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Rituais em famílias judias com laços por adoção – Gizele Bakman
RITUAIS EM FAMÍLIAS JUDIAS COM LAÇOS POR ADOÇÃO
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Gizele Bakman
Como muitos de nós sabemos através de nossas vidas, o judaísmo é um intrincado mundo no qual identidade, religião, cultura e tradição se entrelaçam fortemente. A definição usual afirma que judeu é aquele que nasce de ventre judeu, mas não compreende toda a complexidade da experiência judaica. Tal definição é baseada numa lei religiosa, e é fortalecida pelo fato de que os laços por consanguinidade são valores significativos na sociedade ocidental que nos rodeia – uma herança que determina mais do que características fenotípicas ou genéticas, mas também espaços de pertencimento e de direitos.
A adoção, aceita pela lei religiosa judaica, exige que a criança cumpra determinados passos, semelhantes aos de uma pessoa que realiza a conversão. Digo semelhante porque, comumente realizada quando a criança é ainda pequena, sugere uma “confirmação” de sua parte, ao adentrar a maioridade religiosa, em dar continuidade a seu pertencimento. O que acontece, no meu entender, de forma similar a outros membros da comunidade que, a despeito de seu nascimento em ventre judeu, traçam seus caminhos seguindo suas escolhas pessoais e perfazem, ou não, uma trajetória judaica, através da inserção religiosa, cultural, social e/ou familiar.
Entre os anos de 2015 e 2019, realizei meu Doutorado em Psicologia Social na UERJ, sob a orientação da Profa. Dra. Anna Paula Uziel. Na pesquisa Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção (Bakman, 2019), entrevistei avós judeus, com netos por adoção, na intenção de discu-
tir o que tornam as pessoas família e compreender como se formam os laços quando não há consanguinidade em jogo. Escolhi entrevistar avós, por não serem eles os que decidem por ter netos, muito menos netos por adoção. E me enveredei pelo judaísmo justamente pela importância dada aos laços de sangue.
Tive o privilégio de entrevistar dez famílias, sendo dez avós e três avôs, com idades entre 69 e 80 anos, com netos por adoção entre quatro e 45 anos.1 Nove dessas famílias têm outros netos além dos por adoção e todas pertencem às camadas médias do Rio de Janeiro. Agradeço-os imensamente por estes encontros, e às suas famílias, por me receberem em suas casas e me permitirem adentrar em suas vidas.
Ao pesquisar com famílias judias, minha intenção não era promover uma discussão religiosa ou identitária, mas, através delas, acionar importantes forças que se entrelaçam na formação de nossa sociedade e nas relações familiares, como: sangue, cultura, herança, pertencimento, identidade, comunidade e convivência.
Na maioria das famílias entrevistadas, a adoção foi alternativa à infertilidade, como é comum neste campo. As dinâmicas dos pais por adoção nestas famílias eram variadas, refletindo também a realidade das varas de família e da abrangência da lei brasileira (2009): mães que adotaram sozinhas, casal homoparental e casais heteroparentais. As famílias são compostas por filho único, por adoção, com filho biológico nascido após a adoção, com filhos maiores de outro casamento de um dos cônjuges.
A possibilidade de ver o filho/filha realizar seu projeto de parentalidade é o motivo que torna a adoção bem recebida pelos avós: constituir uma família com filhos é o valor que fica acima da imposição ou desejo de que sejam gerados biologicamente, apontando para a importância da continuidade e da formação das famílias.
Nas entrevistas, conversamos sobre as histórias familiares, a vida em família e a inserção comunitária. A importância de falar do passado, contar sobre as vidas de seus próprios pais e avós foi um dos pontos marcantes. Ao enfatizar a importância do seu passado, os avós indicam que é possível construir uma gênese familiar com os netos por adoção, no qual a descontinuidade sanguínea não implica
uma ruptura, mas cria um novo diagrama de forças.
A transmissão de bens simbólicos às gerações seguintes situa a família como o lugar dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e ao mesmo tempo o veículo da preservação dos valores familiares. (Barros, 1989, p. 36).
