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Um (renovado) Rosh haShaná italiano – Raul Cesar Gottlieb
UM (RENOVADO) ROSH HASHANÁ ITALIANO
Raul Cesar Gottlieb
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Os judeus têm presença na Itália desde a Antiguidade. Há, inclusive, uma engenhosa formulação que atribui origem hebraica ao nome “Itália”, que seria assim composta: I (ilha em hebraico) + tal (orvalho) + Iá (Deus).
Esta etimologia aparenta ser apenas uma curiosa coincidência. A internet traz uma série de prováveis origens para o nome e nenhuma delas coincide com a “Ilha do orvalho divino”. Contudo, seguramente a Itália é uma terra de abençoada fertilidade e beleza, onde os judeus mantêm uma ininterrupta presença de aproximadamente 25 séculos.
Neste largo período eles fizeram o que fazem todas as comunidades judaicas do mundo: desenvolveram seus próprios minhaguim1 (costumes religiosos) que, como quase todos os demais, seguem a linha central do judaísmo talmúdico, mas que também incluem especificidades oriundas da criatividade e do gosto da comunidade local.
A situação geográfica e o intercâmbio cultural das regiões do Mediterrâneo fazem com que os minhaguim italianos tenham uma raiz comum com os espanhóis (sefaradim). Ainda assim, os italianos os consideram únicos, o que é constatado pela orgulhosa frase estampada nas folhas de rosto de seus livros de reza: “KeMinhag Kehilot Kodesh Italiani” (segunda linha da figura 1), que se traduz “Conforme o ritual das sagradas comunidades italianas”.
Eu sou filho de um casamento multicultural judaico. Meu pai tem origem numa família austríaca e minha mãe numa família italiana, com um ramo gre-
Figura 1. Folha de rosto de livro de reza impresso em Livorno, no qual o dono do livro anotou a mão o ano 5592 (1832), indicando o ano de sua impressão.
go. Ambos os lados da família são solidamente observantes, mas a observância na casa dos meus pais (comandada pela minha mãe) era italiana, apesar de que a sinagoga que eles frequentavam (por afinidade intelectual) era ashkenazi – a ARI. Moses Mendelssohn (século 18), o primeiro expoente do Iluminismo judaico, advogava que os judeus deveriam ser “cidadãos na rua e judeus em casa2” e, inspirado nisso, eu às vezes brinco que minha situação familiar faz de mim um ashkenazi-reformista na rua e um sefaradi-italiano em casa.
Um antepassado italiano – Angelo Forli – nos legou uma pequena biblioteca religiosa impressa nos séculos 18 e 19 nas cidades italianas de Livorno e Veneza e costumamos trazer estes livros para as nossas mesas festivas. As figuras 1 e 2 são as folhas de rosto de dois destes livros históricos para a nossa família. Curiosamente, a lombada do livro de Rosh haShaná traz a inscrição “rosc ascianá”, que, quando lida com a fonética do italiano, reproduz o som em hebraico original, apesar de parecer estranho para nós, brasileiros.
Assim que nosso costume para o jantar festivo da noite de Rosh haShaná, depois do regresso da sinagoga liberal ashkenazi, sempre foi solidamente italiano.
É um costume que se aproxima muito – mas não é idêntico – ao minhag sefaradi com o qual eu travei conhecimento pelo lindo suplemento anual de Rosh haShaná da revista Morashá, no qual uma série de oito petiscos são consumidos antes da refeição, cada um antecedido por uma fórmula hebraica que começa com as palavras Iêhi Ratson (significa “Que seja [Tua] vontade”), seguidas de uma petição ao Eterno. Cada uma destas frases contém um jogo de palavras ligando o petisco ao verbo central do Iêhi Ratson.
O jantar é uma festiva reunião de família e de amigos, no qual a alegria pelo encontro e pela renovação do calendário é reforçada tanto pelo ritual italiano como pelos sabores e cores da criativa disposição artística com que a nossa mesa é vestida a cada ano.
A série de petiscos dá um certo ar de Seder (a refeição festiva da noite de Pessach) ao encontro. Tanto no Seder como no ritual italiano de Rosh haShaná a festa é estruturada em passos, cada um deles convidando aos participantes a conversar a respeito do tema em foco. Os jogos de palavra no Iêhi Ratson de Rosh haShaná são os disparadores para a troca de ideias, tal como acontece nos passos do Seder de Pessach.
Após cada Iêhi Ratson recitado em hebraico, lemos sua tradução para o português, pois sem ela fica impossível disparar uma troca de ideias no Brasil. Encher ouvidos e bocas com fórmulas incompreensíveis para a maioria reduz em muito o significado da reunião.
