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Paulo Geiger

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

AM SGULÁ?1

Paulo Geiger

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Não lembro, lá longe em minha juventude, onde, quando, ou mesmo se li sobre o dilema, ou o inventei eu mesmo, de se deveríamos aspirar a ser am sgulá ou am kechol haamim [um povo como todos os povos]. Foram quase quatro mil anos acreditando ser um povo eleito [sem jactância nem soberba, eleito para servir a Deus em benefício da humanidade, pois de Sion sairia a Torá para todos] e pagando caríssimo o preço dessa ‘eleição’ (pelo voto único de Deus), disperso, perseguido e massacrado, e sem poder ser o dono do próprio destino.

Quando, na era do iluminismo, dos direitos do homem e da autodeterminação dos povos, o povo judeu percebeu que esses direitos eram seus também, o sionismo concebeu, programou e executou o projeto de dar a esse povo de exceção a condição de ser como todos os povos. O estado judeu representa, além da redenção do povo judeu, além do retorno a Sion – almejado e sonhado e invocado nas orações diárias –, a inserção da nação judaica na família das nações, como igual nos direitos e nas responsabilidades.

Somando essas duas concepções, essas duas aspirações, a de ser uma nação como todas as outras em sua integração no mundo, e a de ser, como igual, uma nação exemplar em sua contribuição para a humanidade, pode-se compreender uma alegada desproporção entre a presença judaica no mundo (quantitativa) e a contribuição judaica (qualitativa) durante 2.000 anos de exílio. Que se prolonga e avulta ainda mais nos 73 anos de existência do Estado de Israel. Com toda justiça, o povo judeu pode se orgulhar de sua contribuição, coletiva e individual, na medida em que, principalmente, ela visa ao bem comum. Acreditar ter sido eleito para servir não configura elitismo. Acreditar ser um povo como todos os povos faz dessa contribuição um patrimônio de todos. O mesmo pode-se dizer quanto ao Estado de Israel.

No entanto, essa equação ainda não foi totalmente resolvida. Ainda é preciso cuidar para que a autopercepção como am sgulá não atinja (e em certos casos ultrapasse, e muito) o limiar do ufanismo, da autoindulgência, de uma suposta autossuficiência. Num mundo cada vez mais interligado por problemas e desafios, os principais problemas e desafios não se distribuem segundo fronteiras nacionais. E não se resolvem dentro dessas fronteiras. Tomando como exemplo (intuitivo e atual) a pandemia, e apesar do subsequente surto da variante ômicron, todos nos orgulhamos do sucesso israelense na vacinação, do

1. Povo especial, ou povo de elite, ou, mais comumente dito, povo eleito.

lugar de Israel no topo de uma jornada de competência e determinação, inclusive como laboratório de análise da eficácia de vacinação, uma contribuição para o mundo.

Ao mesmo tempo, na contramão do grande êxito na vacinação, Israel também foi palco para o aspecto negativo da síndrome de am sgulá no sentido errado do termo. As irresponsáveis, dramáticas, agressivas aglomerações de charedim, um segmento ‘eleito’ dentro do povo eleito, demonstram que realmente a equação não está resolvida. Como aceitar que um grupo possa se considerar de exceção e ameaçar a saúde, a vida, a normalização de toda uma população sem que esteja sujeita às restrições que o bom senso, a responsabilidade, e até a lei impõem? E, ironicamente, considerando o que temos visto no Brasil, e em outras partes do mundo, por parte de fanáticos do negacionismo – por motivos ideológicos, religiosos ou simplesmente por ignorância –, descobrimos que a verdadeira questão não está em ser ou não de elite, mas a de ser ou não parte responsável e partícipe da humanidade.

A pandemia ajudou a lembrar que não existem soluções locais, ‘nacionais’, aos grandes problemas e aos desafios da humanidade. E não somente na tecnologia ou na eficiência de medidas sanitárias. Sermos um povo como todos os povos, ser Israel uma nação como todas, integrada no planeta e na humanidade, significa que a ameaça ecológica é nosso problema, que desmatamento e queimadas não dizem respeito apenas ao Brasil, que a fome e a miséria, onde estiverem, são problema nosso, que minorias discriminadas e perseguidas merecem nossa solidariedade e nossa atuação a seu favor, não só porque passamos por isso (e ainda somos ameaçados por isso) mas principalmente porque pertencemos à mesma humanidade, e portanto tudo isso ameaça a NÓS, diretamente.

Não se pode ser feliz cercado de infelicidade, saudável cercado de doenças, redimido cercado de gente oprimida. Não se pode ser uma nação como todas as outras sendo indiferente às agruras do mundo. E, como am sgulá, cabe a nós contribuir para a solução, não como magnânimos doadores, mas como partícipes integrais do problema.

O povo judeu durante 2.000 anos resistiu à dispersão, a perseguições, ao Holocausto, para ser novamente um povo como todos os povos. Para isso, precisou e conseguiu desenvolver qualidades, resiliência e criatividade. Ser am sgulá (no bom sentido, nem elitista nem auto-suficiente).

Também o Estado de Israel, em suas condições geográficas e geopolíticas, teve de se superar em qualidade e proficiência para existir e sobreviver como uma nação entre todas as outras. Mas as fronteiras de sua existência nacional (ainda sendo defendidas) não devem ser as fronteiras de sua participação nos desafios mundiais: sociais, ecológicos, humanitários, tão bem resumidos em três palavras: tsedek tsedek tirdof. Porque lhe cabe agora, como uma nação entre todas as outras, e também como am sgulá, ser parte da solução de todos os problemas do planeta e da humanidade.

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