando para um país onde não há apenas cristãos. Então, com o ambiente tão inflamado nesse dia de eleição, não demorou muito para que, após aquele “publicar” que cliquei, algumas respostas pipocassem na tela do meu celular.

“Somos expostos espiritualmente por sermos ativos na igreja, esta ação sua pode gerar um desconforto para quem vê sua posição. Tem alguns assuntos que o cristão não pode expor tão abertamente assim.” Foi a primeira mensagem que recebi de um líder de pequenos grupos de ensino bíblico e servo assíduo da igreja onde congrego. A repreensão me pareceu curiosa, ainda que pacífica, considerando que seu voto não era segredo para ninguém que o conhecia e seguia. Além disso, em suas redes sociais, ele frequentemente faz postagens de outros grandes influenciadores e pastores evangélicos que declararam, muitas vezes em púlpito, que o voto cristão deveria ser para o “ungido do Senhor”, Jair Bolsonaro.

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Em seguida, meu número de seguidores passou a diminuir. Matei a curiosidade antes que ela me matasse e vi que 90% eram cristãos da mesma igreja que eu, 10% cristãos que conheciam meus pais e, por acaso, me seguiam.

“Sem palavras para essa tonta”, “Que todo esse mal dos petistas caia por terra em nome do Senhor Jesus”, “Onde já se viu filha de pastor postar esse tipo de coisa?”, “Uma coisa é apoiar este candidato, outra é postar pra todo mundo ver!” Foram mensagens que também recebi, em boa parte, de pessoas que exercem liderança dentro da igreja e que tinham alguma afetividade e boa convivência comigo.

Após o resultado dos votos que elegeram Lula, a raiva pareceu ter tomado outra proporção. Contradizendo o princípio cristão de estar em constante oração, o susto foi ainda maior quando li de um integrante da igreja, que não me conhece intimamente, publicando: “A geração que tanto orou agora vê seus filhos votando e colocando no peito ‘adesivinho’ de um partido que tem por ideologia tudo que vai contra os princípios cristãos. Não adianta depois no dia seguinte à eleição falar para orar pelo Brasil”.

Com a enxurrada de questionamentos sobre minha posição como filha e cristã, no momento cheguei a questionar se estava louca. Até onde eu deixo de exercer minha fé? Quando nego a Cristo ou quando nego a Jair?

Percebi que não estava sozinha. Renata Otaviano (30) e Heloiza Otaviano (20) são da Paraíba, estado onde Lula venceu por 66,62% e, mesmo assim, a realidade na igreja pastoreada por sua mãe não foi diferente. Após postarem uma foto juntas com o adesivo do candidato Luiz Inácio, uma senhora da liderança enviou a foto para a pastora dizendo que suas filhas “não conhecem os princípios bíblicos’’.

“Simplesmente questionei dizendo que meu voto nunca foi secreto e que um monte de bolsonaristas fez campanha e nada foi dito. Sou uma pessoa de 20 anos que tem o direito de opinar como qualquer outro e isso não tira minha devoção por Jesus”, conta Heloiza.

A liberdade de se expressar, sem ser excluído e coagido, está mais distante. O medo ultrapassou as telas. A democracia morreu um pouco. A liberdade de crença também. Já o sagrado parece ter se tornado motivo de piada.

Basta um clique 127.

Água verde (e amarela)

A ideia era estar a caráter no dia da eleição presidencial, exercendo o meu direito de manifestar a minha opinião política com civilidade. No entanto, o medo de ser agredida ou ofendida foi tanto, que minha mãe me pediu para tirar a regata vermelha do corpo antes de sair de casa no dia 30 de outubro de 2022.

– Tira essa roupa agora. Que papelão! – proferiu ela, assim que me viu sair do quarto, pronta para votar. No domingo do segundo turno, optamos por sair de casa mais cedo, a fim de evitar filas, como no primeiro dia de votação.

No primeiro turno, ficamos mais de 40 minutos em fila somente para entrar em nossa zona eleitoral – no Clube Curitibano, localizado no bairro Água Verde –, o que foi traumatizante o suficiente para fazer a família levantar às 9 horas de um domingo preguiçoso.

– Se você apanhar, a gente vai fingir que não te conhece – brincou meu padrasto, Victor, com o rosto cansado recém desperto.

Estavam com medo por mim, mas, por experiência do primeiro domingo de eleições, sabendo que o Clube Curitibano seria, mais uma vez, um mar verde-amarelo, decidi ser uma representante do outro lado da história. Como a zona é próxima de onde moramos, decidimos realizar uma pequena caminhada até o nosso local de votação e, apenas durante o deslocamento, pude notar olhares estranhos, além de um homem

que gritou o nome do candidato do Partido Liberal em minha direção de dentro de um carro.

Chegando em frente ao clube, algumas decorações de Halloween estavam espalhadas pela calçada, evidências de que os funcionários do local precisaram desmontar todos os arranjos para que o local servisse de palco da cidadania.

Um casal segurava uma bandeira do Partido dos Trabalhadores. Ao lado, preso entre uma árvore e um poste, um varal de mais de quatro metros era palanque para mantas, cangas e outros acessórios decorados com a bandeira do Brasil. A situação poderia ser mascarada como uma celebração para a tão esperada Copa do Mundo, mas, no contexto eleitoral, era latente a mensagem que os comerciantes queriam transmitir.

Ao entrarmos na zona, foi ainda mais evidente o povo trajado como se fosse uma festa patriota, ao mesmo tempo em que alguns gatos pingados vestiam-se de vermelho ou cores análogas numa tentativa evidente de não chamar a atenção.

Como no fim de semana eleitoral anterior, minha seção estava pacata, deserta, enquanto meus pais permaneceram por bons 20 minutos para que pudessem acessar a urna. Enquanto esperava ao lado da fila em que minha mãe estava, dirigiu-se a mim uma mulher baixa, com cabelo repicado e curtinho, estilo Pixie e vestida de cores neutras:

– Essa estrela vai brilhar hoje! – veio ela sorrindo em meio ao rebuliço do salão. Sua fala trouxe-me um pingo de esperança e, principalmente, segurança, pensando que muitos daqueles vestidos de preto ou branco poderiam ser somente pessoas receosas de expressar seus ideais num ambiente tão bolsonarista.

– Por que você não veio de vermelho? – perguntei, observando sua roupa bege.

– Eu tinha separado um vestido inteiro vermelho, que, se eu estivesse na outra quadra, todo mundo ainda conseguiria me ver. Era impossível não reparar! –confidenciou – Mas minha mãe ficou preocupada, não queria que eu apanhasse, ainda mais que eu vim sozinha.

Ponderei que, apesar de sua situação ser similar à minha, eu tive mais coragem por estar acompanhada de mais duas pessoas.

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– Mesma coisa comigo, só vim assim porque estou com meus pais. Ainda mais que aqui só tem bolsonarista! Água Verde, né? – brinquei, mas era verdade. Ao andar pelo bairro, sempre via bandeiras do Brasil nas janelas e sacadas, mas quem não era aliado de Bolsonaro nem se manifestava.

A conversa não durou por muito tempo, uma vez que a moça logo se deu conta de que o local onde estava não era uma fila, e que eu estava esperando alguém.

– Vamos brilhar hoje! – saiu ela com um sorriso esperançoso. Era muito óbvio o número que apertara antes do soar típico da urna.

Ainda no aguardo de meus pais, mais uma mulher aproximou-se de mim, dessa vez, a mesária da seção da moça com quem papeava, a qual estava tão vazia quanto a minha.

– Você não sabe o alívio que é ver alguém como você aqui. Só vejo verde e amarelo o dia inteiro – comentou a voluntária.

– Da outra vez que vim, também estava a mesma coisa! – a mulher concordou com a cabeça – E é bem curiosa a facilidade que eles têm em se mostrar, mas nós morremos de medo, né? Imagino que mesários nem possam demonstrar, certo?

A mesária assentiu.

– Nós somos orientados a vir com roupas neutras para não causar nenhuma confusão.

– É o que eu tenho visto por aqui: muita gente estava vindo com roupas avermelhadas, mas não vermelhas mesmo, acho que para não arrumar briga.

Minha mãe logo saiu de sua cabine, apertando um número diferente do meu em sua urna. Desejei boa sorte à voluntária e, saindo de nossa zona em família, um dos comerciantes dirigiu-se exatamente a mim.

– Quer uma bandeira do Brasil, moça? – o tom debochado não escondia suas intenções, porém apenas sorri e dispensei a oferta.

No caminho de volta, não me livrei de mais homens que gritavam o nome de Bolsonaro nas ruas assim que me viam, mas não me importei.

Água verde (e amarela) 131.

Certamente, o bairro Água Verde não era apenas verde. Levando em conta uma mostra de 100 boletins de urna da Zona 177, Clube Curitibano, somam-se 25.984 votos nominais, ou seja, todos os votos, excluindo os nulos e brancos. Desses 25.984, 65,8% foram destinados ao candidato do PL, ou seja, 17.100 votos. Os outros 8.884, um pouco mais da metade dos votos de Jair, foram a favor do presidente eleito, Lula.

Portanto, apesar do caráter exibicionista dos eleitores de Bolsonaro, trajar-se de verde e amarelo e gritar com estranhos na rua não foram suficientes para minimizar a luz da estrela que brilhou no céu daquele histórico dia 30 de outubro de 2022.

A duas quadras 133.

A cama

Ano de eleição, né? Mó angústia. O mundo tá um caos lá fora, eu briguei até com a minha sogra. Tô fora, quero mais é deitar e dormir, me acorde quando esses monstros estiverem bem longe daqui.

