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Nkaringana wa nkaringana, Xitiku ni mbawula a matiku ya vambe: fluxos da tradição oral africana e sua magia

Do desejo de conhecer a Bahia aos “Fluxos - acervos do Atlântico Sul”

“Nkaringana wa nkaringana”. É assim que se inicia a contação de histórias à volta da fogueira no sul de Moçambique, uma forma aproximada de dizer “era uma vez”, e os que constituem a roda respondem: “nkaringana”. O conjunto constituído pela fogueira e as pessoas à sua volta se chama “Xitiku ni mbawula”. Minkaringana (plural de Nkaringana) são as histórias contadas nesse espaço.

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Geralmente no final do dia, início da noite, os membros de uma família e/ou demais membros da comunidade se juntam à volta de uma fogueira (Xitiku ni mbawula) para ouvir e contar histórias (minkaringana). Histórias essas que de princípio são contadas pelos anciãos da família ou da comunidade, que são detentores da sabedoria ancestral e popular. São os guardiões da comunidade e por isso, num sentido figurado, tem se dito que “quando morre um ancião morre uma biblioteca”. Os encontros de histórias com estes guardiões constituem espaços de transmissão de conhecimento de geração para geração através da oralidade. Desde histórias de vida, contos míticos, fábulas, provérbios, “adivinhas”, anedotas, valores e normas de conduta no seio da comunidade, etc. São, portanto, espaços de troca de experiências.

Mas como não só os anciãos contam minkaringana, visto que os mais novos também o fazem, então xitiku ni mbawula é um lugar de vivências inter-geracionais, em que tanto crianças, adultos e jovens ensinam e aprendem mutuamente uns com os outros. Mais do que de contação de histórias, é um espaço de autocrítica, pois as histórias narradas são também mecanismos de refletir e repensar o presente bem como atitudes comportamentais.

Fazia muito tempo que eu e Lia Krucken2 planejávamos desenvolver algum projeto ou atividade artística em SalDULCÍDIO COSSA (NYIMPINI KHOSA) FLUXOS DA TRADIÇÃO ORAL AFRICANA E SUA MAGIANKARINGANA WA NKARINGANA, XITIKU NI MBAWULA A MATIKU YA VAMBE 1

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1 A tradução literal, porém, infiel da frase na língua Tsonga - Nkaringana wa nkaringana, Xitiku ni mbawula a matiku ya vambe seria: Era uma vez, Histórias à volta da fogueira em terras do além.

2 Interagimos desde 2018 em um grupo de pesquisa independente sobre migrações e refúgios no Brasil (vide Bemfica et al., 2020 e Cossa et al., 2020). vador e quando surgiu a oportunidade foi uma enorme satisfação por pelo menos dois motivos: conhecer a tão almejada “pequena África” brasileira – Bahia; continuarmos a desenvolver processos artísticos no âmbito das textualidades afro-brasileiras (Cossa e Krucken, 2019, 2020). Assim cheguei, como interlocutor, ao Projeto Fluxos - acervos do Atlântico Sul, que é uma iniciativa do Intervalo Fórum de Arte, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia, em colaboração com a Casa do Benin e o MAFRO - Museu de Arte Afro-brasileira, com o intuito de (re)pensar perspectivas no campo das artes elucubrando em torno de transformações, experiências e práticas no seio do contexto artístico local.

A conspiração dos antepassados e (mi)nkaringana na Casa do Benin

Eu e L. Krucken íamos, ao longo dos meses que antecederam o encontro, articulando como desenvolveríamos uma atividade convidativa, que propiciasse diálogo intercultural. Ao final acordamos em realizar uma oficina de histórias africanas e de objetos. Ela havia me convidado a comentar alguns trabalhos artísticos, em encontro que se realizaria na Casa do Benin, e aceitei com muito prazer. Pude conhecer projetos lindos, interessantes e necessários, que dialogavam com espiritualidade das religiões de matriz africana, mapeamento da trajetória de plantas africanas para as “Américas”, populações negras, etc.

Finalmente, o dia 31/08 era o grande dia e eu - Nyimpini Khosa (Ngonyama ya kaGaza, ou seja, O Leão de Gaza) e Lia Krucken realizamos a “Oficina Objetos e histórias da diáspora africana”, na qual procuramos refletir sobre quais as histórias que os objetos ancestrais guardam. Nesta oficina levamos Minkaringana - histórias à volta da fogueira - Xitiku Ni Mbawula, que pelo menos no Sul de

Moçambique são espaços de transmissão de conhecimento de geração para geração, como um convite para falar sobre tradição oral africana, travessias, paisagens, rituais e ancestralidade. A experiência foi surreal, uma mágica que transcende a compreensão humana. Puro axé.

