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FRAGMENTOS E DOCUMENTOS

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Esta publicação nasce de um projeto e de um encontro e tem por objetivo compartilhar processos de investigação artística sobre modos de ver e expor memórias e imaginários afrodiaspóricos. Estávamos interessados em conhecer e estimular uma reflexão sobre trânsitos de objetos e a constituição de acervos específicos, assim como sobre as narrativas históricas e cânones museológicos da arte africana no Brasil e, especialmente, na Bahia. Escolhemos o espaço museal como lugar para olharmos os objetos, investigarmos as narrativas e o conjunto de práticas e sentidos associados a eles. Foi nesse contexto que ideamos o projeto FLUXOS - ACERVOS DO ATLÂNTICO SUL e tivemos a grata oportunidade de interagir com o Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia - MAFRO e a Casa do Benin, em Salvador. O encontro com essas instituições, seus acervos, suas histórias e os profissionais que nelas atuam foi imensamente enriquecedor.

O livro pode ser pensado a partir de diversas perspectivas. Constitui-se como um trabalho “em progresso”, que foi se desenhando a partir dos processos artísticos desenvolvidos e das informações que foram sendo recebidas ao longo da investigação. Assim, reunimos aqui materiais diversos: documentos que nos ajudam a entender contextos históricos, políticos e culturais; documentos e imagens relacionados aos processos que foram ativados nos museus e em seus entornos físicos, não físicos e imaginários, registros das obras desenvolvidas e vistas da exposição que realizamos ao final do projeto. Para abordar aspectos específicos que os processos investigativos tangenciaram, convidamos alguns interlocutores para escrever sobre a iniciativa. Reunimos, então, esse conjunto de fragmentos - ensaios, registros fotográficos, cópias de cartas e artigos de jornais – num livro que se mantém aberto, sendo o seu próprio projeto uma “obra artística”, um livro-objeto que, portanto, tem como tarefa contar aspectos da história de um projeto e

de uma exposição, compartilhando reflexões e criando associações e desdobramentos.

Iniciemos a pensar fluxos e mobilidades afrodiaspóricos a partir da formação dos acervos e exibições do MAFRO. Concebido por Pierre Verger, o museu reúne uma coleção de arte africana que é fruto de deslocamentos do fotógrafo entre países africanos e o Brasil, bem como objetos da cultura material africana e afrobrasileira, adquiridos ou recebidos como doação. Com peças provenientes da África Ocidental, Central e Oriental, o museu enfatiza os laços culturais que ligam a cultura africana à brasileira, buscando contribuir com a (re)valorização da cultura negra e a construção de uma memória afrobrasileira em Salvador.

Com um foco geográfico mais específico, a Casa do Benin construiu um acervo que resgata fluxos culturais, materiais e imateriais entre o Benin e o Brasil. Ao percorrermos a sala da exposição permanente desse centro cultural, em direção ao pátio interno e seus vários espaços, nos vemos envolvidos em um contexto cheio de intensidades e camadas. Resgatamos aqui as palavras de Chicco Assis, que nos fala dos encruzilhamentos que atravessam a Casa do Benin: geográficos e temporais, reunindo passados, presentes e futuros. Sim, pensemos no plural e pensemos na diversidade. A Casa do Benin, ativamente envolvida com seu entorno, é também um espaço-testemunho que abriga o cruzamento e possibilita o encontro entre pessoas, que vão desde a comunidade local, a quem oferece diversas ocasiões de eventos culturais, à trocas entre países, materializada com sua instalação em 1988, sob a gestão cultural de Gilberto Gil, inaugurando um intercâmbio pós-colonial/pós-ditadura entre o Benin e o Brasil.

Dado esse contexto e as inquietações do presente no campo das artes visuais, a partir de uma chamada aber-

ta, foram selecionados sete projetos de investigação em torno desses acervos e coleções. Estes foram desenvolvidos a partir de julho de 2019, em paralelo a uma série de atividades, seminários, debates coletivos realizados em parceria com o Goethe-Institut Salvador-Bahia e encontros com interlocutores (curadores, artistas visuais, pesquisadores e escritores).