Sério, de todos os lugares do mundo, o meu favorito é a minha cama. É um lugar seguro e reconfortante. Na minha cama, eu não tenho medo de ser atacado, abusado, de sentir frio. Nela, eu leio os meus livros, assisto à TV, jogo videogame, escrevo. Porra! Eu queria poder viver o resto dos meus dias deitado, jogado, abarrotado, sem fazer nada de importante! Mas sabe o que é triste? Quando eu estou na minha cama, eu fico pensando no que fazer fora dela: “Vai lá começar uma faculdade, seu vagabundo!”, “Tira essa bunda daí e vai fazer trabalho voluntário!”, “Tu tem que fazer uns freela”, são ideias que tive na cama. Ai que saudades dela!

Agora eu tô nesse bar lotado, um bar gay, tão gay que me faz parecer menos gay do que todos os gays que estão aqui. Tem tanto gay, que se você gritar que a Madonna morreu, Curitiba vira um lago de lágrimas. Um homem alto, forte e moreno, expondo os músculos com aquelas camisetas de tela transparente, chega até mim, agarra a minha cintura e diz:

– E aí, meu anjo, tu quer uma bebida? – ele sorri e olha no fundo dos meus olhos. Eu tô ligado, ele quer me comer.

– Amigo, eu tô trabalhando! – eu respondo, e educadamente tiro suas mãos parrudas de mim –Acho que ele não gostou.

– Se mudar de ideia, eu vou estar por perto – ele dá uma piscadela e vai embora – eu retribuo com um sorriso sarcástico.

Eu estou aqui como fotógrafo freelancer. Não é um trabalho que eu procurei muito, fui convidado. Para falar a verdade, eu nem queria estar aqui, mas as contas do cartão aumentaram e eu preciso do dinheiro. São 19 horas do dia 22 de setembro de 2022 e o evento é a “Parada da Diversidade”. Não é nada muito grande, um comício político para promover a campanha a deputado estadual do Lucas Siqueira (PSB). Eu recebo por hora, 60 reais – não acho pouco nem muito – mas a verdade é que meus minutos nunca foram tão valiosos.

Aqui tem convidados de todos os tipos: políticos, drag queens, artistas, ativistas e até penetras. Todos muito alegres e animados, é um bar afinal. Não vou mentir, estou morrendo de vontade de um drink, salivo só de ver os copos suados de gin tônic passando na minha frente. Daria a minha vida por um deles – se já não estivesse dando a vida por dinheiro. De todos aqui, o menos alegre sou eu. Que saudades da minha cama!

– Querido, bate uma foto minha com a Carol?

– Claro!

– Amigo, mais uma aqui com o Mateus!

– Pode deixar!

– Tira umas fotos da Linda?

– Beleza!

A primeira hora foi assim, aceitando os pedidos de foto do cliente. Foi fácil, não morri. Sessenta minutos e sessenta reais mais rico. Mas quando vão me mandar embora?

Às 20 horas começam as atrações. Me chamam para fotografar o evento. Uma drag queen sobe no palco. Ela está com um vestido feito de jornal amassado, um papel cobre seus olhos com a palavra “censurado”. Ela balança uma imagem de

Pode rasgar. Rasga tudo mesmo. Meu sangue ferve só de pensar em Bolsonaro.

O ato fala de silenciamento da comunidade queer. Importante. Desde que esse crápula assumiu a presidência não houve muitos avanços nas pautas pró LGBT. Em 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou crimes de LGBTfobia aos crimes raciais, com as mesmas penas. A decisão, no entanto, não tem nada a ver com Bolsonaro.

Ele tá cagando pra gente. Em 2018 a população colocou na presidência um homem abertamente homofóbico, transfóbico, machista, racista; o que ele fez por nós? O presidente cria o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDFH), que teoricamente deveria defender nossas pautas, e o dá nas mãos de Damares Alves. Ela mesma, a mulher que acredita que a Elza do filme Frozen acabou sozinha porque é lésbica. Nada é por acaso, o cão é muito articulado. O projeto é tolher os direitos humanos, embalar em papel de presente e estampar com a palavra “família”. Bolsonaro disse que prefere filho morto a filho gay. Ele disse isso na TV e a primeira-dama, Michele Bolsonaro, jura por Deus que o marido não é homofóbico. Ele tá cagando pra gente, enquanto Damares e Michele limpam sua bunda e passam talquinho.

Já são 21 horas, posso somar 120 reais na conta. Lucas Siqueira sobe ao palco para discursar. Eu estou a esgueirar-me pelo chão em busca de alguns cliques certeiros do cliente. O discurso é muito bonito – literalmente, consegui boas fotos. Siqueira diz que quer ser o primeiro deputado federal gay eleito no Paraná. “Assumidamente”, brinca o candidato, fazendo alusão ao Congresso como um antro de enrustidos, que se aproveitam das populares pautas conservadoras para alavancar a carreira política.

Tá aí uma coisa que eu não sabia: o Paraná nunca elegeu um gay para o Congresso, e isso é verdade para a maioria dos estados. A primeira pessoa assumidamente LGBT a assumir uma cadeira na câmara foi Clodovil Hernandes, do antigo Partido da República (atual PL de Bolsonaro), eleito em 2002 pelo estado de São Paulo. O Brasil escolheu como seu primeiro deputado federal gay, um homem que se declarava contra o movimento LGBT. Bato palmas!

A cama 137. Bolsonaro, talvez para trazer um pouco de grotesco para a performance, então começa a rasgar o vestido e a se despir.

Lucas traz para o palco lideranças e ativistas de diversas letras do LGBTQIAP+. Branco, o candidato fala da importância da inclusão e da diversidade, chamando para o palanque ativistas do movimento negro. Tudo para sustentar uma imagem de aliado das “minorias”, muito pertinente ao tipo de campanha que ele propõe.

São 22 horas, 180 reais. Preciso ser rápido, a candidata ao senado Desirée Sal gado chega ao comício, ela não vai ficar por muito tempo e o cliente quer fotos. Cliques e mais cliques, a bateria da câmera não vai aguentar muito mais.

São 23 horas, 240 reais. Todos estão bêbados, chapados, alterados. O fotógra fo aqui tenta manter a sobriedade, não por efeito de drogas, mas pela exaustão mental. Sai gente até do bueiro para tirar foto, foram mais de 500 cliques. De re pente, eu sinto algo quente e viscoso passear em meu pescoço. É macio e áspero ao mesmo tempo. Úmido, deixa um rastro gosmento em minha pele – como uma larva, lesma ou caracol. Uma língua, que nunca vi na vida, lambe o meu corpo desprevenido. Garras afiadas atingem o meu peito, unhas finas e longas. Mãos ge ladas descem por meu dorso, atentam por debaixo da minha roupa alcançar partes menos pudicas. Foi rápido e inesperado, sofro assédio no meio do bar lotado, mas ninguém vê. Empurro a mulher, mando-a para longe. A saliva ainda escorre quen te no pescoço. Preciso da minha cama.

Meia-noite, 300 reais. Eu não aguento mais, minhas baterias mentais estão tão baixas quanto as da minha câmera. O evento está no fim, eu tiro fotos dos últimos convidados entorpecidos. Lucas Siqueira ainda sorri, mesmo depois de quatro longas horas, suas bochechas parecem musculosas depois de tanto forçar agrados.

O cliente agradece e me manda embora. Antes de ir eu compro um matar a vontade e narcotizar os sentimentos brutos que a noite deixa em mim.

– Recusou minha bebida e agora tá lá bebendo! – grita de longe o sujeito frus trado que não conseguiu me pagar um drink. Ignoro.

Vou para casa com o corpo cansado e com o bolso mais gordo. Sou engolido pelos lençóis, cobertores e travesseiros. Retorno ao calor da minha cama, feliz e aconchegado, como um feto no ventre da mãe. Durmo.

A minha e a sua bandeira vermelha

A primeira coisa que penso quando coloco os pés em casa no dia 18 de outubro de 2022 é: “Minha mãe me mataria se soubesse o que eu fiz hoje”. Como filha de uma boa mãe preocupada, manifestações sempre estiveram fora do meu catálogo de atividades que os jovens devem fazer. Pelo menos estiveram até o dia 18.

Às 17h20, saio do trabalho em direção à Praça Rui Barbosa com o objetivo de acompanhar a manifestação contra o corte de verbas da educação anunciado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). No dia 30 de setembro, o decreto nº 11.216 reprogramou o orçamento do MEC, reduzindo-o em mais de R$ 1,1 bilhão.

Com isso, em ruas por todo o país, os estudantes foram convocados para se juntar à luta da União Nacional dos Estudantes (UNE), da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) no dia 18 de outubro para se manifestarem contra a medida. Ao todo, foram realizados 65 atos pelo país, sendo dois em Curitiba, na Praça Rui Barbosa e na Rua XV, e um em cada uma das cidades de Londrina, Maringá e Jacarezinho.

Enquanto sigo em direção ao local da manifestação, pela Rua Senador Alencar Guimarães, observo que as pessoas seguem a vida tranquilamente sem demonstrarem sinais de que há algo acontecendo no coração da cidade.

Quase penso em virar as costas e ir embora. Até que, quando chego próximo aos ônibus, vejo bandeiras e ouço baterias ditando o ritmo dos gritos em uníssono:

– A nossa luta unificou, é estudante junto com trabalhador!

Eu me aproximo e me acomodo um pouco distante da massa e dos porta-vozes da luta estudantil. À minha frente, bandeiras da luta estudantil, imagens do educador e filósofo Paulo Freire, da vereadora assassinada em 2018, Marielle Franco e, predominantemente, bandeiras vermelhas fazendo referência à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

De início, Bruno, representante do Grêmio Estudantil do Colégio João Paulo II, em Pinhais, abre a sequência de gritos “Fora Bolsonaro”, como um jogador que inflama os gritos da torcida em um estádio de futebol. Após ele, um homem em situação de rua pega o microfone e pronuncia uma sequência de palavras incompreensíveis. Mais tarde, aquele mesmo homem vai me pedir um isqueiro para acender o cigarro.

