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Passados/presentes: entre memória e amnésia

A construção de coleções e acervos, assim como a organização de museus e exibições, constituem atividades que (re)articulam processos ligados a memórias e narrativas históricas. É, pois, a partir dos objetos que podemos refletir sobre nosso lugar no mundo, especular sobre a relação passado/presente, bem como pensar sobre práticas e discursos que acompanharam as instâncias de criação, circulação e legitimação dos artefatos nos diversos contextos e instâncias. Ao observar os objetos conseguimos perceber as interações de campos de forças complexas, como, também, a coexistência de interesses diversos e os impactos decorrentes de escolhas e processos seletivos, capazes de formar discursos, acertos, enganos e acasos.

No Brasil, a formação de coleções e acervos de arte africana e afrobrasileira foi marcada por períodos de discriminação e/ou criminalização. Isso reflete, de certo modo, um (des)conhecimento e silenciamento das vozes, por muito tempo, sistematicamente excluídas dos espaços da memória oficial. Lidamos com uma historiografia relativamente recente que define alguns parâmetros, em geral aplicados à compreensão/assimilação dessa produção artística em relação aos contextos históricos coloniais, imperiais, a fim de fomentar a reflexão os valores estéticos de artefatos que ocupam o lugar do “outro” nas narrativas da história da arte brasileira. Embora haja coleções privadas de arte africana1 e uma forte presença de peças de origem africana nos museus tradicionais brasileiros, no contexto nacional, a institucionalização das coleções de arte africana e afro-brasileira emerge mais efetivamente no contexto da valorização da cultura popular e da fundação de museus dedicados à arte moderna que ocorreram paralelamente aos movimentos negros e o lento processo de descriminalização da cultura afrobrasileira.

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INES LINKE PASSADOS/PRESENTES - ENTRE MEMÓRIA E AMNÉSIA

1 A valorização de objetos escultóricos africanos criou um mercado internacional desse tipo de objetos confeccionados (em um contexto político colonial) em workshops de arte tribal.

2 O Programa previu uma colaboração entre os Ministérios das Relações Exteriores e da Educação e Cultura, o Estado da Bahia, a UFBA e o Município de Salvador Apesar das especificidades históricas, os acervos e coleções dedicados a arte africana e afrobrasileira no Brasil, espelharam-se em perspectivas europeias que destacam os “valores primitivos” e aspectos formais da linguagem abstrata da “arte negra”. Consequentemente, em amostras iniciais, os objetos escultóricos tradicionais (contemporâneos) foram comumente utilizados para representar ritos e “costumes autênticos” de povos africanos, entretanto, a institucionalização da arte africana/afrobrasileira no Brasil na segunda metade do século XX não estava unicamente motivada pelo interesse nessas culturas e religiões, mas, vinculava-se a estratégias de poder e de políticas culturais capazes de influenciar e/ou determinar como os artefatos/objetos seriam conceituados, preservados, exibidos e divulgados.

No contexto do projeto Fluxos - acervos do Atlântico Sul ė possível observar a formação de duas instituições na cidade do Salvador/BA. Os contextos e atividades expositivas desses lugares conferem sentido sobre os objetos. Na história do Museu Afro-brasileiro da Universidade Federal da Bahia (MAFRO), bem como na Casa do Benin, localizadas nesta capital, os atos de constituição, nomeação, classificação e categorização oferecem situações que nos interessam e conduzem a reflexão, razão pela qual, neste breve texto, não vamos aprofundar acerca dos diversos elementos da constituição das instituições e na análise de suas narrativas, mas, procuraremos destacar alguns aspectos sobre as práticas museológicas, curatoriais e artísticas em coleções.

Objetivando uma melhor compreensão, partimos de um conjunto de perguntas: Quando surgiram tais coleções? Como foram formadas? Quais critérios e categorias utilizados? Quais conceitos e narrativas históricas marcaram as práticas museológicas e concepções expográficas? Ambas instituições foram fundadas nos anos 1980; contudo, quando olhamos para o MAFRO e a Casa do Benin,

lugares relativamente próximos no centro histórico da cidade, observamos distintos contextos e formas de lidar com os acervos. Questionamentos emergem quanto sua formação no contexto da institucionalização da arte africana, sobre a organização de suas coleções, seus conceitos curatoriais e suas concepções expográficas.

