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Três Crônicas – Vittorio Corinaldi

TRÊS CRÔNICAS

Reflexões sobre Israel, com um pé no judaísmo brasileiro

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A surrealista transformação da sinagoga em acampamento, com colchões espalhados pelo chão, panelões empilhados pelos cantos para uma cozinha improvisada.

O quadro que Chagall não pintou

Vittorio Corinaldi

Folheando ao acaso entre livros e papéis, deparei-me com reproduções de quadros de Marc Chagall, sempre capazes de empolgar de novo a cada encontro. As figuras de judeus de feições místicas pairando pelo ar ou dançando nos telhados ao som de melodias tocadas por irreais intérpretes transportam o observador para um universo delicadamente surrealista, muito contrastante com o nervoso “stress” que caracteriza a vida urbana de hoje.

Mas os personagens chagallianos trazem para mim uma particular associação com um episódio relevante, que teve um peso muito grande para mim e para muitos de meus companheiros de trajetória – muitos dos quais já se acham na esfera do além.

Em primeiro de maio de 1950 eu, ainda “calouro” da Faculdade de Arquitetura, com o cabelo apenas despontando depois da tradicional tosatura do trote de admissão ao ambiente universitário, participei de um encontro de jovens do movimento “Dror” – muitos dos quais igualmente estudantes em início de carreira ou já mais adiantados na vida acadêmica.

A data de primeiro de maio, feriado nacional, bem se casava com nossa visão ideológica e nosso ideal “revolucionário” de ir viver no kibuts uma vida em base coletiva temperada pelo renascimento nacional judaico. E o encontro citado devia ter lugar fora de São Paulo, numa excursão campestre que duraria alguns dias. No dia estipulado, porém, chuvas torrenciais impediram a saída para o campo, e a intenção do seminário, que era de uma análise e debate de nosso programa de ação como movimento juvenil, se viu ameaçada de fracasso. Era preciso improvisar uma solução, enquanto o grupo já estava no caminhão em viagem para o destino. Ela surgiu com a sugestão de um dos

companheiros participantes, que morava no bairro da Lapa (daí o nome com que o encontro entrou para a história do judaísmo brasileiro).

Ele lembrou que a sinagoga do bairro deveria seguramente estar inativa naquele feriado, e vinculou a hipótese do animado grupo ir se instalar “com armas e bagagens” no recinto da dita sinagoga. Era preciso somente convencer o shamash a concordar com a invasão – naturalmente sob absoluto desconhecimento da diretoria.

Ora, o dito shamash, que residia sozinho nos fundos do edifício, era a personificação de uma figura de Chagall: um judeu magro e baixinho de idade indefinida, que falava somente iídiche, e que parecia habitar como luftmensch [cabeça de vento] um mundo imaginário regulado apenas pela rotina litúrgica do local.

Surpreendentemente, ele aderiu com mística naturalidade à incomum situação em que se viu repentinamente: a surrealista transformação da sinagoga em acampamento, com colchões espalhados pelo chão, panelões empilhados pelos cantos para uma cozinha improvisada, e os bancos que normalmente serviam o público em suas orações, agora usados para sentar alguns minianim de ruidosos jovens em acalorados debates.

Provavelmente, o uso irreverente e clandestino do ambiente “sagrado” da sinagoga só não causou maiores escândalos a posteriori porque o resultado da reunião, nele realizada, teve uma repercussão no ishuv que tocou muito mais do que o sacrílego destino dado ao cenário, que lhe foi de fundo.

O “Seminário da Lapa” se tornou então um marco decisivo e controvertido no ambiente judaico. Ele introduziu um fator de ação concreta no até então amador funcionamento das entidades da coletividade, num momento histórico em que os acontecimentos no seio do povo judeu se desenvolviam em ritmo dramático e acelerado. E foram aqueles jovens inconformistas do Dror que tomaram para si a vanguarda dessa ação, com a decisão corajosa, dolorosa, responsável e consciente de abandonar os estudos e se ocuparem integralmente com a aliá para Israel.

Hoje, o fruto dessa decisão, Bror Chail, permanece real e visível ao lado da estrada que acompanha a fronteira da faixa de Gaza – o conturbado território muito citado pela frequente atividade do terror dele lançado.

Já não era mais o kibuts que eles imaginavam e queriam povoar como pioneiros de uma nova sociedade, mas sim um marco no panorama rural do país: com o sacrifício de muitos dos princípios que orientaram os seus começos. O kibuts sobreviveu crises e dificuldades, e conseguiu atrair novos moradores e restituir filhos de veteranos, que o haviam abandonado.