Em seguida, um professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) relembra o papel da luta estudantil na história política do Brasil, como no impeachment de Collor e na ditadura militar. Àquela altura, minhas considerações são de que essa luta não é para mim. A única coisa que me interessa é ir para casa. Mas, por forças maiores, resolvo ficar ali e me soltar para conseguir ficar mais confortável.

Finalmente ouço um nome conhecido. A apresentadora chama ao centro a deputada recém-eleita Ana Júlia Ribeiro. Mas, quando a deputada começa seu discurso, um jovem magro, de cabelos claros e nariz adunco, segurando uma caixa de papelão, se aproxima de mim:

– Quer comprar uma paçoca pra fortalecer o movimento?

Pago duas, mas dispenso o produto. Quando volto minha atenção para Ana Júlia, finalmente consigo me concentrar nas palavras, ditas ao microfone, sobre esperança em relação ao futuro do Brasil. Solto a voz e deixo-a se juntar às dos demais.

Mais representantes falam, mas não consigo manter a atenção neles por muito tempo. Retomo minha participação para me juntar aos cantos e gritos acompanhados da bateria e responder a um homem carregando materiais de campanha por trás de mim:

142. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

– Alguém tá sem bandeira aí?

Tiro uma pequena bandeira vermelha da campanha de Lula da mochila nas costas do garoto, ao mesmo tempo que outros três jovens também anseiam por uma. Me viro, empunhando a bandeira na altura do ombro e respondo a um “Oi” de Ana Júlia. De nariz empinado por ser reconhecida por uma deputada, percebo dois amigos, Guilherme e Álefe, e me aproximo em meio à massa.

Converso com os meninos, tentando vencer os gritos de “Bolsonaro, seu fascistinha, os estudantes vão botar você na linha” enquanto passeamos pelo meio do aglomerado de jovens com pequenas bandeiras, adesivos no peito e camisetas de suas respectivas universidades. Já em frente à Rua André de Barros, paramos e esperamos os blocos para sairmos em direção ao IFPR.

Enquanto esperamos, outros conhecidos de Guilherme e Álefe, desconhecidos para mim, se juntam ao nosso pequeno grupo e comentam terem levado máscaras pretas. Eu, de máscara preta desde que cheguei à praça, acompanho a conversa. Só percebi que a afirmação dizia respeito a uma espécie de plano de segurança quando comentaram que já tinham até tirado os adesivos do PT do corpo. Pobre eu, leiga dos procedimentos e das dicas de como sair ileso de uma manifestação, caso seja preciso.

Começamos a marcha pelo meio da rua. À medida que os passos lentos seguem o bloco de pessoas atrás da faixa “Estudantes em defesa da democracia”, os sons da cidade se misturam com o das batidas que ditam o ritmo dos gritos e da caminhada. Ali, no meio da praça, parecia que estávamos isolados dos acontecimentos de Curitiba e, só quando pus os pés na rua, compreendi o objetivo da intervenção urbana. Perdemos Álefe no meio da multidão, mas ganhamos a companhia das buzinas nervosas que exigiam que saíssemos do meio da rua para que pudessem passar. Enquanto alguns tentam passar entre as bandeiras, me esforço para gritar com toda a força dos pulmões:

– A nossa luta é todo dia, educação não é mercadoria!

As buzinas ganham um aliado para nos tirar da rua: a chuva. A única medida que posso tomar é puxar a touca da minha blusa, seguir gritando e escutando a

A minha e a sua bandeira vermelha 143.

conversa ao meu lado sobre a eleição do vereador Renato Freitas (PT) à Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP).

Levanto a pequena bandeira vermelha acima do ombro e me viro algumas vezes para ver se os carros estão se aproximando. Uma hora ou outra, Guilherme parava para comentar sobre os gritos:

– Se você paga, não deveria. Educação não é mercadoria!

– Ainda bem que sou bolsista! - exclamo.

– Eu também! -devolve Guilherme.

Então voltávamos aos gritos:

– Trabalhador, preste atenção! O Bolsonaro tá do lado do patrão.

Guilherme se afasta para ajudar na segurança da mobilização. Sigo acompanhada das buzinas e da chuva, que prontamente se intensificam. Quando chego à parte da frente do bloco na Avenida Sete de Setembro, a minha rouquidão começa a se acentuar a cada nova frase.

Paramos na entrada principal da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e aumentamos o som dos gritos e o balanço das bandeiras para chamar os estudantes da universidade. Meu único desejo passa a ser aniquilar algumas bandeiras. Principalmente a do jovem na minha frente, o qual tem uma bandeira do dobro do tamanho da minha pequena bandeira vermelha. Essa porcaria não para de bater na minha cara.

Como minha pequena e fiel escudeira não teria poder para guerrear com a dele, a solução é deixar o fluxo de pessoas passar por mim. Me apresso para voltar ao ritmo quando o grupo passa ao lado dos tubos de ônibus. Uma das mulheres que ali aguarda uma carona para casa repreende com as mãos em sinal negativo os protestos que fazemos. Um jovem do meio do grupo devolve a repreensão a ela, indignado pelo fato de a mulher não aceitar o convite feito aos trabalhadores.

Quando passamos em frente ao Shopping Estação, no Centro de Curitiba, deixo toda a massa passar por mim. Me aproximo da calçada, guardo a bandeira

na mochila e viro a rua na mão contrária. Um senhor de boné, vestido com roupas escuras, acompanha minha fuga do meio da multidão e grita:

– Você não tem casa, não, menina?

Sinto minha frequência cardíaca aumentar, mas procuro a calma e sigo em direção à entrada oposta do tubo de ônibus. Subo as escadas, passo meu cartão transporte e volto a ser irreconhecível. Já livre dos pingos de chuva, ainda escuto os gritos da multidão que há pouco acompanhava. Quando chego em casa, olho para minha irmã e digo:

– Não deixa a mãe saber o que eu fiz hoje.

O match da verdade

Não acredito que estou fazendo isso. Sério, é ridículo! Ai... O que uma jornalista não faz por uma boa pauta! Quem diria que eu, Lorena, namorando há mais de sete meses, iria criar um perfil no Tinder. Tomara que meu amor não me mate!

O Tinder é o aplicativo de relacionamento mais famoso do país. Com classificação +17, tem avaliação de 4,4 estrelas na App Store, e acumula mais de 100 milhões de downloads no mundo. É a forma como os solteiros modernos arranjaram para suprir a carência e a solidão, além de tentarem encontrar sua alma gêmea. Funciona assim: para mostrar o interesse por um pretendente, existe a tecla “like” e, caso a atração seja mútua, ocorre o ‘’match’’. Se, porventura o indivíduo acreditar que o outro não seja seu par ideal, ele pode clicar no “X” (não/passo). Minha missão é: analisar o comportamento dos homens no Tinder ao interagir como uma personagem militante e petista, interpretada por mim.

Hoje é dia 31 de outubro de 2022, primeiro dia pós-eleição. Luís Inácio Lula da Silva, do PT, é o novo presidente, com 50,9% dos votos. Numa disputa acirrada, resultado de um cenário de intensa polarização política no Brasil, quase empatou com o adversário Jair Messias Bolsonaro. É a oportunidade perfeita de criar a minha conta de “solteira” e provocar uma discussão política.

Baixei. O primeiro quesito para montar o perfil é “Qual o seu nome?” eita, meu namorado vai parecer corno se eu colocar meu nome de verdade... Vou usar um nome fake! Mas qual nome combina comigo? Ah,é! Teve uma vez que encasquetaram que meu nome era Débora, então vai ser esse mesmo.

Prazer Tinder, Débora!

Dezenove anos e com fotos levemente sedutoras, a Dé possui interesses como: feminismo, direitos LGBTQI+, direito dos cidadãos, mudança climática e vidas negras importam. Sua música é Vermelho, da Glória Groove. Pelo menos, é isso que aparece em seu perfil.

Com tudo pronto, começou a ‘caça’. Em menos de uma hora, eu já estava com mais de 99 likes e alguns super likes. Meu foco era provocar politicamente esses caras. Só dava like em perfil característico petista ou bolsonarista, em especial os de natureza conservadora e/ou militar. Não demorou muito para começarem os

Caso 1

O menino amigo dos gays e com a irmã lésbica

Eu sempre esperava eles me chamarem, porque com um perfil como o da Débora, já era de se esperar uma militância pesada. Eu queria que eles mesmos cavassem a própria cova. Assim, Matheus inicia um papo furado comigo. Logo mando uma provocação:

– Terminei recentemente um relacionamento. Descobri que ele ia votar no Bolsonaro. Em resposta, recebi um:

– Eu não sou de me posicionar politicamente, mas votei L. Meio previsível, né? Eu nem precisei perguntar nada, ele automaticamente falou o que achava que iria me agradar.

Papo vai, papo vem, e eu pergunto se ele é contra o preconceito e a favor da causa LGBTQI+. Sério, eu nunca vi uma resposta tão ridícula!

– Zero preconceito, tenho várias amigas gays. Tenho uma irmã lésbica, também. Será que existe uma cota amizade LGBTQI+ para não ser considerado homofóbico?

Pelo amor de Deus. Não sei se dou risada ou se choro com um argumento desse!

Caso Dois

Fã ou hater das Forças Armadas?

A primeira foto que aparece na conta de Gustavo é ele vestindo um uniforme militar. Dei like. Match instantâneo. Mal respirei e ele já havia me mandado uma mensagem.

Como em todas as conversas, eu sempre iniciava qualquer diálogo com uma provocação. A dessa vez foi:

– Espero que você não seja bolsominion.

