
11 minute read
O Estudo: Alimento da centelha judaica – Kelita Cohen
O ESTUDO: ALIMENTO DA CENTELHA JUDAICA
Kelita Cohen
Advertisement
Introdução
Os dados censitários sobre o número de judeus no Brasil coletados pelo IBGE nos censos decenais são imprecisos e, segundo DellaPergola (2011), a complexidade das discrepâncias numéricas decorrem de determinantes externas e internas. No caso específico do censo, um dos fatores se deve ao fato de estar a categoria “judeus” justamente incluída no campo religião, na qual os entrevistados são convidados a responder qual a religião de cada um dos membros do seu domicílio.
No contexto de uma sociedade em processo intenso de secularização como a brasileira, um número cada vez maior se diz sem religião. É possível que muitos se definiriam como judeus por outras características (sociais, étnicas, culturais ou históricas) se a pergunta tivesse sido de outra natureza.
De fato, mesmo sem poder expressar com exatidão o número de judeus no País, a análise histórica do número de pessoas que se identificaram como judeus diminuiu entre 1980 e 1991, provavelmente pela primeira vez desde que membros desse grupo começaram a imigrar em maior número para o Brasil, a partir da década de 1920. A se manter essa tendência, judeus poderão estar cada vez mais expostos às poderosas forças de assimilação e de secularização da sociedade brasileira. No limite, correm o risco de perder sua identidade como um grupo social específico, com uma história e uma cultura distintas (Decol, 2001).
Mesmo com essas dificuldades metodológicas para a obtenção de dados demográficos confiáveis, segundo os números da pesquisa do IBGE no censo
Segundo os números da pesquisa do IBGE no censo de 2010, os judeus no Brasil somariam 107 mil indivíduos. Apenas um terço dos judeus brasileiros mantém alguma forma de relacionamento com o judaísmo.
de 2010, os judeus no Brasil somariam 107 mil indivíduos. Quando comparado ao número de pessoas que participam da vida judaica religiosa ou comunitária ainda que uma única vez ao ano, um dado chama a atenção: apenas um terço dos judeus brasileiros mantêm alguma forma de relacionamento com o judaísmo.
Os motivos para tal desengajamento judaico por parte de dois terços da população judaica se devem a pelo menos três fatores, que me parecem importantes para esta discussão.
O primeiro deles tem a ver com a orientação da instrução judaica atual, fortemente centrada no público infanto-juvenil, quer no âmbito da educação formal, quer nos programas de educação suplementar ou informal ofertados pelas diversas instituições. Essa orientação termina por definir contornos de um judaísmo pediátrico.
O segundo, que em certa medida pode ser consequência do primeiro motivo, diz respeito à pouca relevância dos conteúdos judaicos ensinados nos púlpitos e nas salas de aula frente às necessidades da vida contemporânea.
E por último, as crescentes demandas de profissionalização e investimento de tempo e recursos na construção de uma carreira para fazer frente à competitividade do
Martin Buber: A questão mercado de trabalho têm deixado pouco não é mais equipar espaço nas agendas pessoais para um encom conhecimento, volvimento comprometido dos dois terços dessa população com os judaísmos mas mobilizar para ofertados na rua judaica. a existência. Por isso, já se tornou quase um clichê a narrativa de que o ciclo da vida judaica envolve um período de aprendizagem até a idade de bat/ bar mitsvá, seguido pela participação e ativismo em algum movimento juvenil, e logo um desligamento dos vínculos comunitários para dedicar-se à carreira e, em uma parcela dessas trajetórias recorrentes, o retorno à sinagoga quando os filhos nascem. Outra parte desses indivíduos vai se somar àquela maioria dos dois terços nos quais o judaísmo já não encontra espaço em suas rotinas.