No intuito de obter algumas respostas, consultamos materiais nas próprias instituições e em demais acervos locais. Inicialmente atentamos para as correspondências salvaguardadas e preservadas no arquivo do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). Instituição que a partir de 1959, se empenhou em estabelecer uma rede de interlocutores africanos e europeus, objetivando - entre outras metas - a formação de um acervo de arte africana, veja pois, as cartas que per si, atestam crescente número de contatos em diversos países africanos, em geral daqueles que conquistaram sua independência e, que de algum modo interessaram ao Brasil político e economicamente. Neste contexto, em 1974, a criação do “Programa de Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países Africanos destinados ao Desenvolvimento de Estudos Afro-Brasileiros”2, se estabeleceu um contexto que conduziu e propiciou a criação oficial do MAFRO no ano de 1982. Sua coleção inicial foi estabelecida a partir de objetos ofertados por museus europeus, embaixadas africanas e aquisições de Pierre Verger para o Museu nos anos 1970, assim, como por doações de instituições e particulares documentadas em correspondências, documentos e demais artefatos integrados posteriormente. O resultado foi, e é a formação de um acervo heterogêneo possuído de cópias em gesso de conceituadas peças do Royal Museum of Central Africa (MRAC) da Bélgica, exemplos da arte tradicional da áfrica contemporânea adquirida em oficinas e mercados, assim como pela coleção Estácio de Lima.3

3 A coleção, que passou para a guarda do MAFRO em 2010, abriga as peças afrorerenciadas/ afrobrasileiras que estavam sobre a guarda do Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima que pertenceu à Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia.

4 Os processos de descolonização da África que ocorreram entre anos 1950s e 1970s foram acompanhados pela busca de novos regimes estéticos e novas iconografias em diálogo com manifestações de arte moderna e a (re)valorização da arte tradicional/ tribal dos diversos territórios.

5 A exposição MÁFRICAS: as Áfricas do MAFRO, com curadoria de Graça Teixeira foi inaugurada em 2018. No projeto inicial do museu, estimulado por Pierre Verger, destaca-se a contribuição africana na formação cultural brasileira por meio da aproximação das crenças e práticas da africa occidental e da Bahia. O mesmo pensamento, que cria as categoriais do projeto preliminar, também orienta as aquisições de peças e a organização da coleção na primeira montagem do MAFRO. No núcleo inicial os objetos são apresentados em distintos ambientes temáticos organizados em torno do “crer”, “do fazer” e “da memória” e a Sala Carybé dedicada aos painéis dos Orixas. Dessa maneira, a exposição inaugural estabeleceu associações entre os artefatos africanos, a cultura baiana e os trabalhos afroreferenciais de artistas modernistas baianos que incorporaram as formas, como, também, os conteúdos de referências populares e religiosas da cultura afrobrasileira e as tradições e cultos africanos herdados. Nas cartas consultadas, os pesquisadores, políticos e artistas envolvidos no processo de criação do MAFRO, inexiste demonstração de interesse em colecionar arte moderna africana e, tampouco, se estabelece diálogo com os artistas modernistas nos países africanos, a fim de se obter e colecionar suas obras.4

A segunda montagem do MAFRO, que substitui a exposição permanente anterior, foi orientada por múltiplas categorias e temáticas que separaram os elementos da coleção em objetos utilitários, rituais, de prestígio, comemorativos ou cerimoniais, educativos e/ou estéticos acompanhados por informações sobre os chamados povos tradicionais da África, bem como a vinda de africanos para o Brasil, mais especificamente aos fluxos coloniais de pessoas escravizadas. Atente-se que inspirado numa concepção atemporal da arte tribal, afirmou-se uma narrativa sobre as origens da “África no Brasil” e, que em consequência da associação dos objetos colecionados e comprados nos anos 1960 e 1970 ao discurso da formação cultural afro-brasileira, esses objetos se tornaram um tipo de testemunho do passado (pré)colonial

africano. Distintamente a exposição atual5 procura assumir e contextualizar uma ideia de África, existente no acervo do museu, enfatizando elementos da formação do acervo e demais aspectos regionais presentes nos artefatos expostos. Vozes de mulheres exibidas em um diálogo sutil, entre as peças que delimitam uma temática e/ou um universo feminino, ancorado em joias e pentes, indicam uma consciência de paradigmas, molduras narrativas e discussões curatoriais atuais.