Mas por que eu disse isso? Simples, o presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) nunca escondeu o alinhamento ideológico com as Forças Armadas, inclusive, ele mesmo possui também carreira militar. Desde o período em que era deputado, o líder do Executivo afirmava ter como princípio priorizar as pautas militares. Um exemplo de sua preferência por integrantes das Forças Armadas, é, justamente quem ele escolheu para compor o seu governo. Ao se candidatar pela primeira vez ao Planalto, optou pelo general Hamilton Mourão (Republicanos) como vice-presidente. Em 2022, na disputa pela reeleição, escolheu outro general da reserva como postulante a vice, Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil. Por isso, naturalmente existem muitos oficiais, não todos, apoiadores do atual chefe de Estado.

Até mesmo Gustavo confirma esse fato quando diz:

– É foda porque eu era militar. Aí todo mundo pensa que, por eu ser exmilitar, sou bolsonarista.

Visto isso, eu pergunto qual é seu posicionamento político. Eu sei… Uma pergunta super inconveniente, considerando que estamos ali para flertar, porém, desde o começo, essa era a proposta. Ele responde que não é totalmente adepto a nenhum dos lados, mas que nem em outra vida votaria em Bolsonaro. Faz comentários de que a herança que o atual presidente deixou na política vai causar danos inimagináveis. O exemplo mencionado pelo garoto é o orçamento secreto.

As chamadas emendas de relator do orçamento, com criação em 2019 e implementação em 2020, são conhecidas como “orçamento secreto” por consenti-

150. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

rem que parlamentares destinem recursos que saem diretamente dos cofres da União sem que exista transparência para onde vai o dinheiro. Ao não especificar nomes, limites e o destino, o sistema facilita, na prática, os casos de corrupção. Em um primeiro momento, o presidente Jair Bolsonaro realmente tentou vetar a medida, mas acabou recuando e assinando o texto da Secretaria de Governo. Isso significa que foi o seu governo que criou este tipo de emenda, apesar de ter a participação decisiva do PT na aprovação da proposta.

Continuando o bate-papo, o ex-militar expõe:

– Eu sempre gostei de falar de política, daí eu convencia alguns do meu setor. Mas a grande maioria ficava babando o ovo do Bolsonaro.

Sei lá... me parece meio suspeito que esse cara convencia outros militares, vou questioná-lo!

Feito isso, ele me explica que sua arma era a Aeronáutica e que, segundo Gustavo, nesse campo as pessoas eram mais pensativas em comparação ao Exército.

O Povo do Exército é basicamente robô. Eles destroem a proatividade e o pensamento próprio. Querem apenas um robô que faça o que eles mandam sem questionar. Meu Deus, esse piá é fã ou hater das Forças Armadas? Eu jurava que encontraria um bolsominion conservador... Aquela coisa tradicional e padronizada, sabe? Até porque a foto dele era de militar. Mas isso me surpreendeu, está mais militante que a Débora! A história mais plot twist deste experimento.

Voltando a conversa, ele fala:

– Eu sempre gostei (da Aeronáutica), mas eu via tanta coisa de corrupção e tal. Lavagem de dinheiro.

Ok. Ninguém esperava por uma confissão dessas… ESTOU CHO-CA-DA!

Mas até que faz sentido! Se buscar mais a fundo, nem as instituições do Estado são completamente limpas. Tanto que o Superior Tribunal Militar (STM) condenou dois oficiais do Exército por desvio de dinheiro público, entre os anos de 2001 e 2006, originalmente destinado a suprir despesas da 1ª Divisão de Levantamento em Porto Alegre (RS). Um coronel reformado e um tenentecoronel da ativa foram condenados, respectivamente, a três e seis anos de

reclusão pelo crime de peculato, previsto no artigo 303 do Código Penal Militar.

O total desviado foi de quase R$ 500 mil, em valores não atualizados.

Para fechar, Gustavo me fala da sua decepção com a vida militar:

– Eu sempre achei que as Forças Armadas eram o que tinha de melhor nesse quesito (não corrupção). Mas a maioria são um bando de hipócritas.

É, acho que é hater mesmo.

152. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

Caso Três

Esquerdomacho

Bernardo é bem mais velho, 25 anos. Desta vez, o perfil era bem característico dos esquerdomachos. Mas o que é isso? É aquela classe de caras que gostam de vender a imagem de que são cultos, diferentões e alternativos, os quais usam a política e/ou se tornam ativistas de certas causas para conquistar mulheres militantes. Obviamente que comigo não foi diferente.

– LULA MEU PRESIDENTE. – Foi o comentário que fiz para ele.

Pronto. Não deu outra. Em dois segundos, estava me enchendo de mensagens dizendo o quanto ele odiava Bolsonaro e que o próximo governo petista seria incrível. Em meio a esse esclarecimento, em tom de esperança, o rapaz solta:

– Então, acho que vai dar tudo certo e a gente vai se beijar.

O quê? É sério isso? Nada a ver com nada essa afirmação! Muito conivente usar a política para conquistar vantagens comigo. O pior é que Bernardo continua. Ele diz que o nosso beijo acontecerá durante o fim de semana para comemorar a eleição de Lula da forma mais adequada possível. Eu pergunto o que seria essa forma mais “adequada” e ele responde:

– Beijos, bons drinks e piadas toscas.

Ugh, que nojo! A única piada aqui é esse cara achando que isso vai acontecer mesmo!

Deixei Bernardo no vácuo.

O que posso dizer sobre isso?

Ai... às vezes sinto que me coloquei em uma furada. Os casos que eu separei são apenas uma parte das baboseiras e excentricidades que recebi.

Percebi que ser mulher não é fácil, muito menos no Tinder. Que preguiça de homem, viu! Eles faziam de tudo para me conquistar. E sabe quem mais perdeu nisso tudo? O Lula! Se ele tivesse me contratado como vira-voto durante a campanha, teria tido muito mais votos. Juro! Não sei quantos homens se converteram ao petismo só para conversarem e terem uma chance comigo. O

Brincadeiras à parte, sinto que a maioria mentiu.. Sinto que desmascarei muitos, porque, de certa forma, eles também eram fakes.

Por isso, para vocês, mulheres e usuárias do app, um aviso: Não acreditem em tudo o que veem e recebem no Tinder. Muitos dos príncipes encantados são apenas personagens criados para você, tanto nas informações e fotos do perfil, quanto durante a conversa. Sejam mais espertas que eles! Provoquem e vejam a real identidade de cada um.

Corra para as colinas!

Não é todo dia que se tem a chance de ver a banda preferida ao vivo. Na noite de 27 de agosto de 2022, a banda Iron Maiden realizou sua quinta apresentação em Curitiba, na Pedreira Paulo Leminski. Minha experiência com o concerto começou em 2013, logo após o último show do grupo na capital até então – o primeiro que vi em minha vida. Já louco pela banda aos 11 anos, senti como se tivesse acabado de ver super-heróis. Quando soou o último acorde de Running Free, que fechou aquela apresentação, tive a certeza de que aquela não seria minha última experiência com o Iron Maiden ao vivo.

Desde então, a banda veio ao Brasil duas vezes, mas não visitou a capital paranaense em nenhuma delas. O anúncio de que eles voltariam ocorreu em abril deste ano, e os 25 mil ingressos colocados à venda esgotaram em poucos dias. O grupo traria a Curitiba a turnê Legacy of the Beast – iniciada em 2018 e interrompida pela pandemia – unindo clássicos da banda e músicas de Senjutsu, seu álbum mais recente, lançado em 2021.

Na véspera do concerto, almocei no centro da cidade e vi inúmeras pessoas vestindo camisetas da banda. Como estávamos perto das eleições, também vi inúmeras barracas políticas. Em uma delas, peguei um adesivo que dizia “Fora Bolsonaro”. Naquela noite, não teve jeito, tamanha era minha ansiedade; apelei para um ansiolítico para vislumbrar a chance de dormir. Funcionou! Dormi bem

e acordei às 8h15 da manhã, cinco minutos antes de o despertador tocar. Antes das 9h30, quase doze horas antes de a banda subir ao palco, já estava na Pedreira.

Quem já foi a um show de Metal sabe que, em cinco minutos de papo, você se torna amigo de qualquer um. Quem puxou papo comigo foi André, um jovem que estava na minha frente com sua namorada, Amanda. Conversamos sobre música, futebol e séries de TV; eles me deram uma garrafa de água e nos seguimos nas redes sociais; enfim, viramos amigos rapidamente. Quando chegaram as ambulâncias que ficariam de plantão, reparamos que eram da empresa G.A.D.U (Grupo de Atendimento de Urgência).

– Será que a Maria Gadu também vem ver o Iron? – brinquei.

– Ou é ela ou são os eleitores do mito – alfinetou, ao lembrar o apelido pejorativo de “gado” que os apoiadores do presidente recebem.

Dei risada, me lembrei que estava com o adesivo contra Bolsonaro em minha carteira e colei-o em meu peito.

– Tá doidinho pra arrumar uma briga, né? – disse André, em tom cauteloso.

– Eu? – respondi, simulando surpresa – Que nada! Estou me manifestando quietinho.

A observação de André não era infundada, visto que um estudo realizado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) mostrou que a violência política no Brasil cresceu mais de 300% nos três primeiros anos do governo Bolsonaro.

Pouco depois, Fabio, um dos meus melhores amigos de adolescência, chegou e se juntou a nós na fila. Como era esperado, o dia demorou uma eternidade para passar. Entre inúmeras conversas, ouvimos um sujeito atrás de nós dizendo que era de Chapecó, Santa Catarina, estado que deu a Bolsonaro sua maior votação proporcional em 2018: 75,92%.

Uma dessas conversas foi com um grupo do qual esse homem, Elton, participava com um amigo e a esposa dele. Claramente alterado pelas cervejas que consumia, conversava conosco sobre os melhores discos do Iron Maiden. Quando eu dei minha opinião de que Powerslave e Somewhere In Time disputavam a pri-

meira posição, Elton olhou para mim e viu meu adesivo, mas não disse nada e continuou a conversa.