Antecedentes
Um fenômeno semelhante é relatado na história do judaísmo alemão um século atrás. Como resultado do processo de Emancipação da Europa Ocidental concomitante à saída dos judeus dos guetos, vê-se um movimento de alienação em relação ao judaísmo, do qual Franz Rosenzweig era parte. No entanto, logo que viu claro seu caminho para permanecer judeu e dedicar sua vida à causa do ju-

daísmo, Rosenzweig percebeu a necessidade de uma reorganização radical da instrução judaica em todos os níveis e de um repensar a função da educação judaica na Europa.
Segundo Glatzer (1956), diante da falta de preocupação da pesquisa acadêmica com as necessidades da vida judaica contemporânea, a degradação da instrução religiosa nas escolas, o baixo nível de engajamento dos grupos culturais e sociais, Rosenzweig se deu conta de que pequenas melhorias seriam insuficientes; apenas uma reorientação geral da vida cultural poderia reverter a situação.
Tal constatação, aliada ao fato de os judeus terem sido excluídos das instituições formais de educação na Alemanha, teve como resposta de Rosenzweig a criação da Frankfurt Freies Jüdisches Lehrhaus (Casa Aberta do Saber Judaico de Frankfurt, em tradução livre), que abriu suas portas em 17 de outubro de 1920, sob sua direção. Graças à qualidade de seus participantes e de suas práticas pedagógicas, foi uma das experiências de ensino mais interessantes da história moderna do judaísmo alemão. Como resultado da longa reflexão de Franz Rosenzweig sobre como estimular uma vida judaica intensa diante da diluição assimiladora, do liberalismo religioso e da neo-ortodoxia, a Lehrhaus foi concebida para renovar o estudo do judaísmo, coração da vida e do mundo judeu. (Hanus, 2017)
Para esse mesmo período, a comunidade judaica passou a ter o direito de indicar um candidato para uma disciplina (Lehrebeauftrag) em Estudos Judaicos, especificamente em Jüdische Religionswissenschaft und Ethik (Estudos Religiosos e Ética Judaica). Martin Buber vem a ocupar assim a posição de diretor do Escritório Central para a Educação Judaica Adulta na Representação Nacional de Judeus Alemães (Reichsvertretung der deutschen Juden) na Alemanha, responsável por treinar professores voluntários e líderes para os movimentos juvenis judaicos (tais como o Betar e o Hashomer Hatzair), bem como por oferecer apoio às diversas Lehrhäuser. A mais famosa delas foi a Frankfurt Freies Jüdisches Lehrhaus, onde Buber havia trabalhado anteriormente com Franz Rosenzweig, mas outras foram abertas também em Berlim, Breslau, Stuttgart, Munique e outros locais. Depois da morte precoce de Rosenzweig, Buber assumiu a direção da Lehrhaus, em 1930.
O compromisso de Buber com a educação sempre se concentrou nas ideias de comunidade e de diálogo. Esse compromisso foi resumido na Primeira Carta Circular do Centro de Educação Judaica para Adultos, em maio de 1934 – uma carta aberta de Buber à comunidade judaica sob o jugo nazista:
O conceito de “educação judaica para adultos” poderia ser
entendido, até há pouco tempo, como “elementos de educação” ou “valores culturais” que deveriam ser transmitidos aos indivíduos em crescimento e já crescidos – por exemplo, dando uma ideia de “educação superior” àqueles que não eram privilegiados o suficiente para obtê-la ou de iniciação àqueles não familiarizados com temas judaicos em conhecimentos gerais dessa comunidade [...]. A questão não é mais equipar com conhecimento, mas mobilizar para a existência. Pessoas, pessoas judias, devem ser formadas, pessoas que não mais apenas “resistirão”, mas defenderão alguma substância na vida, que não terão apenas a moral, mas a força moral e que assim conseguirão transmitir a força moral aos outros; pessoas que vivem dessa maneira de tal modo que a centelha não morrerá. Como nossa preocupação é pela centelha, trabalhamos pela “educação”. O que ambicionamos fazer ao educar indivíduos é construir uma comunidade que se manterá firme, prevalecerá e preservará a centelha. (Buber, 1999, p. 51-52, apud Guilherme & Morgan, 2020, p. 19-19).
