
12 minute read
Antissemitismo e fraude literária – Juliano Klevanskis Candido
ANTISSEMITISMO E FRAUDE LITERÁRIA
Umberto Eco: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada à nossa vida cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, não lhe acrescentamos elementos ficcionais?”
Advertisement
Juliano Klevanskis Candido
Segundo o filósofo e crítico de arte Anatol Rosenfeld (1912-1973), há duas modalidades de fraude literária, “a atribuição a outrem de um trabalho de própria lavra”,1 e o inverso, o plágio.
O antissemitismo gerou, entre outras aberrações literárias, muitos documentos forjados e atribuídos aos judeus, sendo o mais conhecido deles Os Protocolos dos Sábios de Sião, texto plagiado entre 1900 e 1905 por círculos retrógrados russos, a partir de Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu ou a política de Maquiavel no século XIX, sátira do escritor francês Maurice Joy (1829-1878) contra Napoleão III, publicado em 1864. O livro descreve um suposto complô mundial dos judeus para a dominação do mundo.
Mas Os Protocolos é apenas a mais conhecida das aberrações. Outros textos atribuem aos judeus o controle da riqueza e da imprensa mundiais: Judeu, judaísmo e judaização dos povos cristãos (1869), de Roger Gourgenot de Mousseaux (1805–1876); Os judeus nossos mestres (1882), de Emmanuel Chabauty (18271914); A França judaica, panfleto publicado por Edouard Dumont (18441917), em 1886; No cemitério judaico de Praga, capítulo do romance Biarritz (1868), de Hermann Goedsche (1815-1878), publicado como panfleto em 1876;2 Carta dos judeus de Constantinopla (1550), do arcebispo de Toledo Juan Martínez Silíceo (1486-1557); La Isla de los Monopantos (1644), de Francisco de Quevedo (1580-1645).3
1 ROSENFELD, 1967, p. 57-58. 2 ROSENFELD, 1967, p. 50. 3 GONZALO, 2002.
Há séculos, esses textos contribuem para a dissemina–ção do antissemitismo, incitando perseguições e massa–cres (os pogroms). “No cemitério judaico de Praga”, que se refere a um suposto conselho de representantes das doze tribos de Israel [em 1868, as doze tribos de Israel não mais existiam há pelo menos 2.500 anos!], influenciou o pogrom de Kishinev (atual Moldávia), em 1903, culminando em dias de violência e dezenas de mortos.4 Dois anos depois, Czar Nicolau II acusou judeus de organizarem a Revolução de 1905 – manifestação da população por melhorias nas condições de trabalho e mais abertura política no Império Russo.5
Nesse sentido, o objetivo dos Protocolos talvez fosse “fortalecer as tendências absolutistas frente às correntes liberais da época”, na Rússia czarista.6
Por outro lado, escritores como Vladimir Korolenko (1853-1921), Alexandre Ivanovich Kuprin (1870-1938), Leonid Andreiev (1871-1919), Anton Tchekhov (18601904) e Máximo Gorki (1868-1936), após a onda de pogroms que varreu a Rússia czarista na virada do século,

4 ROSENFELD, 1967, p. 50. 5 ROSENFELD, 1967, p. 55. 6 ROSENFELD, 1967, p. 62. defenderam judeus oprimidos e, pode-se dizer, combateram o antissemitismo.7
O crítico Maurice Friedberg analisou revistas, jornais e livros dos países que compunham a União Soviética, denunciando a perseguição antissemita naquele território.8 Para ele, o antissemitismo se agravou com a passagem da Rússia czarista para a soviética, em especial na era stalinista, momento com variedade maior de “vilões” judeus na literatura.9
Friedberg reflete sobre a imagem do judeu trapaceiro em “Elya Isaakovich e Margarida Prokofyevna”, de Isaac Babel (1894-1940), autor que não tinha nenhuma intenção de pintar um quadro negativo dos judeus, e cuja ficção era centrada em sua visão da realidade. Babel foi um escritor judeu que tentou com todas as suas forças se incluir na União Soviética, mas que acabou assassinado pelo regime. Escrito em 1916, o conto narra o encontro entre um comerciante de meia-idade, que precisa se estabelecer
7 ROSENFELD, 1967. 8 Outras publicações citadas pelo autor são as revistas Jewish Chronicle, londrina, e Behinot, israelense de breve existência (1952-1956), editada pelo crítico Shelomo
Zemach e devotada a críticas, resenhas e traduções (BEN-PORAT; HRUSHOVSKI, 1974, p. 19). 9 FRIEDBERG, 1962, p. 17.
