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Tamar Isabelle Machado Recanati
A MÚSICA DOS JUDEUS DURANTE O HOLOCAUSTO
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Tamar Isabelle Machado Recanati
Os judeus compuseram, tocaram música e cantaram canções durante o Holocausto. …? Esta frase parece completamente deslocada do contexto e da realidade à qual os judeus foram expostos durante os anos de 1938 a 1945. Como é possível cantar e tocar música em meio a um genocídio? No entanto, os judeus cantavam e tocavam música. Este é um fenômeno que não é suficientemente conhecido, embora, como veremos, fosse bastante difundido e veio a ser uma parte importante da estratégia de sobrevivência e vestígios de estar vivo; também é muito importante para nós, décadas após o fim da guerra, de um ponto de vista educacional, espiritual e cultural, porque é uma parte integrante da nossa história e porque qualquer estratégia de enfrentamento da adversidade é um conhecimento importante.
Quando olhamos para a música dos judeus durante o Holocausto, precisamos primeiro definir e distinguir dois tipos diferentes de atividade musical: 1) A música que era tocada e cantada por judeus obrigados pela SS: Em muitos campos de concentração e na maioria dos campos de extermínio existiam orquestras e, em alguns casos, até corais. Os músicos, o repertório, quando e onde tocavam... tudo era decidido pela SS. Os músicos sofriam toda sorte de abusos, eram ameaçados e, na maioria das vezes, a música era usada como uma ferramenta para aterrorizar e zombar dos detentos dos campos. Isto é o que poderia ser chamado: música sob coação. Embora muito interessante, este é um tópico completamente diferente do que queremos abordar neste artigo.
As fotografias deste artigo são do local e do monumento onde existiu o campo de concentração de Treblinka.
Nosso foco será: 2) A música criada por judeus por vontade própria e, mais especificamente, as canções que os judeus criaram e cantaram. De antemão, podemos enfatizar quatro pontos importantes: • Há canções de todos os países onde os judeus estiveram “vivos” durante o Holocausto: da Noruega à Grécia e da União Soviética à França. • Há canções de todos os lugares onde os judeus foram encontrados: cidades, aldeias, florestas, guetos, campos de trabalho e concentração, campos de extermínio e, em circunstâncias muito específicas, alguns Sonderkommandos1 testemunharam sobre alguns judeus cantando enquanto morriam nas câmaras de gás de Birkenau: principalmente o Shema Israel e hinos, entre eles o Hatikva. • Há canções em todos os idiomas que os judeus falavam naquele momento: é claro que o corpus principal está em iídiche; mas temos canções em lituano, russo, alemão, romeno, grego, húngaro, francês, ladino, italiano, alemão, servo-croata etc. • Essas canções foram criadas por mulheres, homens e crianças de todo o espectro socioeconômico-religioso-cultural-político.... No entanto, muitas dessas canções são anônimas.
A pergunta que não quer calar é: Por que cantar durante um genocídio? Por que cantar enquanto o mundo estava colapsando e as chances de sobreviver não eram mais do que uma mera utopia? Em outras palavras, que função desempenharam as canções e o canto durante o Holocausto?
Para tentar responder a essas perguntas, analisaremos algumas canções e suas histórias:
A primeira é uma canção que aparentemente foi criada durante a segunda metade de agosto de 1942, no Gueto de Varsóvia. O nome da canção: “Treblinka”. Aparentemente, a melodia foi tirada de um tango bem conhecido de antes da guerra. Como tantas canções desse período, ela é anônima:
“Não muito longe daqui, uma pequena vila. Na UmschlagPlatz2, perto dos vagões, há um verdadeiro caos. Todos nós temos que entrar. Tão assustador!
E, de repente, um grito! Uma garotinha não muito longe de sua mãe chora: ‘Você me deixou sozinha, por favor, fique comigo! Fique comigo querida mamãe, volte Maminu, eu nunca estive sem você!’
A vila de Treblinka foi preparada para os judeus. Quem chega lá, permanece para sempre.
Pais e mães, irmãos e irmãs são empurrados para as câmaras de envenenamento e esse é o seu fim”.