A Casa do Benin (1988) foi idealizada para documentar e fomentar fluxos entre Brasil e a África ocidental, a partir dos trânsitos entre o Golfo do Benin e Bahia de Todos os Santos. Gerido pela Fundação Gregório de Mattos e inaugurada durante a primeira etapa do projeto de revitalização do Pelourinho, a Casa foi concebida como centro cultural visando a reaproximação diplomáticas e promoção de trocas bilaterais entre o Benin e o Brasil, definidas pelo Termo de Cooperação assinado pelo Prefeito de Salvador e o Ministro de Relações Exteriores/ Embaixador de Benin. Segundo esse documento, os termo das parcerias e as obras seriam disponibilizadas pela República de Benin. Vale ressaltar que poucos pontos estabelecidos pelo documento foram seguidos e que a Casa do Brasil/Casa da Bahia em Benin, pensada como parte da infraestrutura inicial na África que iria possibilitar os intercâmbios recíprocos permaneceu na fase inicial de implementação. Ao longo dos mais de trinta anos de sua existência, os objetos da coleção inicial se misturaram com doações, presentes, peças com temáticas afrobrasileiras do Museu da Cidade, entretanto, não encontramos outras menções sobre a formação da coleção, tampouco qualquer documentação sobre a procedência dos objetos que constituem o acervo do núcleo da Casa do Benin6. Inicialmente, o acervo foi concebido enquanto acervo fechado em exposição permanente, mas posteriormente também foram agregadas novas obras, doações, presentes e depósitos identificados

6 Foi feito um contato com o Ministério de Relações Exteriores e pretendemos buscar informações via Embaixador de Benin.

individualmente ou coletivamente placas genéricas que indicam o nome e/ou o suposto uso dos objetos e os separam em categorias que se aproximam as classificações da segunda exposição de longa duração do MAFRO (objetos lúdicos, objetos rituais, objetos utilitários, objetos de prestígio acompanhados, em alguns casos, pelo nome dos povos tradicionais). Apesar da permanência dos objetos e da continuação dos principais elementos expográficos concebidos por Lina Bo Bardi percebe-se uma transformação destes, assim como uma certa descontinuidade das peças em exposição nos registos fotográficos da montagem. Em diversas vistas da exposição permanente visualizamos novos trabalhos, como também, de peças que não mais existem. O que levou a remoção ou ao desaparecimento dessas peças? O que garante a permanência de nossos acervos e coleções? Diferente do MAFRO, a Casa do Benin não possui arquivo ou reserva técnica e realiza poucas atividades previstas no Termo de Cooperação.

Ao observar estas instituições notamos como suas ações afetam a memória dos objetos e, como suas categorias e narrativas estabelecem diversas possibilidades no presente. Dessa forma, ao mesmo tempo em que a memória remete ao passado, o acesso a esta, só é possível através de sua ativação em determinado momento. Os discursos sobre procedência, trâmites interculturais e transnacionais, as narrativas históricas, assim como os processos e escolhas curatoriais rearticulam sentidos transmitindo antigas e fomentando novas memórias. Sendo assim, a memória não pode ser ser pensada de forma estática, como algo que deve ser guardada e mantido pela instituição, mas, como algo a ser revisitado, cultivado e reelaborado a partir das necessidades do presente. Na Casa do Benin, embora os objetos dispostos em vitrines e cubos nos façam lembrar as imagens captadas por Pierre Verger na África, no seu contexto de Pelourinho atual, nos ajuda a articular sentidos sobre a sociedade contem-

porânea, acerca das conceituações sobre arte afro-brasileira, ideias de ancestralidade, alteridade, processo decoloniais, etc. assim como sobre as desigualdades sociais, a intolerância, o ódio e os direitos humanos.

