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O Museu Judaico de Belo Horizonte – Andy Petroianu e Lucca Myara

O MUSEU JUDAICO DE BELO HORIZONTE

Agradecemos à revista Devarim, o honroso convite para incluirmos algumas “palavras” sobre o Museu Judaico de Belo Horizonte e expressarmos gratidão aos alicerces e pilares de nossa família. Esse Museu evidencia bem as origens gregas do templo das musas, onde era reverenciada a memória de quem, “por obras valerosas” pertencentes a todas as artes, destacaramse e conquistaram respeito.

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Andy Petroianu e Lucca Myara

OMuseu foi inaugurado em 20 de abril de 2022, como manifestação maior no centenário da primeira instituição judaica de Belo Horizonte, a União Israelita de Belo Horizonte (UIBH), que, em seu início, era constituída pela Sinagoga Beit Yakov e uma escola para ensino do judaísmo. Posteriormente, o seu espaço foi ampliado com a construção de um clube e um salão de festas, tornando-se o local de convivência das famílias em um ambiente judaico. Essa sinagoga foi o templo da nossa comunidade durante exatos 80 anos, quando foi desativada e permaneceu fechada por 20 anos, tendo sofrido as implacáveis consequências do abandono. Nesse período, a comunidade judaica distribuiu-se em outras duas sinagogas.

Para reverter a condição indigna imposta à primeira sinagoga de Belo Horizonte, o Instituto Histórico Israelita Mineiro (IHIMG) recuperou esse espaço precioso na forma de um Museu da comunidade judaica mineira, contando a epopeia da nossa tradição e das nossas famílias. Nesse sentido, o Museu é composto por dois grandes espaços, o da Tradição e Cultura Judaicas e o de Arte e Cultura, este, para honrar os baluartes das origens de nossas famílias. Diferentemente de outros museus judaicos, cuja proposta é preservar a memória de nosso povo, como vítima de perseguições e injustiças ao longo da história, este Museu visa à superação das famílias judaicas no exílio, até a sua vinda a Belo Horizonte, onde reconstruíram as suas vidas e aqui permaneceram.

No Espaço Tradição e Cultura Judaicas são mostradas as principais festas e cerimônias religiosas de nosso povo, com fotos das famílias em momentos marcantes da comunidade, quadros, artefatos, instrumentos, mezuzot, candelabros,

Vista panorâmica de uma pequena parte do Espaço da Tradição e Cultura Judaicas, que ocupa a extremidade esquerda do Museu.

taças, livros (sidurim), discos, orações, plantas, alimentos e centenas de peças características de cada evento judaico. Há ainda um modelo, em dimensões naturais, de sinagoga, com o remanescente da Beit Yakov, simulando o seu funcionamento, com seu altar restaurado, o Aron Hakodesh (Arca Sagrada), contendo dois Sifrei Torá, além de diversas outras torot e midrash completas, em miniatura, e uma cópia dos pergaminhos do Mar Morto. Para os visitantes não familiarizados com as vestimentas tradicionais usadas nas cerimônias judaicas, o museu expõe roupas e adornos destacados em manequins, bem como em dezenas de kipot, chapéus, taletim, tefilin, xales e lenços.

Já no Espaço Arte e Cultura estão objetos pessoais, fotos, documentos e artefatos preservados durante muitas gerações das famílias de nossa comunidade. A similaridade das trajetórias familiares de todos os judeus do mundo torna a visita a esse espaço um resgate pessoal. Os judeus reconhecem, nesse ambiente, muito de seus próprios antepassados, independentemente de sua origem. O Museu convida para conhecer, nesse espaço, a jornada da família de Jacques e Sonia Goldstein Petroianu, relatada em filmes, fotos, documentos e centenas de artefatos desde o século XIX.

A Saga da Família Goldstein Petroianu por Andy Petroianu

Quando a Rússia foi invadida por Napoleão em 1812, os habitantes foram evacuados antes da chegada do exército francês. Todavia, os judeus da Ucrânia, que havia sido anexada à Rússia por Catarina II, foram abandonados à própria sorte. Sem possibilidade de fuga, as famílias que moravam próximo às fronteiras ocidentais entregaram suas crianças para barqueiros as atravessarem pelos rios fronteiriços para serem adotadas por famílias judias dos países vizinhos. Assim, muitos judeus da Europa Oriental têm origem ucraniana. Essa travessia lembra a origem do povo hebreu (ivrim = do outro lado do rio), cujo nome remonta a Avraham ha-ivri (Abraão que atravessou desde o outro lado do rio), por Abraão ter cruzado o rio Jordão para entrar na terra de Canaã.

