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Uma liderança judaica orientada para a ação social –Damián Glanz

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

UMA LIDERANÇA JUDAICA ORIENTADA PARA A AÇÃO SOCIAL

Um ano do falecimento do rabino Richard Hirsch, o “Arquiteto do sionismo reformista”

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Deve haver um ponto de vista judaico reformista sobre quebrar o copo num casamento e não um ponto de vista judaico reformista sobre romper o padrão de preconceito racial? Nós, que nos ressentimos amargamente do silêncio da maioria das igrejas da Alemanha nazista, permaneceremos em silêncio frente à injustiça e à desigualdade em nossa sociedade?

Damián Glanz

Recordar o rabino Richard Hirsch, Dick, um ano depois de seu falecimento, nos oferece uma oportunidade para pensar o papel rabínico e a construção de novas lideranças para o judaísmo reformista na América Latina. E, através do repasse de sua vida, problematizar os ideais do movimento na região é também um modo de render homenagem ao chamado “Arquiteto do sionismo reformista”.

Rav Hirsch, que faleceu em 17 de agosto de 2021, nasceu em Cleveland, Estados Unidos, em 1926. Foi um líder liberal e sionista e ocupou posições destacadas tanto dentro do movimento reformista como em instituições sionistas. Foi o diretor fundador do Centro de Ação Religiosa em Washington, diretor executivo da WUPJ (União Mundial para o Judaísmo Progressista) e artífice do traslado de sua sede internacional para Jerusalém. Como dirigente sionista, foi membro do Comitê Executivo da Organização Sionista Mundial e da Agência Judaica para Israel. Ocupou a Presidência do Conselho Geral Sionista (19871992) e também presidiu o 33º Congresso Sionista Mundial.

Hirsch não recebeu a vocação rabínica como herança familiar, diferentemente do que ocorria com muitos de seus companheiros do Hebrew Union College na metade da década de 1940, quando começou sua formação. Os outros estudantes, e sem dúvida a maioria de seus mestres, como Abba Hillel Silver ou Solomon Freehof, ou eram sucessores de linhagens rabínicas ou, no mínimo, tinham se formado em alguma yeshivá. Ele era filho de comerciantes e

Rabino Richard Hirsch, primeiro à esquerda, com o presidente dos EUA, Lindon Johnson, 1964.

seu contato com o judaísmo passava por alguns rituais caseiros e a presença numa sinagoga conservadora. Foi na escola vespertina deste beit knesset, nas aulas de hebraico, que nasceu sua curiosidade pela cultura judaica e onde se conectou com a Young Judea, uma organização norte-americana cuja meta era educar os jovens para o sionismo. Há outra característica que, sem dúvida, distinguiu não só Hirsch, como também a sua geração da de seus mestres, que em sua maioria tinham chegado nos Estados Unidos como imigrantes. Os estudantes rabínicos daquela época tinham os Estados Unidos como ponto de partida, e não de chegada. O lugar de origem e a proximidade ou distância das ideias sionistas começou a ser, já desde aquela época, um tema de atenção para Hirsch. Em suas palavras: “Muitos dos professores tinham nascido no exterior. Alguns haviam sido resgatados da Europa antes da guerra [...]. Me assombrou que o trauma da Shoá não havia transformado todo o corpo docente, e inclusive todo o corpo discente, em sionistas” (Hirsch, 2000, p. 20). Desde jovem, inclusive desde a adolescência, Hirsch já tinha posto seus olhos em Israel.

Antes de concluir seus estudos rabínicos, em 1949, no meio da Guerra de Independência, viajou a Israel para experimentar o que chamou de “o sionismo em ação”. Instalou sistemas de alarme em kibutsim, lavou pratos, serviu mesas, limpou galinheiros e estudou hebraico. Em especial, estudou hebraico. Primeiramente, em seu tempo livre e mais tarde na Universidade Hebraica onde teve au-

À esquerda: Rabino Richard Hirsch com um grupo de sacerdotes em Washington a caminho de uma marcha pelos direitos de voto dos negros nos EUA, 1965. À direita: Rabino Hirsch e família, década de 1960.

las com professores como Martin Buber, Hugo Bergmann e Ernst Simon.

