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Martín Hirsch

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Vittorio Corinaldi

Vittorio Corinaldi

A ETERNA ALIANÇA

O pacto do Sinai era único: um acordo entre uma deidade e um povo para criar um novo relacionamento iniciado por Deus através da abolição da escravatura. Requeria uma resposta do povo para ser um “reino de sacerdotes” e uma “nação santa” (Êxodo 19:6) e dando uma série de orientações de como consegui-lo.

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Martín Hirsch

A Eterna Aliança

As festividades de Pessach e Shavuot estão intrinsecamente conectadas. Não só por causa da contagem das sete semanas do Omer, mas também devido ao impacto dessa conexão na configuração do judaísmo ao longo dos séculos.

Pessach representa a passagem da opressão à liberdade, delineada pela ação e poder divinos. Toda a narrativa de Pessach é uma alegoria do poder de Deus sobre as divindades egípcias e sobre a natureza. Em forma progressiva e gradativa, as pragas enviadas ao Egito demonstram a superioridade de Deus sobre qualquer outro panteão de deuses. E a travessia do Mar dos Juncos (ou Mar Vermelho) demonstra o poder de Deus sobre as forças da natureza.

Pessach marca o nascimento de Israel como uma nação física. Por esta razão, as analogias entre o êxodo do Egito e o nascimento de um bebê não são incomuns: Góshen, a fértil região egípcia onde os israelitas viveram, é comparada a um ventre. Mitsráim (Egito), que contém a raiz hebraica do “tsar”, “estreito”, “estrito”, “angústia”, é comparado com o canal do parto, e depois vem o nascimento, com seu gran finale em meio à divisão das águas.

Shavuot, no outro extremo, representa a revelação divina no Sinai. Representa a consumação do êxodo, no qual Deus apresenta a solene aliança (brit) com o povo de Israel, dando-lhe instruções, estatutos e leis. Esta aliança é moldada de acordo com os pactos de vassalagem dos povos do antigo Oriente Médio. Um modelo que se baseia em tratados, nos quais um rei mais fraco aceitava um rei mais poderoso como seu superior, e toda a população se subordinava a esse rei.

Uma evidência histórica dessa relação de subordinação pode ser encontrada nos tratados dos hititas com reis subalternos (1350 aec.), cujas formulações oferecem um paralelo próximo ao tratado de Deus como soberano sobre Israel, descrito na Torá.1 A estrutura de tais tratados era a seguinte: começaram com um preâmbulo e um prólogo histórico, depois vinha uma série de bênçãos concedidas pelo soberano, seguidos pelas cláusulas do acordo, que incluíam a promessa do protegido de não se aliar a outros reis, e concluíram com uma série de maldições em caso de incumprimento.

Muitos desses elementos podem ser encontrados na aliança do Sinai entre Deus e Israel: “Eu sou o Senhor” (preâmbulo), “que vos tirou do Egito” (benefícios concedidos); “Não tereis outros deuses” (proteção exclusiva), seguidos das condições enumeradas nos mandamentos. Outros tratados que se assemelham à estrutura encontrada no tratado do Sinai são os tratados neoassírios (670 aec.).

No entanto, de todos os tratados do antigo Oriente Médio, apenas Israel concebeu a sua relação com uma divindade como um pacto. Isto é surpreendente, uma vez que os pactos eram acordos políticos, militares, econômicos ou conjugais, mas não incluíam uma divindade. A função desse pacto era definir a relação exclusiva entre um povo e o Deus único. Os dois primeiros mandamentos definem uma relação personalizada, uma vez que Deus tem um interesse especial em que Israel não se envolva com outros deuses.

O pacto do Sinai era único: um acordo entre uma deidade e um povo para criar um novo relacionamento iniciado por Deus através da abolição da escravatura. Requeria uma resposta do povo para ser um “reino de sacerdotes” e uma “nação santa” (Êxodo 19:6) e dando uma série de orientações de como consegui-lo.

Embora os outros povos do Oriente Médio já tivessem leis de conduta contra homicídio, roubo etc., essas leis estavam formuladas como “se... então”. Se alguém cometesse assassinato, então receberia tal punição. Por outro lado, o decálogo do Sinai o declara em forma absoluta: “Não matarás”, “não roubarás”. Em outras palavras, a aliança do Sinai apresenta princípios universais e éticos. Se algum desses atos for cometido, não se trata apenas de ilegalidade na conduta, mas é, além disso, um comportamento impróprio que viola princípios universais.

Essa aliança é mais do que um antigo tratado de sujeição, já que representa um dos fundamentos do judaísmo: Deus está preocupado com a forma como nos tratamos uns aos outros.