À semelhança bíblica, a origem de nossa família na Moldávia (Moldova), parte noroeste da Romênia, foi também hebraica, “do outro lado do rio”, mas o rio foi o Prut, que separa Moldova da Ucrânia. Esse afluente do Danúbio percorre Bessarábia e Bucovina, partes de Moldova, onde se concentrava a comunidade judaica

romena, em pequenos vilarejos, nos quais se falava russo e iídiche. A vida nessas aldeias foi fielmente descrita na maravilhosa obra literária de Shalom Aleichem, pintada por Marc Chagall e, mais recentemente, encenada na peça e no filme “O violinista no telhado”.

Iancu, uma das crianças judias da Bessarábia, foi adotada pela família Zuckerman. Percebendo as dificuldades de sua família adotiva, ele deixou a aldeia e aventurou-se por Moldova até a cidade de Barlad, onde se tornou relojoeiro. Casou-se e teve três filhos, sendo Avram, o filho do meio, quem seguiu o ofício do pai. Seu talento sobressaiu e, em pouco tempo, passou a fabricar seus próprios relógios. Mudou-se para Ploiesti (Ploiéshti), uma cidade rica, em região petroleira, onde construiu uma fábrica de relógios, a única já existente na Romênia e, para agradar ao rei, denominou-a Coroana Romaniei (Coroa Romena). Um desses relógios do século XIX, com o nome A. Zuckermann gravado em seu cadran (mostrador) está exposto no Museu.

Avram casou-se com Minca e tiveram oito filhos, dois deles proeminentes. Iancu tornou-se um dos melhores dentistas da Romênia e desenvolveu muitas técnicas que ainda persistem em Odontologia. Por sua maestria, foi convidado para ser o dentista do “último faraó” do Egito, o rei Farouk, deposto por um golpe militar, o que obrigou Iancu e sua família a emigrarem para Israel, onde manteve-se na profissão, continuada por seus filhos. O filho mais novo do Avram, Isaac, emigrou para a Austrália, onde se tornou banqueiro. Não teve filhos e, após a sua morte, por falta de herdeiros australianos, seu banco foi estatizado.

A primeira filha do Avram, Berta, apaixonou-se por um dos relojoeiros da fábrica de seu pai, Osias, e como dote de casamento, o casal recebeu uma casa com relojoaria na cidade natal de Avram, Barlad, para onde mudaram-se. Osias e Berta Goldstein, tiveram três filhos, Ana, Roza e Jac (Jacques). A “Relojoaria Osias Goldstein”, cuja foto está no Museu, trouxe-lhes o sustento até a Primeira

Guerra Mundial, quando Osias foi obrigado a servir no front. Por ser judeu, ele foi colocado à frente nas batalhas e, durante três anos, sobreviveu em trincheiras. Ao final da guerra, retornou para casa com muitas medalhas por heroísmo, porém irreconhecível fisicamente. A relojoaria fechada, em uma cidade economicamente falida, fez com que a família Goldstein seguisse pelo mesmo rio Prut, atravessado por seus avós, até a cidade de Braila, às Vista do remanescente da Sinagoga Beit Yakov, margens do Danúbio. com seu altar, onde estão cópias dos pergaminhos do Mar Morto, ao fundo, duas Arcas Sagradas, uma Nessa cidade, Solomon, irdelas com dois rolos da Torá e, na parte direita do mão de Berta, tornara-se um fundo, um manequim vestido para cerimônia, com grande comerciante de roupas de quipá, talit e tefilim. pele e, com a sua ajuda, Osias abriu a “Relojoaria Cronos” (foto no Museu) junto com o seu filho Jacques, que abandonara a faculdade de Direito. Jacques havia herdado o talento da família e foi para Bucareste, onde se graduou Mestre Relojoeiro e Mestre Joalheiro especialista em brilhantes, cujos certificados estão no Museu junto com seus instrumentos profissionais. Jacques, que também era um exímio violinista, enriqueceu e comprou uma quadra de casas e lojas na rua principal de Braila, cujas fotos estão no Museu. A tranquilidade dos Goldstein foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial. Com a entrada dos alemães na Romênia, recrudesceu o antissemitismo e todas as posses da família foram confiscadas pelo “bem da nação”. Osias, por ter sido herói de guerra, foi poupado, mas Jacques foi enviado para montar trilhos em estradas de ferro, frequentemente bombardeadas, tendo sobrevivido em trincheiras improvisadas e casas abandonadas. Terminada a guerra, com a vitória, os russos invadiram a Romênia e usurparam todos os imóveis da família Goldstein, onde os oficiais russos, ladrões e assassinos bêbados uniformizados, passaram a morar. Jacques e seus pais foram confinados em apenas um quarto de uma das casas que antes lhes pertencia, com cozinha e banheiro comuns a serem utilizados em horários programados e com fila. O governo comunista, dominado pela Rússia, não lhes permitiu sequer o direito de reclamar, sob risco de

serem assassinados, por terem sido ricos e, principalmente, por serem judeus.