por alguns dias em uma cidade proibida aos judeus, e uma prostituta russa. O negociante, impossibilitado de se hospedar em um hotel, aloja-se no apartamento da prostituta. Os dois se queixam de suas respectivas profissões e se tornam amigos.10 Há uma associação entre os personagens, unidos pela restrição de direitos. Contudo, a narrativa contribuiu, segundo o crítico, para impor uma espécie de “antissemitismo endêmico” na literatura soviética.
De Nicolai Brykin (1888-1938), a novela Nem tudo está calmo na fronteira oriental corrobora com a ideia: “no exército czarista havia três grupos de soldados suspeitos: os estudantes, os judeus e os trabalhadores industriais, enquanto entre estes três grupos, presumivelmente, não deveria haver atrito de nenhuma classe”.11 Na narrativa, a discriminação é explícita. Friedberg afirma ainda que “outro princípio da doutrina comunista proíbe considerar o antissemitismo como um fenômeno situado acima do problema das classes”.12
Algumas narrativas recriam ambientes judaicos de forma bem-sucedida, tal como Pôr de sol, conto publicado por Babel, em 1964, que retrata dois bandidos judeus de Odessa. É o caso, também, da novela Depois dos Filarets, de Boris Vadetsky (1906-1962) cujo personagem confunde o período em que os hebreus estiveram na Pérsia com o Êxodo Judaico do Egito.13
Parentes, do ucraniano Oleksandr Kopylenko (19001958), publicado em 1961, trata da Guerra Civil Russa (1918-1921). No conto, cujo cenário é um shtetl, vilarejo judaico, um octogenário reside em uma sinagoga em ruínas. A princípio, ele teme os rumores negativos sobre a revolução bolchevique e permanece encerrado na sinagoga. Mas, ao descobrir que os soldados bolcheviques abominam os ricos, o protagonista resolve conhecer o comissário bolchevique, que o trata como parente. Surpreendentemente, o velho experimenta o maior êxito na vida: os ricos que o desprezaram vêm a ele pedir que interceda por seus destinos junto ao comissário.14 10 FRIEDBERG, 1962, p. 12. 11 FRIEDBERG, 1962, p. 13. 12 FRIEDBERG, 1962, p. 15. 13 FRIEDBERG, 1962, p. 16. 14 FRIEDBERG, 1962, p. 20. Após a onda de pogroms Obras de Sholem Alechem (1859que varreu a Rússia 1916) – judeu, assim como Babel, que czarista na virada não tinha a menor intenção de produzir literatura antissemita – foram publicadas do século, escritores em revistas e jornais soviéticos por ocasião defenderam judeus do cinquentenário de sua morte. Na épooprimidos e, pode-se ca, o jornal ucraniano Peret publicou dizer, combateram o antissemitismo “Gitya Purihkevich”, que, intencionalmente ou não, constituiu-se numa escolha infeliz. No conto, uma pobre viúva judia, em período czarista, consegue, com astúcia, livrar seu filho único do serviço militar. Provavelmente, ao invés de despertar simpatia e compaixão pela pobre viúva, o texto reforça estereótipos judeus. Duas publicações da década de 1960 ilustram o antissemitismo soviético. A peça A agulha e a baioneta, de Anatoli Galiyev (1934-2022), trata de Dora Soloveichik, judia que negocia no mercado negro. O conto “O calcário não derreterá”, de Vardges Tevekelyan (1902-1969), trata de judeus contrabandistas de ouro e diamantes.15 Ambas correlacionam judeus e “crimes econômicos”. Vitali Zakrutkin (1908-1984) criou um dos primeiros retratos literários do intelectual e líder bolchevique Leon Trotsky (1879-1940), impregnado de estereótipos antissemitas. Na novela Criação do mundo, o nome do assassino é indiscutivelmente judaico, Yuda Stern, coincidindo com um dos apelidos de Trotsky na propaganda soviética, Yuda Trotsky.16 Pelas estradas da vida, publicado por Anatoli Dimarov (1922-2014), em 1963, ambienta-se na Ucrânia pós-Guerra Civil (1917-1921). Solomon Lander, personagem judeu, constantemente usa o termo “khokhly”, espécie de insulto étnico russo. O termo se origina, na narrativa, após maus-tratos sofridos pela família Lander, que passa a odiar os ucranianos, os “malditos khokhly”. Na narrativa, “os Lander já conflitavam com a nação ucraniana desde a época distante na qual a nobreza polonesa designou os judeus arrendatários (concessionários) de Igrejas Ortodoxas”.17 Isaac Lander, antepassado de Solomon, herdou três igrejas na região de Podole, explorando os habitantes que precisavam batizar os filhos, enterrar os mortos ou receber a bênção da Páscoa. O pai de Solomon quer que este se torne 15 FRIEDBERG, 1962, p. 22. 16 FRIEDBERG, 1962, p. 23. 17 FRIEDBERG, 1962, p. 23.