Alguns antecedentes dessa canção: de 22 de julho até os primórdios de setembro de 1942, os alemães organizaram uma enorme “Aktion” no gueto de Varsóvia, durante a qual deportaram 300.000 judeus do gueto para o campo de extermínio de Treblinka. No início da “Aktion”, os judeus foram atraídos para a UmschlagPlatz pela SS com a promessa de receber 3 quilos de pão e 1 quilo de geleia. Foi-lhes dito que seriam deportados para o Leste para trabalhar em melhores condições do que as que haviam no gueto. Para as pessoas que estavam morrendo de fome, aquilo seria suficiente e os judeus vinham aos milhares sem saber o que os esperava na realidade. Mas, então, algumas coisas aconteceram: os judeus que estavam trabalhando na UmschlagPlatz perceberam que os trens estavam voltando muito rapidamente, contrariando a história da deportação para o Leste. Eles então notaram que pessoas idosas e doentes, bebês e crianças órfãs estavam sendo deportadas... as quais obviamente não iriam trabalhar.
A essa altura, alguns judeus conseguiram escapar do campo, retornaram e contaram o que realmente estava acontecendo; ao mesmo tempo, o gueto subterrâneo, com a ajuda de trabalhadores ferroviários, enviou alguns homens para espionar. Eles não conseguiram entrar no campo, mas relataram ter visto um pequeno acampamento no qual nenhuma comida ali chegava.... Os judeus que estavam sendo deportados para lá tinham evaporado; havia apenas aquele cheiro terrível pairando sobre a área...
Ao ouvir a canção “Treblinka”, é possível entender toda a história em aproximadamente dois minutos: o caos que

reina na UmschlagPlatz, o terror antes de ser empurrado para dentro daqueles vagões, o grito ensurdecedor da pequena menina separada de sua mãe pela primeira vez em meio a uma verdadeira catástrofe, saber que isto está acontecendo porque se é judeu, que não há como escapar e que a morte é o único destino.
Outro ponto muito importante sobre essa canção específica: eu tenho 17 versões diferentes dela... Porque, se ela “nasceu” no gueto de Varsóvia, ela “viajou” para a Alemanha, para a Belarus, para a Romênia, numa época em que os judeus eram mortos aos milhares todos os dias, quando os judeus não tinham nenhum meio de comunicação regular. A canção, como tantas outras canções, voou sobre arames farpados, dos guetos aos campos; temos testemunhos de judeus que ouviram falar do campo de Treblinka pela primeira vez através dessa canção. Esse é o caso da húngara Shoshana Kalish, que relatou ter escutado pela primeira vez sobre o campo de Treblinka enquanto estava no campo de Peterswaldau, em setembro de 1944, escutando uma menina judia po-
A canção Treblinka, lonesa cantando a canção. (Nessa época, como tantas outras Treblinka já havia deixado de existir há canções, voou sobre muito tempo.) Mas por que cantar uma canção sobre arames farpados, dos o desenrolar de uma catástrofe? Esta não guetos aos campos; é a forma “normal” das pessoas reagirem temos testemunhos de ante qualquer emergência. Antes de resjudeus que ouviram falar do campo de Treblinka ponder a esta pergunta, eu gostaria de dar outro exemplo: Letra de Tzvi Garmiza, compilada por pela primeira vez Shmerke Kaczerginski, em Lider fun di através dessa canção. Getos un Lagern. Embora a melodia tenha sido emprestada da peça teatral “A mames harts” (Um coração de mãe), parece que a versão original é de fato uma popular canção polonesa com o mesmo título (“Serce matki”), de Szymon Kataszek e Zygmunt Karasiński. “Eu Perdi Meu Marido/ Chega de lamúria,/ Minha vida logo chegará ao fim;/// Não tenho mais lágrimas para chorar,// Ninguém quer me ouvir chorar./// Então me faça chorar, eu lhe imploro,/ Você consegue entender minha dor?/ Meu coração está partido,/ Minha consciência me aflige,/ Eu quero que esta vida acabe./// Refrão 1 Alvejada e mor-
Commons Wikimedia / Adrian Grycuk Revista da Associação Cultural–ATID / Associação Religiosa Israelita–ARI | devarim | 21

ta está minha mãe,/ Eu vi com meus próprios olhos, Junto com meu pai,/ Havia uma vala gigante. /Eu perdi meu marido, e dei à luz naquele mesmo dia;/ A criança mal tinha visto a luz—/ Do meu seio para o túmulo,/ De alguma forma, por desgraça, o fato de ter ficado sozinha me salvou,/ A bala falhou, ela passou por mim,/ Eu fugi em meio aos prantos angustiados./ Agora na floresta, escondida,/ Eu ainda ouço meu bebê gritar! / Nascido naquele dia,/ Tirado de mim – Deus, foi essa a sua vontade? // Refrão 2 Oh, Deus da vingança,/ Onde você está neste momento? / Você pode ver dentro da minha alma,/ Ou será que você está cego? / Justiça: é o que não há por aqui, eu choro e suplico e lamento;/ Chega de “chorar em sua tenda” ”— o sadismo governa esse nosso mundo”.