A ideia era mesmo compor xitiku ni mbawula, uma roda à volta da fogueira, mesmo sem fogueira propriamente dita no centro da roda. Mas como um de nossos objetivos era trabalhar com objetos e suas histórias, então nossa fogueira ficou o récade ou makpo (cetro ou bastão real do antigo Reino de Dahomey/Daomé – atual Benin, com formato de machado ou vara)3, um objeto que foi instalado no centro da roda por L. Krucken e com o qual trabalharíamos. E assim se formou nosso xitiku ni mbawula, a roda à volta da fogueira tinha sido instalada e foi ganhando vida.

Posicionei-me no centro da roda e contei um nkaringana sobre dois amigos e um pássaro. O pássaro tinha sido criado desde pequeno por um dos dois amigos que o deixou engaiolado por muito tempo, até que o outro amigo começou a incentivar que seu parceiro soltasse o pássaro, pois seu lugar era voando, e este inicialmente resistiu. Porém, o amigo não desistiu, até que um dia o parceiro soltou o pássaro, mas estando acostumado e acomodado com a vida da gaiola, ele não voou, limitando-se a andar pelo quintal “de grão em grão enchendo o papo”.

Deste modo, o amigo adotou outra estratégia para persuadir o pássaro: ia todos os dias à sua casa e cantava para ele, na canção pedia que o pássaro levantasse a cabeça para o céu e contemplasse o quão lindo era, e o quão o sol brilhava. E realizou esse ritual repetidas vezes que pôde. Até que o pássaro um dia decidiu olhar para o céu. Quando isso aconteceu ele se encantou pelos

3 Os mensageiros reais portam consigo um récade quando são incumbidos de levar uma mensagem, para garantir a autenticidade da origem desta. É, portanto, um símbolo real africano.

céus e pelo brilho do sol, para além de que conseguiu enxergar seus semelhantes voando soltos e unidos como família e a eles se juntou.

O nkaringana foi acompanhado de uma canção interativa executada em xichangana (língua vernácula do sul de Moçambique, do povo Tsonga de origem Bantu) e de movimentos corporais que intercalavam entre a canção e a história o ritmo de xitiku ni mbawula, embalando os participantes que atentamente acompanhavam cada fala, gesto e movimentos meus, uma hipnose ao mesmo tempo “griótica”, poética, espiritual e ancestral — um “transe”. A canção era interativa na medida em que os participantes respondiam (também em xichangana) à minha entoação, tornando assim tênue a linha que separava os participantes de mim — o contador — e do nkaringana. Todos participavam da história ativamente como se dela fizessem parte. Afinal, a história não era história, era vivência. Xitiku ni mbawula não é só sobre histórias, mas também, sobre “experivivências”, uma simbiose de experiências e vivências.

Se este nkaringana não era sobre os dois amigos, muito menos era sobre o pássaro. O nkaringana era sobre liberdade, autonomia, persistência, resiliência, etc. O mesmo tinha sido contado para mim por uma das maiores escritoras moçambicanas, ou melhor, contadora de vivências, tal como ela própria se intitula — Paulina Chiziane (Cossa, 2017). Esta que tinha aprendido de Chitlango — Eduardo Mondlane, o “arquiteto” da nação moçambicana, herói por ter impulsionado a luta de libertação de Moçambique contra o jugo colonial português.

Diante de mim, jovem, ambos (Chitlango e Chiziane) eram heróis e mais velhos, e, portanto, enxergavam mais longe, tal como reza o ditado popular africano: “um ancião sentado enxerga mais longe que um jovem em pé”, o que significa que são detentores de conhecimento

pelas suas experiências de vida, e eu, apenas aprendiz. Experiências essas passadas de geração para geração, neste caso através da tradição oral. E contando ou compartilhando este nkaringana na oficina eu também garantia que o mesmo perdurasse no tempo pelas futuras gerações, tal como o fizeram os anciãos e meus antepassados, pois os participantes ali presentes por sua vez compartilhariam.