Ao longo do tempo, continuou bebendo e se tornou cada vez mais inconveniente. Quando passaram ao nosso lado duas jovens loiras com calça de couro e camiseta do Iron Maiden, não se conteve:

– Uau! Que maravilhas são aquelas? – disse.

Todos olharam para ver sobre o que ele estava falando.

– Ninguém vai falar nada? Só eu estou vendo aquilo? – completou.

Passou a fazer pequenas piadinhas com todos que estavam ao seu redor. Em um dos momentos, não me contive e fiz uma piada com sua careca. Ele me olhou com um sorriso surpreso, e fez silêncio por alguns segundos, nos quais intercalou o olhar entre meu rosto e o adesivo em meu peito.

– O que é isso aí? – perguntou, apontando para o adesivo.

– Um adesivo, ué – respondi.

– E você acha que é lugar pra isso? – contestou.

– Vivemos em uma democracia. Posso me expressar em qualquer lugar, não?

– Você tá querendo complicar, assim não dá pra conversar. Você vai criar uma confusão – respondeu, e se virou para continuar na outra roda de conversa.

Quando voltou para a nossa roda, olhou diretamente para mim e disse:

– Olha só, o petistinha! – disse, com desprezo.

– Eu? Só porque sou contra o Bolsonaro?

– Acho que você só é contra o Bolsonaro porque faz parte da elite. Está aqui na fila da Pista Premium do show. Você trabalha?

– Não, mas o que isso tem a ver? – respondi. A essa altura, todas as pessoas ao redor observavam nossa discussão.

– Se trabalhasse, você não ia apoiar o Lula. Todo mundo aqui ao redor trabalha, né? Quem aí é Bolsonaro?

Corra para as colinas 159.

Ninguém levantou a mão. Em seguida, foi minha vez:

– E quem é contra o Bolsonaro?

Apenas eu, Fabio e outro jovem que participava da roda levantamos a mão. Preocupado com o rumo que a discussão poderia tomar, um outro integrante da roda disse:

– Mas o que importa é o Iron. Quem aí é a favor do Iron Maiden? – perguntou, e viu todos levantarem a mão. Não esperava, no entanto, que o assunto fosse continuar.

– Mas é isso mesmo que me incomoda, ele politizar o show e botar o adesivo em cima do meu Iron Maiden! – explicou o catarinense.

A declaração de Elton ignora o fato de que a banda tem músicas altamente políticas, como Run to The Hills, que critica o genocídio dos indígenas norte-americanos; The Clansman, que fala de luta pela liberdade e contra o imperialismo; e faixas antiguerra, como Afraid to Shoot Strangers.

– Mas não está em cima, eu não tampei nem o nome do Iron nem o desenho da camiseta – argumentei.

As pessoas ao redor pareciam estar cada vez mais tensas, enquanto a esposa do amigo de Elton pedia para que ele parasse de discutir. Entre outras argumentações que buscavam, que eu tirasse o adesivo, passou a fazer ameaças passivo-agressivas.

– Você tem sorte que eu sou tranquilo. Vai acabar tomando um tiro se continuar usando isso por aí. Eu sou PM, sei do que estou falando – alertou.

– Mas aí a culpa não vai ser minha, e sim do cara que me agredir por eu estar me manifestando politicamente em um país democrático – respondi.

– Mas você está dando motivo. É como aqueles casais homossexuais: eu não tenho nada contra, mas se eles se beijarem na rua, estão dando motivo para serem agredidos.

– Mas eles têm que deixar de demonstrar afeto por causa disso? Se fosse um casal hétero, estaria tudo bem? 160. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

– Tá vendo? Ele continua dificultando – falou, olhando para Fabio – E você, tem que avisar ele dessas coisas também. Vocês são amigos há quanto tempo?

– Sete anos? – Fabio olhou para mim, pensando se estava certo. Confirmei com a cabeça.

– Sete anos. Tá vendo? – o suposto policial militar voltou a olhar para mim. – Você tá colocando um amigo de sete anos em risco. É assim que se trata um amigo? Se cuida, uma hora dessas você vai ficar sem amigos, todos vão virar as costas pra você. Estou avisando, beleza? Agora eu vou ao banheiro – terminou.

Nisso, faltavam menos de 15 minutos para a abertura dos portões. Elton deixou seu lugar na fila na mão do casal de amigos que o acompanhava. No que ele saiu, me deparei diretamente com o sorriso irônico de André, que disse:

– Eu falei pra não colocar o adesivo.

Outros que viram a discussão também comentaram.

– Se fosse eu, tinha xingado faz tempo – disse o jovem que levantou a mão quando perguntei quem era contra o Bolsonaro.

– Mas aí eles iam começar a brigar e ia dar uma baita confusão – apontou, com razão, outro presente na roda de conversa.

Quando abriram os portões, a fila começou a andar rapidamente. A medida que nos aproximávamos de entrar, eu e Fabio ouvimos os amigos do Elton chamando-o.

– Cadê o Elton!?

– Elton?

– Não acredito que ele vai perder o lugar!

– Cadê você, Elton!?

– Chegamos aqui às 10h da manhã pra ele perder o lugar faltando dez minutos pra abrir o portão?

Rindo, entramos na Pedreira para vivenciar uma das melhores noites de nossas vidas.

Corra para as colinas 161.

O show ocorreu sem problemas: éramos 25 mil presentes, e todos entoávamos incansavelmente os clássicos do Iron Maiden, assim como as músicas novas. Como de costume, enquanto a banda tocava The Trooper – um de seus maiores hits – o vocalista, Bruce Dickinson, balançava uma bandeira enorme do Reino Unido. Nessa turnê, é costume que na segunda parte da música ele troque a bandeira britânica por uma do país no qual a banda está se apresentando.

Nos últimos anos, a bandeira do Brasil se tornou um símbolo político do bolsonarismo. Quando a banda tocou no festival de música Rock In Rio, na semana seguinte, vários perfis na internet compartilharam o vídeo de Bruce balançando a bandeira brasileira com a falsa informação de que aquilo sinalizava apoio à Bolsonaro. Em Curitiba, no entanto, nada disso ocorreu; pessoas de todos os lados políticos vibraram quando o vocalista pegou a bandeira. A possibilidade de haver uma tensão por esse motivo mostra que o presidente tirou da bandeira algo que a música, como provou esse show do Iron Maiden, ainda ostenta: o poder de unir lados políticos e sociais totalmente opostos em torno de algo maior.

Prendam o leão

– Olha! Um cara de amarelo, Nanda! Prende ele lá, vai!

– E aquele homem atravessando a rua? Parece o Bolsonaro! Por que você não denuncia ele também?

– Ah, mas a moça de vermelho você não vai prender, né? Petista você deixa passar que eu sei…

Este homem, que fica ironicamente sugerindo que eu prenda supostos bolsonaristas, é meu pai, o maior fã do Bolsonaro. Há quem diga que essa tamanha admiração possa ser uma paixão reprimida. Mas como um bom homem hétero, que acha o ápice da masculinidade o presidente da República afirmar ser “imbrochável”, o simples fato de alguém indagar sobre sua heterossexualidade é a própria morte.

Mas por que ele sugere que eu prenda fãs do presidente? A questão é que hoje é 30 de outubro, dia em que ocorre a eleição de segundo turno para presidente da República, em 2022. Lula x Bolsonaro. Uma das eleições mais acirradas do país. O primeiro turno das eleições foi marcado pela vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com cerca de 48% dos votos, seguido pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL), que conquistou 43% dos votos.

UMA ANTOLOGIA

Além da disputa acirrada, essas eleições foram marcadas por crimes eleitorais. O aplicativo Pardal, desenvolvido pela Justiça Eleitoral para possibilitar aos cidadãos o registro de denúncias de propagandas eleitorais irregulares de maneira mais prática, registrou 52.920 denúncias na eleição. De acordo com o sistema, o Paraná recebeu só no primeiro turno 2.253 denúncias, sendo o estado do país com o maior índice de crimes eleitorais.

Autoridades afirmaram que esse número tão alto é o resultado da fiscalização de qualidade que o estado exerce. O problema é que boa parte desses crimes parte de denúncias de eleitores comuns ou de agentes da Polícia Militar que rondam a cidade durante a votação. Mas será que estamos cientes do que categoriza um crime eleitoral? Foi exatamente com esse embate que eu me deparei no dia da eleição.

Após uma votação bem tranquila em meu colégio eleitoral, o setor de Belas Artes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), liguei para meu pai para que me buscasse e me levasse ao seu local de votação. A ideia era que neste trajeto eu conseguisse dar uma ronda pela cidade e noticiar algum caso de infração nas eleições. Mas pela minha ignorância nesse assunto, qualquer manifestação partidária que eu avistava me fazia questionar a sua legalidade.

– Olha lá, olha lá pai! Vários carros juntos com bandeira do Brasil! Será que é crime?

– E aquele carro tocando a música do Bolsonaro? Esse, com certeza deve ser ilegal!

– Venda de bandeirinhas do Brasil…. suspeito?

Foi neste momento, que meu pai sugeriu que eu estava tentando denunciar qualquer bolsonarista que passasse pela minha frente.

– Os vermelhinhos você não vê problema, né?

Mas, em meu trajeto, não havia eleitores de esquerda com manifestações tão escandalosas como os “verde e amarelo”. Quem sabe os ataques a candidatos de esquerda, que aconteceram na cidade durante o período de eleição, tenham feito aqueles que queriam estar vestidos de vermelho serem mais discretos. No mês de outubro, houve dois casos de grande repercussão em Curitiba. Um prédio lo-

166. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

calizado no bairro do Ahú foi alvo de tiros por ter a bandeira do MST em uma de suas varandas. E a jornalista Magaléa Mazziotti, da CNN, foi agredida enquanto caminhava no centro de Curitiba com o adesivo de seu candidato do PT no peito.

