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Tempero para todos os tempos – Rabino Sérgio R. Margulies
TEMPERO PARA TODOS OS TEMPOS
Rabino Sérgio R. Margulies
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Na sinagoga, junto-me à congregação, ávido para ouvir a leitura da Torá. Ouvir, digo, saborear. Sim, saborear, pois o ritual estipula que o texto da Torá seja recitado de acordo com uma cantilena específica denominada taamim. Os taamim proveem o ritmo da leitura, as pausas e ênfases e, ainda que consequência de um desenvolvimento histórico, são de tal importância que suas origens são atribuídas ao próprio momento em que o texto da Torá foi entregue no Monte Sinai. A palavra taamim significa sabores. A ideia é que a mensagem da Torá possa ser saboreada, mas nem sempre acontece. Surpreendentemente, a delícia aguardada deste sabor pode ser substituída por um incômodo sentimento de estar ouvindo “Não afastes da tua boca e lendo um texto insosso. A expectativa de nutrir-se pelo sabor da mensagem sagrada da Torá é anulada pela sensação de náusea dianeste livro da Torá, te, por exemplo, das seguintes passagens: e nele medite dia e noite” • “Se um homem se deitar com um macho como quem se deita com uma mulher, ambos cometeram uma coisa abominável; serão condeTanach, Iehoshua (Josué) 1:8 nados à morte – eles têm a culpa de sangue.” Vaikrá (Levítico) 20:13; • “Se um chefe de família tiver um filho rebelde e desobediente, que não der ouvidos ao seu pai ou à sua mãe e não lhes obedecer mesmo depois que eles o disciplinem, seu pai e sua mãe o pegarão e o levarão para fora até os anciões da sua cidade, em local público de sua comunidade. Eles dirão aos anciões da sua cidade: ‘este nosso filho é rebelde e desobediente; ele não nos dá ouvidos. É um glutão e um beberão’. Por isso, o conselho da sua cidade o apedrejará até a morte. Assim você varrerá o mal de seu meio: todo Israel ouvirá e temerá.” Devarim (Deuteronômio) 21:18-21
Como lidar com as passagens controversas da Torá? Uma opção, rápida e fácil, seria suprimir da leitura estas passagens em função de seu sabor intragável no que tange ao respeito à dignidade humana. Outra opção é se indagar porque estas passagens são parte da Torá. É convite para que aceitemos a reflexão e para que aprofundemos a compreensão deste sagrado texto. Uma das finalidades destas controversas passagens é lê-las sobre o prisma da moralidade, para que não sejamos autômatos seguidores de um texto, o que abre espaço para sermos alvos de várias mensagens manipulativas que engolimos como se aceitáveis fossem. O convite para confrontar passagens complicadas da Torá permite aprimorramos a reflexão e, sobretudo, fazermos uso das lentes da moralidade. É como se o sabor da Torá dependesse do tempero da moralidade que adicionamos ou não.
No que tange a passagem de Levítico sobre homossexualidade, o rabino Steve Greenberg (1956-) explica que a intenção da Torá não se refere a questões anatômicas e sim à proibição de fazer uso exploratório das relações sexuais, demandando que parceiros sexuais se tratem com respeito mútuo. O rabino Bradley Artson (1959-) contextualiza a realidade histórica do antigo Oriente Médio entendendo que a proscrição bíblica se refere à condenação da idolatria e de práticas de cultos pagãos, e não à homossexualidade em si1 .