E aí temos um problema!
Três dos oito Iêhi Ratson contêm uma repetida mensagem negativa. Eles pedem para que nossos inimigos sejam (i) dizimados, (ii) eliminados e (iii) mortos. Apesar da justificativa histórica que situa a origem destas frases em momentos onde o antissemitismo era política de Estado em que os judeus viviam confinados em guetos, sem direitos e sob ameaça constante de pogroms, raptos e conversões forçadas, elas já não fazem sentido numa festa alegre do sécu-
lo XXI, quando os judeus não sofrem nem uma pequena fração do que já sofreram, além de contarem com o braço forte dos Estados democráticos para sua defesa.
Num certo ano a família expressou o sentimento a respeito destas frases problemáticas: “Não queremos que as crianças cresçam escutando isto, temos outros chaguim que focam nas tentativas de destruir os judeus. O que podemos fazer para preservar a memória familiar e ao mesmo tempo modificar a mensagem?”
A pergunta já implicava a resposta. Era preciso mudar o texto das frases. E o mesmo livrinho que trazia os Iêhi Ratson problemáticos parecia indicar a resposta.
Logo após o título “Iêhi Ratson para Rosh haShaná”, em letras grandes, há um parágrafo em letras pequenas (figura 3) que explica como realizar aquela cerimônia. Ele termina com uma frase que explica o uso dos trocadilhos: “O nome de cada petisco evidencia a essência do pedido”.
Então não bastava modificar as frases, era necessário manter os trocadilhos, para propiciar a conversa a respeito de cada frase. Minha filha – professora de Hebraico – e eu nos lançamos à tarefa de ressignificar as três frases problemáticas, alinhando-as aos anseios que expressamos no ano novo, mas mantendo a palavra-chave em hebraico de cada uma delas.

E o nosso “Míni-Seder” para Rosh haShaná ficou assim:
Começamos com a maçã com mel. Este passo não consta do livro com o minhag italiano, mas resolvemos introduzi-lo por ser este o símbolo de Rosh haShaná usado em todo o mundo. Recitamos a benção “borê pri haaets” (usada quando se come algo que cresce em árvores) antes de molhar a maçã no mel.
Em seguida vem o figo, o primeiro passo do ritual italiano, que tal como a maçã com mel simboliza a doçura que queremos para o novo ano. O texto do Iêhi Ratson diz:
Que seja Tua vontade, Adonai nosso Deus e Deus de nossos antepassados, que seja renovado um ano bom e doce, desde o seu início até o seu final.
Curiosamente esta é a fórmula tradicional ashkenazi para a maçã com mel. Claro que tanto o costume com o figo quanto o com a maçã com mel remetem à doçura, então não há desvio de finalidade na diversidade da simbologia. Há mais uma curiosidade neste item. O texto italiano traz o verbo “renovar” na forma reflexiva do hebraico (titchadesh). Já em outros minhaguim o verbo está no imperativo (techadesh). Talvez isto reflita uma sutil diferença de visão a respeito do nosso papel diante do Eterno.
A forma reflexiva é aquela onde a ação executada pelo sujeito é refletida nele mesmo. O agente executa e sofre a ação. Ou seja, no minhag italiano pedimos que o Eterno nos dê forças para que sejamos capazes de nos renovar. Nos outros minhaguim, pedimos para que o Eterno assuma a responsabilidade de renovar. Julgamos que a fórmula italiana reflete melhor nossa visão do divino.
O próximo passo é a abóbora e não mudamos nada neste texto que é positivo: ele pede que nossos méritos prevaleçam (literalmente: “Que eles chamem a atenção do Eterno”) diante das adversidades. O ritual promove a abó-
Figura 2. Folha de capa da Agadá de Pessach de Angelo Forli, na qual ele anotou que o livro foi impresso em Veneza no ano 1740.
Figura 3. Página do livro onde inicia o “Iêhi Ratson” de Rosh haShaná.

bora neste passo porque em hebraico há um tipo de abóbora, denominado “kará”, que tem sonoridade similar à conjugação do verbo “chamar” no texto – “ikrehú”.
Partimos em seguida para o funcho (ou erva-doce) e aqui também não mudamos o texto. Ele pede para que nossos méritos se multipliquem, o que é um pedido bonito. O livro italiano diz que funcho (“finocchio” em italiano) em hebraico é “rubiá”, que tem as mesmas letras de “irbú” (crescer, multiplicar). O curioso é que em hebraico moderno “rubiá” é uma espécie de vagem comprida e em alguns livros (inclusive no folheto da Morashá) se usa feijão fradinho. Vejam que até agora não mudamos nada, continuamos usando as antigas fórmulas italianas. Apenas reforçamos o anseio de doçura com a maçã com mel. Mas a partir daqui a coisa muda!