Sob o regime comunista, Osias permaneceu relojoeiro em uma cooperativa, mas Jacques teve que buscar outra profissão que fosse de interesse da classe proletária. Assim, ele fez o curso superior e tornou-se oculista, cuja função era avaliar a visão e prescrever óculos, com lentes e armações confeccionadas por ele próprio. Naquela época, os oftalmologistas cuidavam de doenças oculares mais graves.

Durante um passeio em uma viagem para visitar a sua irmã Ana em Bucareste, encontraram uma amiga de Ana com sua prima Sonia. Os quatro foram a uma confeitaria, onde Jacques e Sonia apaixonaram-se à primeira vista e casaram-se em menos de três meses. Por constituírem uma nova família, tiveram direito a um outro quarto na mesma casa onde moravam os pais de Jacques. Depois de um ano, nasci e os três permanecemos no mesmo quarto com banheiro e cozinha comuns durante dez anos.

O percurso da família de Sonia foi também uma epopeia. Aron Iosub tornou-se contador e mudou-se de uma aldeia da Bessarábia para Iasi (Iáshi), a capital de Moldova, cidade universitária e considerada a mais culta da Romênia. No século XIX, os proprietários de terras eram ricos e poderosos, mas analfabetos, e contratavam funcionários que escrevessem e fizessem as contas necessárias às suas atividades. Aos judeus era proibida a posse de terras, sendo a eles permitida apenas a prestação de serviços. Aron destacou-se por ser um bom contador e saber negociar, tornando-se rico. Casou-se com Iohana e tiveram dez filhos. Eva, sua penúltima filha, era muito bonita e a mais letrada dos filhos. Ela passava os dias estudando, em uma época na qual o acesso à escola era vedado às mulheres, principalmente judias. Já adolescente, frequentava a livraria de Moshe Iehuda (Míshu) Goldstein, jovem culto e violinista, pelo qual Eva se apaixonou. Casaram-se e tiveram uma filha, Sonia, que foi educada em um

ambiente de leitura e cultura artística. Coincidentemente, Sonia e Jacques tinham o mesmo sobrenome. Com a entrada da Romênia na Segunda Guerra, a cidade que mais sofreu com a invasão alemã foi Iasi, onde os judeus foram aniquilados no tristemente famoso Pogrom de 1941, cuja documenVitrine do Espaço de Arte e Cultura, que mostra um relógio de bolso do século XIX, em cujo tação está no Museu. Em poucos dias, os judeus desapareceram de mostrador estão escritos a sua marca “Coroana Iasi, a maior parte foi fuzilada, Romaniei” e seu fabricante, A. Zuckermann, com muitos foram enviados para os sua foto no fundo à esquerda. Veja ainda, no fundo à direita, a foto de Jacques e à sua frente fotos de campos de concentração nos trens parte de sua casa e relojoaria-joalheria em Braila. da morte e alguns poucos conseNa frente à esquerda, está a foto da Relojoaria guiram escapar. Dentro do caos Osias Goldstein em Barlad e, diante dela, Ana com que se estabeleceu em Iasi, a famíseu marido Artur. lia de Sonia separou-se e cada um sobreviveu como pôde. Sonia, adolescente, foi para Bucareste em um vagão de trem, dentro de uma caixa de madeira cheia de galinhas. Na capital, abrigou-se dentro de um hospital, onde trabalhou no setor de radiologia. Com o fim da guerra, ela continuou os seus estudos e formou-se contadora, assim como os seus dois avôs, tendo sido funcionária do maior jornal da Romênia. Durante o Pogrom de Iasi, Eva e a sua irmã Rachel (Lala) embarcaram em um navio que seguia para Eretz Israel. Por sorte, não entraram no navio Struma, que, na mesma época, foi afundado pelos turcos, submissos aos alemães. Em Israel, Eva e Lala moraram em barracas e trabalharam em um kibuts. Depois, mudaram-se para Haifa. Míshu emigrou para Belo Horizonte, onde seu irmão Victor tinha uma loja de canetas na Praça Sete, centro da cidade. Para poder sair da Romênia, Míshu Goldstein teve de mudar seu nome para Iulius Laurian. Após um infarto fulminante do Victor, Míshu (Iulius) herdou a loja. Em Braila, Jacques e Sonia Goldstein passavam por muitas dificuldades e, desde o início do casamento, tentavam, sem sucesso, emigrar da Romênia. Para o regime comunista, ter sido rico significava exploração de proletários e, por punição, Jacques foi preso diversas vezes e torturado. Sonia ia junto com ele e ficava na sala de espera da prisão dia e noite, sem ter sequer o direito de ir ao banheiro

Cúpula da nova sinagoga de Berlim. dentro desse recinto da prisão. Graças ao amor dela e seu empenho pela soltura do Jacques, ele não foi assassinado na prisão. Nesse período, eu era cuidado por meus avós. Para facilitar a saída da Romênia, meus pais substituíram seu sobrenome por Petroianu, que havia sido criado por meus tios, para poderem trabalhar. Na época pós-guerra, havia poucos empregos e os judeus eram preteridos. Para sobreviverem, muitas famílias mudaram os sobrenomes judaicos para nomes romenos, que também facilitavam a sua saída do país.