comerciante; a mãe, rabino. Solomon ingressa no Bund (União Judaica Trabalhista) e segue carreira política, tendo Trotsky como ídolo, mas com “um defeito herdado do avô Motele, o qual já o tinha herdado do bisavô Chaim: o ódio aos ‘malditos khokhly’”.18 O protagonista da narrativa é judeu de esquerda, nacionalista, filiado ao Bund (movimento trabalhista, solidamente de esquerda, que mesmo assim foi dizimado na URSS por defender uma autonomia cultural iídichista), comerciante e quase rabino, reunindo características suficientes para ser odiado na União Soviética, em especial por ucranianos. A história termina prevendo “que também os filhos de Lander serão ‘ladrões’”.19
Ao conceber o judeu como ladrão, avarento, chantagista ou conspirador, desconsidera-se a diversidade humana, presente em todos os grupos, e a complexa relação entre judeus, isolados ou em comunidades, sempre percebidos como “diferentes”, e não judeus. No caso soviético, estes persistiram enquanto povo, com sua própria língua e religião em um país de regime massificador e uniformizante.
E é justamente fora da ficção onde se encontram os verdadeiros criminosos.
De acordo com o historiador Richard Pipes, os gulags (campos de trabalho soviéticos) inspiraram os campos de concentração nazistas.20 O antijudaísmo, repúdio à religião judaica, originou o antissemitismo apoderado pelo nazismo, com suas práticas criminosas e sistemáticas, baseadas em supostos fatores raciais.
Gérard Rabinovitch revela que o programa nazista orquestrado para a conquista do poder oportunamente se aproveitou do antissemitismo e do “mito ariano”, miscelânea ideológica, para perseguir e exterminar judeus, comunistas, sociais-democratas e qualquer grupo rival – como a facção SA (tropa de assalto), eliminada pela SS (guarda de elite do partido nazista) no episódio conhecido como “Noite dos longos punhais”; a SS logo assumiria o controle dos campos de concentração.
A partir do termo cunhado por Bertolt Brecht, em A resistível ascensão de Arturo Ui, Rabinovitch denomina os nazistas de gângsteres, por praticarem a chantagem, o
Ao conceber o roubo e a violência. Para ele, enalteceu-se judeu como ladrão, a violência e a máfia, através de uma conavarento, chantagista duta de “honra” baseada em intimidação, chantagem, extorsão e assassínio. ou conspirador, O nazismo foi inédito no que tange à desconsidera-se a tecnologia de violência: a técnica de mordiversidade humana ticínio se aprimorou, com câmaras de gás – morte industrializada, química, aperfeiçoada em laboratório. A técnica “científica” de caracterização do judeu e a criação de “um território fora do mundo”, os Campos de Concentração e de trabalho forçado, marca característica do regime, culminou na criação dos Campos de Extermínio, cuja função era de aniquilamento imediato. Rabinovitch esclarece que “matar pelo gás é uma novidade na era industrial e do morticínio em massa. A engenhosidade criminosa nazista o identifica como seu instrumento privilegiado”.21 Judeus viveram por séculos “fragmentados em comunidades de tamanhos variados, sem outros laços, senão o de uma solidariedade de rejeitados”.22 Um povo forçadamente sem pátria, reunido em torno de seus livros mais sagrados, a Torá (“pátria portátil”, na definição de Heinrich Heine) e o Talmud (sobretudo comentários da Torá e coleções de leis e costumes judaicos), foi vítima de poderes seculares e religiosos que o privaram de exercer determinadas profissões em determinadas épocas e locais.23 Essa condição imposta, tornado pária e forçado à miséria, é uma marca irrecuperável na história ocidental. Mais recentemente, Art Spiegelman (1948-) publicou Maus, romance gráfico de relevância para o estudo do antissemitismo, inicialmente como série, entre 1980 e 1991. A narrativa conta as experiências de Vladek, pai do autor, durante a Shoá, e retrata judeus como ratos, poloneses como porcos, alemães como gatos, franceses como sapos e norte-americanos como cães. Outro romance gráfico relevante é O complô: a história secreta dos protocolos dos Sábios de Sião (2006), de Will Eisner (1917-2005), que trata da fabricação e divulgação dos Protocolos, em um processo que envolve a polícia russa de Czar Nicolau II, e dos desdobramentos da farsa, desmascarada pelo jornal britânico Times, nos anos 1920.