Daquela experiência trouxe ao menos dois aprendizados que o marcariam: por um lado, a necessidade de impregnar naqueles pioneiros kibutsianos o olhar reformista como um viés para que adotassem uma atitude construtiva em relação ao judaísmo; e, por outro lado, a centralidade do hebraico, não apenas como meio de acesso à cultura judaica, mas também como um capital que permitiria ao movimento rechaçar a acusação, realizada por conservadores e ortodoxos, de que o reformismo avançava em direção à assimilação. Mas apenas o hebraico não funcionaria para tal. Para Hirsch, isso poderia ocorrer em função dos ideais sionistas, que elevariam o reformismo norte-americano ao grau de movimento mundial com chances de influenciar de forma decisiva no destino do nascente Estado de Israel.

De regresso aos Estados Unidos, e como parte de sua obrigatória prédica de shabat prévia à ordenação rabínica, em novembro de 1950 expôs aquelas ideias na sinagoga do Hebrew Union College. A seguir, alguns parágrafos daquela drashá:

O judaísmo reformista não nos legou a visão, nem teve a coragem de admitir que já não existe uma dicotomia entre o sionismo e o judaísmo [...] O judaísmo reformista prega que é uma religião universal com uma mensagem para toda a humanidade; entretanto se contenta em cumprir seu conceito de missão e satisfazer sua consciência pregando uma mensagem

Antes de concluir seus a Israel, aprovando resoluções [...] Quando estudos rabínicos, em o judaísmo reformista articular com fatos a 1949, no meio da Guerra estreita relação entre Israel e os judeus norte-americanos, descobrirá que aquilo que oride Independência, ginalmente pretendia ser um serviço a Isviajou a Israel para rael terá, por sua vez, aumentado a força experimentar o que e a relevância da reforma. (Hirsch, 2000, chamou de “o sionismo em ação”. Em especial, pp. 26-27.) Com aquela prédica ele se confrontou com os patriarcas fundadores da reestudou hebraico. forma americana, como Kaufman Kohler ou Isaac M. Wise, que haviam promovido em 1885 a Plataforma de Pittsburgh, que deu origem formal ao movimento, em que se rechaçava toda a motivação sionista: “Já não nos consideramos uma nação, mas sim uma comunidade religiosa, e portanto não esperamos nem um regresso à Palestina [...], nem a restauração de nenhuma das leis relativas ao estado judeu” (Declaration of Principles, 1885). A intervenção de Hirsch provocou, ademais, críticas entre seus pares e professores, entre eles Leo Baeck. Assim descreveu Hirsch aquele episódio: “Me resultava inconcebível que ele [Baeck], que havia sofrido o trauma da Shoá e que, de fato, se havia convertido em um símbolo vivo da perseverança, não fosse um firme defensor do estabelecimento do Estado judeu” (Hirsch, 2000, p. 28). Hirsch incomodava com suas ideias, e as ideias que sustentavam o movimento, seus líderes e intelectuais, incomodavam a Hirsch. O incômodo foi, precisamente, aquilo que o motivou à crítica, à perseverança para perseguir seus ideais.

Os questionamentos de Hirsch não se limitavam ao desapego frente ao sionismo, senão também à falta de abertura da sinagoga. Depois de uma breve experiência em uma congregação em Chicago, Hirsch se aproximou do rabino Maurice Eisendrath, um ardoroso defensor da justiça social, que naquela época presidia a União de Congregações Hebraicas Americanas, o braço congregacional do Movimento Reformista norte-americano. Eisendrath havia desenvolvido uma plataforma onde se recomendavam diversos caminhos para que as sinagogas se envolvessem em preocupações sociais. Dali surgiu a ideia de estabelecer um centro de ação social que cumprisse a função de braço social e político do movimento.

A proposta foi apresentada na conferência bienal do movimento reformista de 1959, mas foi rejeitada com argumentos que insistiam em separar (e manter separada) a religião da política. A proposta voltou a ser considerada em 1961, quando foi aprovada. Assim nascia o Religious Action Center (RAC), no qual Hirsch foi nomeado seu primeiro diretor-executivo.

Se o judaísmo reformista centrava seus ideais na ética profética, estava chamado a se ocupar dos temais centrais que naqueles anos dominavam a cena pública dos Estados Unidos: a pobreza, a desigualdade, a Guerra do Vietnã, os direitos civis dos afrodescendentes. Segundo Hirsch, a resposta que o judaísmo progressista oferecia a estes conflitos se limitava a certas menções no púlpito ou a alguma reparação individual.