Outra característica notável da aliança do Sinai é que seu texto levou em conta cada indivíduo de Israel, considerado um membro responsável pela comunidade. Isto se reflete nas palavras de Moisés: “O Senhor, nosso Deus, fez uma aliança conosco em Chorev.2 Não com os nossos pais foi feita essa aliança, mas conosco, os que estamos vivos, com cada um de nós que está aqui hoje”. (Devarim / Deuteronômio 5:2-3)

Isto confere à aliança uma dimensão eterna, uma vez que ela se renova de geração em geração. Cada vez que uma pessoa aceita os ditames éticos da Torá, está reacendendo a aliança. Mais ainda, é como se ela própria estivesse diante do Monte Sinai escutando a voz de Deus.

Para os profetas, a dimensão eterna e imutável da aliança implicava que, mesmo que o povo não cumprisse as exigências e caísse na idolatria, a justiça divina recairia sobre o povo na forma de um inimigo externo. Contudo, o castigo era atenuado pela compaixão divina, que, para além da destruição, prometia um futuro glorioso. Isto salientava o carácter eterno da aliança entre Deus e Israel.

A aliança na época talmúdica

Para os nossos sábios, a aliança é recriada continuamente através do relacionamento entre Deus e Israel. Cada Shabat e cada festividade é visualizada como um “ot”, um “sinal” do concerto eterno. Os sábios do Talmud compreenderam a necessidade de reconstruir a vida judaica em tempos nos quais a centralidade do Templo de Jerusalém já não existia e a diáspora se mostrava em franco crescimento.

O desenvolvimento da Torá Oral não teria sido possível sem a consideração que eles sentiam de ter o direito de interpretar a Torá Escrita para manter a presença de Deus entre o povo judeu.

Eles se apoiaram no versículo da Torá que diz: “Conforme ao mandado da lei que te ensinarem, e conforme ao juízo que te disserem, farás. Não te afastarás das palavras que te declararem”. (Devarim / Deuteronômio 17:11)

Como não havia sacerdotes ou profetas, os sábios interpretaram que eles herdaram a autoridade legítima para continuar o trabalho interpretativo, de modo que a aliança eterna pudesse ser aplicada em cada tempo.

Parece uma ideia revolucionária, mas no primeiro capítulo da Mishná Pirkei Avot, o Tratado de Princípios dos Sábios, esta ideia é apresentada de forma pragmática, uma vez que é apresentada uma longa cadeia de tradição revelada, começando no Sinai: “Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu a Josué, e Josué aos anciãos, e os an-

Para Martin Buber, não ciãos aos profetas, e os profetas transmitidevemos perceber o ram-na aos membros da Grande Assemjudaísmo como uma série bleia (que por sua vez a transmitiram aos sábios)”. de leis de cumprimento Eles foram ainda mais longe ao indiobrigatório, mas, sim, car que já não era o tempo dos profetas, como a promoção de quando escreveram o Talmud: “Desde o relações especiais com outros seres humanos, dia em que o Templo foi destruído, a profecia deixou os profetas e foi entregue aos tolos e às crianças”. (Bava Batra 12b) que ele chamou “relação Os autores da Torá Oral estavam cer-

Eu-Tu”, deixando de tos de que as leis propostas não eram uma lado todo o utilitarismo, invenção pessoal, mas que derivavam de uma vez que, em todas princípios da Torá Escrita. O judaísmo atual se intitula “judaísas relações sinceras mo rabínico” porque se baseia na Torá “Eu-Tu”, nos alinhamos Oral, desenvolvida ao longo dos séculos, com o “Tu Eterno”. em vez de tomar a Torá Escrita na sua literalidade. E isto se aplica a todas as correntes do Judaísmo. O pacto do Sinai é eterno e o seu eco é moldado às necessidades dos tempos, sem perder o seu alicerce na Torá de Moisés.

O Iluminismo: Uma época de mudanças

Do século XVII em diante, o surgimento do Iluminismo mudou radicalmente a compreensão da aliança e a natureza da revelação. Os judeus, e a cultura ocidental em geral, preferiram confiar na razão como a principal forma de compreender o mundo e Deus. Assim, surgiu uma variedade de pensadores judeus que justificavam a fé e a ação com base no pensamento racional. Alguns, como Hermann Cohen, pensavam que a revelação era resultado de um pensamento racional sobre Deus. O rabino neo-ortodoxo Raphael Shimshon Hirsch aplicou a razão para explicar que Israel era uma nação em virtude das leis divinas, e que receberia a terra de Israel a fim de aplicar ali essas leis. Em contraste, as outras nações possuíam primeiramente uma terra e, só então, criavam as suas próprias leis. O rabino reformista Léo Baeck enfatizou o fato de “todo o povo” ter participado do encontro do Sinai. Não estava presente apenas uma elite ou alguns escolhidos, e isso, de acordo com o seu pensamento, é um princípio fun-

dacional. Portanto, ninguém pode assu- A Torá desenvolve um mir a tarefa do outro, cada pessoa tem so- humanismo idealista, bre si a responsabilidade de manter a existência unificada de Israel e a sua aliança. ao indicar que devemos