18 FRIEDBERG, 1962, p. 25. 19 FRIEDBERG, 1962, p. 25. 20 PIPES, 1997. 21 RABINOVITCH, 2004, p. 61. 22 RABINOVITCH, 2004, p. 31. 23 RABINOVITCH, 2004.
Umberto Eco (1932-2016) publicou Cemitério de Praga, em 2010, romance cujo título alude ao antigo cemitério, onde, de acordo com os Protocolos, judeus teriam conspirado para dominar o mundo. No capítulo Protocolos ficcionais, do livro Seis passeios pelos bosques da ficção, o crítico afirma que o “documento”, aceito por diversos governos europeus desde o fim do século XIX, ajudou a disseminar o antissemitismo no mundo.24
Eco questiona: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada à nossa vida cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, não lhe acrescentamos elementos ficcionais?”.25 Ele sugere que nós, leitores, talvez interpretemos a vida como ficção e acrescentemos elementos ficcionais à realidade, trazendo, assim, um questionamento sobre a fronteira entre o real e o imaginário.
Por fim, trata-se de uma absurda construção (pela literatura e por outros meios) de um ideário de medo dos judeus, visando objetivos políticos variados. Estes objetivos eram às vezes nacionalistas-xenofóbicos, às vezes econômicos, às vezes religiosos. E os judeus, por não serem parte da cultura dominante, serviram (e em alguns lugares do mundo ainda servem) muito bem para o objetivo de colocar medo na população e a partir deste temor esconder (ou justificar) as falhas abjetas dos governos. Esse estado, além de acompanhar personagens e a ficção em geral, está por

24 ECO, 1994, p.123-148. 25 ECO, 1994, p. 137. trás de comportamentos humanos, o que remete a Jean Delumeau, para quem, ao longo da História, indivíduos e coletividades permanentemente dialogam com o medo.
Juliano Klevanskis Candido é escritor e membro do Instituto Histórico Israelita Mineiro. Em 2022, concluiu doutorado em Letras: Estudos Literários pela UFMG, pesquisando sobre as literaturas israelense e hebraica.
Referências:
BEN-PORAT, Ziva; HRUSHOVSKI, Benjamin. Poética e estruturalismo em Israel. Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1974. DELUMEAU, Jean; MACHADO, Maria Lucia. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução: Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. EISNER, Will. O complô: a história secreta dos protocolos dos Sábios de
Sião. Tradução: Andre Conti. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2006. FRIEDBERG, Maurice. A imagem do judeu na literatura soviética pós-stalinista. Tradução desconhecida. São Paulo: Grijalbo, 1962. GONZALO, Álvarez Chillida. El Antisemitismo en España. La imagen del judío (1812-2002). Madrid: Marcial Pons, 2002. PIPES, Richard. A história concisa da Revolução Russa. Tradução: T. Reis.
Rio de Janeiro: Record, 1997. RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepultos nas Nuvens. Tradução: Fany
Kon e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004. ROSENFELD, Anatol et al. (org.). Entre dois mundos. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1967.