Guardar e exibir os objetos não garante o acesso à memória ou mesmo possibilita a identificação imediata por parte do público visitante. Fica evidente que os objetos precisam ser cultivados em histórias e práticas mesmo sabendo que não existe a possibilidade de (re)criar uma suposta verdade dos objetos ou (re)contar uma história original. Para os processos de investigação artística procuramos destacar um rompimento com a metanarrativa moderna e as abordagens etnográficas que ainda repercutem nas abordagens da arte africana. Escutamos os objetos procurando articular nosso próprios interesses, não somente nos objetos das coleções, mas, também, nos projetos iniciais, na estrutura institucional e nos aspectos das exposições.

Apesar de contar com o apoio de ambas instituições e conseguir acesso a muitos materiais em acervos soteropolitanos, ficamos cientes da fragilidades (precariedades) dessa memória recente, como de fatores que colaboram com os processos de amnésia que atua sobre a memória guardada e depositada (Derrida, 2001). O que se esconde atrás dos objeto, coleções e exposições? Queremos esquecer alguns aspectos? Como administrar o esquecimento? Ao longo do processo, talvez tenhamos criado certo fascínio com os esquecimentos e lacunas que abriram diversos campos de possibilidades para os processos criativos. Como podemos falar sobre objetos “sem memória”? Como lidar com nossa falta de conhecimento? Sentimos a necessidade de aprender com os objetos, de discutir e reposicionar os materiais e objetos no contexto social/cultural atual, transformando as “fontes históricas” em material de criação, (re)inventando histórias e criando reflexões e experiências coletivas.

No contexto do projeto, tentamos estimular o debate sobre a manutenção das coleções e o problema da transmissão de uma memória oficial/institucional. Apesar de uma crescente valorização da arte afro brasileira ė possível notar certa vulnerabilidade nas instituições dedicadas à arte africana e afro brasileira, especialmente no contexto soteropolitano (embora as dificuldades não se restrinjam a essas instituições). A situação atual das instituições: dificuldades administrativas, limitações estruturais, dificuldades econômicas, implementação de projetos de médio e longo prazo, etc., Já indicam e ilustram uma crise maior na possibilidade e capacidade de cultivo/preservação da memória dos objetos, ou seja, de manter as coleções, realizar pesquisas e de ofertar programas educativos. Nesse contexto, a quem pertence a memória?

A constituição do acervo e a concepção das exposições decorrem simultâneos a formação da memória social afrobrasileira. As instituições e exposições oferecem várias chaves de leituras, articulando ideias de ancestralidade, teorias da constituição racial do Brasil, conceitos de diversidade cultural, teorias descoloniais, etc. Especificamente em Salvador, o engajamento público com as obras africanas e afro referências ocupa um espaço central nas práticas culturais e políticas afirmativas. Entretanto, os espaços institucionais continuam repositórios de artefatos culturais (de valor artísticos e históricos diversos) acompanhados pelos (re)fluxos de narrativas modernistas que acompanham os objetos estéticos provenientes de uma “áfrica tribal” e práticas expográficas até hoje.

Ao longo de oito meses, durante a realização do projeto, buscamos experimentar as instituições, não como repositório de um conhecimento estático, mas de vivenciamento deles como plataformas de pesquisa, espaço de encontro, de criação artística e de diálogo. Ao refletir

coletivamente sobre os trânsitos e temporalidades dos objetos e coleções procuramos escutar os objetos e lugares, sempre observando as demandas e formulando nossas questões que envolvem as coleções e acervos no contexto soteropolitano. As reverberações individuais e coletivas, provavelmente acompanharão as pessoas em outros trabalhos e projetos por vir. Dessa forma, com a exposição, não propomos uma conclusão, um resultado definitivo, capaz de fornecer respostas às questões suscitadas pelo projeto, mas um modo de fazer que se gere o debruçamento sobre determinados objetos, coleção, exposições, e/ou instituições, criando consequentemente a memória ativa de objetos , deslocamentos “ sem, contudo sair do lugar”7, fluxos contínuos que podem contribuir com o jogo entre memória e amnésia.

Bibliografia

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Reliume Dumara, 2001.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000

VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos (dos séculos XVII-XIX). 4. ed. Salvador: Corrupio, 2002. (SALUM, 1997, p. 74-75).

RICŒUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000

Arquivos consultados: Centro de Estudos Afro-Orientais e Fundação Pierre Verger.

6 Foi feito um contato com o Ministério de Relações Exteriores e pretendemos buscar informações via Embaixador de Benin.