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Resistência, estratégia e re-existência nas artes visuais da Bahia

O cenário das artes visuais na Bahia está, há pelo menos cinco anos, em processo acelerado de decadência e de precarização. Talvez o melhor momento que vivemos nos últimos trinta anos foi entre 2007 e 2012 quando tivemos uma estrutura de gestão articulada entre instituições, artistas, produtores culturais, gestores e disponibilidade de recursos que possibilitou efetivamente o desenho de um sistema artístico local. Mas, quais as características desse sistema? Mesmo de modo sintético e muito geral, é importante reconhecer as especificidades do meio artístico baiano para poder situar o estágio no qual nos encontramos hoje, as perspectivas que podem ser identificadas para futuras ações e a pertinência de um projeto como o Fluxos - acervos do Atlântico Sul.

Como acontece a gestão e o fomento à produção ar-

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tística baiana? Na Bahia, a iniciativa privada, em termos de apoio financeiro às artes visuais, é quase inexistente. A diferença de outros Estados, são poucas as fundações e instituições privadas que oferecem alguma linha de estímulo à produção artística. Todavia, com poucas empresas ou promotores individuais, a alçada pública tem sido a incentivadora principal. Por um lado, o Ministério da Cultura (MinC), criado em 1985, teve uma função importante na gradativa profissionalização da produção artística nacional. Recebeu um impulso significativo desde 1999 com a ampliação de recursos orçamentários e, desde 2003, com a reestruturação da pasta e a incorporação de secretarias e representações regionais que permitiram ampliar as ações efetivas e os alcances das políticas culturais. Por outro lado, na escala estadual, em fins de 2006, a criação da Secretaria de Cultura (Secult) dissociada da alçada do Turismo, foi um marco importante para a construção de uma nova política estadual para a cultura. No novo contexto administrativo articulado com o MinC, a gestão estadual das artes visuais buscou eliminar as práticas clientelistas de outrora que pautavam a distribuição de recursos na Bahia e implementou gra-

ALEJANDRA MUÑOZRESISTÊNCIA, ESTRATÉGIA E RE-EXISTÊNCIA NAS ARTES VISUAIS DA BAHIA

dativamente uma série de linhas de fomento, formação e organização da cena artística através de concorrências, editais e programas que reestruturaram a cadeia produtiva na esfera local. A tradicional macrocefalia de Salvador no direcionamento de investimentos e linhas de ação começou a ser minimizada com a definição de 27 territórios de identidade no Estado que permitiram uma capilaridade maior das políticas e um atendimento mais abrangente das artes visuais. Porém, na esfera municipal da capital nunca houve uma alçada cultural correlata que permitisse um desenvolvimento e potencialização das artes visuais no contexto de uma cidade com mais de dois milhões e meio de habitantes. Portanto, a produção de artes visuais baianas tem sido fomentada basicamente pela iniciativa federal do MinC, através dos setores e ações específicos para as artes, e pela alçada da Secult, na cena compartilhada com todo o Estado. Pode-se dizer que, de modo geral, a partir dessas duas esferas federal e estadual têm se organizado as diferentes instâncias de produção, circulação e financiamento das artes visuais na Bahia nas duas últimas décadas, além de algumas instâncias privadas de alcance nacional como premiações e convocatórias institucionais, a exemplo de Petrobrás, Braskem, Itaú Cultural, Prêmio Marcantônio Vilaça, dentre outros. Mas, nos últimos quatro anos, com a supressão de editais, o contingenciamento de recursos orçamentários e a extinção de linhas de ação específicas para as artes visuais, a exemplo do cerceamento da Funarte no MinC e da retração da Funceb na Secult, tem ocorrido uma desestruturação profunda do frágil sistema de artes visuais na Bahia.

Como ocorre a formação, a crítica e a legitimação des-

sa produção? Embora muitos artistas visuais são autodidatas, a segunda instituição de ensino artístico mais antiga do Brasil, a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) era, até 2002, a única instância formadora de artistas (Bacharelado e Licenciatura) e

designers em nível público civil federal, além dos cursos de Educação Artística da Universidade Católica (UCSAL, nível privado filantrópico) e de Design da Universidade Estadual (UNEB, nível público civil estadual). A partir da política federal de ampliação da educação superior no Brasil, a expansão do ensino de artes visuais na Bahia na última década resultou na criação de outros quatro cursos federais de artes em Juazeiro (UNIVASF desde 2002), Cachoeira (UFRB desde 2006), Santa Maria da Vitoria (UFOB desde 2013) e Porto Seguro (UFSB desde 2013). Na iniciativa privada comercial há outros dois ou três cursos de Educação Artística e de Design. Entretanto, em termos de crítica e produção reflexiva sobre artes visuais, a cena é tímida. O jornalismo cultural é quase inexistente na imprensa local. Não há publicações regulares específicas e periódicos baianos de artes, com exceção de poucas iniciativas descontinuadas que emergem de editais e alternativas editoriais por iniciativa dos próprios artistas, designers ou produtores culturais, a exemplo das revistas Umbu, Gravidade, Barril e Miolo. Nos últimos quatro anos praticamente desapareceram os recursos e financiamentos para publicação de catálogos e livretos, prejudicando as instâncias de registro de exposições e atividades e comprometendo a construção da memoria da produção artística local.

