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Cócegas no Raciocínio – Paulo Geiger
DIREITA, VOLVER?
Paulo Geiger
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Para um velho judeu sionista amante de Israel, que acompanhou como criança a luta pela sua criação, como adolescente sua criação e a luta por sua sobrevivência, que participou como jovem da construção do estado nacional do povo judeu, que arou, plantou e colheu na terra de Israel, que se orgulhou e se orgulha de suas conquistas, que vestiu o uniforme de seu exército, é difícil escrever sobre o resultado das últimas eleições, tema previamente escolhido, sem saber o resultado.
Como velho judeu sionista amante de Israel, não sou indiferente ao caráter e à identidade do estado, que não se limitam aos símbolos patrióticos (que me emocionam também), e que têm a ver com um futuro que seja judaico, sionista, humanista, democrático, universal e planetário, e não apenas, ou predominantemente, ufanista e hegemônico. Não devemos querer ser novamente um gueto, nem mesmo um gueto altivo e dominador. A terra de Israel não é importante só porque é citada na Bíblia, mas principalmente por ser a origem, o destino e o lugar histórico de um povo de 4.000 anos que tem como bússola uma ética, um comportamento (pode-se chamar isso de religião judaica também) que diz respeito muito mais a pessoas, à humanidade, a um modo de se relacionar com o próximo, judeu ou não; que está explicitamente descrito por nossos profetas, resumido por Hillel, e implicitamente contido na visão moderna do Estado Judeu de Herzl, e na declaração de independência de Israel, um estado judaico e democrático, baseado na justiça e no humanismo.
Agora, tenho a quase impossível tarefa, que me impus a mim mesmo, de ser fiel a essa crença de toda a vida – sem o quê não poderia escrever um artigo – e ao mesmo tempo respeitar um espaço que pertence a uma comunidade em que nem todos os membros pensam como eu. Preciso, portanto, me ater a fatos e significados, não por reivindicação de ‘neutralidade’, mas para elaborar alguma compreensão do momento atual e dos riscos que traz. Infelizmente, mas em benefício de minha tarefa, os fatos falam por si.
O fato sintetizador de outros fatos que vêm se acumulando em Israel, é que o país caminha celeremente para a extrema-direita, e que o resultado destas eleições parece anunciar que chegou lá. Entendamos antes que no termo ‘extrema-direita’, como aqui usado, o elemento crítico não é ‘direita’ (respeitando, sem concordar com eles, quem ache que a direita é o melhor caminho para a humanidade em geral e para Israel em particular), e sim ‘extrema’. (Assim como seria, simetricamente, no termo ‘extrema-esquerda’.)
Mas se quero me ater a fatos, quais são, então, os fatos associados à extrema-direita?
Os fatos que caracterizam a extrema-direita em Israel são os mesmos que a caracterizam em geral, no mundo e na história. No nível político, tendência e esforço para assumir, sejam quais forem os meios, todos os poderes, perpetuar-se no poder, violar, ou tentar violar preceitos e dispositivos legais em benefício de seus objetivos, programar a ‘purificação’ da sociedade pela eliminação do outro. No nível social, instigar o ódio aos opositores dividindo a sociedade, demonizar e ameaçar e agredir opositores e minorias, pretender ser a única ‘verdade’ patriótica e moral. Na religião, arvorar-se a ser, também, a única ‘verdade’, e tentar impô-la como fato político e autoritário, atitude que de religiosa não tem nada. Respeitando minha própria decisão de ser objetivo e não interpretar fatos, não vou mencionar aqui o termo ‘fascismo’, no conteúdo e nos métodos, mas não mencionar não altera os fatos.
