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INTRODUÇÃO

do Benin. Debruça-se principalmente sobre a dinâmica de corpos racializados diante das políticas de segurança e visibilidade, construindo um arquivo que descreve rotas e trânsitos, aspectos fundantes na constituição dos acervos pesquisados.

Incorporações afetivas é como se chama o projeto de Mário Vasconcelos. Mitos, ritos, contos, cantigas e costumes sempre fizeram parte do universo afrodiaspórico. O presente trabalho construído colaborativamente com mulheres negras, propõe um retorno à memória, um acordar aos sentimentos; ora velados, ora expostos. Tais relatos são expressados visualmente através de estatuetas concebidas tendo como principal ativador as bonecas Akuabas. Para a exposição, as bonecas foram apresentadas em uma instalação que também contava com a projeção de áudios dos depoimentos produzidos ao longo das oficinas.

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O projeto de Marcos Rocha Sá, Vestíveis de Memória, baseia-se em releituras de obras pertencentes ao acervo do MAFRO e da Casa do Benin, a fim de criar objetos interativos. Tais objetos são uma espécie de penetráveis vestíveis — objetos para vestir — feitos a partir da combinação de materiais precários (papelão, sacos de lixo etc.), que se reorganizam a partir de elementos da religiosidade afrobrasileira, e resultam em experiências sensoriais.

Com o projeto Objetos com raízes, Lia Krucken nos convida a refletir sobre objetos e seus mistérios. A partir do encontro com um recadé (ou recado, em português), a artista inicia uma investigação que atravessa espaços geográficos, simbólicos e temporais. Alguns objetos podem ser pensados como objetos de resistência, que sobrevivem e chegam até nós, hoje. São objetos que constituem uma mensagem em si mesmo e só podem ser lidos por quem souber ler. Portanto, também nos falam do intra-

duzível e do que não se pode alcançar quando a forma de entender que usamos é o pensamento e a razão. Assim, transcendem ao que se vê e têm raízes ancestrais, guardando em si diversas possibilidades interpretativas.

O processo desenvolvido pela dupla Lucas Feres e Lucas Lago explora a relação entre acervo, arquivos e arquitetura da Casa do Benin. Assim, tomando esse espaço de memória como território específico para a criação artística, procura repensar a invenção de imaginários de nação e o quanto estes são correlatos aos imaginários coloniais e modernos. A partir disso, produziram uma série de intervenções no local, tal como as instalações Monumento aos coqueiros e Oficina-mutirão de arquiteturas impossíveis e o vídeo Caminhos de Maní, refletindo sobre os trânsitos de objetos e alimentos pelo Atlântico Sul.

Fruto de uma colaboração criativa entre o fotógrafo Pedro Silveira e a artista visual Aislane Nobre, o projeto Diáspora Sagrada3 investiga a presença de entidades africanas no Brasil, especialmente no território da Baía de Todos os Santos. Para a exposição, a dupla apresentou uma série de imagens em processo, realizadas com intervenções sobre as fotografias de peças da coleção Estácio de Lima, cuja origem remonta à extinta Delegacia de Jogos e Costumes, conhecida por promover violência institucional de Estado em territórios e comunidades de culto. Estes apagamentos realizados nas fotografias, seja do ponto de vista formal quanto conceitual, considerou a violência sistemática que originou esse acervo. As intervenções com cores e desenhos sobre as fotografias apresentam-se como uma tentativa de reanimar as peças e retirá-las da sombra em que se encontram há décadas, nesses acervos.

Na carta intitulada O sol nasce por Guiné, Tiago Sant’Ana, interlocutor e convidado para a exposição, escreve impressões sobre duas margens do Atlântico -

a da Bahia e a da região antigamente intitulada de Costa da Mina. A carta, com sua natureza de endereçamento tendo uma origem e um destino, serve como ponto de partida para tratar paradoxalmente sobre as incertezas das travessias e diáspora das pessoas negras para o Brasil.

A convidada Tina Mello, a partir da instalação Afoju ou Para ver Joana e do vídeo Ocidente/Incident, busca o diálogo entre territórios separados e unidos pelo Atlântico, refletindo sobre a consciência afro-diaspórica em reverberação com as reformulações do imaginário anti-colonial presente nas práticas cotidianas da região ashanti.

Na obra Espíritos d’água da convidada Yohanna Marie, algumas mulheres da Região Ashanti foram convidadas a recriar a partir de seus próprios corpos imagens de espíritos da água com os quais tiveram contato. Para a artista “Os espíritos d’água querem falar. E eles falam através das vozes das mulheres”, o que provocou a construção de imagens que envolvem a fotografia digital e materiais diversos.

Reflexões

Durante a realização do projeto, reunimo-nos com um grupo de colaboradores que participaram ativamente das atividades de acompanhamento crítico dos projetos desenvolvidos. Convidamos três deles para que apresentassem suas reflexões acerca do FLUXOS - ACERVOS DO ATLÂNTICO SUL e de temas correlatos: a curadora uruguaia Alejandra Muñoz; a fotógrafa e ativista Marcela Bonfim; o sociólogo, artista e pesquisador moçambicano Nyimpini Khosa. Reunimos, também, nossas impressões e falas como artistas, pesquisadores e curadores, integrando nossos textos ao conjunto de trabalhos, documentos, reflexões, memórias e vozes que compõem este livro/catálogo.

