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Vittorio Corinaldi
RETRATO DE VITÓRIA
O diretor israelense Avi Nesher.
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Este filme assumiu para mim o caráter de catalizador de memória e fator de perspectiva sobre um período rico e crucial de vida pessoal no contexto de um país cheio de história: uma história que ao lado de episódios de alto sentido humano, nos defronta também com fatos de discutível valor ético.
Vittorio Corinaldi
Há algumas semanas vem sendo exibido nos cinemas o filme “Retrato de Vitória” (“Tmunat Nitsachon”) do diretor israelense Avi Nesher. O filme revive um conhecido e contestado episódio da Guerra de Independência de Israel: a violenta batalha de 7 de Junho de 1948, que terminou na rendição dos últimos remanescentes do Kibuts Nitsanim ao exército egípcio, que avançava do Sul pela costa em direção a Tel Aviv – avanço em que foi detido nas proximidades da atual cidade de Ashdod.
O título do filme reflete a aspiração do Rei Faruk do Egito de ver a vitória de seu exército ilustrada na imprensa – tarefa para a qual se preocupou em designar uma equipe jornalística e fotográfica que acompanhasse a expedição militar.
Nitsanim se encontra junto à estrada de cerca de 50 km que une as cidades de Ashkelon e Tel Aviv. Em 1948 ocupava uma área na costa do mar, adquirida poucos anos antes pelo Keren Kaiemet de um rico proprietário árabe que lá havia construído espaçosa casa. Hoje o kibuts está instalado a leste da estrada principal à pequena distância de sua vulnerável localização original.
Naquela época, e ainda por muitos anos, os kibutsim se identificavam segundo uma filiação ideológico-partidária: uma maioria ao partido Mapai (hoje “Avodá”), então a força propulsora do desenvolvimento do país; um número significativo ao “Kibuts Artsi” do movimento Hashomer Hatsair e seu partido Mapam; um certo número eram kibutsim religiosos ligados ao Mizrachi, então solidário com a linha oficial, mas empenhado na aplicação das regras e costumes da religião na vida civil; e uma minoria do “Haoved Hatsioni” (na qual se inclui Nitsanim) se afiliava aos “Progressistas” do partido dos Sionistas Gerais, representante da pequena burguesia liberal, pouco prestigiada pelos círculos da direção do Ishuv.

Memorial da Guerra de Independência em 1948 próximo a Yehiam, Israel.
Mais a Sul, sobre o mesmo eixo costeiro que leva à Tel Aviv, muito próximo ao que é hoje a fronteira com a faixa de Gaza, encontra-se o Kibuts Iad Mordechai da federação do Hashomer Hatsair. Também ele foi violentamente atacado pelo exército egípcio. A parte não-combatente da população (em especial as crianças) fora evacuada às vésperas da luta iminente, no esforço, o quanto possível, de evitar vítimas. Isto se fez também com Nitsanim. Mas à diferença deste, Iad Mordechai contava com algum armamento, o que lhe possibilitou sustentar uma resistência heroica, até o momento em que se decidiu pela retirada de todos os combatentes antes da entrada das forças egípcias no recinto do Kibuts.
A resistência de Nitsanim não foi menos heroica do que a de Iad Mordechai. Mas não recebeu os reforços desesperadamente solicitados pelos combatentes do kibuts: há quem diga que isto se deu em virtude da menor atenção recebida pelo agrupamento partidário deste junto ao comando das operações de luta, fortemente orientado pela linha de esquerda. E depois de esgotados todos os meios de defesa, e com considerável número de vítimas, os remanescentes se renderam à força militar egípcia, desmesuradamente superior: não antes que traiçoeiros tiros atingissem os representantes do Kibuts que se encaminhavam para negociar a rendição.
Com esta, todos os presentes no local (inclusive os feridos) foram feitos prisioneiros, e levados de início para Majdal (Migdal, hoje bairro de Ashkelon), onde estacionava o comando egípcio, e de lá para a prisão definitiva no Cairo. Sua situação de prisioneiros durou por muitos meses, durante os quais passaram por interrogatórios e também por torturas. Dela voltaram somente após o armistício de Fevereiro de 1949, quando a situação militar se reverteu em favor das forças israelenses, já melhor estruturadas e equipadas durante tréguas parciais utilmente aproveitadas.