A culminância do projeto foi a realização da exposição coletiva Nkaringana: objetos e histórias em trânsito1. Inaugurada no dia 29/11 de 2019 no MAFRO e no dia 30/11 na Casa do Benin, a exposição apresentou os processos de investigação artística realizados em diálogo com os acervos dos dois lugares. Além dos projetos selecionados, convidamos também artistas cujos temas de trabalho perpassassem pela afrodiáspora, para criar obras em diálogo com objetos/aspectos das duas instituições, trazendo outras possibilidades de rever as histórias e criar novos olhares.

Obras

Vários foram os trabalhos desenvolvidos. As múltiplas perspectivas das abordagens possibilitam desenhar, a partir das obras, uma cartografia coletiva - que é pulsante, concreta e material - e, ao mesmo tempo, efêmera e inacabada. Talvez boas imagens dessa cartografia sejam os prismas. As obras, em suas singularidades, criam ressonâncias entre si, fulguram conceitos, ideias, histórias, que não se deixam totalmente apreender. As obras nos trazem textualidades2: tempos e lugares em sobreimpressão, que evidenciam a importância de resgatar histórias ainda não conhecidas e contadas.

Convidamos a considerar as obras e processos (que são tão ou mais importantes) como pequenos prismas, abertos à interpretação. E sigamos com algumas perguntas: O que significa dialogar com um acervo de arte e cultura

1 É importante considerar que esse título deveria incluir também a palavra “estórias” (assim como em alguns trechos do livro), já que, histórias e estórias comumente se mesclam na narrativa e na arte do Nkaringana. Nas Tradições Yorubás, ambas “vivem de mãos dadas”, partilhando da nobre missão de transmitir e perpetuar o conhecimento através da oralidade (nota da tradutora).

2 Textualidades e sobreimpressão são significantes da obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol. São retomados no capítulo Oficinas e modos de criar movência, por Lia Krucken.

material africana? Quais deslocamentos a arte contemporânea pode provocar ao propor a desconstrução e a recombinação de histórias, ativando passados, presentes e futuros? Os desdobramentos desses questionamentos nos processos artísticos foram os mais diversos.

A palavra ‘totem’ define o símbolo de um determinado agrupamento, e é assim que se formam as pinturas Totem a um museu afro-brasileiro I, II e III, de Isabela Seifarth, a partir de um acúmulo de imagens de esculturas africanas encontradas em acervos de museus brasileiros. Em uma referência estética pode-se ter alusão às esculturas de máscaras geledés e suas super-estruturas, ou os painéis de madeira entalhados de Manoel do Bonfim ou Carybé com as figuras amontoadas, transformando essas referências tridimensionais em obras bidimensionais com uma pigmentação que transforma os objetos em um tipo de sombra, gerando dúvidas sobre a sua materialidade. As pinturas dialogam com a obra Acúmulos de um museu afro-brasileiro, um vídeo que traz desdobramentos dos totens, revelando a acumulação material e imaterial de obras de arte e memórias dos museus.

Contrafluxos é parte da série Brésiliens Agudás, iniciada pela artista visual Luisa Magaly. Consiste na reunião de vestígios investigativos acerca dos afro-brasileiros que foram deportados ou retornaram à África entre meados do século 18 e início do século 20, após uma série de revoltas populares, destacando a Revolta dos Malês, na Bahia, em 1935. O retorno aponta para uma outra diáspora, onde as manifestações culturais brasileiras existentes no Benin, Togo, Nigéria e Gana são os principais indícios da presença das comunidades Agudás, Brésiliens, Amarôs, ou Tabons — variações de denominações dadas aos retornados — nesses territórios.

Adriano Machado investiga pessoas, acontecimentos e relações que ocupam o cotidiano e os arredores da Casa