O êxito da Lehrhaus foi ter conseguido atrair estudiosos como Martin Buber, S. Y. Agnon, A. J. Heschel, Gershom Scholem e Erich Fromm que, em diálogo com o público maior, puderam promover o renascimento intelectual judeu no período entre-guerras, até seu fechamento pelos nazistas.
Lições aprendidas
Como exposto, guardadas as devidas proporções, estamos hoje no Brasil diante de um fenômeno semelhante ao ocorrido no século passado na Alemanha, em termos de desengajamento do judaísmo por parte de uma parcela significativa da população judaica.
E assim como pudemos encontrar um paralelismo nos sintomas apresentados aqui e lá, também podemos aprender com as estratégias judaico-alemãs adotadas, as quais tiveram sua implementação e eficácia validadas. A constituição de um organismo dedicado à educação judaica adulta fez renovar o estudo do judaísmo e revitalizar a vida judaica naquele momento.
Essa perspectiva de uma educação continuada que focaliza o indivíduo ao longo de todo o seu ciclo vital, por si só, já é um contraponto ao problema brasileiro identificado anteriormente, de uma orientação instrucional centrada no público infanto-juvenil.
Assim mesmo, a preocupação pela qualidade do conhecimento produzido pela pesquisa acadêmica, aliada a práticas pedagógicas inovadoras e sensíveis às necessidades da vida judaica contemporânea, podem levar aos púlpitos e às salas de aula a relevância que atualmente se encontra pouco disponível, ao ponto de encontrar um espaço na vida da maioria de judias e judeus.
Ao focalizar a iniciativa de Rosenzweig e Buber como uma possível fonte de inspiração, duas iniciativas se destacam como respostas ao problema brasileiro aqui mencionado. A primeira delas é a criação de uma entidade de formação rabínica ibero-americana1, que tem na sua gênese uma busca constante por manter a centelha judaica na região. Ao preparar rabinas e rabinos que educam indivíduos para construir uma comunidade que, além de conhecer o seu passado, dialoga com a realidade, cria as condições para uma renovação das práticas rabínicas com vistas à continuidade judaica.
A segunda e mais recente iniciativa é a criação da Academia Judaica.2 Ao criar as condições para a disseminação do conhecimento produzido na atualidade por pesquisadores dedicados a investigar temas judaicos, para que, em diálogo com rabinos e educadores, tais conhecimentos inovadores possam ser traduzidos e aplicados às suas práticas profissionais, abre-se caminho para uma renovação e revitalização do pensamento judaico. Em sua estratégia de amalgamar tradição e inovação, utiliza ferramentas tecnológicas modernas, que permitem que o estudo seja incorporado às dinâmicas correntes da vida, ao mesmo tempo em que preserva os fundamentos dos métodos judaicos talmúdicos de construir conhecimento, a saber, o Pilpul3 e a Havruta. 4
E, finalmente, a questão das dinâmicas da vida profissional que têm ocupado todos os espaços nas agendas de judias e judeus da contemporaneidade, sem deixar lugar ao engajamento comunitário e à espiritualidade judaica, pode ser solucionada colocando o judaísmo não como um concorrente, mas um aliado na formação profissional.
Assim, ao formar comunidades de pares para o estudo das suas áreas de conhecimento em diálogo com o judaísmo, cria-se a possibilidade de uma dupla iluminação, na qual a centelha judaica mencionada por Buber é alimentada, ao mesmo tempo em que participa na formação de profissionais mobilizados para a existência e com um renovado sentido de pertencimento a uma tradição milenar. O fundamento do método foi muito bem explicado por
SergeyNivens/iStockphoto Revista da Associação Cultural–ATID / Associação Religiosa Israelita–ARI | devarim | 31

Rabi Isaac Abravanel (1437-1508) ao interpretar a mishná “Faça para si um rabino e adquira para si um amigo” (Pirkei Avot 1:6), significando que se deve aprender tanto com os professores quanto com seus pares.