O caminho que liga a estrada principal ao kibuts sobe em aclive moderado até uma elevação, onde se encontra o cemitério: este é o modesto, austero panteão dos jovens daquela longínqua aventura. Daqui se descortina o amplo vale, onde muitos deles aplicaram os talentos que a “Lapa” encaminhou para outros rumos, como lavradores e personagens da renovação do homem judeu: uma afirmação que ao gosto de alguns pode ter o sabor de convencionais slogans da propaganda sionista, mas que coloca o quadro surrealista daquela reunião numa moldura de realização verdadeira e de íntimo, profundo sentido.

Tel Aviv, Agosto de 2022

Oh!, pobre bandeira

Lembro-me bem de como, nos idos anos 1950, aconteceu a primeira visita ao Brasil do então Ministro do Exterior do recém-nascido Estado de Israel, Moshe Sharet. Na ocasião, eu, jovem estudante em São Paulo, andando pelo centro da cidade, atravessei ida e volta algumas vezes o Viaduto do Chá, para observar repetidamente a bandeira branco-azul que, do alto do Hotel Esplanada, onde se hospedava o Ministro, tremulava ao vento, despertando em mim um sentido de orgulho e emoção – espécie de materialização das esperanças de todo judeu consciente naqueles anos.

Ainda naqueles mesmos anos, numa primeira volta à Italia em visita familiar depois da Guerra, ouvi de parentes que sobreviveram àquele triste capítulo o relato de como se depararam comovidos com os soldados de Érets Israel da Brigada Judaica do Exército Britânico que, ostentando a mesma bandeira com o Maguen David, restituíram a eles a confiança num futuro promissor, que o infame regime fascista havia deles violado.

Depois, com a aliá para Israel, a despretensiosa mas digna presença da bandeira em diferentes eventos e localidades no país constituía um símbolo e um estímulo para o

progressivo entrosamento meu (e como o meu, o de tantos olim) na nova nação judaica com solidário sentido de pertinência.

Este se manifestou com alívio e entusiasmo depois da Guerra dos Seis Dias, e novamente a bandeira dava expressão à sincera onda de patriótica satisfação que seguiu a surpreendente vitória.

Contudo, foi porém também o início de uma corrente místico-religiosa que buscou revestir essa vitória de uma roupagem de nacionalismo ferrenho e racista, partindo da incitação exaltada de supostos rabinos sobre as milícias dos novos ativistas da“kipá srugá (a típica kipá tecida com fio de crochê). Animados pela convicção de que a vitória militar era o retorno à divina promessa da Terra aos descendentes de Abraão, a bandeira se tornou, na mão deles, um instrumento de afirmação de sua agressiva ideologia de assentamento nos territórios palestinos ocupados.

Hoje, ela é presença obrigatória em constantes atos de provocação insolente e objeto de uma esquentada retórica nacionalista, de uma linguagem ofensiva e intolerante para com a população árabe, as minorias e coletividades “diferentes”, e naturalmente “a esquerda”: nada de novo para quem conhece o mecanismo da propaganda fascista.

Os representantes na Knesset desta maléfica tendência, cuja inspiração vem do Rav Kahana (há anos assassinado em New York) e cujo defensor mais venenoso hoje é o deputado Itamar Ben Gvir, maquiavelicamente admitido no parlamento pela politicagem interesseira de Netanyahu, usam dessa retórica, definindo como “traidores” quem quer que expresse opiniões menos extremas quanto ao simbolismo da flâmula ou ao uso de outras bandeiras por parte de grupos alheios ao patriotismo oficial, legitimamente permitidas dentro do quadro de liberdade de opinião: sejam a bandeira do movimento LGTB ou a da autoridade palestina (entidade reconhecida por Israel), bandeira compreensivelmente tida como espelho da identidade também sua pelos árabes israelenses, respeitosos embora de sua natureza de cidadãos de Israel.

Longas horas de estéril debate ao redor de desnecessárias disposições de caráter mais declarativo do que objetivo vêm ocupando a agenda do Legislativo, em detrimento de decisões mais urgentes para o interesse público.

Longas horas de Veja-se por exemplo a “Lei da Nação”: estéril debate ao redor buscando dar uma base “jurídica” a Israel de desnecessárias como Estado Judaico, ela criou uma definição ofensiva e discriminatória para sedisposições de caráter tores minoritários da população. Depois mais declarativo do que de longos debates, a Knesset a aprovou, objetivo vêm ocupando a transformando uma situação de inócua agenda do Legislativo. realidade em instrumento de animosa opressão. Veja-se o constante uso da arena parlamentar para a defesa de obsoletas disposições religiosas que, em pleno século 21, ainda regem a vida civil e a liberdade do indivíduo – como o registro de nascimento, casamento ou óbito, a conversão ao judaísmo, a imposição da kasherut etc. No que vem sendo apresentado como genuína demonstração da soberania israelense, já há alguns anos tem lugar o “desfile das bandeiras”, uma ruidosa marcha de manifestantes em que milhares de bandeiras usadas como estandarte ou como vestimenta atravessam os bairros árabes de Jerusalém, acompanhadas por atos de provocação e humilhação dos habitantes locais: uma inútil ameaça ao delicado equilíbrio entre os vários grupos da população, em desrespeito a costumes e hábitos de culto mantidos por acordos de status quo que não contradizem o controle israelense da vida pública, mas garantem liberdade religiosa, cultural, econômica etc. a todos os setores. É claro que tais provocações são estopins que podem atear o fogo da violência árabe, com potencial de inflamar todo o mundo muçulmano. Oh, pobre bandeira! Perdeu sua inocente oficialidade, tornou-se propriedade de vontades opostas à original natureza da experiência sionista: de liberdade, convivência, tolerância; de progresso e modernidade inspirada em continuidade cultural e desobrigada honesta tradição. Transformou-se em distintivo de oco “patriotismo”, que os portadores de visão liberal e moderada se envergonham de envergar. Quando voltaremos a vê-la como límpido símbolo do inigualável fenômeno da verdadeira valorização humana contida no espírito de Israel? Tel Aviv, Junho de 2022

Harmonia ou cacofonia

Quarta -feira, 10:30 da manhã. O canal “Voz da Música” da Radio de Israel transmite na íntegra a Nona Sinfonia de Beethoven. O horário da transmissão não deixa de causar espanto para quem considera essa obra o cume da criação musical, que merece ser ouvida em condições de concentração espiritual, pouco provável em meio aos afazeres habituais de um dia de trabalho.

Tais pensamentos, porém, desaparecem no exato momento dos primeiros acordes, e logo me deixo levar – pela enésima vez – pela audição cativante das melodias tão conhecidas e amadas.

Sou ciente da reserva com que “connoisseurs” refinados concedem ver na “Coral” expressão de genialidade musical, mas acham que também obras “menores” ou exemplos de diferente caráter devem merecer igual medida de valor.

Não discuto nem discordo de tal opinião, nem tenho elementos de formação musical para polemizar sobre ela. Mas não me envergonho em afirmar que, para mim, não existe criação musical (e ouso dizer artística em geral) que encerre tão completamente os símbolos mais autênticos da condição humana, requisito essencial para a afirmação da obra de arte.

É sobre isso, e não sobre o simples prazer da repetida audição, que baseio minha inclinação quase “fanática” de interromper qualquer outra atividade ao ouvir as notas conhecidas, acompanhando-as quanto possível de memória, e levando o pensamento para abstratos caminhos de identificação, seja ela estética, ética, filosófica ou psicológica.

Mas se a Nona Sinfonia é aquela que mais estimula tal ordem de considerações, a música clássica em geral representa um refúgio muito almejado da crescente vulgaridade que vem se tornando denominador comum da vida pública em Israel. A Orquestra Filarmônica de Israel é um oásis de sanidade cultural em meio ao deserto dessa vulgaridade, e pode se contar entre os fatores que ainda garantem ao país prestígio na cena mundial.

A Knesset (onde parlamentares ignorantes e de discutível estatura fazem uso constante de uma retórica

Mas se a Nona Sinfonia é ofensiva e virulenta) transformou-se aquela que mais estimula em arena de insultos e bate-bocas, tal ordem de considerações, exemplo negativo de comportamento civil. Os partidos só se preocupam a música clássica em geral com a populista e demagógica manurepresenta um refúgio muito tenção de seus interesses; persiste nos almejado da crescente debates e na mídia uma atmosfera vulgaridade que vem se tornando denominador comum pré-eleitoral, cheia de inamistosos confrontos que se tornaram uma constante na repetição das campada vida pública em Israel. nhas a que o país foi levado pela política de Netanyahu. E de reflexo verifica-se o baixo nível da imprensa e dos meios de comunicação, cúmplices na difusão de uma sub-cultura assentada em complexos de inferioridade e discriminação, provindos de um fundo étnico já de há muito injustificado. Então a capacidade da Nona Sinfonia de transmitir pela música uma imagem do conflito inerente do ser humano – da luta entre o mal e o bem, a angústia e a alegria, o desespero e a esperança – reveste-se de uma concreta, material realidade, espelho da presente sociedade israelense. E o gênio de Beethoven, que do fundo de sua surdez foi capaz de criar o mais eloquente documento de otimismo, parece nos dizer “façam orelhas surdas para a cacofonia dessa ruidosa e violenta situação, voltem-se para a harmonia de uma sociedade tolerante, aberta, livre de preconceito, livre de extremismos religiosos ou nacionalistas, receptiva e capaz de modéstia frente a valores positivos da criatividade universal. Será então que, também no plano do cotidiano israelense, a sempre-nova sinfonia reassumirá o impulso vital que está na base de sua eternidade. E a genuína milenar vocação do povo judeu voltará a ter em Israel seu instrumento de realização. Tel Aviv, Julho de 2022 Vittorio Corinaldi é engenheiro formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do kibuts Bror Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutsiano.

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