O entendimento do contexto histórico do antigo Oriente Médio é também citado pelo rabino Barry Block2 para esclarecer a lei que autoriza o apedrejamento do filho rebelde: o pai desfrutava de um poder absoluto através do qual não precisava prestar contas e poderia, inclusive, legalmente matar seu filho. A Torá, assim, limita esse poder pátrio ao estipular que tanto pai quanto mãe
devem estar de acordo que o comportamento do filho é repugnante. Afirma, ainda, que a atitude do filho deve ser publicamente declarada antes do apedrejamento, prevenindo que a violência aconteça dentro de quatro paredes. Deste modo, ainda que por uma “Toda a Torá depende das legislação estranha aos nossos olhos contempoqualidades morais” râneos, a contextualização permite entender a preocupação da moralidade do texto bíblico ao transformar o normativo – o exercício absolu-
Orchot Tsadikim, Alemanha, séc. 15 to do poder pátrio que encontra respaldo para o filicídio – em transgressão. A conclusão é que a ferramenta do conhecimento da história permite a compreensão da intenção do texto da Torá – que numa leitura superficial nos escandaliza – de corrigir uma prática num prévio momento da história. A moralidade também tem seu desenvolvimento. O psicólogo Lawrence Kohlberg (1927-1987) propõe potenciais estágios no desenvolvimento moral de um indivíduo que vão do nível do binômio obediência x punição, seguindo para a conformidade social e respeito à autoridade, até o nível que corresponde à adoção de princípios éticos universais. Dentro da Torá há – como o entendimento histórico exemplificou – um mecanismo que busca corrigir os desvios da moralidade. O sabor da Torá é encontrado através do contexto de cada etapa do desenvolvimento moral dos indivíduos e da sociedade da qual fazem parte. A Torá Oral, como a coletânea de debates rabínicos do Talmud, busca lidar com passagens controversas da Torá Escrita e suas implicações. Assim, aponta na lei sobre o filho rebelde que a expressão “se não obedecer nossas vozes (kolenu)” cria uma dificuldade para a aplicação da punição ao filho considerado rebelde: a voz da mãe tem que ser idêntica à do pai para o filho ser considerado rebelde. Uma vez que não há como as vozes da mãe e do pai serem idênticas, este ajuste oriundo do escrutínio da Lei Oral sobre a Lei Escrita estabelece
“Ó Eterno! Corrige-me, porém não em demasia.” Tanach, Irmiahu (Jeremias) 10:24
impedimentos para a aplicação da lei, no entanto, não a rejeita. Assim, também a Lei Oral deve ter um corretor balizado pelos princípios do desenvolvimento da moralidade. De outro modo, uma interpretação que cria empecilhos pode abrir espaço para outra interpretação que justifica a lei. Aliás, foi assim que o assassinato do ex-primeiro-ministro do Estado de Israel, Itschak Rabin, foi justificado pelo uso (ou abuso!) da interpretação de um conceito da lei judaica3. Por isso, urge fortalecer os mecanismos que coíbem a prática e aceitação de leis que violam a sensibilidade ética. Esta tarefa é contínua, o desenvolvimento da ética é permanente.
A sacralidade do texto da Torá não é isenta do senso crítico humano que busca constantemente o sabor a ser refinado pela ética e, neste intento, exerce uma espiritualidade intelectual, sensível e honesta. Este processo abraça dois pactos: o pacto da criação, universal, escrito nos corações humanos, e aquele estabelecido no Sinai com o povo de Israel. Nas palavras do rabino David Hartman (1931-2013): “o pacto do Sinai não pode sobrepor o da criação”, em alerta para as leis do Sinai que contradizem nossa moralidade4 .
O Talmud adverte: a Torá é veneno ou elixir. O que a torna um ou outro? Se confrontada com os imperativos da ética é um elixir. Se autorreferenciada é um veneno. Veneno como destilou a serpente em Adão e Eva. A vulnerabilidade de Adão e Eva decorreu, pois estavam sozinhos, sem a contenção de referências morais compartilhadas. Se estivermos sozinhos, somos inclinados a nos sujeitar ao veneno. Se estivermos juntos, somos propensos a incorporar o elixir.
O pacto particular cria comunidades atuantes e ajuda na tarefa de estarmos juntos para que os propósitos do pacto universal sejam zelados. De um lado, o pacto particular – mais precisamente, os vários pactos particulares de distintas crenças – evita que o pacto universal seja inócuo ou talvez inexisten“Estabelecerei Meu pacto te; por outro lado, o pacto universal – como as com … todo ser vivo” lentes da moralidade em seu estágio mais elevado – reforça o sentido de atuarmos através de comunidades, evitando que sejamos hordas que Torá, Bereshit (Gênesis) 9:9 perambulam a esmo num mundo caótico.
“E esta é a Torá … diante dos filhos de Israel”
Torá, Devarim (Deuteronômio) 4:44 Esta é a Torá com amplo sabor para todos os temperos. E para todos os tempos. Os eternos tempos que se temperam com o paladar da moralidade.
O Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI, Rio de Janeiro
Notas
1 Ellenson, D., “Jewish Meaning in a World of Choice,” Jewish Publication Society,
“No pacto … que o Philadelphia, EUA, 2014. Eterno seu Deus conclui com 2 Ensinado por Avital Hochtstein, Instituto Shalom Hartman, Jerusalém, Israel. vocês” 3 O assassino de Rabin justificou – distorcendo a lei judaica – seu ato através do conceito de ‘din rodef’, a lei do perseguidor, sob o argumento que assim Torá, Devarim (Deuteronômio) 29:11 eliminava uma ameaça. 4 Dr. Rabino Norman Solomon (1933 -), ‘Relating Truthfully to Morally Problematic Torah texts’.