Quanto à questão de os netos por adoção serem considerados pelos avós judeus, a maior parte dos entrevistados mostrou surpresa diante do meu questionamento. Apesar do pouco sentido para eles da minha pergunta, responderam, em sua maioria, de forma afirmativa. Buscaram respostas para demonstrar a certeza de que seus netos eram judeus – não era algo que sabiam, mas que sentiam a respeito de seus netos, como mostram os diálogos abaixo:
Gizele: A senhora alguma vez pensou que a Maria não era judia?
Sarah: Não, de jeito nenhum. Acho que a educação, né? O papel da gente (...). Acho que a parte educacional que é a mais importante, né? (...). Ela foi educada dentro da comunidade judaica.
Gizele: Como você vê assim: eles são judeus? Como você considera o judaísmo deles?
Miriam: Completamente. É impressionante porque eles vieram sem nada. (...). E a primeira vez que nós fomos para ambas, isso até me chamou atenção. (...). Quando saímos da igreja, Noé falou “poxa, que diferença!”, e olha que ele estava conosco há dois meses. “Eu sou judeu e notei que na sinagoga não tem uma imagem, não tem estátua, não tem nada. E os católicos estão cheios de estátuas, e tem um homem que está sofrendo e sangrando e não sei o quê.”
Gizele: Para a senhora ele é judeu?
Malka: É
Gizele: Por quê?
Malka: Porque ele fez a circuncisão, ele fez o Bar Mitsva, eu enxergo ele como judeu. E enxergo ele com todo amor, com todo carinho, e ele foi criado com dois judeus. Ele compõe toda a família judia. Ao receber a criança, a Gizele: E o que a senhora pensa sobre a família tem o desejo de Carolina, assim, a Carolina é judia? incorporá-la à sua história Rebeca: (...) a Carolina (...) tem paixão pelo judaísmo. Ela conhece o judaísmo. Ese aos seus costumes. tudou história judaica. Ela fala com qualPara os pais adotivos, as quer adulto que entenda. Ela sabe muito crianças, ao se tornarem mais do que eu. Ela me dá aulas. Ela ama, seus filhos, tornam-se judeus como eles, pois são ela ama ser judia. É uma coisa assim fora do comum. parte de si, mesmo que Gizele: E você considera o Hugo judeu? não seja confirmado pela Luna: Olha, ainda não. Ele fez o Brit lei religiosa mais restrita. Milá. Ela (a mãe) fez questão. (...). Gizele: Mas teve algum apoio de alguma sinagoga? Alguma coisa? Não? Luna: Não, ela não dá a menor bola para isso, e nós também não. Gizele: Mas quis circuncisar? Luna: Ah, sim, quis. (...) Gizele: Quer dizer ela queria, ela quer que ele seja judeu? Luna: Quer, quer (...). Gizele: E você disse para mim que ainda não é judeu? Por quê? Luna: Não, não sei, não porquê.... nunca tinha pensado nisso. Gizele: Você acha que o Hugo é judeu? Vicente: Com certeza. Luna: Que bonitinho! (Rindo) Vicente: Eita! Não tenho a menor dúvida! (rindo)(...) Gizele: Por quê? Vicente: Primeiro porque ele está na escola ídiche, então ele sabe o que que é isso e tudo; e ele se considera judeu, esse que é o negócio todo.
Com suas certezas, os avós apontam o que consideram importante: os laços construídos pelos afetos, a convivência marcada pela transmissão de valores, o acesso ao patrimônio judaico, um pertencimento à família e um consequente enquadramento ao judaísmo. Os netos por adoção, em quase sua totalidade, realizaram cerimônias religiosas, mesmo quando a família não se encontrava ligada ao judaísmo praticante.
Sophie Nizard, pesquisadora francesa, realizou, na França e em Israel, uma ampla pesquisa sobre adoção, en-
trevistando pais judeus, representantes religiosos e agências governamentais. Apesar de suas pesquisas não serem realizadas no Brasil, e as comunidades judaicas possuírem características diversas em cada país ou cidade que se encontram, suas reflexões foram um alento para compreender esta parte da minha pesquisa.
