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Três irmãs, um desafio – Andrea Kulikovsky

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Em Poucas Palavras

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TRÊS IRMÃS, UM DESAFIO

Hoje, as três irmãs são gloriosas octogenárias, cada uma protagonista de sua própria história, colhendo frutos de suas iniciativas, de seus esforços, de seus trabalhos.

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Andrea Kulikovsky

Três comunidades irmãs nasceram e cresceram interligadas. Sua missão era trazer ao Brasil o ambiente cultural, intelectual, social e religioso vivenciado na Alemanha por seus fundadores. Todas nascidas de projetos sociais de beneficência e amparo aos imigrantes, acabaram por se desenvolver e se tornar ícones da intelectualidade e do judaísmo liberal alemão em terras brasileiras. Durante décadas estas três irmãs colaboraram entre si, construíram projetos de juventude, cultura e religião juntas, e assumiram diante da comunidade judaica brasileira como um todo a função de serem as precursoras de questionamentos e mudanças no judaísmo brasileiro, e da comunidade judaica na sociedade brasileira.

Hoje, afastadas, sofrem, cada uma a sua maneira, a falta das irmãs. O potencial de construção conjunta e fortalecimento mútuo, comprovado pela história, pode e deve ser retomado, baseado na responsabilidade de pioneirismo que estas comunidades de origem germânica assumiram para si mesmas nos primórdios de suas histórias.

SIBRA – Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência1

Irmã mais velha, fundada em 29 de agosto de 1936, nasceu tradicionalista, quase ortodoxa. Contava com uma mescla de alemães imigrados do campo e alemães imigrados da cidade, o que já garantia uma kehilá (congregação) diversa desde seu início. Como aconteceu com suas irmãs, suas primeiras ativi-

Ensaio de coro na sinagoga da SIBRA, em Porto Alegre.

dades foram de apoio aos imigrantes alemães, o que acontecia na casa de um de seus fundadores. Serviços religiosos começaram a ser celebrados, e rapidamente se estabelecia o centro de convivência, beneficência e religiosidade que gerou a SIBRA.

No início, dado o perfil tradicionalista da comunidade, além de mulheres e homens estarem separados para os serviços religiosos, não havia órgão ou coro litúrgico misto. O sidurim eram em hebraico, trazidos por membros da comunidade desde a Europa. A primeira Torá chegou antes do estabelecimento formal da comunidade, e a Comissão de Damas foi estabelecida um ano após a fundação da comunidade, apesar de um de seus fundadores ser uma mulher, Dra. Nina Caro, ativista importante, que foi também a primeira conselheira da SIBRA.

Estabelecer um cemitério é uma das primeiras prioridades para uma nova comunidade judaica. No caso da SIBRA, estabelecer uma Chevra Kadisha era um passo importante, conquistado em 1940.

Educação e juventude foram pilares essenciais desde o início da SIBRA, mas somente em 1955 foi estabelecido formalmente o departamento de juventude, chamado SIBRA Juvenil. Também foi em 1955 que foi celebrado o primeiro Bat Mitsvá na SIBRA, um marco de pioneirismo, que levou a diversas mudanças posteriores, como o estabelecimento do coro composto por homens e mulheres, em 1971; a adoção do órgão para os serviços religiosos em 1974, e finalmente a adoção de sidurim com tradução e transliteração, e o final da segregação por gênero nos assentos da sinagoga em 1980.

CIP – Congregação Israelita Paulista2

Poucos meses após a fundação da SIBRA, um grupo de ativistas paulistas, liderados pelo rabino Prof. Dr. Fritz Pinkuss fundou oficialmente a CIP em 4 de outubro de 1936. Da mesma forma que sua irmã mais velha, a CIP se originou do trabalho beneficente dos judeus alemães pau-

listas, que havia criado a CARIA – Comissão de Assistência aos Refugiados Israelitas da Alemanha ‒, junto com a Sociedade Israelita Paulista – SIP ‒, fundada por jovens imigrantes alemães, preocupados em criar um ambiente cultural e intelectual para outros jovens imigrantes alemães. Assim como a irmã gaúcha, a CIP desde o início se coloca como objetivos a religião, a assistência social e a cultura, adicionando em seus estatutos ensino religioso e juventude. Nasce já movida pela ideologia Liberal Alemã e com um rabino como fundador e guia para a comunidade, características bastante diferentes da gaúcha SIBRA, que viriam a ser importantes no desenvolvimento da CIP enquanto comunidade.

