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Como que em Voz Alta – Emanuel Corinaldi

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

COMO QUE EM VOZ ALTA

Junho de 1967 viu o mundo judeu passar, em poucos dias, da ansiedade mais grave à maior euforia. Hoje já se ouvem as vozes que, na sabedoria depois dos fatos, proclamam que ambas – a euforia e a ansiedade – foram desmesuradas. Emanuel Corinaldi

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9 de junho de 1981

Oartigo a seguir, de autoria do falecido Emanuel Corinaldi, foi escrito há mais de 40 anos, assinalando o que eram então 14 anos passados desde a Guerra dos Seis Dias. Ele registra as situações de ansiedade e euforia que, em Israel e na Diáspora, acompanharam aquela Guerra; e os sentimentos de medo e depressão que a subsequente Guerra do Yom Kipur trouxe à tona a despeito do desfecho vitorioso, e em contraste com a retórica de uma era de pretensa nova glória judaica que proliferou depois da campanha de 1967.

Embora os desenvolvimentos posteriores tenham desencadeado tendências totalmente inesperadas na vida pública israelense e no relacionamento com o mundo judeu, o artigo deixa margem a um requestionamento que não perdeu em atualidade na busca de uma imagem presente e autêntica desse binômio.

O artigo também nos dá uma dimensão, muitas vezes esquecida na distância de 40 anos de sua escrita, de que a não negociação árabe é um instrumento de chantagem; da inversão da culpa pela ocupação de 1967 provocada pela fadiga do mundo; da grande diferença entre os motivos para a aliá nos anos 1980 e 2020 e ‒ principalmente ‒ da enorme distância entre a realidade social e o governo de plantão que a administra.

O falecimento prematuro de Emanuel em 1995 poupou-lhe o choque do assassinato de Itschak Rabin e dos amargos conflitos internos com que Israel vem se defrontando desde então, com um progressivo solapar de sua estrutura democrática.

Emanuel Corinaldi (1935-1995) nasceu em Milão, Itália. Em 1939 a família emigrou para o Brasil, em consequência das leis raciais antissemitas do regime fascista.

Apesar de não ter adquirido qualquer título acadêmico, possuía uma cultura pluralista e multiforme, que ele punha a serviço de atividades variadas exercidas com talento exuberante: Teatro (Foi ator do Teatro Sérgio Cardoso/Nydia Licia em São Paulo); Jornalismo (no qual se distinguiu em especial como responsável no fim dos anos 1950 pelas transmissões para o Brasil da BBC de Londres, onde residiu por certo tempo); trabalho de divulgação e esclarecimento sionista (por exemplo, como adido à Embaixada de Israel em Roma para o esforço de liberação da aliá dos judeus da União Soviética); Presidente da Sede de Israel da Associação Dante Alighieri para promoção da língua e cultura italianas.

Chegou a Israel em 1963, residindo em Jerusalém até seu falecimento. Era irmão de Vittorio Corinaldi, conhecido dos leitores de Devarim. * * * De repente, me dei conta. Passaram 14 anos. 14 anos desde a Guerra dos Seis Dias. Que, para muitos, hoje parece tão remota como as lutas de Guilherme o Conquistador (quem?...).

E, no entanto, essa mesma distância de 14 anos, que para muitos dilui, apaga e justifica esquecer, essa mesma distância de 14 anos é o fator que convida a um novo debruçar sobre aqueles dias tão únicos.

Junho de 1967 viu o mundo judeu passar, em poucos dias, da ansiedade mais grave à maior euforia. Hoje já se ouvem as vozes que, na sabedoria depois dos fatos, proclamam que ambas – a euforia e a ansiedade – foram desmesuradas. Que o perigo das forças egípcias foi enormemente exagerado. Que a vitória militar não resolveu nada. Vozes que às vezes prosseguem a ladainha sapiente para recomendar a Israel sabe lá quais medidas de modéstia, contenção, flexibilidade – não tanto pelo valor dessas qualidades, mas mais pelo repetir, ainda que camuflado, de um velho sintoma da condição judaica no Galut: medo.

Não que vozes desse tipo não se ouçam também em Israel. O que então prova apenas que sintomas da condição judaica no Galut podem estar transplantados aqui também.