Esta é, de fato, uma canção muito dura. Ela descreve uma situação insondável, uma Aktion na Lituânia durante a qual uma mulher foi capaz de escapar de um assassinato em massa, mas a um preço tão alto! Nessa canção, Tzvi Garmiza dá a essa mulher sua voz. Ela fala de seu estado de espírito e descreve o horror que a atingiu. Nós a escutamos quando ela volta sua fúria e raiva a Deus porque nada neste mundo é capaz de explicar o que aconteceu lá. É uma canção de fé, apesar da raiva e do questionamento. Ela não está rejeitando a Deus.
Temos duas canções que cantam a história de terríveis acontecimentos que se desenrolam em velocidades diferentes, mas de uma forma muito condensada, frontalmente, em uma melodia que era conhecida pelas pessoas pertencentes a um mesmo entorno cultural. Para aprender e cantar as canções não era preciso muito esforço e paciência – tais qualidades não estavam disponíveis nos guetos e nos campos! –, não era preciso papel e caneta, algo que não se podia encontrar em um campo pois estavam proibidos.
Em um gueto, podia-se escrever: muitos judeus escreveram diários. Mas quando vieram as Aktions, os alemães saquearam e destruíram todos os pertences dos judeus. A canção foi uma maneira fantástica de contar a história: mesmo que o autor da canção tenha sido assassinado depois, ela seguiu seu próprio curso, cantando sua mensagem. Muitas das canções compostas durante o Holocausto contam uma história. A canção foi uma maneira Portanto, antes de mais nada eu difantástica de contar a ria que cantar foi um meio de comunicar história: mesmo que o o que estava acontecendo, o que era de suma importância quando todos os vestíautor da canção tenha gios de vida e morte judaica estavam sensido assassinado depois, do erradicados. Halina Birnbaum, uma ela seguiu seu próprio sobrevivente e cantora, escreve: “As cancurso, cantando sua mensagem. Muitas das ções que foram compostas nos guetos e nos campos de extermínio foram a expressão da vida ali, do forte desejo de deixar vestígios, canções compostas de manter um espírito humano. ... Tais candurante o Holocausto ções nos contam fielmente hoje o que acontecontam uma história. ceu ali, naqueles tempos, como as pessoas se mantiveram de pé frente ao abismo, quando a morte e o massacre dominavam tudo sem limites e sem sentido”.3 O cantar assumiu ainda muitas outras funções. Por agora, a melhor maneira de tentar compreender o significado e os papéis das canções e do canto durante o Holocausto é ler o que alguns sobreviventes explicaram sobre o assunto: Um testemunho de Majdaneck: “À primeira vista, parecia que os judeus gregos que víamos no campo de concentração tinham pouco em comum com aqueles seus irmãos da Polônia, Hungria, Tchecoslováquia ou França. Seus cabelos, sobrancelhas e cílios eram negros, e sua pele era da cor de chocolate claro. Eles eram durões e teimosos, e falavam muito rápido. Eles falavam entre si em grego, e às vezes também em francês, espanhol, italiano ou mesmo hebraico, mas não conheciam nem o iídiche nem o alemão. Como resultado, os judeus que queriam falar com eles tinham que fazê-lo através de um companheiro de prisão judeu que por acaso falava tanto o iídiche quanto o hebraico.... Naquela primeira noite, duas vozes vindas da escuridão começaram a cantar; eram dois homens daquele contingente grego. Foi a primeira vez que ouvimos um estilo de canto tão estranhamente próximo; foi direto ao nosso coração como as palavras de uma mãe, de uma irmã ou de uma amante.... Quando a canção terminou, todos suspiravam profundamente. Embora não conseguíssemos entender a letra, a melodia havia chacoalhado até os recônditos dos nossos corações”.4 Myriam Ha’rel, nascida em 1924, foi levada com sua família para o Gueto de Lodz: “As palavras estavam espalhadas pelas ruas, bastava recolhê-las. Não era minha ima-

