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Schechtman
MEMÓRIAS DA INFÂNCIA NA BESSARÁBIA E NO RIO DE JANEIRO
Alfredo Schechtman
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Meu avô paterno imigrou para o Brasil na segunda metade da década de 1910, ainda rapaz bem jovem, fugindo da pobreza e dos sucessivos pogroms, em busca de oportunidades em um contexto menos opressivo do que o da Europa Oriental.
Ele veio da Bessarábia (então romena, numa região em que as fronteiras se deslocavam constantemente); mais tarde, já razoavelmente estabelecido em terras tropicais, primogênito de uma prole numerosa, conseguiu trazer a maior parte da sua família, entre seus irmãos e irmãs.
Ainda em meados dos anos 1920, percorrendo por uma única vez o caminho inverso, retornou à cidade natal para casar e voltar com minha então muito jovem avó; talvez fosse um casamento arranjado entre as famílias, como era de costume, mas disso não tenho certeza.
Nos anos de 1930, já em plena ascensão do nazismo alemão e seus tentáculos pelo território europeu, ele e os irmãos conseguiram trazer para cá o patriarca da família, em idade avançada, mas essa iniciativa foi malograda pela dificuldade absoluta que o pai encontrou em adaptar-se e experimentar novos ares àquela altura da vida, levando-o a retornar para um previsível desenlace dramático. Para imigrantes judeus daquela época, egressos de um contexto de permanentes manifestações explícitas de antissemitismo, a chegada em novas terras americanas era percebida como promissora e potencialmente livre da pesada carga europeia.
No começo da jornada de meu avô por estas terras, quando ele aqui chegou, e como era frequente, ele foi recepcionado por um primo que o precedera e o albergou inicialmente, assim como lhe apontou a possibilidade do trabalho como prestamista de porta em porta. Como não falava o idioma local, nos primeiros tempos meu avô ateve-se a circular pela vizinhança imediata de sua moradia para tentar vender seus produtos, chegando a levantar suspeitas na vizinhança de que se tratasse de um olheiro para algum amigo do alheio, segundo conta a lenda familiar.
No seu novo país, como era uma pessoa bastante comunicativa, fazia-se entender por todos, ainda que sem dominar por completo a língua portuguesa nos mais de cinquenta anos em que aqui viveu. Já minha avó era seu oposto, com facilidade e fluência em vários idiomas.
Um fato da biografia de meus avós que sempre me pareceu quase inacreditável foi a ida deles para o interior de Minas Gerais, mal chegados ao Brasil, não sei como conse-
Meu avô não era um guiam se comunicar e ganhar a vida. Foi homem estritamente a perspectiva do nascimento do primeireligioso, mas muito ro filho (meu pai) que os trouxe de volta ao Rio, pela necessidade que sentiram afeito à cultura judaica de ter um ambiente judaico aonde criar em seu sentido mais a nova família. amplo. Em sua casa, Meu avô não era um homem estritao ídiche era a língua cotidiana predominante. mente religioso, mas muito afeito à cultura judaica em seu sentido mais amplo. Em sua casa, o ídiche era a língua cotidiana predominante. Aquela geração nos transmitia uma vontade de encarar os desafios que se apresentassem, valorizando os laços de amizade e a participação comunitária. Essa herança nos foi legada. Meus avós frequentavam o círculo local de escritores judeus (mais que escritores, eram leitores vorazes). Lembro-me de ser motivo de humor familiar a presença de uns banquinhos de madeira de três pernas que meu avô havia comprado para receber os amigos desse grupo de escritores, todos já em idade avançada para uso dessa peça de mobiliário de precário equilíbrio e grande desconforto. Sei também que durante um bom período o grande

debate do grupo foi sobre qual dos dois irmãos Singer era melhor escritor; sempre saía vencedor Israel, e não Isaac (este ainda não era um Nobel).
Quando criança, meu avô me contava, que fora enviado pela família muito pobre para estudar em outro shtetl, na verdade uma aldeia pouco maior que a sua, frequentando o cheder (escola judaica) e, em seguida, o seminário rabínico (yeshivá); comia cada dia em uma casa diferente da comunidade, recurso comunal que permitia aos jovens prosseguir seus estudos. A mim causava forte impressão sua evocação do trajeto percorrido entre estas cidadezinhas, com a presença constante da neve e de lobos das estepes de sua infância.
A casa de meus avós era o ponto de encontro de nossa família nas sextas-feiras à noite, nossos shabats, quando junto com tios e primos nos reuníamos para jantar e passar parte da noite juntos; nós, crianças, costumávamos encenar alguns pequenos esquetes cômicos de nossa própria lavra.
Como o mais velho dos seus sete netos, desfrutei mais tempo da sua convivência; íamos muitas vezes fazer a feira aos domingos, comprar legumes e frutas. Chegando em casa, meu avô comia uma cebola crua inteira, hábito adquirido após sua primeira e inolvidável visita ao novo estado de Israel. Viagem aquela que durou três meses, de navio, com despedida e acolhida por todos da família no cais do porto da Praça Mauá.
Ele nunca teve muitas habilidades práticas para ganhar a vida, cheio de planos mirabolantes e pouco retorno prático; iniciou vários negócios que produziram poucos frutos. O mais incrível foi a fabulosa compra de uma fábrica de geladeiras tradicionais (caixas de madeira com serragem onde eram colocadas barras de gelo para o resfriamento), um negócio potencialmente da China, se não coincidisse com o início da produção industrial de geladeiras elétricas. Não que não trabalhasse sempre, mas quem provia o sustento com maior regularidade era minha avó, como professora de Hebraico em escolas judaicas do Rio de Janeiro.
O que permanece, tantos anos depois, é a forte sensação de que meu avô e eu passeamos juntos nossa infância, seja nas longínquas estepes da Bessarábia, seja nas excursões cariocas aos domingos.
Alfredo Schechtman é médico e escritor, mestre em Medicina Social, servidor aposentado do Ministério da Saúde. Componente da equipe da Coordenação de Saúde Mental do MS, participou do processo de implantação da reforma psiquiátrica no SUS, de 1990 a 2010. Texto elaborado a partir do curso Figurações da Família na Literatura Brasileira do Século XX, ministrado em 2020 pela professora Belinda Mandelbaum, do Instituto de Psicologia da USP, no Instituto de Estudos Avançados da USP.