Em uma dessas tentativas de ironizar minha busca por crimes eleitorais nos deparamos com algo intrigante.

No Centro Cívico, o carro passa rapidamente paralelo à Praça Nossa Senhora de Salete. Em razão da velocidade do carro, avistamos apenas de relance um varal colocando à venda bandeiras penduradas nas quais havia uma imagem.

– E aqueles trabalhadores, Nanda? Vai mandar pro xilindró, também?! Só porque estão vendendo a bandeira do Brasil com...

– Com...?

– Eu não faço a mínima ideia. Parecia que tinha um rosto no centro…

– Do Bolsonaro??

– Não deu para ver direito, mas provavelmente era, né? Se quiser, a gente passa lá depois de eu votar.

Assim, fui procurar se era permitido vender itens dos candidatos na rua em plena eleição. O mais próximo que eu cheguei de uma explicação foi o art. 334 do Código Eleitoral, que veta a distribuição de material político no dia, mas nada fala sobre a venda desses materiais. Não fiz a denúncia no momento. Primeiro, porque eu não sabia se era proibido o que eles estavam fazendo. E, segundo, porque eu não tinha certeza de que aquelas bandeiras realmente tinham o rosto do Bolsonaro.

Chegando ao colégio eleitoral Opet, que está localizado no bairro Bom Retiro, avisto duas fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) sentadas em uma mesinha tendo uma conversa animada. Me aproximo delas para tentar descobrir se elas conseguem sanar a minha dúvida.

– Diga, minha querida! Tá precisando de ajuda?

– Então, eu queria saber se alguém consegue me dizer se vender produtos de candidatos hoje, é crime?

Prendam o leão 167.

As duas mulheres se encaram, esperando que a outra saiba a resposta. Mas nenhuma delas sabe me responder.

– Olha... eu vou ser bem sincera, eu não tenho a menor ideia. Você sabe, amiga? – uma das fiscais pergunta à colega de trabalho ao seu lado.

– Ai que vergonha, hahaha! Eu também não sei! Mas o Marcos, que tá trabalhando do lado de fora, deve saber.

– Verdade! Ele é um carequinha de óculos de sol. Você deve encontrar ele na entrada do colégio.

– E se você descobrir a resposta, conta para nós, viu.

– E se rolar barraco, chama a gente para assistir que somos tudo fuxiqueira!

Enquanto as mulheres riem de seus próprios comentários, eu me afasto e vou em busca do suposto fiscal “carequinha’’ que teria minhas respostas.

Marcos não foi difícil de encontrar. A falta de cabelo, óculos escuros e a postura de superioridade fazem com que ele se pareça com o personagem que Vin Diesel interpretou no filme Velozes e Furiosos. Pode ter sido a postura arrogante ou a semelhança com um personagem de um filme tenebroso. Mas fiquei com receio de falar com ele. No entanto, depois de ficar encarando o homem por um bom tempo, debatendo comigo mesma se iria abordá-lo ou não, ele percebeu que eu estava encarando e se aproximou.

– Bom dia, senhorita. Precisa de ajuda?

– Os fiscais, que estão trabalhando do lado de dentro, me disseram que você poderia me ajudar com uma dúvida. Não consigo encontrar a resposta.

– Opa! Ainda bem que você está falando com um profissional. Me conta qual o problema.

–...Errr, eu queria saber se vender produtos de candidatos hoje é crime.

O homem para. Tira o óculos. Descruza os braços e olha para os dois lados.

– Então... vender produto de candidato... eu acredito que não.

– Mas, então, você não tem certeza?

168. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

– Olha... assim, pelo senso comum, eu acho que não é, né? O povo tem que trabalhar, ganhar dinheiro. Mas se você quiser conferir, tem uma viatura da PM na esquina. Eles tão fazendo ronda hoje nos colégios eleitorais e devem saber.

– Farei isso, obrigada!

– De nada. Fico feliz em ter ajudado!

Ajudar não ajudou, mas falar com os policiais não era má ideia. Se eles estavam realizando rondas para identificar qualquer tumulto ou irregularidade, deveriam saber.

A viatura estava estacionada na calçada, bem na esquina do colégio. Dentro do carro, havia dois policiais: um homem e uma mulher.

– Bom dia! Precisando de algo? – a mulher pergunta para mim.

– Eu queria saber se vender produtos de candidatos hoje não é crime. Como uma bandeira do Brasil com o rosto do presidente Bolsonaro.

– Crime eleitoral, você diz? Até onde eu sei, ninguém falou nada sobre isso –afirma a mulher.

– Eu também não sei, viu? Não deram muita explicação sobre esse assunto, mas procure na internet, que você deve achar – acrescenta o oficial.

Eu já havia procurado. Mas o site do TRE falava sobre distribuição, que em meu entendimento, seria um ato de distribuir de graça, sem objetivo de arrecadar lucros. Mas para mim, a ideia de venda parecia tão estranha quanto. Por isso, decidi continuar investigando.

Então, eu tenho um estalo. Por questões de trabalho da faculdade, eu havia entrado para o grupo no WhatsApp do TRE para acompanhar as notícias das eleições no estado. Abro a lista de integrantes do grupo e avisto algumas pessoas, que reconheço como jornalistas que trabalham para o órgão. Escolho aqueles que têm uma foto de perfil no WhatsApp mais simpática e envio uma mensagem.

Eu me apresento para ele, explico que sou estudante de Jornalismo e preciso de algumas informações para uma matéria que estou produzindo. Conto para o jornalista o meu embate. Ele logo diz que vai apurar e me passar a informação.

Prendam o leão 169.

Chequei. E o que foi me passado é que não pode. Mas é preciso que alguém apresente uma denúncia formal junto ao promotor eleitoral.

– Certo, vou conferir a informação e depois vejo como proceder, já que não tenho certeza de que era o rosto do presidente… Mas uma outra dúvida me surgiu agora. Estão vendendo várias bandeiras do Brasil hoje, por causa de um candidato específico e, em relação a isso não há nada a se fazer, né?

– Pelo uso que estão fazendo, eu entendo que é errado. Mas como se trata de um símbolo nacional, não há impedimento a isso.

Durante a nossa conversa, eu já me direcionava para o local onde antes tinha visto as supostas bandeiras. Quando o carro estaciona ao lado da venda de bandeiras, recebo uma mensagem do jornalista novamente.

– Desculpe o incômodo, mas acabaram de me passar que a venda de produtos dos candidatos está liberada, contanto que não seja de uma empresa particular ou partido.

Quem vendia as camisetas era um senhor e a sua esposa. Não achava que seriam de uma empresa ou partido, mas já que estava lá, não tinha por que não perguntar.

Mas quando eu saio do carro e olho para as bandeiras, percebo que eu me enganei, e feio. Não era o rosto do Jair Bolsonaro que estava estampado na bandeira. Mas o rosto de um Leão. A bandeira era um hibridismo de imagens entre Brasil, Israel e o animal. Fiquei confusa, porque não conseguia entender como aqueles três elementos se conectavam.

– Boa tarde! Eu fiquei curiosa e queria saber o que significa essa bandeira com o leão. – pergunto para a moça que estava cuidando da venda dos produtos.

– Ah, claro! O animal representa o Leão de Judá. É uma metáfora usada pelos judeus para representar a figura de Jesus Cristo.

– E quem que produz essas bandeiras?

– Eu e meu marido. A gente começou a vender bandeiras e camisetas pro público bolsonarista para conseguir um dinheiro extra.

– Mas. Vocês são judeus? Porque é uma bandeira com mistura de Brasil e Israel.

170. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

– Não, a gente é católico mesmo. Mas o pessoal sempre pedia para a gente essa bandeira. Eles gostam de levar coisas de Israel para as manifestações. Daí a gente começou a produzir.

Além de o presidente Bolsonaro ter boas relações com o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, grupos de direita têm usado a bandeira de Israel como um símbolo do conservadorismo. No Brasil, esse movimento também ocorre como uma tentativa de se opor ao PT, visto que durante o governo Dilma, o Brasil esteve alinhado à Palestina.

Entretanto, bandeiras com leões judeus brasileiros não constam como crime eleitoral.

Sob pressão

Tayná Luyse Cordeiro da Silva

Talvez uma das coisas mais inusitadas deste ano seja a Copa do Mundo acontecer logo após as eleições presidenciais. A euforia para os começos dos jogos reflete na decoração de ruas, de casas e, até mesmo, de looks. Não julgo o fato de a bandeira brasileira e, por consequência, suas cores, ser de uso de todos, mas em um momento no qual um dos candidatos à presidência da República faz uso desse símbolo nacional em suas campanhas, isso pode gerar polêmica.

Na quinta-feira, antes das eleições do segundo turno, como de costume, embarquei na van que sempre me leva ao trabalho. Ao chegar em minha mesa, no setor de Recursos Humanos, vejo que no balcão ao lado há uma sacola branca, meio transparente, contendo algumas coisas verdes e amarelas. Não consigo ver o que são essas coisas. Ignoro e dou continuidade ao meu trabalho.

Passadas algumas horas, uma colega de outro setor abre a porta animadíssima, gritando. Isso desconcentra toda a sala, principalmente a mim, pois gosto de silêncio. Mas tudo bem, situações assim são costumeiras.

– Onde estão os enfeites da Copa, Cláudia?

– Aqui na mesa, Amanda, mas tem que ver com Maria se hoje é o melhor momento para enfeitar a empresa.

Maria é a técnica de segurança do trabalho. É com ela que se fala quando é preciso fazer algo diferente dentro da empresa.

Percebo que Amanda está aborrecida. Em pé e impaciente, espera a técnica, que entra na sala em alguns minutos.