Vale repassar, como exemplo, uma responsa da conferência rabínica (CCAR) da década de 1950 para entender de que modo as preocupações sociais faziam parte do debate rabínico. Em algum momento de 1954, um rabino consulta o comitê de responsas sobre “se o judaísmo sanciona” a união entre uma mulher judia e um “homem negro, escritor e graduado universitário, que quer se converter ao judaísmo”. O rabino antecipa que a família

da noiva “se opõe violentamente ao matrimônio” e que o insta para que não o celebre. A resposta o lembra de que não há impedimento para tal união: “Não há razão válida, que tenha sua base na halachá, que impeça o casal de ser unido em matrimônio por um rabino” (CCAR Responsa, 1954). Assim sendo, recomenda que, se ele não quer criar atrito com a família da mulher, que delegue a tarefa a outra pessoa. Um ato de compromisso ético em respeito à dignidade do outro poderia ser delegado.

Hirsch não duvidava que a atividade rabínica deveria sair dos limites da sinagoga, e que não se concluía com a saída da mechitzá, a divisão entre as pessoas que assistem ao culto. Mas que, sim, tinha que eliminar a mechitzá que separava a atividade sinagogal da realidade política e social. Tinha que mover a bimá do púlpito para a rua.

Em seu discurso de instalação como diretor do Centro de Ação Religiosa em Washington, em novembro de 1962, Hirsch expressou este incômodo:

Ao estabelecer nosso Centro de Ação Religiosa, afirmamos o pacto feito pelo Judaísmo Reformista. Os fundadores de nosso movimento declararam que as leis morais do judaísmo eram eternas enquanto que as leis rituais eram passageiras. Que trágico seria se nós, que pretendemos perpetuar seu espírito, excluamos a mensagem profética do judaísmo profético. Continuaremos debatendo um guia para a observância ritual sem debater ao mesmo tempo guias para o comportamento moral e normas para a sociedade? Deve haver um ponto de vista judaico reformista sobre quebrar o copo num casamento e não um ponto de vista judaico reformista sobre romper o padrão de preconceito racial? Deverão nossas congregações dedicar suas energias para aumentar sua arrecadação e não para aumentar a preocupação com a paz mundial? Buscaremos novos meios de atrair para a sinagoga aos que não assistem, e não buscaremos novos meios de ter um impacto nas vidas dos que, sim, assistem? Nós, que nos ressentimos amargamente do silêncio da maioria das igrejas da Alemanha nazista, permaneceremos em silêncio frente à injustiça e à desigualdade em nossa sociedade? (Hirsch, 1962, p. 3).

Durante os anos seguintes, o RAC concentraria sua atividade no Movimento dos Direitos Civis, na luta que de-

Se o judaísmo reformista sembocou no “Civil Rights Act”, a lei que centrava seus ideais na assentou as bases para avançar na igualdaética profética, estava de de direitos de toda a população, em especial, a comunidade afro-americana.chamado a se ocupar Hirsch participou ativamente na ordos temais centrais ganização e no processo de preparação que naqueles anos das propostas legislativas para o Congresdominavam a cena pública dos Estados so dos Estados Unidos, e o comitê liderado por Martin Luther King foi convidado a funcionar no Centro de Ação Reli-

Unidos: a pobreza, a giosa, onde se discutiram muitas das nordesigualdade, a Guerra do mas que finalmente foram aprovadas. O

Vietnã, os direitos civis rabino Hirsch entendeu que uma teolodos afrodescendentes. gia reformista devia partir da ação social: A ética só tem sentido quando está relacionada com a experiência humana. Se não fosse pela experiência da escravidão e do Êxodo do Egito, nunca teríamos desenvolvido o conceito de liberdade. A teologia e a vida interatuam. Assim como se deve motivar as ações de uma pessoa, as ações dão forma à fé de uma pessoa. O imperativo “pratiques o que pregas” se faz mais significativo, não menos, pelo conhecimento do que os seres humanos tendem a pregar o que praticam. Esse é o significado de mitzvá goreret miztvá [Avot 4:2], “uma obra justa produz outra obra justa” [...] Na tradição judaica, a salvação do indivíduo é inseparável da salvação de toda a humanidade, a ética pessoal é inseparável da ética social, e em nossos dias a ética social é inseparável da ação social (Hirsch, 2000, p. 106). A ação social no centro do judaísmo reformista. E também o sionismo. Para Hirsch, ambas as coisas eram inescapáveis. O sentido ético, humanista e universal era, precisamente, o que unificava a experiência e o olhar judaico. Rav Hirsch defendia que a integração de sionismo e judaísmo e o compromisso do movimento reformista norte-americano com o Estado de Israel era o caminho para estabelecer um judaísmo baseado na ética social em todo o mundo. Não se tratava de expandir a influência das instituições norte-americanas, mas, sim, de retirar da ortodoxia o monopólio da interpretação que guia as políticas públicas em Israel, como, por exemplo, ocorre com o matrimônio, o divórcio ou a educação. Hirsch acreditava que, sem esse compromisso, o judaísmo do israelense laico terminaria desaparecendo para se converter em uma identidade israelense sem judaísmo. Este olhar gerou uma profunda controvérsia dentro da