O quinto passo do ritual italiano é o alho-poró (“kreshá” em hebraico) e o pedido do Iêhi Ratson italiano é dramático: “Que sejam dizimados os que nos querem mal”3, no qual o verbo hebraico utilizado é “lekaret” (literalmente “cortar” e que tem a mesma raiz que “karet” a palavra para a condenação à morte). Quebramos a cabeça para mudar esse texto. Como fa-

zer uma frase positiva e de significado semelhante com o verbo “cortar” ou com a pena capital?
Achamos a solução numa expressão da Torá, na qual “fazer um acordo” é expresso como “cortar um acordo”4 , no sentido de que cada parte de um acordo corta um pouco de suas demandas em favor da harmonia entre as partes. Então nosso Iêhi Ratson ficou assim: “Que possamos fazer acordos para a paz”, ou seja, um pedido que advoga pelo fim da inimizade através do entendimento e da harmonia.
Superamos o primeiro obstáculo! Mas ainda faltavam dois. O sexto passo é a beterraba ou a acelga (respectivamente selek e selek alim5) e o pedido do Iêhi Ratson é: “Que os que nos querem mal sejam eliminados”, no qual o verbo hebraico utilizado é “leistalek” (literalmente “desaparecer”).
Aqui nós apenas suavizamos a frase. Trocamos “os que nos querem mal” por “aflições” e ficamos com uma fórmula mais branda: “Que nossas aflições se dissipem”.
O sétimo e último passo problemático é a tâmara. As letras da palavra para esta deliciosa e muito doce fruta (tamar) combinam com o verbo hebraico “leiatem”, que significa literalmente “tornar alguém órfão”6 (ou seja, matar a mãe e/ou o pai da pessoa) e o pedido do Iêhi Ratson é direto: “Que os que nos querem mal sejam mortos”. Mais uma vez resolvemos esta frase com a ajuda do Tanach.
O salmo 92 usa uma metáfora na qual os troncos retos da tamareira são comparados à atitude moral dos justos. Quem frequenta o Kabalat Shabat não terá dificuldade em reconhecer a frase “Tsadik katamar ifrach”, “Os justos florescem como as tamareiras”, visto que o cantar do salmo 92 é uma das partes mais bonitas de nossa liturgia.
Então, associando esta mesma metáfora com o principal anseio de todas as mães e pais do universo, a frase do Iêhi Ratson ficou assim: “Que nossos filhos cresçam retos como a tamareira”. Que é, sem dúvida, a melhor forma de derrotar o nosso maior inimigo – o afastamento dos parâmetros morais do judaísmo.
Não modificamos os dois últimos passos. Tanto a romã, que pede para que tenhamos tantos méritos quanto as sementes da romã, e a cabeça de peixe, que pede para que nos multipliquemos como os peixes e que sejamos cabeça e não cauda, passaram incólumes pelo olhar crítico da minha família.
Assim, utilizando expressões mais adequadas aos nossos sentimentos, mantivemos a beleza, a alegria e os fundamentos do ritual antigo. Prestamos a devida homenagem às antigas gerações que nos legaram seus rituais e seus livros, ao mesmo tempo em que transmitimos uma cerimônia significativa para as gerações futuras.
Uma cerimônia que manteve os significados do formato original, porém adequando-os ao nosso momento.
Num pequeno microcosmo familiar fizemos o que o movimento reformista se esforça para propiciar a todo o povo judeu:
Raízes e asas. Asas para voar no presente em direção ao futuro sem abandonar as raízes do passado.
Shaná Tová!
Raul Cesar Gottlieb é engenheiro, diretor da revista Devarim, chair person da União do Judaísmo Reformista para a América Latina e presidente do Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista.
Notas
1 Lê-se min-ha-guim, separando o “n” do “h”. Singular “minhag”: min-hag. 2 Este dito advoga por direitos cívicos iguais aos judeus e não, como dizem alguns detratores, incentiva a sua assimilação. 3 Literalmente “os inimigos, os que nos odeiam e os que pedem pelo nosso mal”.
Abreviamos este trecho para “os que nos querem mal” para não tornar o texto deste artigo muito pesado. 4 Em inglês se usa a expressão “to cut a deal”, que usa a mesma figura de expressão que o hebraico. 5 A acelga e a beterraba são plantas da mesma espécie: “Beta vulgaris”. 6 Uma curiosidade para os que frequentam sinagogas: o “Kadish Iatom”, que é normalmente traduzido como “Kadish dos Enlutados” significa literalmente “Kadish dos Órfãos”.