Tudo isso são realmente fatos e não ilações, descritos em notícias de jornais e em relatos confiáveis de amigos e conhecidos. ISSO ESTÁ ACONTECENDO EM ISRAEL! E significados que são explicitados pelos protagonistas das notícias configuram uma situação que cada vez mais, no mundo, caracteriza sociedades em processo de radicalização e com tendência para os extremos. Como aqui, em Israel amizades foram desfeitas, o ódio substituiu a discordância pura e simples, e como a tendência é para a direita, ‘esquerdistas’ são chamados de traidores, vilões, inimigos, melhor será, no melhor dos casos, que deixem o país. Israelenses (50% segundo algumas pesquisas) falam abertamente em expulsar ou eliminar árabes, e ‘traidores judeus’ também. Se vissem isso, Begin, Shamir, Sharon, muito menos Jabotinsky, não acreditariam.
Não sei, não posso saber, que fatos definirão um novo governo do Likud e sua coalizão. Mas sei quais são os candidatos mais prováveis de formar, com o Likud, a coalizão que governará Israel nos próximos quatro anos. Os de sempre, claro, mas desta vez com duas novidades que, na verdade, são definidoras. Diante das biografias e das posições declaradas de Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, eu me pergunto se Bibi Netaniyahu será patriota o bastante para não incluí-los numa coalizão, mesmo que isso lhe custe ou enfraqueça o cargo de primeiroministro. Pergunto-me se lideranças e parlamentares do centro e da esquerda (como Lapid, Gantz e outros) seriam patriotas o bastante para aceitar, engolindo em seco, formar uma coalizão com Bibi para evitar que Israel tenha essas figuras como ministros, que tenha de seguir, mesmo que em parte, a linha política por eles apregoada e praticada, e que entre num processo de deterioração de sua democracia.
Independentemente de como será a coalizão, o ambiente na sociedade israelense, acima descrito, que se reflete no resultado das eleições, já é por si preocupante para quem ainda ousa sonhar e trabalhar por um estado judaico, sionista, democrático, justo, representante dos valores e da ética do povo judeu. Mais uma vez, isso não é interpretação, infelizmente é um fato.
Mesmo que não seja incluída no governo de Israel (possibilidade real, diante dos números) a forte presença no parlamento de uma extrema direita ultraortodoxa, utranacionalista a ponto de ser chauvinista, antidemocrática, cultivadora do ódio ao diferente, alheia aos fundamentos hillelianos da ética judaica, poderá ser devastadora para a visão de um futuro de convivência de Israel com o mundo democrático e com a grande maioria do povo judeu. No plano religioso, com a possível, para não dizer provável, rejeição às denominações conservadora, liberal e reformista; no plano nacional e político, com a rejeição da ideia de um acordo de paz definitivo baseado em dois estados para dois povos. Uma mega Israel seria ou o fim do estado judaico, ou o fim do estado democrático.
Ou seja, um estado judaico com essa identidade e mentalidade poderia ser o fim do sionismo. Poderia ser devastador para uma convivência pacífica da própria sociedade israelense, internamente em suas relações regionais e mundiais. Em suas relações com o povo judeu. Traria o recrudescimento do antiisraelismo e do antissemitismo, já tão preocupantes. O fim do ideal de uma paz justa. O fim da imagem de Israel que foi construída ao longo de tantas décadas, de tantos governos, de direita, de centro e de esquerda, mas nunca de extremadireita. Quase metade da população não votou nessa composição, e de acordo com relatos que recebo de muitos amigos e conhecidos, está preocupada e deprimida com a perspectiva de um acirramento provocado pelo extremismo e pela mudança do caráter e da identidade do estado.
Exagero? Ilações e interpretações e não fatos? Leia na seção “Em poucas palavras” neste exemplar de Devarim quem são Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, que se uniram no novo Partido Religioso Sionista, veja o que dizem e o que fazem. E torçamos para que Netanyahu, Lapid, Gantz, e outros sejam patriotas no bom sentido, e façam o que podem e o que têm de fazer para que Israel possa ser um exemplo de democracia e de ética, de orgulho do povo judeu.