À esquerda: O Rabino Hirsch, primeiro à direita, e ativistas judeus em Marcha pelos direitos civis dos negros, 1963. À direita: Rabino Hirsch, 2011.

União para o Judaísmo Reformista, em especial com aqueles que através da criação do Estado de Israel interpretavam o mapa judaico de um modo diferente. No dizer de Santiago Kovadloff, a transformação da diáspora em eleição, em vez de imposição (o castigo divino), provocava, neste ato de vontade, a própria extinção do conceito de diáspora judaica. Para Hirsch, entretanto, Israel seguia sendo “Broadway, e a diáspora o off-Broadway” (Rosove, 2021).

Hirsch concentrou seus esforços em sustentar essa centralidade de Israel e aproximar a reforma desta direção. Neste sentido, foi um dos impulsores da mudança de visão da União do Judaísmo Reformista que, em 1976, na Plataforma de San Francisco, expressou um novo paradigma, que alterou as definições de Pittsburgh: “Temos tanto um interesse como uma responsabilidade na construção do Estado de Israel, assegurando sua segurança e definindo seu caráter judaico” (Reform Judaism: A Centenary Perspective, 1976). Essa mudança não apenas foi uma redefinição teórica, mas também um impulso ao desenvolvimento do judaísmo progressista em Israel.

Indubitavelmente, a controvérsia sobre o lugar de Israel na construção da identidade judaica continua presente. E, sem medo de errar, é um debate ainda pendente na América Latina. Tão pendente como uma discussão sobre o papel das lideranças judaicas da região, que podem concentrar seus esforços nas preocupações comunitárias ou sinagogais, ou em aproveitar estas instituições para dirigir seus esforços para a ação social.

Não se trata aqui de oferecer respostas para estes debates, mas sim de destacar a fortaleza da vocação que exerceu o rabino Richard G. Hirsch, falecido há um ano. Uma vocação que nasceu do incômodo, do debate, inclusive do enfrentamento, com ideais e lideranças consideradas imovíveis e intocáveis. Uma vocação que pode se apresentar como um modelo para a liderança judaica reformista na América Latina.

Damián Glanz é jornalista, nascido na Patagônia argentina. Desde 1998 trabalha em jornais, revistas, rádio e televisão. Se especializou em análises do discurso político. É responsável pelas cadeiras de Argumentação e Expressão oral e escrita do Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista.

Gentilmente traduzido do espanhol por Michel Ventura.

Referências

CCAR Responsa (1954), Marriage of a Negro Man to a Jewish Woman, https://www.ccarnet.org/ccar-responsa/arr-440-441/ Declaration of Principles (1885), Pittsburgh Conference, https://www. ccarnet.org/rabbinic-voice/platforms/article-declaration-principles/ Hirsch, Richard (1962), The purpose and program of the UAHC Religious Action Center, discurso oferecido na inauguração da instituição. https://www.rac.org/sites/default/files/hirschRAC.pdf Hirsch, Richard (2000), From the Hill to the Mount: A Reform Zionist

Quest (1ª ed.), Gefen Books. Reform Judaism: A Centenary Perspective (1976), San Francisco Conference, https://www.ccarnet.org/rabbinic-voice/platforms/article-reform-judaism-centenary-perspective/ Rosove, J. L. (18 de agosto de 2021). ‘Israel is Broadway; the Diaspora is Off-Broadway’ – Rabbi Richard Hirsch z”l. The Times of Israel. https://blogs.timesofisrael.com/israel-is-broadway-the-diaspora-is-off-broadway-rabbi-richard-hirsch-zl/

Cúpula da nova sinagoga de Berlim.

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