Na pesquisa de Nizard (2011a), a maioria dos pais por adoção segue os passos da conversão dos filhos, mesmo os que consideravam que não tem muito de judaísmo em suas vidas, mas desejam ser reconhecidos, juntamente com seus filhos, como judeus. Assim, segundo ela, a conversão (Nizard, 2004), originalmente um ato religioso, se torna uma forma de reforçar a adoção, ligando a criança a um passado e construindo uma segurança para seu futuro. Os legados que os avós “Quando os pais por adoção são judeus, querem deixar para seus as questões de integração ao seio da família filhos e netos estão são somadas à integração ao seio do grupo, do povo. A transmissão familiar se acomfortemente conectados panha, então, de uma transmissão de uma com o judaísmo: manter memória judaica. Mas como transmitir essa as tradições, fazer memória que não é do seu meio biológico? shabat ou comemorar os chaguim, garantir a Nomear, circuncisar, converter, recontar histórias da família, recitar os ritos de seu povo, fotografar e colocar em cena a imagem transmissão de valores da família, reforçando na casa da criança e éticos e morais, de ajuda nas casas dos parentes o sentimento de permútua e respeito. tencimento a uma família por adoção e ao povo judeu.” (Nizard, 2011a, p.83)2 . A autora (Nizard, 2011b) compreende que a entrada da criança na memória da família por adoção é um ponto fundamental: que, ao receber a criança, a família tem o desejo de incorporá-la à sua história e aos seus costumes.

No seu entender, para os pais adotivos, as crianças, ao se tornarem seus filhos, tornam-se judeus como eles, pois são parte de si, mesmo que não seja confirmado pela lei religiosa mais restrita (Nizard, 2017), que detém mais exigências sobre a forma de ser judeu. De forma semelhante foi o que os avós da minha pesquisa me afirmaram: se são parte de suas famílias, são judeus.
Há três famílias na pesquisa que se destacaram das demais nesse aspecto de compreender o neto adotado como judeu: uma em que a adoção era recente, o neto já adolescente e praticante de outra religião, mas há um desejo de que ele conheça as raízes familiares judaicas para poder “fazer parte”, mesmo que isto não signifique abraçar a religião. Numa segunda família, o avô acredita que o neto não é judeu porque teve dificuldades na inserção comunitária, foi discriminado pela cor de sua pele, mas é através dos encontros do shabat que toda a família se reúne e que os laços são tecidos entre seus membros. E numa terceira família, o avô não considera o neto judeu, pois seu filho é casado com uma não judia, é afastado da comunidade e, de alguma forma, segundo ele, também não é mais judeu, então como seu neto seria? Mas como é comum certa tensão e paradoxo no que tange à identidade judaica, me relata com orgulho, em um outro momento da conversa, que este filho mantém a tradição de fazer um “completo e perfeito” Seder de Pessach em sua casa. Assim, mesmo nestas situações, a vida do neto e da família se entrelaça com o judaísmo.
A maior parte dos avós desconheciam as leis religiosas a respeito da adoção porque não era com isto que se importavam. O que estava em jogo era ver seus filhos tornarem-se pais/mães, concretizarem o projeto de formar suas próprias famílias, tornarem-se avó/avô, continuar o percurso de suas histórias.
Então, o que significam as cerimônias religiosas nestas famílias? Como em muitas outras famílias, compreen-

do que significam continuidade e pertencimento. Seja por tradição ou religião, seja por costume ou norma, por celebração ou imposição, as cerimônias são laços que unem e fortalecem. Para Borowitz (1986, p. 52), os rituais “(...) são ‘poemas’ religiosos que escrevemos com atos, e não com palavras”, são a maneira como os seres humanos marcam muitos de seus momentos importantes e que, para nós, judeus, nos mantêm conectados à nossa vida familiar e social. Pelo olhar dos avós, não são os rituais que tornam os netos judeus, mas por serem judeus devem passar pelos rituais, como os demais membros da família.
Os legados que os avós querem deixar para seus filhos e netos estão fortemente conectados com o judaísmo: manter as tradições, fazer shabat ou comemorar os chaguim, garantir a transmissão de valores éticos e morais, de ajuda mútua e respeito.
Assim, o judaísmo é, sem dúvida, um fio que adensa a experiência do ser família para meus entrevistados. É um valor que se entremeia na costura por meio de uma herança que vem, através dos anos, sendo cultivada, ampliada e transformada, que mantém a importância das histórias, das lembranças, dos costumes, que fortalecem o pertencimento. Promove encontros, gera proximidade.
