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Resenha de Livros

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Schechtman

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AS COISAS DE QUE NÃO ME LEMBRO, SOU

Este livro propõe um jogo em que se revisita memórias muitas vezes inacessíveis, como as da primeira infância, e aponta para a própria natureza poética e ficcional das lembranças

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“Eu não me lembro do dia em que nasci”. Assim começa o novo livro de Jacques Fux e Raquel Matsushita, que, ao combinarem texto e imagem, produzem uma narrativa em camadas como parece sugerir o próprio movimento das lembranças. As Coisas de que Não me Lembro, Sou é dividido em três partes: “Tudo que lembro de não lembrar”, “Tudo que lembro de não compreender”, “Tudo o que me tornei em função de não me lembrar”. E, assim, a narrativa avança e retrocede no tempo, perpassando também algumas fases da adolescência, da juventude e da vida adulta de um personagem cujas memórias individuais estão entrelaçadas com outras coletivas, como a do mundo judeu.

Fux recorda que o ponto de partida desse livro remonta a 2014, quando foi convidado por Marco Lucchesi, enquanto presidente da Academia Brasileira de Letras, para escrever um artigo para a revista da ABL. Naquele ano, o escritor estava cursando pós-doutorado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde se aprofundou nas questões sobre a memória, que vai além do que se lembra. “Inclui também o que esquecemos, transformamos, criamos e recalcamos. Eu estava trabalhando com o testemunho na literatura, e fiz uma imersão no tema. E, assim, escrevi esse texto que eu acho que é único na minha vida. É um texto muito bonito, muito sincero”, comenta Fux.

Dois autores com os quais ele estava dialogando bastante nos seus estudos foram Georges Perec (1936-1982) e Sarah Kofman (1934-1994), que passaram pelo trauma da Segunda Guerra Mundial e também produziram livros nos quais se valem de uma linguagem infantil, mas sem abrir mão da densidade das questões abordadas por eles. Produzir As Coisas que Não me Lembro, Sou, para Fux, foi, de certo modo, realizar esse exercício de retorno a um “lugar” já es-

quecido mas ao mesmo tempo familiar para todo mundo.

“Esse texto é muito bonito, fala o que todo mundo viveu e o que todo mundo esqueceu, mas esse esquecimento foi fundamental para a criação de quem somos. Todas essas coisas que nós não lembramos da infância, desses carinhos, desse convívio com os pais, enfim, dessa vida de neném, eu acho que são justamente essas memórias que nos fazem ser o que somos. Então, esse livro trata muito dessa não memória, mas que, de alguma forma, nos define”, completa Fux.

A ilustradora Raquel Matsushita, que também assina o projeto gráfico do livro, conta que identificou no texto de Fux um forte viés psicanalítico, o que a guiou no processo de produção das imagens, construídas basicamente em duas cores, preto e branco. “O livro trata de uma memória ‘esquecida’, mas é justamente por meio dela que o narrador conta as histórias e reconstrói a si mesmo. No paradoxo do ambiente escuro das não recordações, o narrador se revela em forma de fragmentos”, pontua a artista.

“O projeto gráfico do livro propõe intensificar a ideia de fragmentos com pequenos trechos de texto distribuídos nas duplas. Ainda sobre esses trechos, um novo fragmento de texto é realçado por retângulos pretos ou brancos, que, por sua vez, se misturam com as ilustrações. O preto e branco (do papel) se revezam no protagonismo de cada capítulo. Também foram pensados como uma alusão à lembrança e não lembrança do narrador, a luz e a sombra”, completa ela.

Matsushita também buscou referências em obras de artistas que fizeram parte ou dialogaram com o surrealismo, como René Magritte (1898-1967), Leonora Carrington (1917-2011) e Tarsila do Amaral (1886-1973), entre outros. “As ilustrações foram criadas livremente sobre essas obras, sendo, portanto, uma releitura, uma reconstrução do passado. No conjunto de 20 ilustrações, houve a preocupação em escolher artistas brasileiros e também em equilibrar os gêneros (9 mulheres e 11 homens). Ao final do livro, há a relação das obras e dos artistas selecionados”, pontua.

Para Rosana de Mont’Alverne, editora da Aletria, As Coisas de que Não me Lembro, Sou é um livro reflexivo e encantador, para ler, reler e presentear. “Quando crianças, amamos ouvir repetidamente as histórias de nosso nascimento, do casamento de nossos pais, daquele tombo horrível que deixou cicatriz… Assim vamos nos constituindo, não só pela memória dos acontecidos, mas também pelas narrativas dos adultos. Freud dizia que não somos apenas o que pensamos ser. ‘Somos mais’ ‒ diz ele ‒ ‘somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos ‘sem querer’”, ressalta.

“Jacques Fux nos traz, em boa hora, essa reflexão freudiana traduzida num texto literário belíssimo, enxuto e, sobretudo, simples, essa qualidade dificílima de alcançar na aventura de escrever um livro. A cereja do bolo é o projeto gráfico e as ilustrações de Raquel Matsushita, que brinca com o claro‒escuro o tempo todo, numa alusão à escuridão das não recordações que nos impulsionam na busca da claridade e do autoconhecimento”, conclui a editora.

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