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Filhos, por que tê-los? – Isio Ghelman

FILHOS, POR QUE TÊ-LOS?

Comentários sobre a Haftará do primeiro dia de Rosh Hashaná

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Isio Ghelman

Bom dia a todos. Gostaria de fazer pouquíssimos comentários sobre a Haftará desse primeiro dia de Rosh Hashaná. Existem inúmeros aspectos que mereceriam atenção, como, por exemplo, elaborar um pouco sobre o fato de Eli, o Cohen Hagadol, ter tomado Chana como bêbada ao observá-la rezando, tamanha era sua entrega e fervor balbuciando as palavras, apenas movendo seus lábios sem emitir sons. O texto original da Haftará não menciona, mas alguns comentaristas, apoiando-se na mística judaica, sugerem que Eli, em busca de resposta para o estado de Chana, teria consultado os Urim veTumim, que, pelo que entendi, eram uma espécie de I Ching – me desculpem o sincretismo (se bem que a própria Cabala já é um sincretismo) –, em que, de acordo com o Zohar, teriam os Nomes de Deus de 42 e de 72 letras gravados em pedras que se acendiam sequencialmente, de modo a emitir uma resposta a uma eventual pergunta feita pelo Sumo Sacerdote. E quando ele o fez a respeito de Chana, quatro letras se acenderam. Essas letras poderiam ter formado tanto a palavra shikorá (bêbada), como kessará (como Sara, significando que Chana, assim como a matriarca Sara, também era estéril) e também kesherá (ela é pura). Aqui faço um parêntesis. Palavras com vários significados, palavras parecidas, palavras que compartilham os mesmos radicais são fontes inesgotáveis de comentários, não é mesmo? As raízes das palavras hebraicas são verdadeiras cartolas de mágico: delas saem não só coelhos, mas também pombas e flores multicoloridas! Não é à toa que somos o povo dos livros, uma vez que, de verdade, apreciamos a magia das palavras. Mas por que Eli escolheu a primeira opção e a tomou como bêbada? Não sei. Aqui, só provoco, mas não tenho resposta.

Outro aspecto é o fato de Chana e sua prece terem se tornado o paradigma da prece sincera, a ponto de passar a ditar o padrão para a oração da Amidá:

Recentemente, tive a oportunidade de estudar e ler, na ARI, a Haftará do primeiro dia de Rosh Hashaná, durante o serviço de 5783. Reproduzo aqui o comentário que fiz na ocasião, antes da leitura ritual, acrescido de um ou outro aspecto que me ocorreu posteriormente, além do título do texto, que referencia o “Poema Enjoadinho” de Vinicius de Morais.

oramos em silêncio, enunciando as pala- Minha mãe, que me faz vras, mas não em voz alta a ponto de serem uma falta imensa, dizia ouvidas pelos demais. Essa Haftará contando como Chana foi atendida em sua que, para ela, os filhos prece sincera me faz pensar que o fracasso eram uma janela para o e o sucesso, o triunfo e a derrota, a grande- mundo. E dessa janela, za e a pequenez, não são condições perma- testemunhando nossas nentes. A oração – e entendo a oração como um momento em que verdadeiramente nos conectamos com nossas quesescolhas, nossos erros e acertos, ela tentava tões – influencia nossas ações, e, com isso, compreender o mundo e a podem produzir mudanças na condição evolução dos costumes. humana, perpetradas pelo próprio sujeito, e não apenas pela Graça Divina. E esse é um dos temas fundamentais de Rosh Hashaná. Neste início de um novo ano, temos a oportunidade de um recomeço – o que, aliás, podemos fazer em qualquer momento de nossas vidas – de melhorar o que é preciso, de questionar nossas escolhas e de admitir novas possibilidades.

Mas o que eu mais quero falar é sobre o fato de Chana, em troca da dádiva da maternidade, ter oferecido seu filho “ao Eterno todos os dias da sua vida”. Mas condicionando a fazê-lo apenas quando a criança desmamasse. Nós, humanos, temos praticamente uma espécie de gestação em duas etapas, a primeira intrauterina e, a segunda, com a criança já fora do útero. Nossos bebês não seriam capazes de sobreviver aos primeiros um ou dois anos de suas vidas sem o auxílio de suas mães, durante o período do aleitamento materno. Daí a ressalva feita por Chana, de que daria seu filho ao Eterno somente após o desmame, quando, enfim, a criança poderia ter autonomia. Li em algum comentário sobre essa Haftará feito por uma mulher – em algum site sobre questões judaicas – em que ela dizia não entender o fato de uma mãe desejar tan-

Eric Froehling/Unsplash.com

to um filho e, ainda assim, ser capaz de dá-lo ao Eterno.