– Maria, tô levando as bandeiras, os balões e as letras em E.V.A. para colocar na fábrica. Depois vão lá ver.

A técnica desaprova que seja enfeitada a fábrica naquele momento.

– Então, acho que hoje não é o melhor dia. Vamos deixar para colocar na segunda-feira, porque daí os funcionários não vão pensar besteira. Domingo é dia de votação.

Meio que sem pensar, concordo com Maria.

– É verdade, melhor deixar para segunda. Na segunda, eu ajudo, mas hoje com certeza não.

Sabe aquele momento que você quer cavar um buraco e se esconder? Pois bem, foi isso que aconteceu.

Surgiu um silêncio. Nunca o barulho da minha respiração ficou tão alto. Todos os olhares se viraram para mim. Eu, definitivamente, odeio chamar a atenção. Odeio mais ainda ser analisada da cabeça aos pés.

– Aí, Tay, não vai me dizer que você vota no PT? – pergunta Claúdia, enquanto me encara com a testa toda franzida.

Pronto. Eu estava com o café na boca e ele desceu como se não tivesse açúcar. O amargo do “pretinho” foi o fim de um dia tranquilo. Numa sala de maioria “bolsonarista”, eu sabia do meu destino. Uma tarde de merda.

Entre idas e vindas no assunto, explico por que eu votei no primeiro turno no candidato do PT e por que votaria nele novamente, no segundo. Qualquer um que estivesse ali presente, imaginaria que eu havia cometido um crime. Era assim que eu me sentia com os olhares sanguinários redirecionados para mim. Meu rosto coçou de nervosismo e meu pé começou a ter um “tremelique”.

– Nossa, eu jamais imaginaria isso. Estou chocada. Meu mundo caiu, Tay.

174. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

O mundo caiu? Matei alguém por acaso para Cláudia fazer um alvoroço diante de todos?

Isso “martelou” na minha cabeça.

Eu poderia ignorar tudo aquilo. De certa forma ignorei. Apenas falei que é o que minha família segue, até brinquei com uma das falas que minha mãe sempre profere: “Se alguém aqui de casa votar no Bolsonaro, pega suas coisas e vai embora”. Mas a brincadeira não teve efeito. Acuada, fiquei quieta enquanto um discurso de 23 minutos ecoou na sala do RH. Sim, eu contei os minutos. Na verdade, eu contei os segundos. Queria ir embora, queria sair daquela sala que estava me deixando sem ar.

O papo amenizou e Amanda levou as decorações da Copa do Mundo para a sala dela, comprometida em fazer a ação de enfeitar só na segunda-feira (31/10).

Deu a hora de ir embora. Nunca fiquei tão feliz de ir para casa. Mas, no fundo, estava chateada. Não entrava na minha cabeça que Cláudia, uma psicóloga, me fizesse passar por isso. Não era vergonha, era um sentimento de invalidez.

No outro dia, eu mal entrei na empresa e vi bandeiras do Brasil, de todos os tamanhos possíveis, espalhadas por todo canto. Além de frases, formadas pelo E.V.A. brilhante, como “Pátria Amada Brasil” e “Ordem e Progresso”. A primeira coisa que pensei foi em mandar uma mensagem no grupo do Whatsapp que tenho com minha família.

– Não vão nem acreditar… (suspiro)... Nem para esperar as eleições passarem, encheram de coisas da Copa aqui.

Minha mãe alerta que é crime eleitoral fazer qualquer tipo de propaganda dentro de empresa para funcionários e que a multa é pesada.

Chego à sala, todos felizes, falando de como a empresa “está linda”. Todos menos a técnica da segurança do trabalho. A única com quem eu me identifico naquele momento. Cheguei a falar com ela sobre isso de crime eleitoral e para ela dar uma olhada na empresa. Concordando, ela saiu na surdina para vistoriar. Pela correria do dia, não falamos mais sobre o assunto.

Sob pressão 175.

Como era sexta-feira, último dia em que os funcionários se veriam antes da votação, todo mundo dava tchau e dizia: “Vote consciente”. Já estava perto das 18 horas, horário em que vou embora. A gerente, minha supervisora, sempre cordial, despediu-se.

– Tchau gente, bom descanso. Até segunda. Votem conscientes, pelo amor de Deus! É Bolsonaro, 22!

Ninguém falou nada sobre a manifestação. Será que eu estava criando caso com isso à toa? Eu estava perplexa.

Em casa, contei o que aconteceu. Minha mãe novamente repetiu que era crime eleitoral. Na mesma hora, uma tela preta apareceu na TV durante uma propaganda. A mensagem dizia que se a empresa tentar determinar voto de funcionário, comete um crime. É assédio eleitoral e deve ser denunciado.

Abri o portal do Ministério Público do Trabalho (MPT), para entender melhor. É possível fazer a denúncia direto por lá, ou pelo aplicativo “Pardal”. Qualquer tipo de coação, imposição ou direcionamento de votos, dentro de relações de trabalho, pode caracterizar discriminação de orientação política e, em última instância, assédio moral.

Domingo, o resultado das eleições saiu. Eu sabia que ia ouvir muito na empresa. Principalmente porque eu votei no candidato opositor ao da maioria da sala e agora eles sabiam disso. Foi um ano e dois meses ocultando meu posicionamento político.

Acho que Deus me consolou. Após o domingo de eleição, fiquei três dias sem ir trabalhar. Talvez isso tenha amenizado o que eu poderia ter escutado se tivesse ido logo na segunda-feira.

Revisitei o site do MPT, no dia primeiro de novembro, e me surpreendi com os números. Assédios eleitorais em 2022 (2.556 denúncias) cresceram em 12 vezes em comparação com 2018 (212 denúncias). Em relação às empresas, aumentou quase 20 vezes, indo de 98, em 2018, para 1.947, em 2022.

A denúncia poderia ser feita de forma sigilosa. Tive medo. Acabei deixando passar. Se eu soubesse até onde isso iria, teria ficado de boca fechada.

176. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

Na quinta-feira, dia 3 de novembro, volto para o trabalho. Respiro um ar carregado, pesado mesmo, como se eu estivesse num enterro. São apenas meus colegas sem brilho no rosto, balbuciando palavras sem nexo, na esperança de um golpe federal. Todos colocaram nos stories e em suas redes sociais posts em tons pretos de “LUTO” pelo Brasil. Todos exceto a técnica de segurança.

Mesmo sentindo a tristeza deles, comemoro em silêncio. Observo as bexigas verde e amarelas murchando na parede, acompanhada da minha xícara de café cheia. Dessa vez, coloquei uma colher a mais de açúcar.

Nada deixou meu dia amargo.

Todas as pessoas citadas tiveram seus nomes trocados por fictícios para não serem identificadas.

Arroz com Lula

Thaynara Goes Aliviada por conseguir pegar o ônibus antes que as inevitáveis chuvas de outubro caíssem novamente, confiro o celular pela primeira vez depois do final das aulas de quarta-feira. Olho rapidamente as mensagens torrenciais nos grupos de trabalho e abro a notificação da conversa com minha amiga Lívia:

– Na sexta vai ter um evento no MST. Se chama Arroz com Lula.

Respondo perguntando mais detalhes sobre o evento e ela encaminha o convite oficial em seguida. O texto de anúncio começava com uma afirmativa em letras maiúsculas: “EM CURITIBA, ARROZ COM LULA SEGUE FIRME NO 2º TURNO”. Ele prosseguia explicando que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mais conhecido como MST, com o coletivo Marmitas da Terra, promoveriam uma festa chamada Arroz com Lula, para fortalecer a campanha do candidato Lula no segundo turno das eleições. A mensagem seguiu detalhando datas e horários, e sinalizando que os pratos deveriam ser reservados com antecedência.

No dia seguinte, encontro Lívia na aula e conversamos sobre a logística de ir até o evento. Parece simples na teoria, mas voltar de qualquer lugar tarde da noite pelas ruas do centro de Curitiba até os tubos de ônibus não é tão animador para duas mulheres. Por isso, planejamos o trajeto que faríamos, onde pegaríamos cada ônibus e o horário máximo que ficaríamos no lugar; até que chegamos ao ponto central mas ainda intocado da conversa:

– Mas, afinal, o que vai ter pra comer? – digo.

– Então, eu vi que eles postaram no Instagram. Vamos ver – responde ela, abrindo o aplicativo no celular.

Ela vira o aparelho na minha direção e mostra uma foto de um prato de comida em baixa resolução. Avisto algumas folhas, grãos, uma massa estranha e molho, tudo misturado em uma louça transbordando.

– Bom, tem salada ali, né? O resto eu não consegui identificar direito. Imagina se é bucho? – brinco.

Reservamos dois pratos por meio do pix do Marmitas da Terra, R$13 cada. Valor que exalava simbolismo, tanto pelos ideais do evento quanto pela quantidade de comida oferecida.

Na sexta-feira, dia da janta, nos encontramos na aula e, depois, nos encaminhamos para o centro da cidade algumas horas antes de começar. Andamos pelas ruas de maneira calma, com o prelúdio de um fim de semana de descanso tão ansiado por qualquer estudante. Sentamo-nos em um dos bancos da praça Santos Andrade, que fica de frente para o Casarão, local onde o evento ocorreria, e ficamos conversando até o horário de iniciar a festividade.

Quando já começava a escurecer, atravessamos a rua em direção ao Casarão. A construção histórica bordô e branca tinha um estandarte na porta de entrada que anunciava “Comitê Popular”, ilustrado por uma imagem do candidato Lula. Fomos recepcionadas calorosamente com um beijo no rosto por um homem que estava orientando as pessoas que chegavam: – Boa noite! Vocês vieram para a janta do MST? – questionou, com um sorriso. Respondemos que sim e mostramos o comprovante de pagamento. Subimos as escadas e fomos direcionadas para o hall de entrada, que também servia como uma espécie de bar e de caixa ao mesmo tempo. Ainda ali, um balcão exibia diversos panfletos de comércios próximos ou parceiros, além de rolos e mais rolos de adesivos do Lula. O lugar também sedia outros eventos, mas naquela noite abrigava o comitê Arroz com Lula.