Até aqui a descrição dos acontecimentos. Junto ao comando militar da Haganá encontrava-se também um oficial que exercia funções de porta-voz e esclarecimento:
era Aba Kovner, figura cercada de notória admiração, por seu então recente passado de combatente da resistência judaica no Gueto de Vilna, e pela conclamação a não se deixar levar “como gado para o matadouro” (expressão que se fixou no vocabulário do confronto com o genocídio nazista).
Aba Kovner sobreviveu ao Holocausto abandonando a liderança daquela resistência: o exército soviético havia detido o avanço nazista em Stalingrado e reinava no público judeu a ilusória esperança de que o destino do Gueto mudaria proximamente, não justificando uma desastrosa e desigual insurreição. E Kovner conseguiu se juntar aos partisans em cujas fileiras lutou até que, terminada a Guerra, fez aliá para um dos kibutsim do Hashomer Hatsair – movimento do qual se tornou ativo e enfático defensor.
Em sua qualidade de oficial adjunto ao comando da Frente Sul, Kovner divulgou um manifesto depois da batalha de Nitsanim, criticando e condenando expressamente os membros do Kibuts pela rendição, por ele apontada como ato de covardia contrário ao espírito e à letra das ordens de combate. Não pensou em fazer semelhante crítica aos companheiros de Iad Mordechai, que igualmente abandonaram a luta, mas não passaram pelo trauma do cativeiro. Com isto, e com obstinada recusa de se retratar, mantida por anos a fio, deu origem a um longo rompimento de relações entre os dois vizinhos kibutsim, e a um ostracismo de sua pessoa, apontada como persona non grata em Nitsanim.
O atual filme veio despertar novamente o amargo litígio. O enfoque empático e equilibrado que apresenta do desenrolar dos fatos daqueles trágicos dias abre uma justa reapreciação do heroísmo de Nitsanim. O esforço do diretor de apresentar um quadro objetivo, leva a indicar um ponto positivo também do lado egípcio, no personagem do jornalista encarregado da reportagem: homem sensível isento da retórica bombástica requerida pelo regime, e capaz de perceber o valor dos adversários, e dentre eles também corajosas mulheres.
Meu interesse pelo filme excedeu a simples curiosidade cinematográfica, e se alimentou de dois coeficientes pessoais que – embora triviais – são característicos de quem
O filme “Retrato de tem um passado e uma vivência já lon-
Vitória” do diretor ga no país, podendo encontrar pontos de israelense Avi Nesher contato de sua experiência com fatos que assumem uma perspectiva histórica.revive a batalha de Em 1958, como jovem arquiteto re1948 que terminou na cém-chegado ao país, fui designado para a rendição dos últimos equipe encarregada de projetar e executar remanescentes do Kibuts Nitsanim ao em Haifa uma grande exposição sobre o kibuts e seu papel na formação do Estado, por ocasião do primeiro decênio deste. Foi exército egípcio. um evento de grande envergadura, que reuniu em trabalho interdisciplinar elementos de todas as formações do movimento kibutsiano. Dessa equipe fazia parte também Aba Kovner, encarregado dos textos e legendas relativos ao conteúdo do material apresentado. Lembro-o como personalidade forte e impressionante, mas ao mesmo tempo presunçosa, retórica, ciente de sua fama, e pouco maleável no que tocava à posição do Hashomer Hatsair no contexto geral do tema da exposição. No decorrer dos anos, em meu trabalho como arquiteto do movimento kibutsiano, criei um contato bastante íntimo com Nitsanim: não cheguei a projetar lá nenhum edifício, mas acompanhei o kibuts como consultor adjunto em questões relativas a seu desenvolvimento físico. Auxiliaram-me nesta tarefa minha qualidade de “vizinho” (meu kibutz, Bror Chail, se acha a pouca distância mais a Sul), e o passado comum latino-americano de muitos dos chaverim de ambos os kibutsim. O filme descrito (que recomendo a quem se interesse) assumiu então para mim também o caráter de catalizador de memória e fator de perspectiva sobre um período rico e crucial de vida pessoal no contexto de um país cheio de história: uma história que ao lado de episódios de alto sentido humano, nos defronta também com fatos de discutível valor ético, que é mister lembrar, em coerência com a verdade documentária em que se baseia a formação de uma consciência coletiva da nação. Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do Kibuts Broch Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutsiano. Artigo escrito em Tel Aviv, janeiro de 2022.