Após mais de dez anos de vida restrita, foi permitida a nossa saída da Romênia, com direito a apenas uma mala por pessoa. Emigramos sem documento, exceto os certificados de viagem expostos no Museu. Em Viena, fomos recebidos pela Hebrew Immigrant Aid Society (HIAS), organização filantrópica que auxiliava os emigrantes e nos abrigou em um hotel de periferia junto com outros desalojados. Após um mês buscando trabalho, as autoridades austríacas negaram a nossa permanência no país, com receio de meus pais serem espiões. Fomos enviados em um trem para Gênova, onde a HIAS continuou a nos assistir. Permanecemos na Itália por dois meses, após os quais seríamos expulsos. Nesse período, a HIAS procurou por nossos parentes e encontrou o pai de minha mãe, em Belo Horizonte. Ele assumiu a responsabilidade por nós e conseguiu que as autoridades brasileiras aceitassem a nossa imigração. Dessa forma, chegamos no Brasil em 30 de março de 1962.

Ficamos pouco tempo com o meu avô, que já havia conseguido contato com a sua esposa Eva e estava de partida para Haifa. A sua loja havia sido vendida. Com a ajuda da HIAS e com poucas canetas que haviam sobrado da loja, começamos a nova vida nesta cidade maravilhosa. A comunidade judaica nos recebeu muito bem e nos orientou em nossa sobrevivência. Meus pais abriram uma pequena loja de canetas na entrada de um prédio e, em pouco tempo, ela tornou-se uma joalheria. Eu já havia completado o curso primário na Romênia e fui aceito durante poucos meses na Escola Theodor Herzl, que estava formando a sua primeira turma, na qual fui incluído. Não tínhamos dinheiro nem conhecíamos o idioma, mas estávamos livres, em um país sem antissemitismo, para trabalharmos e estudarmos. Aos poucos, progredimos.

Honra teu pai e tua mãe

O Museu Judaico de Belo Horizonte dentro de um espaço que foi a primeira sinagoga de Minas Gerais possui características próprias ao exaltar o sucesso das famílias sobreviventes de várias partes do mundo e que encontraram a paz nesta cidade. O clima excelente e a sua população acolhedora permitiram a essas famílias reconstruírem a vida e seus filhos terminarem no mesmo lugar onde nasceram, ao contrário de seus antepassados. A anedota tristemente real do judeu errante, sempre com seu chapéu na cabeça por estar pronto para fugir, ficou no passado. A leveza das festas e das tradições judaicas alegres, junto com todos os artefatos que nos unem como povo, merecem a visita no espaço Tradição e Cultura Judaicas.

O único preceito da Bíblia que é indiscutível e respeitado por toda a humanidade, independentemente de religião, linha filosófica, posicionamento político, nacionalidade, classe social ou etnia, é o quinto mandamento da Lei Divina, ךמא תאו ךיבא תא דבכ, “honra teu pai e tua mãe”. Nesse sentido, o Espaço de Arte e Cultura permite à geração atual expressar sua gratidão pelo orgulho que nossos ancestrais, por sua integridade moral e dignidade, nos fazem sentir. Cabe à nossa comunidade honrar, como tributo muito merecido à sua memória, e trazer para dentro do Espaço de Arte e Cultura as nossas mães e os nossos pais, assim como sempre trouxemos em nossas orações Abraão, Isaac, Jacó, Saara, Rebeca, Raquel e Léa.

Andy Petroianu é Professor Titular do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Membro Titular da Academia MIneira de Medicina, Membro Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Pesquisador 1 do CNPq, Cidadão Honorário de Belo Horizonte, autor de 25 livros de medicina e 574 artigos científicos.

Lucca Myara é marido, pai, padrasto e rabino da Congregação Israelita Mineira. Formado pelo Jewish Theological Seminary (NY), possui mestrado em Midrash e reconhecimento por excelência acadêmica nessa área. Foi honrado como “Graduates who Inspire” ao término da sua formação.

Revista da Associação Cultural–ATID / Associação Religiosa Israelita–ARI | devarim | 25

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