Porque a meu ver – e, enquanto não estiverem ao alcance do historiador todos os documentos relevantes (to-

Efraim Kishon, que de vez dos?! – alguma vez se poderá sobre algo em quando se aventura compilar todos os documentos?) ‒, não em pronunciamentos poderemos nos furtar a aceitar e compreender seja a ansiedade de então, anpolíticos tremendamente tes da Guerra dos Seis Dias, seja a euforia reacionários, terá talvez que se lhe seguiu. dito uma verdade ao Havia então uma sensação de isolaintitular um de seus escritos “Perdão mento completo, associada às indecisões da liderança governamental. Essa indecisão não chegou, a meu ver, a desandar no que vencemos”. pânico. Mas se abriu num nervosismo a todos os níveis; numa irrealidade que coloria tudo e se estendia a reações corriqueiras de todos os dias. Era difícil assimilar racionalmente que os paredões de concreto de Mamila não eram o sinal do fim do mundo, marcando o término não apenas do setor judeu da cidade, mas, quem sabe, o fim, o fim mesmo que precedia o abismo negro de uma confusão bíblica pré-criação – não, pois, claro, algumas centenas de metros adiante, passada a terra de ninguém (?!), estava o setor árabe da cidade! Era difícil assimilar racionalmente que subir ao Monte Tsion era estar debaixo do olhar nu da guarnição jordaniana, como o era passar por Abu Tor, como o era circular pela Estrada que leva a Tel Aviv. Quando se destampou, de repente, a válvula de segurança; quando soaram os primeiros tiros, com o cacarejar rouco das armas automáticas; quando, como que do nada, apareceram na Rehov Yafo os primeiros tanques de barulho enorme rangendo para as partes da Cidade Velha –, nesse instante tudo entrou em foco, ficou nítido e definitivo. Talvez ainda fora do alcance de uma compreensão racional, mas já não esfumado e sem contornos. Era, na violência, na ameaça de destruição e morte, a tradução tangível do requisito essencial da independência: agir e suportar as consequências. Depois, foi a euforia. Superman deslocado na mitologia contemporânea pelo Superjew. Todos, promovidos à categoria de heróis. Todos, descobrindo que ser judeu era coisa boa, de moda, admirada e invejada. E tudo passou a ser possível. O limite, deslocado para além do céu, muito além: bombasticismo, kitsch, mau gosto, aventurismo. Mas também o alívio que só entenderá quem, no singular ou no coletivo, passou pelos momentos longos e gélidos da solidão que isola – porque a vítima é algo como o leproso, do qual todos se afastam… no máximo pronunciando pias palavras de conforto…

14 anos ainda não são a medida do tempo que dá o recuo ideal para a análise histórica. Mas, ao lado disso, essa análise histórica não deve, inevitavelmente, fazer-se quando todos os protagonistas dos fatos já são poeira ou estátua em praça pública. É lícito estudar já agora o fenômeno, quando heróis e vilões ainda ocupam a cena ou dela saíram há pouco.

No caso em questão, o maior vilão descansa no seu Nirvana – qualquer que ele seja, variável de acordo com a opinião do observador. Os heróis principais, houve dois pelo menos, parecem ter desandado numa trajetória política discutível e discutida. Aquilo que permanece, a constante do problema, é a verdade sionista do Estado dos judeus, que não quer ser destruído pela intolerância. É a afirmação, tão incômoda hoje para alguns (tantos, demasiados…), que o disparo do primeiro tiro ou o lançar do primeiro jato em seu itinerário de surpresa e destruição foram atos justos e inevitáveis, porque reagiam frente a uma agressão calculada, metódica, já em curso, que tanto ameaçava a existência de Israel quanto colocava debaixo de chantagem o Ocidente – e quem sabe, também a máquina política e militar da URSS.

Efraim Kishon, que de vez em quando se aventura em pronunciamentos políticos tremendamente reacionários, terá talvez dito uma verdade ao intitular um de seus escritos “Perdão que vencemos”. A neurose da vitória passou da euforia sem limites para a autoflagelação masoquista. E o judeu – aquele que 14 anos atrás gritava que sua cabeça estava erguida – parece hoje achar mais conveniente um silêncio abafado, um mimetismo assustado, para não entornar o caldo, que, sem petróleo, nem caldo não haverá mais…

Talvez a distância de 14 anos permite algumas observações em tom quase definitivo, que serão, se quisermos, relativas, válidas historicamente apenas à espera da confirmação final, aquela que darão ou negarão todos os documentos. Observações “definitivas”, então, no relativo de uma perspectiva que pode se alterar, mas que neste momento dado parece bastante completa e pode ser vista do seguinte modo: 1. Como no passado, também em 1967 Israel foi agredido. 2. À diferença de outras vezes anteriores, Israel em 1967 desfechou golpes enérgicos, relâmpagos, na raiz, que desmantelaram os inimigos. 3. Criou-se então uma situação sem precedentes: a da soberania judaica respaldada também sobre força militar, sobre um “império” de medidas assombrosas no confronto com o anterior claustro em que o país estava contido. 4. Essa soberania se fazia junto com a mais tradicional jurisprudência internacional, que reconhece o direito de usar a força para repelir agressão, e o direito de manter, até que haja paz formal e negociada, aquilo que se obteve territorialmente na decorrência da vitória. 5. Na recusa árabe de negociar, havia desde então todo