A luz amarelada irrompe no ambiente. O lugar realmente fazia jus ao nome: por dentro, a construção lembrava uma casa com vários cômodos, que terminam em um jardim com mesas para quem quisesse comer ao ar livre. Como chegamos cedo, o espaço ainda estava sendo arrumado. Cada centímetro de parede vazia era prontamente adornado por artes coloridas ou bandeirolas com mensagens de cunho esperançoso, beirando o motivacional. À medida que adentramos o ambiente, a tensão de estar em um lugar desconhecido se desfazia em mim. Me senti acolhida por expressões despreocupadas e posturas leves das diversas pessoas ao meu redor.

– Vocês estão em duas? Podem me acompanhar! – pediu uma moça que estava trabalhando no lugar.

Ela nos direciona para uma mesa meio apertada, que acabamos trocando em seguida. Acomodadas, então, na mesa 10, ao lado de uma dupla de amigas na faixa dos 50 anos, ornadas por brincos de estrelas e bottons da bandeira LGBTQIA+, Lívia e eu trocamos percepções sobre o lugar.

Enquanto aguardávamos ser atendidas, observo o local. Ao som de muito samba no volume máximo, vários grupos de amigos de diferentes tamanhos e tipos se reuniam nas mesas, conversando sobre suas vidas, regados a chopp ou caipirinha, que eram as únicas coisas amargas ou ácidas naquela noite.

Em meio à conversa, um senhor vestindo uma camisa verde-amarela com um avental do MST amarrado por cima nos aborda:

– Pra vocês, é o Arroz com Lula?

– Sim! – respondemos.

Quando ele se vira para buscar os pratos, percebo o “Lula 13” estampado na parte de trás de sua camisa, uma tentativa de resgatar um símbolo tão corriqueiro, mas apropriado e transformado por outros movimentos. Alguns minutos depois, ele retorna segurando dois pratos:

– É vegetariano pra vocês?

– Não… É o comum... É o Arroz com Lula comum. – negamos, confusas.

– Ah… Tá bom. – disse ele, franzindo o cenho e entregando os pratos.

Arroz com Lula 181.

Sinto o sabor do risoto na primeira garfada. Levanto a cabeça para elogiar o gosto para Lívia, quando a vejo segurando o garfo com a massa estranha espetada, olhando incrédula:

– Thay… Isso é lula! – diz ela.

Eu olho atônita para o garfo dela, e olho para o meu prato novamente. Aí caiu a ficha. Eu, que nunca tinha comido lula na vida, não tinha conseguido reconhecer na foto que carne era aquela no prato. Achamos que o nome do evento era Arroz com Lula apenas em apoio ao candidato, não que o cardápio do dia tinha algo a ver com isso. Percebendo o nosso engano, caímos na risada. No final das contas, era arroz com lula!

Continuamos comendo em meio a risos, ainda perplexas por não termos entendido o sentido do cardápio nem da primeira nem da segunda vez. O risoto era uma delícia, e a lula, para um paladar iniciante, também. A salada de repolho e alface e o vinagrete constituíam metade do prato, ponto forte da produção orgânica do Marmitas da Terra. Perto das oito da noite, o Casarão estava lotado, com pessoas conversando alto, em êxtase, e algumas até “dançandinho” no meio do hall.

Quando terminamos de comer, nos aprontamos para sair em meio à nublada e fria noite curitibana, que fazia contraste com o quentinho que estávamos sentindo no coração.

Arroz

Um dia vermelho durante a primavera cinzenta

Dia 11 de outubro de 2022, segunda-feira, por volta das 12h50, havia acabado de assistir a algumas aulas intensas naquela manhã, cansada mentalmente como muitas pessoas nesse árduo final de ano.

Saí do Laboratório de Comunicação e Artes da PUCPR, indo em direção ao tubo da Avenida Marechal Floriano Peixoto para pegar o ônibus Circular Sul e, assim, chegar em casa.

Quando entrei em meu apartamento, logo tirei os meus tênis e os deixei ao lado da porta, levei minha mochila até o sofá e ali mesmo a deixei, como sempre faço. Sento-me e prontamente minha gata se direciona para meu colo a fim de receber carinho enquanto eu mexia no celular. Sem demora, abro o WhatsApp e me deparo com diversas mensagens no grupo “Comitê Popular PR 3”, no qual eu havia entrado alguns dias antes, caso precisasse de alguma pauta para trabalhos da faculdade. Dito e feito: reparei que haveria passeata e panfletagem em prol de Lula perto da minha casa naquele dia, e a hora de início da manifestação já se aproximava. Rapidamente, eu me levantei, troquei de roupa e, sem demora, saí de casa mais uma vez.

Caminhei em direção ao supermercado Angeloni da República Argentina, onde seria o ponto de encontro dos manifestantes. Ao chegar, me deparei com umas 15 pessoas, todas de vermelho, com adesivos e bandeirinhas em favor de Lula.

O Partido dos Trabalhadores (PT) tem aproximadamente 216 comitês populares no Paraná. Alguns estão localizados em áreas de ocupação do Estado. Na capital, Curitiba, há por volta de 100, conforme levantamento do Movimento Sem Terra (MST), realizado em agosto de 2022. Incentivada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a brigada de Curitiba tem como parcerias: o próprio MAB, associações de moradores (caso da vila Formosa), militantes dos Partidos dos Trabalhadores, de sindicatos e do Movimento de Trabalhadores por Direitos (MTD). Durante as eleições, o grupo faz panfletagens de materiais produzidos por integrantes de comunicação do movimento e das campanhas majoritárias. O grupo passa por comunidades da periferia, a fim de envolver lideranças populares.

Eram por volta de 15 horas e não era um dos dias mais bonitos de primavera em Curitiba. O céu estava inteiramente nublado e, mesmo assim, fazia muito calor.

Conversei com uma moça de cabelos pretos presos em um coque, que se apresenta como Juliana Lemes, mas pede para ser chamada apenas por Ju. Prontamente, ela coloca um adesivo em minha blusa e me entrega uma das pequenas bandeirinhas disponíveis. Ju não me conta muito sobre ela, somente afirma que sempre fez parte do comitê do PT e que é voluntária na cozinha comunitária da União de Moradores e Trabalhadores da cidade.

Conversa vai, conversa vem, Ju comenta que, apesar de fazer parte dessas campanhas, ttemmedo, pois, para ela, muitas pessoas não respeitam a democracia.

– Normalmente, querem partir para violência, é perigoso! Por isso, sempre precisa haver algum homem que possa nos acompanhar, para sentirmos mais segurança.

Distancio-me um pouco para tirar algumas fotos daquelas pessoas segurando bandeiras, panfletos e fazendo algum tipo de fanfarra para animar o grupo. Ouço uma senhora dizer para a amiga que a acompanhava: 186. OLHARES POLÍTICOS | Gonzo

– Já sabemos quem está do nosso lado, só pelo jeito que nos olham. Ela continuou contando que sempre gostou desse tipo de movimento político. Quando os filhos eram pequenos, levava-os a comícios, a fim de acostumá-los a participarem de manifestações populares. Cheguei mais perto para participar da conversa das duas amigas e lhes perguntei como estavam as expectativas para as eleições. Uma delas confessou que estava muito ansiosa e tinha medo do resultado, pois o ano havia sido muito difícil em razão das opiniões acirradas quanto às eleições.

Na esquina do supermercado, fiquei parada observando todo o movimento. Uma moça com roupa de academia, óculos escuros e cabelos presos em um rabo de cavalo, passeava com seu yorkshire. Ela pediu adesivo para uma das pessoas, tirou algumas fotos, direcionou-se a mim e disse:

– Que bom que vocês estão aqui! Neste bairro, há muitos “bolsominions”. Vamos ganhar! Apenas sorrio pra ela, e ela continua sua caminhada.

Naquela avenida movimentada, pessoas passavam de carro, buzinando e gritando:

– É o Lula!, e faziam o “L” com as mãos.

Um dos organizadores da manifestação disse que sairíamos dali e caminharíamos até o Shopping Palladium. Ele previne, de forma bastante enfática:

– Vamos receber muitas críticas por estarmos fazendo isso, mas, por favor, não revidem, não queremos qualquer tipo de violência.

Durante a caminhada, organizadores do movimento entregavam panfletos às pessoas que passavam. Alguns agradeciam, outros jogavam o material no chão ou no lixo. Moradores de edifícios das redondezas notavam a agitação, iam até as sacadas, pegavam suas bandeiras ora vermelhas, ora verde e amarelas.

Alguns gritavam em apoio ao grupo enquanto outros só xingavam e ofendiam. Houve muita agitação e muita música. Os manifestantes permaneciam animados, mesmo com a chuva começando a cair.

Ao final da passeata, o tempo começou a abrir e o sol apareceu, dando vida e beleza à cidade, tornando aquele dia nublado mais bonito e ensolarado.

Um dia vermelho durante a primavera cinzenta 187.

Quatro Olhares, quatro edições, um só propósito: narrar o mundo com a alma atenta. Entre o visível e o esquecido, entre rostos que contam histórias e histórias que moldam destinos, este livro nasce do olhar atento e da escrita apaixonada. Um encontro entre ruas e palavras, entre vidas e narradores. Aqui, a realidade ganha textura, o cotidiano se torna literatura e o jornalismo se veste de arte. Da escuta ao mergulho, do detalhe à imersão, Olhares Políticos revela o que pulsa à margem, mas merece o centro da cena.

Fernanda Ávila, jornalista

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