Ao terminar o nkaringana, pedi aos participantes para que decifrassem a moral da história, tal como reza a tradição dos minkaringana e cada um deles explanou a sua interpretação. Na sequência de nkaringana L. Krucken sugeriu aos participantes que circulassem pela Casa do Benin catando qualquer que fosse o objeto e que posteriormente contassem o significado que os mesmos tinham para eles. Ao fazê-lo, todos acabaram contando outros minkaringana, que ora remetiam à “experivivências” individuais ou coletivas ora à memória de seus avós, parentes e antepassados. Portanto, este fato remete à idéia de que um nkaringana gera outro nkaringana e assim sucessivamente, bem como uma experiência gera um nkaringana e um nkaringana é, por sua vez, uma experiência. Então, o que é a vida senão um nkaringana? Ou seja, o que é a vida senão um xitiku ni mbawula onde ensinamos e aprendemos uns com os outros através da arte do ouvir, ver e trocar, na qual a tradição oral ocupa um lugar central. Estamos cotidianamente à volta da fogueira.

Afirmar que minkaringana remetem à “experivivências” e memória dos antepassados implica dizer que os antepassados estavam ali presentes conosco na roda de xitiku ni mbawula naquele exato momento na Casa do Benin, pois tal como nos lembra o filósofo moçambicano José Castiano, nas tradições religiosas africanas

a vida espiritual após a morte é concebida, de certa forma, numa perspectiva materialista: os antepassados mortos ainda comem e bebem conosco; às vezes são mesmo capazes de nos visitar em casa (CASTIANO, 2010, p. 85).

Isto porque, para os africanos, viver aqui e agora (mas de forma honrosa e boa) torna-se muito mais importante e interessante, nos diz Castiano (2010).

Xitiku ni mbawula e minkaringana nos fazem “deslocar sem sair do lugar”, alcançar e transcender planos que só a memória nos permite tangenciar, e por isso, posso afirmar que ao mesmo tempo que nos fazem deslocar sem sair do lugar, também nos fazem “deslocar saindo do lugar”, visto que, mesmo que o corpo fisicamente não se desloque, ele o faz espiritualmente tal como a memória. Destarte, Xitiku ni mbawula é experienciado pelo corpo e memória que levitam no tempo e no espaço entre continuidades e descontinuidades. De tal forma que, xitiku ni mbawula é um momento de suspensão no qual transitamos entre dois mundos inseparáveis na cosmologia africana: o mundo dos vivos e o dos antepassados.

Esse espaçotempo se transforma em lugar privilegiado para compartilhar máximas, adivinhas, provérbios, histórias e outras formas de educação e vivências (CHAUA, 2015).

Dentre várias coisas a oficina nos ensinou que os objetos e coisas escrevem a história. E que dentro de nós existe um griot que narra as histórias que os objetos e coisas escrevem. Não obstante, isso não nos torna todos griots. Vivenciar xitiku ni mbawula, minkaringana, é adentrar a forma como se constituem as afrofilosofias que permitem tangenciar o contexto africano.

Xitiku ni Mbawula é vida, nkaringana é a força espiritual que permite que essa vida se manifeste, e ambos são movimento, energias.

Contar e vivenciar minkaringana é dissertar sobre Moçambique e África a partir da minha experiência enquanto moçambicano Tsonga-Bantu, afinal “eu sou eu e as minhas circunstâncias”. É uma forma de manter acesa a chama da tradição oral africana. E porquê ela é importante? E isto seria o que marca a pertinência da minha presença no evento Fluxos - acervos do Atlântico Sul.

Num contexto ou conjuntura que vigora a negação e consequente apagamento da história de África, dos africanos e suas práticas socioculturais na história tida como “universal”, porém, que o ocidente a ocidentalizou — um plano deliberadamente de hegemonia “selvática”, desumana, colonial e opressora dos saberes periféricos, ou melhor, “periferizados”, falar sobre e contar minkaringana é uma forma de “guardamento” da nossa história, e, portanto, de r(e)es(x)istência, pela qual transmitimos valores culturais de nossos antepassados (os quais participaram na edificação da humanidade) tornando assim a ancestralidade mais viva e próxima de nossas vidas e cotidiano.

Deste modo, o processo de “guardamento” de nossa história emerge como uma “contracultura” de apagamento deliberado e racista.