Se, por um lado, a Chevra Kadisha foi criada no mesmo ano da fundação da CIP, a Comissão de Damas foi estabelecida ainda antes da fundação formal da CIP, em 1936, tendo sido uma das maiores forças motoras para o trabalho beneficente desde os princípios desta comunida-

Assim como a irmã de. O mesmo pioneirismo é visto com regaúcha, a CIP desde o lação à educação, cujo departamento foi início se coloca como oficialmente estabelecido na fundação da CIP, e juventude, com a criação do moviobjetivos a religião, a mento escoteiro que originou a Avanhanassistência social e a dava, em 1938, e a primeira colônia de fécultura, adicionando em rias em 1940. seus estatutos ensino religioso e juventude. No campo religioso, a CIP também mostrou desde cedo sua ligação com o movimento Liberal Alemão, através da adoção do órgão e do coro litúrgico misto desde sua fundação. A adoção de sidurim com traduções livres das rezas em hebraico para o português aconteceu em 1947, um dos projetos conjuntos da CIP com sua irmã carioca, a ARI.

ARI ‒ Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro3

“A história da ARI remonta a meados dos anos de 1930, com a chegada dos primeiros refugiados judeus oriundos da Alemanha ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Eles são

Lar das Crianças da Congregação Israelita Paulista, década de 1950.

assistidos e albergados por um grupo de emigrantes de várias origens já estabelecidos no Brasil, na velha sede do Relief-Sociedade Beneficente Israelita”.4 A partir das reuniões do grupo de imigrantes alemães que foram ao Rio de Janeiro nasce a célula beneficente que dará origem à ARI.

Em 1940 chega ao Rio de Janeiro o rabino Dr. Henrique Lemle, com sua esposa, Margot, e seu filho, Alfred, enviados pela World Union for Progressive Judaism (WUPJ) para colaborar na formação de uma comunidade religiosa de cunho liberal, por pedido do rabino Pinkuss, de São Paulo. Vinham, com o apoio de Lady Lilly Montagu, presidente da WUPJ em Londres, que o resgatara do campo de concentração de Buchenwald.

A fundação oficial da ARI aconteceu em 13 de janeiro de 1942, com objetivos similares aos de suas irmãs, mas com uma ideologia desde o princípio alinhada com a da WUPJ. Assim, havia coro, mas homens e mulheres sentavam-se separados. A comissão de mulheres, assim como na sua irmã paulista, foi estabelecida ainda antes da sua fundação, como pilar básico dos trabalhos beneficentes que norteiam os trabalhos voluntários da ARI até os dias de hoje. O órgão, marca registrada da musicalidade da ARI até hoje, foi inaugurado na nova sede em novembro de 1962.

A irmã carioca foi a mais vanguardista desde cedo. Celebrou a primeira cerimônia de Bat Mitsvá em 1946, antes de suas irmãs, e contratou a primeira rabina em 2003, quando a CIP contratou somente em 2014 e a SIBRA ainda não chegou a este momento, apesar de ter uma Baalat Tefilá (mulher líder de reza) desde 1998. Também foi a ARI, em 1989, a primeira a decidir oficialmente pelo igualitarismo entre homens e mulheres em termos religiosos, quando também foi decidido que homens e mulheres se sentariam juntos na sinagoga. Outro projeto de absoluta vanguarda foi o Kindergarten ARI, escola para crianças pequenas, fundada em 1955.

Liturgia – o primeiro grande projeto

Por incentivo de Lady Lilly Montagu, e por uma necessidade intelectual e ideológica percebidas em suas comunidades, os rabinos Pinkuss e Lemle assumiram a empreitada conjunta de fazer um sidur e um machzor em hebraico e português, com traduções livres que refletissem o ideal Liberal Alemão, e com a inserção somente das rezas que seriam utilizadas pelas comunidades. De acordo com a Revista ARI 70, o machzor conjunto foi lançado em 1949: “No Boletim de 15 de outubro de 1949 foi noticiado o lançamento, com coquetel e presença de membros expoentes da ARI, da CIP e da comunidade carioca, do novo machzor, uma edição conjunta da CIP e da ARI. Na ocasião, o rabino declarou: ‘Aqui na ARI reina um ambiente familiar e cordial que nos lembra das nossas

Os rabinos Pinkuss e antigas comunidades europeias’”.