Quero dizer que entendo perfeitamente.

Me antecipo aqui à crítica de que não tenho lugar de fala para dizê-lo, uma vez que sou pai e não mãe. Aceito a crítica, mas, ainda assim, mantenho minha opinião. Eu entendo. Entendo como mãe. Não só entendo, como acho que deveríamos todos fazer o mesmo. Acho até que muitos de nós o fazem. É claro que não tomo o sentido literal de “dar ao Eterno” – nem como sacerdote, muito menos em sacrifício. Mas não é isso que fazemos quando estudamos nossas rezas? Nós buscamos contextualizar essas histórias – em princípio tão anacrônicas – com nossos tempos e as transformamos em parábolas. “Doar nossos filhos ao Eterno todos os dias de suas vidas.” Ora, é para isso que temos filhos: para os darmos ao mundo! Não à toa dizemos que as mães dão à luz (a com acento grave indicando a contração do artigo com a preposição): mães dão seus filhos “a a” luz, “a a” vida, “a o” mundo. A dádiva concedida à Chana se dá porque ela não queria filhos apenas para si. Minha mãe, que me faz uma falta imensa, dizia que, para ela, os filhos eram uma janela para o mundo. E dessa janela, testemunhando nossas escolhas, nossos erros e acertos, ela tentava compreender o mundo e a evolução dos costumes. Nada mais prazeroso do que acompanhar nossos filhos dando os seus primeiros passos e, a nós, pais, só nos resta oferecer a eles as condições e as ferramentas para que eles próprios possam escolher seus caminhos. Seja percorrendo a estrada menos utilizada do bosque amarelo, como dizia o poeta1, ou a mais utilizada; mas para nós, pais, o que faz a diferença é permitirmos que eles verdadeiramente façam suas escolhas, doando-os ao mundo.

Shaná Tová a todos.

1 Me refiro aqui a Robert Frost (1874-1963), poeta americano, autor do poema The Road Not Taken.

Acrescento aqui uma pequena nota: após fazer a leitura da Haftará – e desses meus breves comentários –, ao descer da Bimá e voltar ao meu lugar, meu querido amigo de longuíssima data – além de consultor particular para assuntos ligados ao judaísmo –, Ricardo Gorodovits, me puxou pelo braço e me disse meio à brinca, meio à vera, que Eli havia escolhido a opção de tomar Chana como bêbada porque isso tornava a narrativa mais interessante! Achei essa explicação genial e logo me lembrei de um trecho do livro Homo Sapiens – Uma breve história da humanidade, escrito por Yuval Noah Harari, em que ele elenca entre as hipóteses para o salto evolutivo de nós, Homo Sapiens, frente aos outros hominídeos contemporâneos, a nossa capacidade de acreditar na ficção. Segundo Harari, entre 30 e 70 mil anos atrás, nós, Homo Sapiens, adquirimos novas formas de pensar e de se comunicar naquilo que se constituiu como uma Revolução Cognitiva. Nossa linguagem se tornou incrivelmente versátil, permitindo-nos “consumir, armazenar e comunicar uma quantidade extraordinária de informações sobre o mundo à nossa volta”. Isso nos habilitou a partilhar informações sobre o mundo e – mais importante ainda – informações sobre nós mesmos. Mas ainda segundo Harari, a característica verdadeiramente única da nossa linguagem é a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. “Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva […] e a capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos Sapiens.” E nós fazemos isso coletivamente. Isso nos deu uma capacidade sem precedentes de cooperar de modo versátil em grande número, impulsionando nossa vertiginosa ascensão ao topo da cadeia alimentar. Ora, quanto mais interessante as narrativas, maior nossa adesão a elas. E Ricardo tem toda a razão: a história da estéril e sofrida Chana não se torna de fato mais interessante com Eli a tomando como bêbada e, ainda assim, acolhendo-a, confortando-a e assegurando-lhe de que o Eterno iria atendê-la em suas preces?

Isio Ghelman é ator, diretor e professor de teatro, designer de livros e sócio da ARI.

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