Como enfatizou Emmanuel Levinas, grande filósofo judeu da modernidade, sem educação judaica não pode ter lugar a existência judaica (Kovadloff, 2013). Portanto, o estudo da Torá, em sua ampla acepção, não deve ser algo desconectado da vida cotidiana, mas deve permitir o aprimoramento do indivíduo como ser atuante na sociedade, tanto quanto deve favorecer a sua reconexão e o fortalecimento dos vínculos com sua matriz identitária judaica.
Assim, além de sinalizar a importância de organizar o ensino no campo da educação judaica continuada de formas diversificadas, esta reflexão é também um convite a cada indivíduo que se reconhece parte dessa tradição milenar e pertencente ao vínculo intergeneracional judaico a se engajar em algum dos programas disponíveis no Brasil, quer pela Academia Judaica, quer pelo IIFRR, ou ainda através de qualquer atividade de estudo judaico para adultos. Com o foco não mais posto na transmissão passiva da Notas tradição e do conhecimento, mas na construção ativa de 1 Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), instituído um saber que faz sentido face à realidade à nossa volta, a em 2017 na Argentina. continuidade judaica estará assegurada para as próximas 2 Organismo de educação adulta e continuada criado pela Congregação Israelita Paulista voltado à comunidade judaica lusófona. gerações, livre do medo da assimilação. 3 Pilpul (Heb. פִּלְפּוּל), termo derivado de pilpel (“pimenta”), denota um conjunto de métodos de estudo utilizado pelos sábios do Talmud, nos quais os argumentos e as opiniões próprias encontram espaço em harmonia com a tradição. Kelita Cohen é psicóloga, com Doutorado em Psicologia na área 4 Havruta (Heb. חַבְרוּתָא), termo associado à amizade ou parceria no estudo. O conceido Desenvolvimento Humano e Educação; está no 5º ano de estu- to de “chavruta” tornou-se um dos principais aspectos do ethos judaico de estudo.

A continuidade judaica dos rabínicos no IIFRR-Instituto Ibero-americano estará assegurada através de Formação Rabínica Reformista e atua como da construção ativa de um diretora executiva da Academia Judaica na Congregação Israelita Paulista.
Abravanel, Isaac. Nachalat Avot. Ashkelon, 2013. Disponível em Sefaria: https://www.sefaria.org/Nachalat_Avot_on_ Avot.1.6.6?lang=en&with=About&lang2=en Decol, René Daniel. Judeus no Brasil: explorando os dados censitários. Rev. Bras. Ci. Soc. 16 (46), Jun 2001 Dellapergola, Sergio. Cuántos somos hoy? Investigación y narrativa sobre población judía en América Latina. In: Avni, Haim & Liwerant, Judith Bokser. Pertenencia y Alteridad: judíos en/de América Latina: 40 años de cambios. México: Templo Emulado, 2011, p. 305. Glatzer, Nahum. The Frankfort Lehrhaus. In: The Leo Baeck Institute Year Book, Volume 1, Issue 1, January 1956, pp. 105-122. Guilherme, Alexandre; Morgan, W. John. Filosofia, Diálogo e Educação: nove filósofos europeus modernos. Brasília: Universidade Católica de Brasília, 2020. Hanus, Gilles. The “Jewish House of Free Study” (freies jüdisches Lehrhaus) of Franz Rosenzweig. In: Le Télémaque Volume 52, Issue 2, 2017, pp. 55-66. Kovadloff, Santiago. La extinción de la diáspora judía. 1a. Edición, Buenos Aires: Emecê, 2013, p. 49. Citando a Levinas, Emmanuel. Dificil Libertad.