Quais são os equipamentos, espaços, eventos e agentes que possibilitam a circulação e o acesso à produção artística baiana? Como se estrutura a economia da arte

baiana? Novamente, o poder público emerge como principal agente estruturante. Os espaços de arte, tanto de galerias expositivas quanto de acervos são poucos. Em Salvador, atualmente menos de uma dúzia de museus e galerias podem ser elencados como espaços institucionais reconhecidos e relevantes para a construção de uma carreira profissional. Corolário da retração geral do poder público no estimulo à produção, a precarização e/ ou desativação dos âmbitos expositivos tem impacta-

do negativamente nas possibilidades de apresentação dos trabalhos dos artistas. Em termos de eventos, desde 2014, a extinção ou descontinuidade de instâncias internacionais (Bienal da Bahia, Bienal do Recôncavo), nacionais (Salão do MAM, Prêmio Pierre Verger de Fotografia) e estaduais (Salões Regionais de Artes Visuais, Portas Abertas, Prêmio Matilde Matos, Circuito das Artes) tem provocado uma lacuna preocupante na circulação dos artistas, tanto dos iniciantes, que não têm como começar a apresentar suas primeiras obras, quanto dos mais consolidados, que não encontram oportunidades de expor e incentivar sua produção. Ainda, o circuito mercadológico das galerias privadas é muito restrito e os espaços de vendas, tais como feiras e leilões, é limitado. Nos museus e acervos, a ausência de pautas direcionadas para problematizar determinados eixos de discussão e de agenda de atividades que promovam foros de intercâmbio entre agentes, instituições e artistas é outro problema que parece ter se acentuado no cenário de precarização geral. Nesse contexto, é interessante notar a recente emergência de algumas alternativas não institucionalizadas, que envolvem intervenções na preexistência, dinamização cultural e social em diferentes escalas urbanas e proposição experimental que não encontra acolhimento em outras instâncias. Porém, a maioria dos produtores culturais e profissionais das artes dependem de empregos autônomos instáveis ou pequenos empreendimentos frágeis que mal conseguiram sobreviver à crise financeira internacional de 2008.

Nesse cenário de fragilização e desestruturação do sistema das artes na Bahia, como se insere e o que representa o projeto Fluxos - acervos do Atlântico Sul? Pode-se dizer que a proposta nasceu dessa ingerência, senão omissão, descrita acima do poder público tanto com os acervos existentes quanto com as demandas reprimidas da produção contemporânea. Considerando o atual momento político brasileiro de desrespeito às Universidades

públicas, de desprezo às Artes e de cerceamento à livre expressão, enquanto iniciativa de um grupo de professores e artistas vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia, o Fluxos - acervos do Atlântico Sul é um ato de resistência necessário e urgente.

De modo geral, a proposta opera em diferentes estratos do sistema das artes: impulsiona a responsabilidade individual ante a ausência do promotores tradicionais da arte (neste caso o poder público), conjuga aspectos formativos do fazer artístico através da residência nos acervos (opção ainda incipiente nas instâncias tradicionais acadêmicas), ativa diversos espaços de encontro, escuta e reflexão conjunta através das diferentes atividades desenvolvidas, redimensiona a função cívica das coleções na formação de valores coletivos, favorece interlocuções institucionais e intercâmbios culturais pelas parcerias com outros eventos e a participação dos convidados.

Em termos metodológicos, o projeto compreendeu sete projetos artísticos que problematizaram repertórios e dialogaram com os acervos do Museu Afro-brasileiro da Universidade Federal da Bahia – MAFRO/UFBA e da Casa do Benin. Assim, o projeto significa uma promoção e valorização do patrimônio cultural africano e brasileiro através da arte contemporânea; ao mesmo tempo que forma conhecimento sobre duas coleções artísticas pouco divulgadas, estimula a produção de novas expressões contemporâneas. Em termos quantitativos, o Fluxos - acervos do Atlântico Sul compreendeu uma convocatória pública, seis encontros diversos, cinco oficinas, uma exposição em duas instituições e três rodas de conversas e projeção de filmes. As atividades, realizadas entre junho de 2019 e fevereiro de 2020, envolveram 14 artistas, 17 interlocutores e curadores, 2 colaboradores e, além dos dois acervos, as parcerias com três instâncias internacionais: Flipelô (Festa Literária Internacional do Pelou-

rinho), Vila Sul (programa de residências do Goethe-Institut Salvador-Bahia) e Bienal Internacional de Arte de Dacar 2020. Portanto, o Fluxos - acervos do Atlântico Sul é um ato de estratégia na conjuntura.

Tendo como ponto de partida a inexistência de recursos financeiros e contando apenas com a boa vontade institucional, o projeto constitui um ponto de inflexão nas práticas locais de produção artística através da articulação de diversas instâncias que não envolvem custos, mas que podem ser muito propícias para a potencialização de energias produtivas. Dito de outro modo, não são os recursos financeiros que possibilitam a produção de sentidos e sim a qualidade dos agentes envolvidos no processo, ou seja, artistas, curadores, acervos, colaboradores e público. Pode ser o próprio meio artístico e seus componentes capazes de retroalimentar-se para sobreviver às adversidades que o golpeiam. Nesse sentido, o Fluxos - acervos do Atlântico Sul é um ato de re-existência e, como tal, deve ser continuado em novas edições e desdobramentos.