Ademais, num contexto diaspórico como o Brasil, que se edificou a partir da cultura indígena e africana, e por isso em mais de 50% de sua população serpenteia o sangue negro e africano, levar minkaringana e xitiku ni mbawula é resgatar a memória ancestral africana e sua cultura relembrando continuamente as origens e influências dos saberes e tradições africanas no Brasil até aos tempos atuais.

A tradição oral africana está no epicentro da transmissão de conhecimento, formal e “informal”, pois o que os livros oficiais não contam, esta se encarrega de contar. A tradição oral africana seria um livro escrito, lido, compreendido e apreendido através de palavras, diálogos, música e/ou canções, dança, corporalidade, espiritualidade, unificando dois universos distintos, porém, interdependentes — o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, conectando assim, os homens à natureza, como agentes duma só realidade — a vida.

Dentre muitos elementos vibrantes da minha experiência no Fluxos - acervos do Atlântico Sul, o mais interessante foi o fato de a minha intervenção em torno da tradição oral africana ter suscitado interesse a ponto de dar nome à uma manifestação artística — a Exposição Nkaringana: objetos e histórias em trânsito, na Casa do Benin e Museu Afrobrasileiro, de 29/11/2019 à 22/02/2020. Isso significa muito e responde à questão que venho me colocando ao longo do texto: a relevância da minha intervenção no evento, o meu lugar de fala. Isso tem que ver com a força e energias que a palavra que levamos portam. O projeto foi para mim um aprendizado.

A experiência da Bahia envolveu uma energia contagiante e contagiosa, pelo simples e complexo fato de este lugar ter muito axé, o que o torna diferente de outros. Mas também, na minha condição de africano e o povo baiano na sua maioria afrodescendente, esta peculiaridade de Salvador tem que ver com o que o intelectual ganês Kwame Nkrumah já nos tinha ensinado em sua obra “A África deve unir-se” — o fato de que entre mim e os baianos o que nos une e identifica é mais forte em relação ao que nos diferencia e nos distancia (NKRUMAH, 1977), e isso deve-se à potência da força da africanidade que “serpenteia” em nossas veias.

Thu/phu nkaringana

E é desta forma que o contador de histórias (mutxi wa minkaringana) sinaliza o fim de um nkaringana. Assim, o termo “nkaringana wa nkaringana” no início de cada nkaringana a ser contado anuncia a “suspensão” do tempo para dar espaço à narração. E no final do nkaringana, a expressão “Thu/phu nkaringana” demarca o término da história e início da discussão sobre a mesma, na qual esta é decifrada.

Agradecimento

O autor agradece o apoio do CNPq.

Referências bibliográficas

Bemfica, Aline; Krucken, Lia; Poli, Cristina. O exílio pode ser casa? Poéticas e refúgios singulares. Belo Horizonte: Cas’a’screver, 2020a (no prelo).

CASTIANO, José. Referências da filosofia Africana: em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, Lda, 2010.

CHAUA, Roberto. Diálogos em volta da fogueira: histórias, conhecimentos e educação em Moçambique. VIII Seminário Internacional As Redes Educativas e as Tecnologias: Movimentos Sociais e Educação (Junho/2015).

Cossa, Dulcídio; Selassie, Bob; Senge, Yves. Livros por vir, paisagens em exílio. In: Bemfica, Aline; Krucken, Lia; Poli, Cristina. Exílio e migração: poéticas e refúgios singulares. Belo Horizonte: Cas’a’screver, 2020 (no prelo).

Cossa, Dulcídio; Krucken, Lia. Nkaringanas e encontros do diverso: abrindo caminhos pela palavra. Revista Encantar - Educação, Cultura e Sociedade, v.1, n.2, 2020. Disponível em: http://www.revistas.uneb.br/ index.php/encantar/article/view/8933

Cossa, Dulcídio; Krucken, Lia. Abrir caminhos pelo texto: a experiência do corpo e as textualidades Afrobrasileiras. In: Livro do II Seminário Regional de Ensino e Educação Etnico-Raciais – Aquilombar-se: De-

safios e Perspectivas de Resistência no Sul da Bahia. Itabuna: Editora Oya, 2019 (no prelo).

Cossa, Dulcídio M. Albuquerque. Paulina Chiziane, A (Cura)ndeira – Mãe-de-Santo: uma abordagem afrocentrada do ser mulher e homem negro africano. Texto não publicado. Rio de Janeiro, 2017.

NKRUMAH, Kwame. A África deve unir-se. Lisboa: Ulmeiro, 1977.

SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.