3 Projeto viabilizado com apoio da Magnum Foundation e Henry Luce Foundation.

Vários foram os aspectos abordados nas diferentes contribuições. O ensaio inicial — Contar histórias, tensionar espaços — descreve, sob o ponto de vista da curadoria, desafios e articulações importantes no projeto e na exposição. Uriel Bezerra propõe algumas considerações críticas sobre algumas obras da exposição Nkaringana. Para o autor, as obras propostas, além do diálogo com acervos museológicos africanos e afrobrasileiros do MAFRO e da Casa do Benin, expõem e atualizam tensões históricas e sociais que envolvem as instituições que os abrigam.

Ambas as instituições são revisitadas no ensaio seguinte. Em Passados/presentes - entre memória e amnésia, Ines Linke observa as permanências e transformações das narrativas históricas da fundação do MAFRO e da Casa do Benin, enfocando suas exibições de longa duração. Ela destaca alguns momentos que participam na (re)articulação das memórias dos objetos para contextualizar as práticas artísticas realizadas nas duas instituições soteropolitanas no contexto do projeto FLUXOS - ACERVOS DO ATLÂNTICO SUL.

O capítulo seguinte convida a uma reflexão sobre as oficinas como um modo de fazer e ativar movência. No texto Oficinas e modos de criar movência, Lia Krucken evidencia a oportunidade de desenvolvermos práticas que nos permitam quebrar ciclos viciosos de pensamento e de ação, abrindo possibilidades de criação de imagens originais e espaços conceituais e físicos desocidentalizados. Ao propor que os objetos escrevem histórias e guardam, em si mesmo, fluxos, a autora aponta os processos de criação artística desenvolvidos no projeto como ‘operações de movência’, que implicam em deslocamento do olhar, invenção de novos caminhos e criação de textualidades.

Continuando no contexto das oficinas, Nyimpini Khosa

relata o encontro que conduziu junto com Lia Krucken na Casa do Benin. “Nkaringana wa nkaringana”: é assim que se inicia a contação de histórias à volta da fogueira no sul de Moçambique, uma forma aproximada de dizer “era uma vez”, e os que constituem a roda respondem: “Nkaringana”. Este é o título dessa publicação (e da exposição realizada junto à Casa do Benin e ao Mafro em 2019). É também assim que Khosa inicia uma reflexão sobre Xitiku ni Mbawula, minkaringana, e a forma como se constituem as afrofilosofias que permitem tangenciar o contexto africano. Ao abordar a importância da oralidade, o autor evidencia a potência da força da africanidade que “serpenteia” em nossas veias. Nas palavras do autor, Xitiku ni Mbawula é vida, e Nkaringana é a força espiritual que permite que essa vida se manifeste. Ambos são movimento e energias – visíveis e invisíveis.

Visibilidades e invisibilidades também são temas abordados por Marcela Bonfim, em Olhar as voltas da cabeça de negrx. A autora apresenta, a partir de ‘cliques fotográficos’, imagens que nos conduzem a uma reflexão sobre racismo estrutural e a urgência da dignificação da identidade negra. “Quanto tempo demora, o negro, para se firmar nesse mundo (in)visível?”. É com essa pergunta que Bonfim nos envolve em uma viagem: a busca pela “forma mais próxima de me sentir uma mulher negra” — “possível; real; e (re)nascida de quebras; todas, ocorridas no encontro de imagens não imaginadas; atravessadas de reflexos da minha história; e percebidas em locais ignorados; realidades invisibilizadas; legados abandonados; e culturas não ditas”. Ao propor a (des)construção de uma cabeça posta entre o espaço e o tempo, a autora nos fala sobre a importância de apreender a imagem do corpo negro, de trabalhá-la por dentro, enquanto realidade e não enquanto objeto, ressignificando e extraindo a própria potência da sua imagem.

Por fim, continuando com as palavras ressignificação e potência, temos o capítulo Resistência, estratégia e re-existência nas artes visuais da Bahia. Nele, Alejandra Muñoz reflete sobre o FLUXOS - ACERVOS DO ATLÂNTICO SUL no contexto de um sistema de arte marcado por descontinuidades e dificuldades em diversas instâncias como a gestão pública, os processos de formação, os mecanismos de legitimação da produção local e da visibilidade dos equipamentos, espaços, eventos e agentes que possibilitam a circulação da arte feita na Bahia.

Acreditamos que o projeto e as linhas escritas por esses autores poderão dar subsídio para ações futuras interessadas no cultivo, na ativação e revisão/atualização de memórias em museus e espaços semelhantes, de modo a gerar um cenário fértil para a produção contemporânea das artes visuais.

Encerramos manifestando nosso agradecimento a todas as pessoas que colaboraram e com quem interagimos ao longo de 2019 e 2020. Em especial, agradecemos à Universidade Federal da Bahia por acolher o projeto FLUXOS - ACERVOS DO ATLÂNTICO SUL, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes, ao Goethe-Institut Salvador-Bahia, em nome de Manfred Stoffel, por abrigar continuamente o Ciclo de Debates do fórum, à Fundação Gregório de Mattos e à Casa do Benin, representado pelo Gerente de Equipamentos Culturais Chicco Assis, com agradecimentos estendidos à toda equipe da Casa Benin; à Escola de Belas-Artes da Universidade Federal da Bahia, representada pela diretora Nanci Novaes; ao MAFRO e seu coordenador, Marcelo Cunha pelo auxílio e confiança, com agradecimentos estendidos à equipe do MAFRO. Somos gratos também à Fundação Pierre Verger e ao Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia.