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De uma noite de Yom Kipur – Salomão Polakiewicz
DE UMA NOITE DE IOM KIPUR
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Salomão Polakiewicz
Numa grande cidade, uma cúpula incrustada de pontinhos brilhantes ornamentou a noite que descerrava mais um Iom Kipur, mas o dia seguinte amanheceu inesperadamente cinzento e chuvoso. O céu parecia ter descido a poucos palmos acima das cabeças. Empurrava os indivíduos para dentro de si mesmos. Diligentemente ajustado para o Dia do Perdão, reabriria seus portões a multicentenária sinagoga local que uma inclemente guerra reduzira a escombros. Um trabalho demorado e minucioso triunfou sobre a descrença de se ter de volta o templo de tanta glória. Para os sábios do lugar, nenhum outro cenário seria mais adequado para sediar a celebração do dia mais importante de sua religião. É que ele se prestava a representar, para a população de fé abalada pelos sofrimentos trazidos pela guerra, uma reafirmação do paradigma da perpetuidade do povo hebreu.
Comemorado o Rosh Hashaná, de dez dias dispôs cada membro da comunidade para se esquadrinhar no espelho de sua consciência, na avaliação do cumprimento dos valores outorgados por Deus à nação judaica, desde milhares de anos, para sua prática e difusão. Compartilhara? Cuidara? Socorrera? Respeitara? Agradecera? Refreara suas pulsões? Perdoara, como agora suplicava?
Após a destruição da sinagoga, emudecida sua voz inspiradora, um afrouxamento de princípios se instalara naquele lugar. Pecava-se muito. Era penosa uma honesta introspecção. Mas, naquele Iom Kipur, o farol se reacenderia fulgurante, para devassar a consciência culposa daquela gente e lhe favorecer o arrependimento.

Embora austero, o renovado monumento destacava-se sobre seus arredores, imponente. Grandes velas, preparadas para longa duração, iluminavam o vasto salão e acentuavam os coloridos vitrais, num contraste com o acinzentado daquele dia. Como expressão do empenho em se louvar o Criador, mãos habilidosas ergueram um púlpito no centro do templo, sutilmente esculpido em madeira, desde o gradil da escadaria que dava acesso ao seu alto até as colunas que sustentavam um domo dourado. Ao redor, poucos assentos estavam disponíveis, reservados às pessoas mais idosas ou debilitadas. Ainda que torturante, seria circunstancial que todas as demais permanecessem de pé por todo o tempo, para que o espaço excedente pudesse acomodar um público presumivelmente numeroso. Aos devotos locais se uniriam correligionários esperados de comunidades vizinhas. Desejosos de testemunharem o evento, de bom grado eles despertariam bem cedo e, mesmo debilitados pelo jejum proverbial, venceriam as distâncias por estradas que seus passos tornariam enlameadas. Mas o recinto se revelaria insuficiente para impedir que os indivíduos se apertassem numa forçada e constrangida intimidade.
Ao final das preces do dia, as primeiras estrelas se mostraram, rompendo as nuvens, talvez curiosas do que em baixo ocorria, ingenuamente legitimando a que a cerimônia atingisse seu ponto culminante: o dirigente, esgotada a solene leitura do rolo sagrado, elevou-o para que toda a congregação reverentemente o contemplasse, na esperança de que, doravante, fossem cumpridas as leis divinas ali gravadas. Para alçar a comunidade ao nível mais alto de concentração, sacerdotes empunharam trombetas elaboradas de chifres de animais e aguardaram a orientação para fazerem soar, do oco daquelas peças, os límpidos sons que abririam os céus para o veredito de cada um. Para voltarem a cobrir Foi quando, repentinamente, uma assuas cabeças, homens sombrosa ventania escancarou as pesadas e mulheres se curvaram portas do templo. Seu rugido abafou todas entre si em direção as vozes humanas. Crânios foram desnudados de suas coberturas, mantos agitados ao solo, em busca dos como asas. O turbilhão soprou em cada revéus e solidéus que côndito daquela casa, como a purificá-la de ali se confundiam. seus pesadelos. E, tão súbita e misteriosaDesavisado, alguém diria que mutuamente mente quanto surgira, ele logo se extinguiu. Para voltarem a cobrir suas cabeças, homens e mulheres se curvaram entre si se reverenciavam. em direção ao solo, em busca dos véus e solidéus que ali se confundiam. Desavisado, alguém diria que mutuamente se reverenciavam. Na pressa, requintados ou simplórios, os objetos foram recolhidos sem qualquer critério de propriedade, num compulsório desapego. E, sob a pálida iluminação das poucas velas que não tiveram extinguido seu fogo, o brilho de joias e adereços se ofuscou e o colorido das vestimentas se desbotou num cinzento sem identidade. Passada a surpresa, o decano resgatou o momento de apoteose da cerimônia. Emitidos os toques do shofar, a perplexa assembleia, composta por eruditos e ignorantes, ricos e pobres, jovens e velhos, patrões e servos, mansos e rudes, abolidas todas as diferenças, se amalgamou num mesmo clamor por perdão e vida. E toda aquela agitação se acalmou quando um som terno e suave sussurrou aos ouvidos de cada um daquela gente ainda tola e insensata, Sua amada descendência, destinada à santidade, no tempo justo: Amém! Salomão Polakiewicz é médico, casado, e tem três filhos. É autor do livro “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, editado pela Editora Crescer em 1996 e que serviu de inspiração para um filme de mesmo nome, lançado em 2020. Mora em Belo Horizonte e é frequentador da Associação Israelita Brasileira.