Lemle assumiram a empreitada conjunta Já em relação ao sidur, conforme mencionado no livro Desafio e Resposta, ao falar da decisão da CIP em manter a linha de fazer um sidur e um liberal, “o rabino [Pinkuss] foi muito femachzor em hebraico e liz e hábil na seleção das preces, mantenportuguês, com traduções do as que eram mais valiosas. Neste períolivres que refletissem o ideal Liberal Alemão, do, já se anuncia para os anos seguintes a edição de livros de oração no vernáculo, cujo preparo vem sendo cuidado por ele, e com a inserção com a colaboração do Rabino Lemle, do somente das rezas Rio. Com sua efetiva publicação, cristalique seriam utilizadas zou-se um rito liberal próprio”. pelas comunidades. A redação da tradução do Aleinu elaborada para este sidur, em minha opinião, é uma das mais bonitas, refletindo perfeitamente o ideal Liberal Alemão, que não via o povo judeu como escolhido, nem separado das outras nações do mundo:

“Cumpre-nos pronunciar o louvor ao Senhor do mundo, a grandeza do Criador do universo. Foi Ele quem nos confiou seu sagrado serviço como missão Eterna”. Esta tradução é mantida no sidur da CIP até os dias de hoje.

Em contraste, o novo sidur de Cabalat Shabat da ARI, alinhado com a ideologia reformista atual de que devemos conhecer literalmente o que estamos falando em hebraico, traduz: “Devemos louvar ao Senhor de todas as coisas, e outorgar grandeza ao Criador do universo. Que não nos fez como os demais povos, e não nos dispôs como as famílias da Terra”.

Já em 1963, a ARI lança seu próprio sidur, buscando um material que facilitasse a participação ativa dos frequentadores do Shabat e “estabelecer o contato mais íntimo possível entre os fiéis e as belas tradições do Shabat”, conforme palavras do próprio rabino Dr. Henrique Lemle. O caráter progressivo e de intensa participação comunitária da ARI se mostrava com força nessa iniciativa.

Celebrando umas às outras

Algumas das grandes conquistas das sinagogas irmãs aconteceram por esforços conjuntos, outras por esforços dos congregantes, mas também houve apoio financeiro da Claims Conference, através da CENTRA – Associación de Comunidades y Organizaciones em America Latina. Fundada em Montevidéu, pretendia congregar todos os grupos de imigrantes judeus de fala alemã da América Latina. Assim, as comunidades da Argentina, do Chile, Uruguai e Brasil trabalharam juntas, se ajudaram e se celebraram.

Entre os momentos em que estas comunidades se celebraram estão as inaugurações de sedes próprias das diferentes comunidades, como relata o livro que conta a história da SIBRA, Em Terras Gaúchas: “A sagração da sinagoga decorreu de modo sumamente solene com os ritos religiosos adequados à ocasião... encontravam-se presentes os Rabinos Dr. Fritz Pinkuss, da CIP de São Paulo, e o Grão-Rabino Henrique Lemle, da ARI do Rio de Janeiro, além do representante da NCI, de Montevidéu, Dr. Hirschlaff”.

Os relatos se repetem nos livros de memórias das três irmãs, em diferentes ocasiões em que rabinos trabalharam juntos, se visitaram, se celebraram nas conquistas de suas comunidades.

Juventude como ponto de convergência

Desde sua fundação, as três irmãs demonstram sua intenção de serem pontos de convergência social, intelectual

e cultural para imigrantes alemães, característica bastante peculiar dos grupos urbanos que imigraram desde a Alemanha no início da guerra.

A CIP, especialmente, teve, entre seus grupos fundadores, um grupo juvenil, trazendo a preocupação fundante com a juventude desde seu primeiro estatuto. A irmã paulista não somente teve seu departamento da juventude estabelecido em sua fundação, mas também iniciou, um ano mais tarde, a primeira tnuá (movimento juvenil), afiliada ao movimento escoteiro do Brasil. Também a primeira colônia de férias da CIP foi logo de sua fundação, em 1940.