Franz Rosenzweig, filósofo da primei- nos ocupar do bemra metade do século XX, argumentou que -estar dos pobres, dos quem quiser acreditar na realidade da teo- menos favorecidos e dos fania e, além disso, quiser se enfrentar a todas as dificuldades literárias e históricas do texto bíblico, deve concluir que tudo oprimidos, a fim de criar uma sociedade ideal. o que o povo experimentou no Sinai foi a “avassaladora presença divina”, que os motivou a aceitar Deus como uma força exigente nas suas vidas.

Aqui vemos o pensamento da escola existencialista, que ensinou que o conhecimento de qualquer assunto começa pela compreensão da experiência individual de cada pessoa.

Para Martin Buber, portanto, a revelação no Sinai não foi uma mera entrega de palavras, mas a revelação de Deus. Todas as palavras da Torá são um registro das percepções das pessoas que participaram no Sinai. A narrativa da Torá é importante porque testemunha a experiência de Deus. A descrição da Torá desse evento, e os mandamentos, são reações humanas ao estar em contato com Deus. A consequência dessa experiência consiste em recriá-la em cada momento da vida, através do nosso relacionamento com o próximo. Portanto, não devemos perceber o judaísmo como uma série de leis de cumprimento obrigatório, mas, sim, como a promoção de relações especiais com outros seres humanos, que ele chamou “relação Eu-Tu”, deixando de lado todo o utilitarismo, uma vez que em todas as relações sinceras “Eu-Tu”, nos alinhamos com o “Tu Eterno”. Bibliografia

A aliança monoteísta de amor

No Sinai, a Torá enfatiza o amor de Deus pelo povo de Israel. Trata-se de uma divindade próxima, mas de uma forma espiritual, não física, que, por sua vez, demanda a lealdade de Israel. Por esta razão, há passagens no sentido de “amarás a Deus com todo o teu coração”. Esse amor é aperfeiçoado através do monoteísmo: a ardente e apaixonada defesa de Moisés acerca do monoteísmo moldou e sustentou o judaísmo durante séculos. O monoteísmo atinge o seu mais alto grau no versículo incluído no capítulo 6 de Deuteronômio: “Shemá Israel Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Ouve, ó Israel, Adonai é o nosso Deus, Adonai é único”, o que, para muitos, representa a própria declaração de fé do judaísmo. No entanto, o judaísmo não é uma religião exclusivamente baseada na fé, nem é uma simples crença num Deus único, mas é uma relação com Deus e com os seres humanos. Uma relação que é aperfeiçoada pela ideia da transcendência de Deus, da Sua justiça e da Sua ética. Uma relação estreita entre Deus e o Seu povo, baseada na “avassaladora experiência da presença divina”, nas palavras de Rosenzweig.

Moisés exorta a viver de acordo com o monoteísmo e seus valores, perseguindo a justiça e o direito, vivendo em harmonia com o nosso próximo e com Deus. Além disso, Moisés explica que o bem-estar depende da manutenção de uma sociedade na qual imperem os valores da ética e da justiça expressados na Torá. Não devemos ver esses valores como impostos pela força, mas como um verdadeiro presente de Deus.

A Torá desenvolve um humanismo idealista, ao indicar que devemos nos ocupar do bem-estar dos pobres, dos menos favorecidos e dos oprimidos, a fim de criar uma sociedade ideal. Esse ideal está representado nos elevados valores morais do judaísmo reformista: respeito pelo ser humano, inclusão, tolerância e justiça. O impacto da revelação divina tanto em yetsiat Mitsráim – “a saída do Egito” – como no Sinai reflete-se nas ações e nos pensamentos do povo de Israel.

Plaut W., Gunther. The Torah, A Modern Commentary. Union of American Hebrew Congregations, New York, 1981. Lieber, David; Dorff, Elliot. Etz Hayim, Torah and Commentary. The

Rabbinical Assembly, New York, 2001.

Martín Hirsch é estudante de rabinato no IIFRR – Instituto de Formação Rabínica Reformista.

Traduzido do espanhol por Kelita Rejanne Cohen.

Notas

1 Plaut W., Gunther, The Torah, A Modern Commentary, New York, 1981, p. 375. 2 Chorev é outro nome usado na Torá para o monte Sinai.

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