ginação, as palavras estavam lá; eu só tinha que colocá-las no papel. Eu conhecia as melodias de antes da guerra. Todas elas eram melodias felizes, eu não conhecia melodias tristes. Então, eu escrevi e me senti livre depois que as deixei sair. Minha família as leu e depois as cantou.... Eram noites longas e escuras e todos nós estávamos famintos e não conseguíamos adormecer”. “Cantar tinha um papel importante na vida judaica. O povo judeu chegou a um estado de desespero tão profundo que só cantar poderia ajudar. Quando alguém canta, mesmo que seja uma canção triste, sua solidão desaparece, ele escuta sua própria voz. Ele e sua voz se tornam duas pessoas. Cantar é uma manifestação de esperança. As pessoas antes de sua morte não lamentam, elas cantam. A canção é um choro, e depois dela você se sente livre”.5
Ester Rafael, nascida em Corfu e deportada aos 16 anos para Birkenau em 1944, testemunhou: “Nós cantamos para os nossos companheiros de reclusão ao longo de três minutos. Três minutos durante os quais não trabalhamos. Três minutos lá, isso era uma grande coisa! Quando se canta, se tem a sensação de ser livre”. É algo que ninguém pode tirar de você. Quando eu canto, eu sou aquilo que eu quero ser”.
Muitos foram os motivos e os papéis que assumiram as canções durante o Holocausto. Mas acho que comunicar-se e cantar com outros, deixar uma marca, expressar a própria angústia, desespero e solidão e o próprio ser estão entre as causas e as funções mais importantes.
Tamar Isabelle Machado Recanati nasceu na França e imigrou para Israel em 1971. Ela é bacharel em Ciência Política, Relações Internacionais e Psicologia, com mestrado em Musicoterapia e Musicologia. Sua investigação sobre a música dos judeus durante o Holocausto teve início há 26 anos e desde então nunca mais parou, vindo a fazer parte da equipe que criou o novo Museu do Holocausto, inaugurado no Yad vaShem em 2005. Atualmente ela ensina e pesquisa para o Yad vaShem sobre os muitos temas relacionados com a música e o Holocausto. Como hobby, ela também ensina História da Música Clássica Ocidental. Ela é da 2ª geração de sobreviventes do Holocausto, por ambos os pais.
Traduzido do inglês por Kelita Rejanne Cohen.
Notas
1 Sonderkommandos: eram os homens, principalmente judeus, que eram obrigados a trabalhar nas câmaras de gás e crematórios. 2 UmschlagPlatz: O ponto de partida em Varsóvia a partir do qual centenas de milhares de judeus foram deportados para campos de extermínio nazistas. https:// www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205896.pdf 3 Halina Birnbaum: Shirim Lifnei oumiToch haMaboul, p. 10. 4 Paul Trepman, Among Men and Beasts, p. 156? In Jerry Silverman, The Undying Flame, Ballads and Songs of the Holocaust (Syracuse University Press, 2002), p. 245. 5 Gil Flam, Singing for Survival: Songs of the Lodz Ghetto, 1940-1945 (University Illinois Press, 1992) p. 107.