De acordo com o livro Em Terras Gaúchas, o primeiro Campo de Estudos da SIBRA aconteceu no verão de 1956, e “o monitor Roberto Mainrath, um jovem madrich de juventude da Associação Religiosa Israelita, ARI, do Rio de Janeiro, foi um dos primeiros convidados da SIBRA. Sua vinda visava demonstrar a organização e os métodos da educação informal, da formação do jovem pelo jovem numa comunidade judaica”.

A integração das juventudes das três irmãs se torna mais patente na criação da Chazit Hanoach Brazilait, como descreve a Revista ARI 70: No “seminário nacional em Campos do Jordão, com participantes de São Paulo, Rio de Janeiro (jovens da ARI), Rio Grande do Sul (jovens da Sibra), com o intuito de filiarem-se a um movimento juvenil sionista apartidário, das diversas comunidades de origem centro-europeia da América do Sul (Central). Já na Argentina, no Uruguai e Chile existia a ‘Jazit ha Noar’. Agora no Brasil, após longos e acalorados debates sobre sua filiação, simbologia, linha ideológica e modo de atuação, cria-se a Chazit Hanoar”.5

Relatos posteriores contam sobre a colaboração de jovens da CIP com a juventude da ARI, e outras colaborações entre as juventudes das três comunidades irmãs, provando que é possível manter a construção conjunta e a colaboração, de modo a fortalecer e criar novas iniciativas, que mantenham vivas e vibrantes as três comunidades.

A ARI foi a mais Um futuro conjunto vanguardista desde cedo.

Celebrou a primeira “A história exige que a sociedade assim como o indivíduo se esforcem por novas cerimônia de Bat Mitsvá compreensões e façam novas decisões.” em 1946 e contratou (Fritz Pinkuss) a primeira rabina em Hoje, as três irmãs são gloriosas oc2003. Também foi a ARI, em 1989, a primeira a togenárias, cada uma protagonista de sua própria história, colhendo frutos de suas iniciativas, de seus esforços, de seus trabadecidir oficialmente lhos. Três irmãs que no decorrer de suas pelo igualitarismo entre histórias já estiveram mais perto e mais homens e mulheres distantes, mas nunca mais foram tão parem termos religiosos, ceiras como no início de suas trajetórias. Três comunidades formadas por imiquando também foi grantes alemães, cujos objetivos eram cuidecidido que homens e dar uns dos outros, criar espaços de conmulheres se sentariam vivência e estudo, lugares onde queriam juntos na sinagoga. ver brilhar a cultura e a produção intelectual, sem, no entanto, deixar de criar espaços para crianças e jovens. Três irmãs que mudaram a história da comunidade judaica brasileira com seu pioneirismo, sem medo de serem a vanguarda do judaísmo em sua nova terra. O presente exige que estas três irmãs continuem a ocupar este espaço de produção intelectual, questionamento, posicionamento social, ativismo e beneficência. O judaísmo brasileiro, mais do que nunca, necessita da coragem destas irmãs. Para tanto, é preciso que as irmãs se deem as mãos novamente, trabalhem juntas e se fortaleçam, umas às outras, para seu próprio bem, e para o bem de nossa comunidade como um todo. Andrea Steuer Zago Kulikovsky é assistente de rabinato na ARI e aluna do Instituto Iberoamericano de Formación Rabínica Reformista. Foi diretora voluntária de educação e juventude da CIP por 10 anos.

Notas

1 Em Terras Gaúchas – A história da imigração judaico-alemã; Blumenthal, Gladis Wiener; Sibra. 2 Desafio e Resposta – A história da Congregação Israelita Paulista; Hirschberg, Alice Irene; CIP. 3 Revista ARI 70 Anos; Comissão ARI 70; ARI 4 Revista ARI 70 Anos. 5 “Jazit” e “Chazit” se referem à mesma palavra hebraica. A diferença na notação existe por conta da diferente forma de transliterar a letra hebraica “chet” em espanhol e em português.

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