o câncer da chantagem, porque, politicamente, o passar dos anos iria endurecer posições, iria radicalizar antagonismos, iria perpetuar a ocupação, que se prestaria a ser deturpada, no uso conveniente e mentiroso de acusações de semelhança ou identidade com a ocupação nazista na Europa. 6. Na recusa árabe de negociar se inseriu mais tarde a conveniente arma do petróleo. O agressor derrotado percebeu que, à margem de Israel, sem ligação com Israel, podia fazer o Ocidente tremer, porque sem petróleo não há gasolina, diesel, lubrificantes, aquecimento, plásticos, energia elétrica, fertilizantes, perfumes etc. Isto é, o Ocidente foi levado a acreditar no mais sinistro non sequitur. Como se, concordando em redimensionar Israel, isso havia de assegurar ao Ocidente tranquilidade econômica e política. 7. Em paralelo, o Ocidente se acovardou diante do terror organizado. Olimpíadas de Munique a gritar ao mundo que uma nova onda de barbárie estava a desencadear-se, e o Ocidente a dizer, “a culpa é das vítimas, a culpa é das vítimas”!

Houve mais, tanto mais, nesses 14 anos. O trauma de outra guerra, na qual não só o aniquilamento parecia iminente, mas onde também se criou o mito da derrota de Israel. Mito que envenenou tanto e tantos. Porque, diante da vitória de 1967, indiscutível e indiscutida, a hostilidade ou a indiferença de terceiros se podiam ignorar com um dar de ombros seguro e desdenhoso. Ao passo que diante da vitória de 1973, alardeada como derrota, a indiferença e hostilidade de terceiros solaparam um humor já abalado pelas listas de vítimas, e o dar de ombros seguro e desdenhoso em muitos se converteu em curvar de ombros, em falar baixo, em deslizar pelas sombras…

Reflexões amargas, que derivam de uma constatação: o inimigo mais temível não é o terror, não é a chantagem do petróleo, não é o isolamento diplomático. Tudo isso não é bom, claro. Mas o inimigo que deve preocupar é a indiferença judaica. Se a Diáspora se distanciar de Israel, não será a existência física de Israel que estará em cheque, mas sim o valor de Israel como nação de todo um povo. Quando me dizem que a “Aliá” é reduzida hoje, ou porque o atual gover-

Reflexões amargas, no é um desastre, ou porque “não há conque derivam de uma dições materiais”, ou porque – sei lá – cada constatação: o inimigo razão é válida para quem a enuncia – sorrio a custo. Israel nunca ofereceu condições. mais temível não é o A Aliá sempre foi um processo de ir terror, não é a chantagem contra a maré. Emigrar – e imigrar – são do petróleo, não é o geralmente fenômenos de busca de meisolamento diplomático. Tudo isso não é bom, lhores condições materiais. Nós, o que temos a oferecer não é a concorrência com os níveis de vida de Estados Unidos ou claro. Mas o inimigo Canadá ou Austrália (para aqueles que, que deve preocupar é nesses países, se enquadram nas categoa indiferença judaica. rias “certas” de imigrantes). O que temos a oferecer é o regresso ao judeu-homem-normal; a uma sociedade nossa, na qual não seremos nem hóspedes, nem tolerados, nem parasitas, nem refugiados, mas, sim, membros na totalidade dos direitos e das obrigações. Com um sonho: o de não copiarmos servilmente os erros de outras sociedades. O que, num balanço, torna tudo tão complicado: o período destes 14 anos se abriu com ansiedade e euforia; passou por bravatas, nova ansiedade, pessimismo, retomada, sacolejos sociais e políticos. No finito que é a carreira terrestre de cada um de nós, 14 anos ricos, densos, talvez até demasiadamente carregados; talvez cruéis, não só nos fatos mas nas obrigações. Porque se constituíram em filtro, cadinho, caldeirão, retendo ou eliminando, como que para nos colocar diante da inevitável autoidentificação. Escrevo antes das eleições de 30 de junho.1 O resultado delas pode ter enorme influência no traçado dos anos próximos. Acima delas, porém, há outra realidade: qualquer governo é transiente. Rico de qualidades ou de defeitos, não representa mais do que uma parcela da realidade social. A nação e o povo, a concentração territorial, a língua, a renovação das práticas religiosas, a legislação – contam muito mais que os gabinetes. Com a diferença que os gabinetes são mensuráveis, visíveis, imediatos, terra-a-terra. O resto são – ou parecem ser – ideais longínquos. Tão longínquos que bastam 14 anos para os amortecer. * * * Para esclarecer, continuo sendo otimista naquilo que diz respeito ao povo judeu. 1 As eleições de 30 de junho de 1981, para a 10ª Knesset, estabeleceram uma ínfima maioria para o partido Likud de Menachem Begin, em confronto com o Partido Trabalhista.

Detalhe da fachada de sinagoga em Veneza, Itália.

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