Os avós mostraram-se fundamentais na montagem desta trama familiar porque são eles os responsáveis pelos encontros, pelas festas, geralmente em volta da mesa, pela continuidade das tradições, mas, especialmente, pela costura dos afetos. Eles são os guardiões das memórias, desfiando os fios que vêm se entremeando desde seus próprios avós, bisavós e, hoje, enlaçam filhos, netos e bisnetos.
Mas, a despeito de ter encontrado, na pesquisa, uma ideia uniforme do que é ser família, elas são sempre ver- Notas bo, ação, movimento. Não é possível, nem desejado, se 1 Para facilitar a leitura, mesmo que a maioria dos entrevistados tenha sido do sexo restringir ou prescrever um modelo estanque, duro, que feminino, usarei o masculino ao falar dos avós, e também dos netos, de forma gedeve ser seguido, e sim valorizar e compreender o que é nérica. Todos os nomes citados são fictícios. vivido por cada pessoa em seu grupo. Não há como to2 No original: “Quand le parents adoptifs sont juifs, les questions d’integration au sein de la famille se doublent de celle de l’integration au sein du groupe, du peuple. La talizar esta experiência numa única e simples definição. transmition familiale s’acopagne alors de la trasnmission d’une memorie juive. Mais Há sempre muitas famílias na palavra família. Na minha comment transmettre cette mémoire à um enfant qui n’est pas biologiquement le sien? Nommer, circoncire, convertir, raconter l’histoire de la famille, faire le récit de celle du pesquisa, para os avós judeus que vivem a experiência de peuple notamment à l’occasion des rites, photographier et mettre en scéne l’imagerie faadoção em suas vidas, os laços familiares são tecidos na miliale. Renforcent, chez l’enfant comme chez des preches, le sentiment de son apparteconvivência, no afeto e nos cuidados, embalados e refornance à la famille adoptive et au peuple juife”.
Os laços familiares são çados pelas tradições de nosso povo, nostecidos na convivência, sos costumes e valores, e não atrelados no afeto e nos cuidados, a aspectos biológicos. São muitos ingredientes, mas, por vezes, pode se resumir embalados e reforçados a um cheiro gostoso, com sons e vozes pelas tradições de nosso conhecidas, envoltos em melodias antipovo, nossos costumes e gas, regado por memórias novas, vividas valores, e não atrelados a aspectos biológicos. ou ainda por inventar. São um brinde à vida e à sua continuidade. Le chaim! Gizele Bakman é psicóloga, Doutora em Psicologia Social com trabalho clínico com crianças, adolescentes, adultos, casais e famílias sob a perspectiva da Abordagem Sistêmica. Contato: gizele.bakman@gmail.com
Bibliografia
Bakman, Gizele. Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção. 2019. 174 f. Tese (Doutorado em Psicologia social) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019. CDU 316.6 Brasil. Nova lei da adoção. Lei n° 12.010, de 3 de agosto de 2009. Brasília: DF, Congresso Nacional, 2009. Barros, Myriam Moraes Lins de. “Memória e Família”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. J, p. 29-42, 1989. Borowitz, Eugene B. Compreendendo o judaísmo. São Paulo: Congregação Israelita Paulista, 1986. Nizard, Sophie. «La conversion des enfants adoptés au milieu juif. Quels enjeux?» Diasporas, n. 3, p. 114-130, jan. 2004. _____. «Les pères juifs adoptifs sont-ils des mères juives?» Revue Plurielles, n. 15, 2010. _____. «Histoires juives d’adoption». Les Cahiers du judaïsme, n. 33, p. 82-90, 2011a. _____. «Adopter et transmettre en milieu juif». In: Gross, Martine; Mathieu, Séverine; Nizard, Sophie. Sacrées familles! Changements familiaux, changements religiex. Èditions Éres, 2011b. pp. 179-191. _____. “Applying for adoption: how are jewish families perceived? Gender, Families and Transmission in the Contemporary Jewish Context”. Cambridge Scholars Publishing, p. 113-123, 2017.

